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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

O 60.º aniversário da NATO: por bom caminho, e segue.

Manuel Fernandes Pereira *

 

É notável que uma Aliança criada para ser de defesa mútua perdure por tão longo período de tempo, durante o qual a vida internacional conheceu muitos acontecimentos de relevo. Neste artigo analisa-se a evolução da NATO e as sucessivas transformações de que foi palco, bem como muitas das hesitações e dos dilemas com que se tem deparado, tentando traçar-se um cenário futuro. Por fim, destaca-se também o papel de Portugal no seio da organização ao longo dos últimos sessenta anos.

Palavras-chave: nato, Portugal, União Europeia, relações transatlânticas

 

NATO’s 60 anniversary

It is remarkable that an Alliance built to assure mutual defence remains relevant for such a long period, with so many changes in the international environment. This article analyses NATO’s evolution and succeeding transformations, as well as the several hesitations and dilemmas it still has to go through to reach the future. In addition, it highlights the role of Portugal, a founding member, throughout the last sixty years.

Keywords: NATO, Portugal, European Union, transatlantic relations

 

Ao escrever o título deste artigo, para além de ter pedido desculpa aos manes de Francisco Grandella pela utilização (parcial) do conhecido lema, hesitei se deveria terminá-lo com um ponto de exclamação ou um ponto de interrogação. Acabei, prudentemente, por colocar um neutro ponto final mas aquela hesitação reflectiu, de certa forma, o insofismável sucesso, mas também os muitos debates internos e interrogações que tiveram lugar durante os primeiros sessenta anos de existência da Aliança Atlântica. Penso que o seu futuro será igualmente assim.

À partida, é indiscutivelmente notável que uma Aliança criada para ser de defesa mútua perdure por tão longo período de tempo durante o qual a vida internacional conheceu muitos acontecimentos de relevo como, por exemplo, a Guerra da Coreia, a crise do Suez, a criação do Pacto de Varsóvia, a revolta na Hungria, os processos de descolonização, o Muro de Berlim, a crise de Cuba, os conflitos israelo-árabes, a Guerra do Vietname, a invasão da Checoslováquia, a crise de Chipre, a invasão do Afeganistão, mas também, nos últimos vinte anos, a reunificação da Alemanha, o fim do Pacto de Varsóvia e a dissolução da União Soviética, a fragmentação da Jugoslávia, as guerras no Iraque, os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 e a intervenção internacional no Afeganistão. Alguns destes acontecimentos terão tocado mais de perto a NATO do que outros, mas nenhum pôs ainda verdadeiramente em causa a sua existência.

Para explicar esta longevidade julgo que há que tomar em consideração, em primeiro lugar, o facto de que os sucessivos governos dos países aliados e uma parte significativa das suas opiniões públicas – tanto dos que criaram a Aliança como daqueles que a ela aderiram mais tarde – constataram que, à luz da triste experiência da primeira metade do século XX, a segurança e estabilidade da Europa dependem, de forma incontornável e insubstituível, da existência de fortes vínculos de solidariedade transatlântica. Por outras palavras, a paz na Europa não estará bem assegurada se não houver um continuado envolvimento e co-responsabilização nela por parte dos aliados norte-americanos.

Deve sublinhar-se que a criação da NATO significou, em termos formais, o fim do isolamento continental dos Estados Unidos o qual, desde a mensagem de despedida do Presidente George Washington – recomendando que o país evitasse foreign entanglements – caracterizara predominantemente a sua política externa. Assim se explicam as múltiplas tentativas dos seus adversários, ao longo das seis décadas de existência da NATO, para criar separações ou divisões entre europeus e americanos que pudessem enfraquecer aqueles vínculos de solidariedade, provocando o chamado decoupling entre as duas margens do Atlântico Norte.

Se porventura existiram interrogações acerca da posição do Presidente Barack Obama relativamente à NATO, o próprio se encarregou de as desfazer ao dirigir no próprio dia da sua posse, e ainda na qualidade de Presidente eleito, uma mensagem ao secretário-geral e aos representantes permanentes dos países aliados, que estavam reunidos nessa data. Nela recorda que partilhamos valores democráticos comuns pelo que o laço que nos une não pode ser quebrado e, por isso, «NATO is a unique alliance in the history of the world».

Por outro lado, afigura-se-me que um dos mais importantes factores de coesão e solidariedade entre os aliados tem sido a aplicação, sem excepções, do princípio do consenso no processo de tomada de decisões no seio da Aliança Atlântica. Como muito justamente escreveu o Professor Adriano Moreira, aquando do 50.º aniversário da NATO, a cultura desta, «não podendo ignorar o facto inelutável da hierarquia das potências, conseguiu criar um normativismo que defendeu a igual dignidade dos seus membros, sem violação conhecida»[1]. Tal princípio continua a ser aplicado numa NATO com 26 – em breve 28 membros – como o foi entre os 12 aliados iniciais.

Não pode causar estranheza, nesta conformidade, que havendo sido a Aliança confrontada com complexos desafios ao longo da existência, tenha logrado dar-lhes respostas eficazes após debates onde se reflectiram a diversidade de posições e de sensibilidades dos aliados até se atingirem decisões consensuais. Por isso, embora tenham sido muito frequentes as notícias de que a NATO está em crise, na realidade ela tem sempre concluído com sucesso essas discussões internas, por vezes árduas e prolongadas, mas necessárias.

Acresce que, como realçou o novo Presidente dos Estados Unidos na mensagem acima citada, a Aliança baseia-se na existência de valores comuns a todos os seus membros que se radicam nos princípios da democracia, liberdade e Estado de Direito. A sua defesa e protecção constituem um cimento forte para unir os aliados.

 

A EVOLUÇÃO DA ALIANÇA

A NATO sofreu sucessivas transformações ao longo dos tempos, como seria de esperar, em resposta à necessidade de se adaptar a novas realidades, sem contudo ver alterado o seu tratado fundador. Com efeito, na altura da assinatura do Tratado de Washington, a 4 de Abril de 1949, era urgente estabelecer um sistema de defesa colectiva eficaz de forma a prevenir um ataque armado em larga escala da URSS contra a Europa Ocidental. Optou-se então por uma estratégia militar de contenção com base numa defesa avançada, o mais a Leste possível. Para tal foram aprovados, na reunião do Conselho do Atlântico que teve lugar em Lisboa, em Fevereiro de 1952, objectivos ambiciosos para o reforço dos meios terrestres, navais e aéreos da Aliança. Estas metas não eram, contudo, exequíveis e o potencial nuclear devastador dos Estados Unidos constituiu a verdadeira defesa da Europa pelo seu efeito dissuasor, conforme a doutrina da «Mutually Assured Destruction» (MAD).

A aprovação, em 1956, do chamado Relatório dos Três Sábios, marcou o início de uma nova fase na vida da NATO em que foi dado um maior impulso à consulta política regular e permanente entre os aliados sobre todos os assuntos de interesse comum, pois as ameaças provenientes de Leste não se limitavam ao teatro europeu. Na primeira metade da década de 1960 verificou-se também uma importante alteração na política de dissuasão nuclear da Aliança com a introdução da doutrina da chamada «Resposta Flexível» em lugar da represália maciça. Paralelamente, a França decidia criar a sua força nuclear autónoma e, em Março de 1966, retirava-se da estrutura militar integrada da NATO.

Com a aprovação do Relatório Harmel, em 1967, a Aliança assentou melhor a sua postura na dupla atitude de uma vontade colectiva de defesa apoiada em meios convencionais e nucleares convincentes e, simultaneamente, de abertura ao estabelecimento do diálogo com a União Soviética com vista a uma maior distensão nas relações Leste-Oeste. A chamada détente sofreu contudo uma crise séria no final da década de 1970 com a invasão do Afeganistão por tropas da URSS e com a instalação de mísseis nucleares soviéticos capazes de atingir grande parte da Europa Ocidental a partir de território russo. A resposta aliada, designada como a double track decision, uma vez mais consagrou a doutrina da criação de uma capacidade militar suficientemente dissuasora acompanhada de propostas de negociações sobre controlo e eliminação de certas armas nucleares com a URSS.

As profundas alterações que a Europa de Leste sofreu a partir de 1989 e, concomitantemente, o colapso da União Soviética, tiveram inevitáveis repercussões que se revelaram positivas para a postura da Aliança a qual, logo em 1990, anunciava a intenção de pôr fim ao conflito Leste-Oeste através de um novo relacionamento baseado no diálogo, na cooperação e na confiança mútua, designado como «Parceria para a Paz» (PfP). Nesta óptica, surgiu, em 1991, o North Atlantic Cooperation Council (NACC) e depois, em 1997, o mais ambicioso e abrangente Euro-Atlantic Partnership Council (EAPC). Este conta actualmente com 50 estados-membros (24 parceiros, que vão da Arménia ao Uzbequistão, para além dos 26 aliados) e com cada parceiro têm vindo a ser desenvolvidos programas individuais de cooperação. A relação bilateral estratégica com a Rússia foi oportunamente enquadrada pelo Conselho NATO-Rússia (NRC) e o reforço dos laços com a Ucrânia deu origem à Comissão NATO-Ucrânia (NUC). Mais tarde, fruto do oportuno entendimento de que a segurança europeia não podia estar desligada de uma desejável estabilidade no Norte de África e no Golfo, foram lançadas as iniciativas para com os países daquelas regiões designadas respectivamente como «Diálogo Mediterrânico» e «Iniciativa de Istambul».

A década de 1990 ficará sobretudo relevantemente assinalada pelos processos de alargamento da NATO, por fases, a novos aliados provenientes do antigo Pacto de Varsóvia e pela aprovação de novos conceitos estratégicos da Aliança, respectivamente em 1991 e 1999 (o que revela a rapidez das transformações e a importância de os ter em linha de conta). Por outro lado, a desagregação da Jugoslávia e os conflitos regionais a que ela deu lugar nos Balcãs motivaram as primeiras participações da NATO em operações reais de peacekeeping e peace-support por imperativos humanitários. Estas traduziram-se no envio de forças terrestres, navais e aéreas para fora do território da Aliança, designadamente na Bósnia-Herzegovina, no Kosovo e na FYROM a partir de 1995 (missões designadas como «não-artigo 5.º»). A controversa campanha aérea contra a Sérvia, em 1999, para protecção da maioria albanesa da população do Kosovo (e não para defesa de território aliado) marcou, sem dúvida, o início de uma nova etapa na utilização do potencial militar da NATO.

Cumpriu-se desta forma o triplo alargamento da NATO – geográfico, na área de intervenção e no tipo de missões desempenhadas – preconizado pelo Professor Doutor Severiano Teixeira, em 1999, quando escrevia sobre o futuro da cinquentenária Aliança.

À luz desta síntese resumidíssima de seis décadas, retomo o que disse no início no sentido de que a transformação e adaptação da Aliança, ao longo dos tempos, às mudanças na cena internacional e às novas ameaças que podiam pôr em risco os seus membros não se fizeram sem profundos debates internos. Confrontaram-se neles, muitas vezes, visões distintas acerca do melhor caminho a ser trilhado, do equilíbrio desejável entre reforço das capacidades bélicas e avanço no sentido de um maior desarmamento multilateral, entre a defesa da expansão para Leste dos ideais democráticos e a contenção para evitar o risco de conflitos que pusessem em causa toda a reconstrução do mundo ocidental feita no pós-guerra, entre um aumento das despesas com a defesa por parte de cada aliado e uma distribuição mais alargada dos recursos orçamentais – sempre insuficientes – para atender a melhores políticas sociais.

Recorde-se, por outro lado, que após o Tratado de Maastricht, de 1991, o desenvolvimento da PESC/PESD por parte da União Europeia (UE) (que ainda não atingiu, aliás, as suas potencialidades) foi causa, para muitos europeus e norte-americanos, de acesas discussões entre defensores de visões atlanticistas ou europeístas sem concessões até se ter podido avançar mais criteriosamente para a constatação, a nível transatlântico, de que a complementaridade entre as duas organizações, além de possível, é necessária. As dificuldades que permanecem no relacionamento entre a NATO e a UE – e que são preocupantes – não decorrem directamente das respectivas políticas de segurança e defesa mas antes das consequências de certos alargamentos de cada uma delas na outra. Tem infelizmente sido repetidamente comprovado que não se pode esperar uma evolução positiva da presente situação se não forem tomadas medidas políticas, ao mais alto nível, que tenham como resultado indirecto o desbloqueamento dos factores que impedem a institucionalização de um relacionamento aberto, transparente e mutuamente benéfico entre a Aliança e a UE. O facto de tal não ter ainda acontecido demonstra a complexidade desta situação que é, essencialmente, um problema europeu.

Permito-me, a propósito, recordar que o Conselho Europeu de Dezembro de 2008 reafirmou que a PESD continuará a desenvolver-se «em plena complementaridade com a NATO no quadro acordado da parceria estratégica» entre as duas organizações e no respeito pela autonomia de decisão de ambas. Naquela oportunidade, foi criado um grupo informal de alto nível UE-NATO para melhorar de forma pragmática a sua cooperação no terreno, o que, na minha opinião, não traduz na realidade um grande avanço no plano institucional.

No que respeita ao relacionamento entre europeus e norte-americanos dentro da NATO, é indiscutível que a interpretação dada a muitas questões é frequentemente diversa de um lado ou do outro do Atlântico, não apenas por influência da geografia e do efeito da distância ou das diferenças de dimensão, mas também pelo motivo de existirem historicamente práticas políticas, económico-financeiras e empresariais distintas entre os aliados norte-americanos e europeus, as quais depois se reflectem na discussão das possíveis soluções.

Nestas circunstâncias, é ainda mais digno de relevo o facto de que, contrariando os pessimistas, a NATO tem conseguido manter a sua credibilidade como o melhor garante da segurança colectiva dos seus membros.

No limiar do 60.º aniversário da Aliança Atlântica deve pois fazer-se uma avaliação realista e claramente positiva dos resultados por ela alcançados para se tentar, a seguir, uma prospecção sobre os desafios actuais e os previsíveis, procurando identificar os motivos para a sua continuada raison d’être.

É bem sabido que, para alguns, o desaparecimento da ameaça militar soviética e a transformação democrática dos seus antigos estados-satélite se devia ter repercutido no sistema de segurança ocidental, levando à dissolução da NATO. Esta já não teria um adversário a quem fazer face. Sucede que as concepções de segurança das jovens democracias na Europa Central e Oriental, assim como os desafios para a estabilidade europeia que irromperam nos Balcãs com a progressiva fragmentação da Jugoslávia, vieram contribuir de forma evidente para a justificação de uma orientação diferente para o futuro da Aliança naquele período de incerteza. A invocação pela primeira vez, e até agora única, na história da NATO, do basilar artigo 5.º do Tratado de Washington pelo Conselho do Atlântico Norte dois dias depois dos trágicos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos, motivou, por seu turno, um novo e decisivo esforço de actualização dos conceitos de segurança colectiva transatlântica.

Prevaleceu assim, em parte devido à visão estratégica que Washington imprimiu ao processo e transmitiu ao conjunto dos aliados, a concepção de uma NATO mais virada para os novos e multifacetados desafios da segurança colectiva que surgiam ou, pelo menos, que eram melhor identificados. Esta visão acolheu, logicamente, a vontade firme de integração na estrutura de segurança euro-atlântica das novas democracias europeias, incluindo os três estados bálticos que haviam recuperado a sua independência. Assim, assistiu-se a uma evolução profunda da NATO nas duas décadas passadas, com alargamentos que a levaram de 16 até 28 aliados; com uma alteração radical da estrutura militar que se concentrou no topo em apenas dois grandes comandos supremos, designados significativamente de «Operações» (SACO) e de «Transformação» (SACT); com a adopção clara de uma missão estratégica mais flexível do que anteriormente, vocacionada para actuar sobretudo fora da tradicional «área do Tratado» (out of area) na qualidade de garante de segurança e estabilidade colectivas para os seus membros (e também para a comunidade internacional, em geral) face a ameaças mais globais e difusas, como o terrorismo internacional ou a proliferação de armas de destruição maciça (ADM), entre outras.

Pode dizer-se que este processo de transformação da Aliança – que ainda decorre, como convém frisar – tem tido lugar num contexto de consultas frequentes ao mais alto nível entre os aliados por forma a que o nível de coesão e de solidariedade internas não se dilua apesar das interrogações e receios que inevitavelmente acompanham tais alterações no seio de uma organização internacional de tanto relevo. Neste sentido, é revelador o facto de as reuniões cimeiras da Aliança terem sofrido um aumento de frequência, já que num total de 22 cimeiras (incluindo a de Bucareste, em Abril de 2008), 10 verificaram-se durante os quarenta e um anos da Guerra Fria e 12 nos dezoito anos subsequentes! Pode deduzir-se destes números que, apesar da inflexão unilateralista de que foi acusada a política externa da cessante Administração Bush, designadamente no seu primeiro mandato, a consulta interaliada manteve, mesmo assim, uma regularidade suficiente para que sentimentos de insatisfação face a algumas posições adoptadas por Washington não levassem a uma total descrença em relação ao valor intrínseco da NATO.

 

OS DILEMAS E O FUTURO

A aceitação por todos os aliados das mudanças no conceito da ameaça que justificam a continuação da NATO, bem como a partilha desse novo conceito com muitos outros países que, não podendo ser dela membros, se assumem também como security providers e, assim, parceiros dos aliados, correspondeu à necessária adaptação da Aliança às realidades do século XXI. Mas, como é natural, estão sempre a verificar-se alterações nos cenários da vida internacional e, para preparar a Cimeira de Estrasburgo-Kehl comemorativa do 60.º aniversário da NATO, não faltam desafios que competem entre si para ocupar lugar destacado na lista de prioridades colectivas. Acresce que a entrada em funções da nova Administração Obama, em Washington, e as expectativas – quiçá exageradas – de muitas modificações de fundo na visão estratégica do principal aliado, tornam por ora incertas algumas previsões dado que podem facilmente desactualizar-se. Para esta indefinição quanto a rumos futuros deve salientar-se, igualmente, que não é ainda conhecido um trabalho de avaliação concertada dos possíveis impactos nos orçamentos de Defesa dos aliados da crise económica e financeira que o mundo inteiro atravessa.

Os temas que vierem a figurar no texto da «Declaração sobre a Segurança Aliada», destinada a ser o prato forte político do referido evento de alto nível em Abril próximo, poderão fornecer contudo algumas indicações para o médio prazo.

Devem desde já apontar-se, em qualquer caso, certas questões que são comummente identificadas como tendo muito relevo para o futuro da Aliança. Esses tópicos, a partir de Estrasburgo e até à cimeira seguinte, que – vale a pena recordar – terá lugar em Portugal, irão influenciar a elaboração de um conceito estratégico da NATO actualizado, exercício tornado indispensável porque o actual, tal como já referido, data de 1999.

i. Julgo dever colocar, em primeiro lugar, pelo seu peso histórico se mais razões não houvesse, a questão do relacionamento da NATO com a Rússia pois ela contém factores divisivos potencialmente sérios. Pode admitir-se que o mundo unipolar dominado pela potência dos Estados Unidos não será já uma realidade credível para todos mas, em termos da Aliança, convirá não esquecer que aquele aliado arcou com 68 por cento do orçamento militar aliado em 2007. Assim, a qualidade da relação Washington-Moscovo que vier a existir nos próximos anos terá reflexos evidentes no desenvolvimento da atitude perante a Rússia na postura da Aliança, como seja, por exemplo, no domínio estratégico da criação de uma eficaz defesa antimísseis. Deverá levar-se também em linha de conta que, na NATO, se encontram aliados mais recentes que têm vindo a evocar a oportunidade de uma reafirmação colectiva da validade do artigo 5.º do tratado perante atitudes mais assertivas, que consideram preocupantes, da parte do seu vizinho russo. A busca de um equilíbrio entre as posições de todos os aliados nesta matéria será um interessante desafio para a definição de uma linha consensual. Uma coisa parece clara por ora: não existe vontade, em nenhuma parte, de regressar a uma situação de «Guerra Fria».

Esta última questão pode relacionar-se, por seu turno, com o problema mais vasto dos sucessivos alargamentos, reais e potenciais, da Aliança e a leitura que a Rússia pretenda fazer deles. As tensões existentes, em particular em torno dos casos da Ucrânia e da Geórgia, e o aproveitamento político que Moscovo continua a fazer deles constituem parte de uma complexa equação. Será, a meu ver, fundamental que o conjunto dos aliados não sacrifique a solidez da coesão transatlântica para favorecer uma nova expansão da Aliança, ainda mal compreendida por muitos, nem tão-pouco opte por um appeasement do lado russo que seja excessivo e imerecido. A Rússia poderá não desejar ou não poder vir a ser, realmente, uma verdadeira «parceira estratégica» da NATO mas a importância de um relacionamento bilateral estável e seguro deverá ser compreendida e aceite tanto pelos aliados como pelos russos, pois será mutuamente benéfica.

Haverá também de ser estudada no seio da Aliança a proposta avançada, há algum tempo, pelo Presidente russo Medvedev no sentido da negociação de um novo pacto de segurança europeu. Ela apresenta-se ainda bastante vaga mas parece apoiar-se na presunção de que as estruturas de segurança existentes na Europa estão ultrapassadas e não fornecem o grau de eficácia desejável para que a estabilidade no nosso continente esteja bem entregue. A tentativa de subalternizar a NATO em nome da criação de uma entidade mais vasta na qual a Rússia tenha, desde logo, o seu droit de regard, não é nova mas afigura-se significativo que tenha reaparecido agora, aproveitando a incerteza que existiria para alguns sobre o futuro das instituições euro-atlânticas. As diferenças de posição que vierem a lume na abordagem de uma hipotética reorganização daquelas estruturas de segurança surgirão, a meu ver, mais provavelmente entre europeus do que em resultado de clivagens à partida entre americanos e europeus neste contexto. Parece já assente, e bem, que o quadro apropriado para estas reflexões será o da OSCE mas tal não impede que haja uma concertação de posições entre os aliados.

ii. A segunda questão que considero relevante para o futuro próximo da NATO liga-se às intenções anunciadas pela França de voltar a participar na estrutura militar integrada da Aliança, após uma ausência de quarenta e três anos. O impacto, tanto no plano político como no estritamente militar, deste desenvolvimento não está ainda completamente avaliado mas a sua concretização constituirá, espera-se, um factor novo de revitalização para toda a Aliança e um desejável reforço da sua componente europeia. Convirá lembrar o apoio expresso pelo ex-Presidente George W. Bush, na última cimeira, em Bucareste, ao novo activismo euro-atlântico da França. Nada leva a supor que o Presidente Obama tenha atitude diversa. Contudo, Paris ainda não deu um sinal definitivo neste domínio, o que começa a causar certa perplexidade.

iii. No capítulo fundamental das operações militares, é consabido que a NATO se encontra profundamente empenhada, desde 2003, na missão de estabilização do Afeganistão onde constitui a espinha dorsal da International Security Assistance Force (ISAF) que ali actua sob mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Esta operação representa a primeira prioridade militar da NATO e destina-se, sobretudo, a impedir que o Afeganistão regresse à situação, ainda recente, de ser uma reconhecida fonte de terrorismo internacional. A ISAF agrega, presentemente, cerca de 51 500 militares de todos os 26 países aliados e mais dois mil de 15 outros parceiros que partilham a vontade de contribuir para aquele objectivo. Deve ser lembrado, neste contexto que, paralelamente, também decorre no Afeganistão a operação «Enduring Freedom» (OEF) com outras forças militares e sob comando exclusivamente dos Estados Unidos.

Durante o corrente ano, o povo afegão deverá ter novamente a oportunidade de escolher democraticamente, pelo voto livre, os seus dirigentes e, compreensivelmente, a comunidade internacional confere uma importância especial à realização das referidas eleições em condições aceitáveis de segurança e tranquilidade. Com esse propósito, iniciou-se já um processo de consultas dentro da NATO com o objectivo de aumentar numericamente o contributo dos aliados para a ISAF e, também, para melhorar a respectiva flexibilidade quer quanto à possibilidade da sua deslocação dentro do teatro de operações, quer quanto ao levantamento do máximo número de reservas (caveats) que restringem a utilização respectiva. Neste caso particular, é de grande significado o empenho renovado dos Estados Unidos quanto ao Afeganistão – a Administração Obama tenciona colocar, em breve, no terreno um substancial reforço militar. Segundo a mensagem que acima referi do novo Presidente norte-americano, a NATO tem muito trabalho pela frente, designadamente «helping the people of Afghanistan build a better future».

No âmbito da prioridade dada ao envolvimento da NATO no Afeganistão, assume também especial importância a aplicação adequada do conceito de comprehensive approach que foi elaborado pela Aliança a partir da Cimeira de Riga como forma de responder à constatação de que os problemas naquele país – e, mais genericamente, na região onde se insere – não podem ter uma solução exclusivamente militar. Com efeito, compreende-se que não deva caber à Aliança o principal papel em termos de nation building, de ajuda ao desenvolvimento económico e social ou de apoio à criação de instituições afegãs democráticas e eficazes.

O sucesso no domínio da resolução de conflitos reside hoje numa harmoniosa e bem elaborada política multifacetada, englobando componentes diplomáticas, económicas, financeiras, sociais e comerciais, para além da militar. Tal visão implica uma cooperação activa entre si das várias organizações internacionais representadas no terreno e com as organizações não governamentais. No que respeita ao Afeganistão, deve reconhecer-se que o dito conceito de comprehensive approach não conheceu, ainda, uma aplicação prática à altura da sua elaboração teórica, havendo várias explicações para isso. Por um lado, a intervenção das Nações Unidas no terreno através da sua própria missão, UNAMA, a quem caberia o principal papel de coordenação dos programas de ajuda à reconstrução e desenvolvimento do Afeganistão, não tem recebido o apoio internacional indispensável e, devido aos riscos que existem em boa parte do país para a segurança dos seus funcionários, expõe-nos relativamente pouco. Por outro lado, no que diz respeito à coordenação NATO-UE, as dificuldades institucionais a que acima fiz referência prejudicam infelizmente, por agora, o seu desejável aprofundamento, estando quase limitada a arranjos ad hoc a nível local entre a ISAF e a missão de polícia PESD (EUPOL).

Não se podem ignorar, também, muitas deficiências que continuam a prejudicar tanto a eficácia como a imagem do Governo do Presidente Karzai, particularmente no que diz respeito à luta contra a corrupção e contra a droga. Haverá que reconhecer, contudo, que muitos progressos se registaram no Afeganistão nos últimos oito anos e que a história conturbada do país torna particularmente difícil de alcançar, num prazo curto, uma boa governação e a instauração de um sistema democrático estável.

O dilema mais complexo com que se vê confrontada a Aliança no Afeganistão reside, justamente, na dificuldade de manter um esforço militar colectivo prolongado, que se tem revelado muito custoso em vidas e em meios dispendidos, quando a realidade demonstra que os objectivos desejados só poderão ser alcançados com mais tempo e persistência. A tendência que parece começar a prevalecer no pensamento estratégico aliado favoreceria a obtenção de um resultado no terreno em termos de segurança interna que permita às autoridades locais assegurarem, por si, o funcionamento do Estado em moldes de democracia aceitáveis segundo critérios regionais e, bem assim, a manutenção de um relacionamento pacífico e estável com os vizinhos. A comunidade internacional, designadamente a ONU e as suas agências, bem como a UE, continuariam pelo seu lado a proporcionar apoio ao desenvolvimento de forma a que o Afeganistão se possa aproximar suficientemente do nível económico e social do Paquistão.

Neste contexto, assume particular importância a implementação de uma visão estratégica regional por parte da NATO que encoraje os países vizinhos do Afeganistão, com natural destaque para o Paquistão, a contribuírem de várias formas para a sua estabilização, designadamente impedindo os insurrectos (taleban identificados ou não com a Al-Qaida) de atravessar a fronteira comum e empenhando-se no combate ao tráfico de armas e de estupefacientes, uma vez que a ameaça terrorista não está obviamente limitada ao território afegão. Deve ser igualmente mencionado o papel construtivo que a Rússia e alguns estados da Ásia Central poderão assumir em breve se autorizarem o trânsito por via terrestre ou aérea, pelos seus territórios, de abastecimentos destinados à ISAF, tornando esta menos dependente das actuais ligações através do Paquistão.

iv. O papel que a Aliança continua a desempenhar na estabilização dos Balcãs Ocidentais deve merecer, também, uma prioridade destacada, tanto mais que os factores divisivos naquela região estão longe de ter desaparecido. Para além da progressiva integração de vários estados balcânicos na NATO, esta procura aprofundar os laços de cooperação político-militar com os restantes, no entendimento correcto de que será a melhor forma de contribuir para a sua estabilização e democratização interna, para o desenvolvimento de relações de boa vizinhança e para a sua crescente participação no sistema de consultas transatlânticas.

Neste quadro regional, o processo de declaração unilateral de independência do Kosovo não conduziu, como é sabido, ao seu reconhecimento unânime pelos aliados mas, o que é mais importante, também não veio reduzir as participações nacionais na força internacional Kosovo Force – KFOR (actualmente com cerca de 14 600 elementos dos quais 12 300 da NATO) que ali se encontra desde 1999 ao abrigo da Resolução 1244 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Isto parece-me ser um sinal significativo de que os governos aliados (e dos oito países parceiros também nela representados) continuam a aceitar bem a finalidade da KFOR enquanto força militar multinacional encarregada de manter um ambiente seguro e a liberdade de circulação para todos os habitantes do Kosovo, sem distinções étnicas. Nesta óptica de apregoada conformidade com a Resolução 1244, a Aliança iniciou um programa de apoio à criação e treino de uma nova força de segurança kosovar que seja profissional, democrática e multiétnica, a Kosovar Security Force (KSF), retirando ao mesmo tempo de cena o Kosovo Protection Corps (KPC), demasiado ligado historicamente ao conflito com os sérvios. Deve sublinhar-se que a iniciativa decorre com um louvável grau de flexibilidade já que os vários aliados que não reconhecem a independência do Kosovo, ou outros, não estão vinculados a uma participação nela.

(v)        A luta contra o terrorismo internacional constitui uma actividade multifacetada em que NATO se encontra empenhada, sobretudo a partir de 2001, oferecendo para esse fim um fórum de consulta permanente, além do acesso a capacidades tecnológicas em várias áreas relevantes para a segurança colectiva e individual dos aliados e também dos seus parceiros. No quadro da Parceria para a Paz (PfP) e, mais recentemente, do Diálogo Mediterrânico, tem sido desenvolvido um «Partnership Action Plan against Terrorism» (PAP-T) que demonstra bem que existe hoje uma consciência alargada da dimensão global da ameaça terrorista. Além disso, a NATO mantém contactos estreitos com as Nações Unidas e também com a UE para receber e disponibilizar conhecimentos naquele domínio.

(vi)        Ao analisar o seu próprio futuro, a NATO não tem deixado de assinalar a atenção que confere aos chamados «novos desafios do século XXI», mencionando, entre outros, os problemas da defesa cibernética e a protecção das redes de abastecimento dos aliados em produtos energéticos face a ameaças terroristas ou outras. Em ambos os casos, não se está a prever uma responsabilização directa da Aliança pelas respostas a serem dadas contra ameaças cibernéticas ou ataques contra fontes de energia mas antes o aproveitamento da mais-valia que representa a discussão multilateral entre os aliados das possíveis respostas àqueles desafios, as quais continuam contudo a ser primacialmente do foro nacional de cada aliado. Assim, a Aliança pode actualmente disponibilizar meios e conhecimentos para auxiliar uma resposta de um aliado a um eventual ciberataque e tem vindo a tomar posição a favor de uma maior diversificação das redes de pipelines e outras formas de abastecimento em gás natural e petróleo dos seus membros. Os casos do ataque cibernético contra a Estónia e da disputa russo-ucraniana sobre transporte de gás natural para a Europa são exemplos vivos da realidade das referidas ameaças.

vii. Também se deve ter em conta que os riscos que actualmente se colocam para a NATO no domínio da proliferação de ADM são intrinsecamente diversos daqueles que existiam no período da Guerra Fria, pois podem provir do acesso a tais armas de terroristas que não estejam ligados a nenhuma entidade estatal. Na Cimeira de Riga, em 2006, foi aprovada a Directiva Política Abrangente da Aliança que alerta para a probabilidade de, nos próximos dez a quinze anos, este problema de proliferação se tornar a principal ameaça para a segurança dos aliados. Por isso continua a ser desenvolvida toda uma estratégia de prevenção, de dissuasão e de protecção da Aliança que inclui não só os seus membros mas, num quadro mais vasto, os parceiros e outros estados ligados aos regimes internacionais para a prevenção da proliferação de ADM.

viii. Embora não constituam por si ameaças directas à segurança da NATO, não podem ser ignoradas, por outro lado, certas consequências reais ou potenciais das alterações climáticas que o mundo atravessa. Neste capítulo, a evolução que se observa na região árctica, causada pelo degelo cada vez mais acentuado, está a assumir um crescente interesse. A possibilidade da exploração dos fundos submarinos do Árctico, bem como a hipótese revolucionária da abertura de novas rotas oceânicas para Oeste, passando pela costa norte do Canadá e, sobretudo para Leste, ao longo da costa russa, representam novos desafios cujo impacto possível em termos de segurança e defesa não deve ser esquecido. Aliados como a Noruega, o Canadá, os Estados Unidos ou a Islândia têm vindo a acompanhar com atenção crescente aqueles desenvolvimentos. A distância geográfica a que Portugal se encontra daquelas regiões não deve, a meu ver, justificar desinteresse por este assunto pois, para além do dever de solidariedade entre aliados, existem múltiplos factores, inclusive de carácter comercial e ambiental, que poderão eventualmente vir a afectar-nos.

ix. Sem pretender ser exaustivo na menção de temas relevantes para o futuro da Aliança Atlântica, pretendo referir ainda o problema da pirataria marítima, tornado muito actual devido à grave situação criada à navegação comercial nas águas ao largo da Somália. A NATO não pretenderá assumir uma responsabilidade dominante no esforço internacional que, ultimamente, se está a desenvolver com o beneplácito do Conselho de Segurança das Nações Unidas para procurar, pelo menos, diminuir o flagelo. No entanto, é evidente que as forças navais aliadas têm capacidade para dar um valioso contributo para o efeito, demonstrando mais uma vez que a NATO deve hoje ser vista como uma organização político-militar capaz de providenciar maior segurança à comunidade internacional quando tal é aceite pelos restantes intervenientes. Para um melhor aproveitamento dessa capacidade terá de existir uma eficaz cooperação e coordenação por parte da Aliança com outras organizações internacionais (ONU, UE, IMO, etc.) e com os países que disponibilizam, individualmente, meios navais para refrear a pirataria marítima. Hoje em dia, os problemas de carácter jurídico, económico e logístico subjacentes a uma intervenção contra a pirataria recomendam, efectivamente, o máximo de concertação internacional.

x. Devo igualmente realçar o facto de que, após alguns anos de hesitações (sobretudo em Nova York), foi finalmente concluída, em Setembro de 2008, uma declaração conjunta ONU-NATO destinada a formalizar um nível mais elevado de cooperação entre os secretariados das duas organizações. Encontra-se assim aberta uma porta que poderá conduzir a uma útil colaboração, particularmente no que diga respeito a operações de manutenção de paz.

Também não se pode ignorar que a União Africana (UA) tem recebido, a seu pedido, apoio logístico da NATO para as operações de paz que está a levar a cabo no Sudão (ajuda essa coordenada a partir do comando aliado de Oeiras – «JC Lisbon») e na Somália. Por seu turno, a capacidade operacional das brigadas que constituem a African Standby Force (ASF) da UA está a ser objecto de um estudo por parte das competentes entidades na Aliança para ser oportunamente encaminhado à sede daquela organização, em Adis Abeba. Julgo que a NATO deve ser encorajada a encarar favoravelmente a possibilidade de uma crescente ligação com o continente africano pois o apoio que vier daí a resultar para reformas estabilizadoras sob a égide da UA não colidirá, por força do processo de decisão interno aliado, com as nossas próprias iniciativas.

Acresce que não é de excluir que, para além da Somália, outros problemas de segurança possam surgir na vasta fachada oceânica de África. Se o Diálogo Mediterrânico procura dar resposta satisfatória ao desejo comum de segurança dos aliados e dos seus parceiros no Norte de África, poderá admitir-se a hipótese de uma cooperação mais alargada que venha a abranger também, por exemplo, a zona do Atlântico Sul, se tal entendimento merecer a aceitação e interesse dos países ribeirinhos.

 

O PAPEL DE PORTUGAL

Portugal, como membro fundador da NATO, esteve «present at the beginning» (para usar o título das memórias de Dean Acheson) e pode portanto rever-se em todas as decisões que foram tomadas pela Aliança em seis décadas. Convirá contudo lembrar que, em 1949, o regime português de então sentiu certas reservas em relação a aspectos da ideologia política que a Aliança anunciava defender e, durante algum tempo depois de 25 de Abril de 1974, os aliados encararam com mal disfarçada preocupação o rumo político que Portugal poderia seguir. Houve também todo o período de empenhamento militar português nas guerras em África que, para além das crescentes divergências políticas com os governos aliados, trouxe o nosso inevitável afastamento prático de uma boa parte do esforço colectivo de defesa da NATO durante mais de dez anos.

Não obstante estas dificuldades no relacionamento, nunca foi posta em causa por Lisboa a continuação da participação portuguesa na Aliança Atlântica. Julgo que o que ficou acima mencionado sobre o passado e o possível futuro da NATO justifica plenamente a nossa atitude. A vocação atlântica de Portugal e o contacto próximo que hoje mantemos, também, com a zona do Mediterrâneo são contributos muito úteis que podemos trazer para as deliberações do Conselho do Atlântico Norte e factores justificativos para a nossa participação plena em todas as actividades da NATO. A situação geográfica do país não será um elemento estratégico tão visível como foi no período da Guerra Fria mas a verdade é que as rotas marítimas do Atlântico ainda atravessam, habitualmente, o espaço português e este continua portanto a ser fulcral para a estratégia global euro-atlântica.

Acresce que temos sabido sempre defender uma linha equilibrada, favorável à cooperação e à complementaridade, quando são discutidas as relações da Aliança com a UE e procuramos contribuir para a eliminação dos obstáculos que se lhes colocam ainda.

Desde que se iniciou o grande processo de transformação da NATO e esta se empenhou em missões militares de manutenção de paz fora da sua área, têm sempre existido contributos portugueses para elas. Não tendo justificadamente uma dimensão numérica muito grande, tais contributos são contudo de elevado nível profissional e constituíram, até agora, um reforço muito apreciado e elogiado pelos comandos militares aliados. Não se pode subestimar o grande significado também político da existência de uma presença nacional adequada nas operações da NATO pois, como é bem sabido, o valor de cada aliado é medido pelo contributo que fornece conforme as possibilidades e tal constatação repercute-se a muitos níveis, mesmo para lá da Aliança.

Agora que se vai avançar para uma reapreciação global do funcionamento e estrutura interna da NATO com a revisão do respectivo conceito estratégico, teremos de estar atentos a todos os elementos desta reflexão multilateral para que os nossos interesses sejam reconhecidos e acautelados. Para além de uma plena familiarização com esses interesses por todos os que forem chamados a participar nas negociações, a nível político e militar, deverá ser tido em conta que a actuação da Aliança é o resultado da constante consulta entre os aliados, na qual todos podem e devem fazer-se ouvir com clareza.

Como é natural, as perspectivas sobre o futuro desejável de uma aliança com membros geograficamente tão distantes, com vivências históricas tão diferentes, capacidades militares tão diversas e recursos financeiros muito variáveis, poderão apresentar-se à partida como dificilmente conciliáveis. Deveremos procurar evitar que, por força do excepcional empenho posto por alguns aliados na prolongada operação no Afeganistão ou pelas concepções de segurança nacional excessivamente ligadas a um passado próximo, se verifique alguma tendência para a dissociação entre a unidade formal da Aliança e interesses individuais ou de grupos de aliados que levem a uma lógica segundo a qual «é a missão que define a coligação» e, consequentemente, uma progressiva transformação da Aliança numa coalition of the willing. Afigura-se-me pois, nesta perspectiva, que será fundamental que seja mantido bem claro para o futuro que a base de funcionamento da NATO continua a ser o princípio do consenso negociado.

Haverá também que acautelar, em todo o processo de reformas internas que a NATO está oportunamente a levar a cabo, designadamente para actualizar e modernizar o modo de funcionamento e estrutura interna do seu Quartel-General, o carácter essencialmente político de que se revestem todas as decisões do Conselho do Atlântico Norte. Seria nociva para a coesão e solidariedade entre os aliados a prevalência, que alguns pretenderiam, de noções demasiado economicistas ou empresariais para a planificação e avaliação das metas a alcançar no esforço de defesa comum, o qual continuará a ser a principal raison d’être da Aliança.

Recordo, enfim, que a negociação do actual conceito estratégico demorou vinte meses e que, de então para cá, o número de aliados aumentou substancialmente. Assim, tornar-se-á ainda mais importante procurarmos encontrar noutros aliados proximidades ou coincidências de posições que reforcem a nossa capacidade negocial. O realismo, a flexibilidade construtiva e a imaginação criadora terão de estar presentes nas negociações que se antevêem.

Ciente da experiência acumulada ao longo dos últimos sessenta anos e da perenidade dos valores que defende, Portugal irá certamente dar uma significativa contribuição para que a Aliança Atlântica continue a seguir por bom caminho.

 

Bruxelas, 3 de Fevereiro de 2009

[1] AAVV – Portugal e os 50 anos da Aliança Atlântica, 1949-1999. Lisboa: Ministério da Defesa Nacional, 1999, p. 15.        [ Links ]

 

* Diplomata de carreira. Desde Dezembro de 2006 é representante permanente junto do Conselho do Atlântico Norte, em Bruxelas.