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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.20 Lisboa dez. 2008

 

O Homem Do Meio-Termo

Helena Ferreira Santos Lopes

 

 

Gao Wenqian.

Zhou Enlai: The Last Perfect Revolutionary.

Nova York, Public Affairs, 2007, 345 páginas

 

«Quando examinava o papel que Zhou Enlai representara na Revolução Cultural, Deng -Xiaoping observou: “Sem o Primeiro-Ministro, a Revolução Cultural teria sido bem pior. E sem o Primeiro-Ministro, a Revolução Cultural não se teria arrastado por tanto tempo”» (p. 162). Esta ambivalência da actuação política de Zhou Enlai serve de base a uma recente biografia daquele que foi o primeiro-ministro chinês entre 1949 e 1976. Figura admirada mas algo enigmática, Zhou Enlai mereceu comentários entusiasmados de Henry Kissinger – que o descreveu em Diplomacia como «o administrador elegante, encantador e brilhante» – e de André Malraux, que nas suas memórias o apelidou de perfeita encarnação do sábio confucionista. Na China, Zhou permanece uma das figuras mais intocáveis da história da República Popular (rpc), daí o subtítulo da obra The Last Perfect Revolutionary, remetendo para uma ideia que se pretende, se não rebater, pelo menos matizar.

A história da feitura desta biografia daria ela própria um livro digno de interesse. Gao Wenqian, filho de dois membros do Partido Comunista Chinês (pcc) vítimas de purgas, autodidacta que conseguiu um lugar na Direcção Central de Investigação Documental encarregue de redigir um estudo biográfico de Zhou Enlai, viu-se obrigado a deixar a China após ter apoiado os protestos pró-democracia em Tiananmen em 1989. O produto do seu trabalho, uma investigação onde tivera acesso a fontes classificadas do pcc, foi transferido por partes para os Estados Unidos, país de onde é natural a mulher do autor. Em 1992, Gao Wenqian emigrou para os Estados Unidos e conseguiu um lugar no John King Fairbank -Center for East Asian Research em Harvard, onde começou a escrever o que resultaria na versão chinesa de Zhou Enlai’s Later Years, banido na China após a sua publicação e que, em 2007, viu a luz do dia nesta versão em inglês adaptada da original, sem algumas passagens relativas aos meandros da política interna chinesa mas com o acrescento de toda uma primeira parte que cobre os anos iniciais daquele que foi o ministro dos Negócios Estrangeiros e primeiro-ministro da rpc durante décadas.

Nos últimos anos têm surgido algumas biografias de personalidades políticas chinesas, como Generalíssimo: Chiang Kai-shek and the China He Lost, de Jonathan Fenby, ou o polémico Mao: The Unknown Story, de Jung Chang e Jon Halliday. Zhou Enlai já merecera outros estudos biográficos, que oscilaram entre a apologia e a crítica. Gao Wenqian parece por vezes tomar o primeiro caminho, mas firmar tal sentença será precipitado. A análise crítica do autor sobe de tom nos capítulos dedicados à Revolução Cultural, que ocupam uma parte significativa da segunda metade do livro. É aí que a sua tese é enunciada mais claramente: apesar de toda a inteligência e know-how político de Zhou Enlai, sem o seu apoio Mao não teria ido tão longe na Revolução Cultural.

 

ACTOR DE CENAS-CHAVE

Nos seus tempos de juventude, Zhou Enlai integrara um grupo teatral na prestigiada Escola Secundária de Nankai, e não surpreende que o seu talento de actor lhe tenha sido útil ao longo da vida. Uma vida cheia de cenas-chave no que respeita à história da China. Um desses momentos foi certamente a visita de Richard Nixon à rpc em 1972, que abriu caminho para o restabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e aquele país, interrompidas com a vitória dos comunistas em 1949.

Ao invés de iniciar o livro pelo começo da vida de Zhou Enlai – embora se siga depois uma ordem cronológica dos acontecimentos –, o autor optou por um primeiro capítulo dedicado precisamente à visita de Nixon à China, para o sucesso da qual o papel de Zhou foi indispensável. Preferiu mostrar o pico de uma carreira (a visita de Nixon é considerada «o auge da carreira de Zhou Enlai» [pp. 16-17]), para depois enquadrar essa mesma vida no quadro das mudanças políticas da China do século xx. Não o fez com o grau de importância que Jonathan Spence atribuiu ao contexto no seu Mao, sendo que aqui o sujeito focado detém a prevalência, mas é possível revisitar pelo percurso de Zhou toda uma história do século xx chinês, dos últimos tempos do decrépito Império ao fervilhante digladiar de forças no tempo da República, anos formadores de muitos dos que viriam a ocupar lugares de topo no pcc. É aqui que se agrupam os capítulos dedicados à juventude de Zhou Enlai e ao seu progressivo empenho na causa revolucionária como activista estudantil (foi uma das figuras de proa do Movimento de 4 de Maio e fundador do grupo clandestino misto Sociedade do Ressurgimento em 1919), a sua educação no Japão e, depois, em França, onde contribuiu para organizar grupos de estudantes e células comunistas, bem como o seu proeminente papel nas relações com os nacionalistas, servindo de intermediário entre estes e os comunistas durante a guerra civil, e os primeiros contactos com Mao.

A partir do capítulo v o paralelo entre Zhou e Mao ganha destaque, denotando-se desde os anos vinte do século passado, segundo o autor, uma tendência do primeiro para controlar o segundo, que se perpetuaria até à morte de Zhou. Isto apesar de Zhou, no final daquela década, ter ocupado posições superiores a Mao na hierarquia do pcc, algo tão mais impressionante quando se ganha a real consciência da conformação de Zhou a um papel subalterno ao «Grande Timoneiro» nas décadas posteriores.

Como ministro dos Negócios Estrangeiros da China, cargo que ocupou de 1949 a 1958, Zhou foi a voz da rpc no plano internacional. Contudo, as suas visitas de Estado e a sua intervenção, por exemplo, nos assuntos políticos asiáticos, são completamente subalternizadas, ou mesmo omissas, neste trabalho que privilegia as vicissitudes da política interna chinesa.

 

O SERVO FIEL E HUMILHADO

Em todo o livro emerge a ideia de Zhou como um equivalente moderno da figura do funcionário imperial, imbuído das virtudes confucionistas de serviço ao imperador, um homem moderado, capaz de manter alguma ordem no caos semeado por Mao. «Alguém tinha de segurar o forte e o país. Zhou era indispensável. Nesse sentido, ele representava o papel do letrado-confucionista, uma tradição de serviço nacional que, em conjunto com o sentido de lealdade como “ministro” do seu “imperador” influenciou fortemente a sua visão política» (p. 166). Mao e Zhou são caracterizados quase como antípodas complementares: «Zhou acreditava no meio-termo – o derradeiro ideal confucionista. Se Mao era por natureza uma personalidade fracturante e provocadora, Zhou era o diplomata, superiormente ponderado, subtil, encantador» (pp. 64-65).

Boa parte dos capítulos da segunda metade do livro dedica-se ao papel que Zhou desempenhou durante a Revolução Cultural. O autor imputa-lhe alguma responsabilidade no apoio a Mao Zedong, que garantiu a este a lealdade de alguns quadros mais antigos do partido, do Governo e do Exército que estimavam o primeiro- -ministro. Mas também muitas linhas são empregues para provar como Zhou tentava minorar os efeitos das ideias destruidoras de Mao. O papel de Zhou foi, várias vezes, o de um «agente duplo». Por um lado, a sua aprovação foi determinante para a purga de algumas personalidades, nomea-damente de Lin Biao, o sucessor de Mao caído em desgraça que veio a morrer num mal explicado acidente de avião quando fugia, provavelmente para a União Soviética. Por outro, o autor não deixa de referir também aqueles para cuja «salvação» a acção de Zhou Enlai foi indispensável, como Song Qingling, a viúva de Sun Yat-sen.

Foi também durante os anos da Revolução Cultural que o sempre fiel Zhou mereceu os ataques mais ferozes da parte do próprio Mao. Instrumentalizando a sua última mulher, Jiang Qing, e a sua clique radical como executora dos seus mais virulentos ataques, Mao obrigou Zhou a uma sucessão de humilhantes autocríticas que viriam a culminar num derradeiro acto de crueldade humana de Mao para com o seu primeiro-ministro: a negação de tratamento quando lhe fora diagnosticado cancro na bexiga, forçando-o a um lento e excruciante agonizar. Tal atitude por parte de Mao Zedong é explicada pelo terror que este tinha de ser suplantado e o seu legado desfeito por um dos colaboradores que o rodeavam, como ocorrera a Estaline após a sua morte, com os seus crimes a serem denunciados por Nikita Khruschev. Fora precisamente o medo de um «Khruschev chinês» que alimentara a campanha contra Liu -Shaoqi e que terá motivado os ataques -contínuos a Zhou Enlai, que aumentaram quando Zhou se afirmou mundialmente com a visita de Nixon em 1972. «Mao ressentia-se muito do que na China havia sido celebrado como “as conquistas diplomáticas de Zhou Enlai”, e mesmo se Zhou estivesse em melhores condições de saúde, o Presidente teria empreendido todo o seu esforço em assegurar que todas as oportunidades para brilhar no palco internacional lhe seriam negadas» (p. 257). É assim que para aparecer publicamente na Sexta Sessão Especial das Nações Unidas, em 1974, o escolhido não é Zhou Enlai, então já gravemente doente, ainda que fosse a mais relevante figura no campo das relações externas chinesas, mas Deng Xiaoping, que Mao promoverá como substituto do primeiro-ministro («Para neutralizar Zhou Enlai, Mao trouxe Deng Xiaoping para a ribalta» [p. 247]), o mesmo Deng Xiaoping que havia sido afastado do poder em determinados momentos da Revolução Cultural. Apesar de «Deng ter assegurado o seu regresso político às custas de Zhou Enlai» (p. 247), a visão modernizadora de Deng de dar prioridade ao desenvolvimento económico era algo com que Zhou estava em consonância.

As últimas aparições públicas de Zhou Enlai na recepção oficial do Dia Nacional, a 30 de Setembro de 1974, e no Congresso Nacional, em Janeiro de 1975, revelam um homem respeitado pelos que o rodeavam e que tentou até ao fim manter inquestionável a sua lealdade para com Mao, que viria a morrer oito meses depois de Zhou, no mesmo ano de 1976. O funeral de Zhou Enlai foi uma enorme manifestação de apoio popular e, até hoje, Zhou permanece uma das figuras menos criticadas dos anos «Mao». Com esta biografia, Gao Wenqian procura analisar o que de justificado existe nessa alta estima em que Zhou é tido até hoje, mas contrapondo as suas acções menos desculpáveis, que evidenciaram um político hábil na navegação das águas incertas e perigosas do Governo da China comunista, mas também alguém que «compreendeu o sentido do velho adágio chinês de que “ir com a maré é mais fácil do que se lhe opor”» (p. 130). E isso vem com a sua quota-parte de responsabilidade, quando estamos a falar de um regime que levou à morte milhões de pessoas.