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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.20 Lisboa dez. 2008

 

O búfalo, o urso e o jumento

David Castaño

 

Jonathan Fenby.

Aliança. A Verdadeira História de como Roosevelt, Estaline e Churchill Venceram uma Guerra e Iniciaram outra.

Lisboa, Quidnovi, 2008, 544 páginas

 

 

Este livro do antigo jornalista Jonathan Fenby propõe-se contar não a verdadeira história da vitória aliada sobre o Eixo, como erradamente sugere a tradução do subtítulo da versão portuguesa, mas revelar os seus bastidores. Com base na imensidão de material disponível para consulta sobre este período, Fenby constrói uma narrativa que se focaliza na acção dos três líderes das potências aliadas e procura sublinhar a importância do relacionamento pessoal no destino da guerra e da paz que se seguiu. Mais do que «a verdadeira história», somos tentados a ler esta obra como mais um valioso contributo para a análise e interpretação deste período fundamental da história mundial do século xx.

Não se esperem pois grandes novidades nem revelações, embora o livro esteja repleto de pormenores que nos relembram, por exemplo, que a expressão «cortina de ferro» imortalizada por Churchill no seu discurso de Fulton em Março de 1946, tinha já sido usada por Goebbels quando o Exército Vermelho chegou a Viena, ao avisar os alemães para não deixarem de combater porque «uma cortina de ferro cairá sobre este enorme território controlado pela União Soviética, para lá da qual vão ser massacradas nações» (p. 453), e que essa expressão seria ainda utilizada antes de Fulton pelo primeiro-ministro britânico em Potsdam, na presença de Estaline, que respondeu dizendo que isso eram «contos de fadas» (p. 481).

 

OS MARTINIS DE ROOSEVELT

O que Fenby faz neste livro é uma nova abordagem que se desenvolve com base num triângulo em cujos vértices se encontram personalidades tão distintas como o «búfalo» americano (Franklin Roosevelt), o «urso» russo (José Estaline) e o «jumento» inglês (Winston Churchill), adicionando ao já conhecido triângulo geoestratégico e geopolítico uma até agora esquecida vertente amorosa. É essa vertente que o autor procura revelar ao relatar, por exemplo, o primeiro encontro de Churchill com Roosevelt, antes do qual o primeiro-ministro, «tal como um amante que vai, finalmente, encontrar-se com o objecto das suas atenções sentia-se nervoso relativamente à impressão que iria causar», questiona «se ele [Roosevelt] gostará de mim» (p. 55), ou quando Estaline manda trazer de avião para Ialta um limoeiro carregado de limões da sua Geórgia natal para que Roosevelt possa preparar os seus martinis (p. 417).

Como qualquer triângulo amoroso, a sua geometria não é fixa, assemelhando-se a um triângulo escaleno em constante mutação. Os seus ângulos são variáveis bem como a distância entre os seus vértices que ora fazem com que o «jumento» se aproxime do «urso» (questão da divisão da Roménia e da Grécia por percentagens, pp. 377-400), ou que o «búfalo» tente cativar o «urso» (veja-se a descrição da Cimeira de Teerão e o modo como Roosevelt usou todos os meios ao seu alcance para cativar Estaline e levar a urss a aderir à nova organização que projectava para o pós-guerra, chegando a fazer troça de Churchill, p. 301), ou que o «jumento» e o «búfalo» caminhem lado a lado. Esta relação, o mais sólido lado do triângulo, reforçado pela herança comum e pela partilha dos valores democráticos, tinha, contudo, os seus pontos de atrito que faziam com que também esse lado tivesse sofrido mutações no seu comprimento, ora afastando, ora aproximando os vértices ocidentais que unia.

Um desses pontos era a questão da autodeterminação das colónias. Como Fenby relata, desde o primeiro encontro entre os dois, Roosevelt revelou as suas ideias sobre a necessidade de pôr fim ao colonialismo, e Churchill, apesar de notar que o Presidente estava «a tentar acabar com o Império Britânico», vê-se obrigado a reconhecer «que o senhor é a nossa única esperança» (p. 81), colocando-se numa posição de subserviência. A leitura da obra leva-nos, contudo, a olhar com cautela para a bondade desta posição do Presidente norte-americano. Um dos pontos fundamentais do esquema que Roosevelt desenhara para o pós-guerra era o fim do sistema preferencial de comércio e a aplicação do comércio livre que, uma vez aplicado, tornar-se-ia, nas palavras do seu secretário de Estado, «uma faca para abrir a casca de ostra que é o império» (p. 78), tendo o próprio Roosevelt dito a Morgenthau, quando tomou conhecimento do estado calamitoso da situação financeira britânica, que iria «tomar posse do império britânico» (p. 358). Este aspecto, que não deve ser desligado dos acesos debates travados entre as chefias militares norte-americanas e britânicas sobre as frentes de guerra a estabelecer na Europa, é apenas mais um que o autor tem em conta ao analisar este relacionamento tripartido.

Além das desconfianças mútuas existentes neste já complexo triângulo, elas são ainda ampliadas pelo constante receio de que qualquer uma das partes cometa adultério com uma quarta parte (leia-se, fazer uma paz separada ou «uma paz suave» com a Alemanha), hipótese que não era assim tão remota como revelava o anterior affair do «urso» com os nazis e a política de -appeasement do antecessor do «jumento».

É neste quadro de receio de traições, de ciúmes e de constante desconfiança que se ergue uma improvável aliança cujo único laço, como defendeu Churchill, era o seu ódio comum (p. 442), e que devia a sua existência à constatação de que, dada a interdependência existente entre os três países, era a melhor forma de cada um conseguir alcançar os seus objectivos (pp. 45-46).

Não nos devemos no entanto enganar pela aparente leveza de uma obra que não deve ser confundida com romance de cordel. Jonathan Fenby apoia-se numa impressionante quantidade de estudos, biografias, memórias, diários e fontes primárias para descrever com grande precisão os preparativos, os argumentos e as discussões dos três líderes e dos seus conselheiros. Além da preocupação demonstrada na recolha e confrontação das fontes quando se trata de descrever o lado mais técnico das negociações e da preocupação em fazer retratos fiéis do modo de ser e de agir de cada um dos intervenientes, o autor relata com uma precisão quase cinematográfica os aspectos logísticos desses encontros. As viagens intercontinentais, o vestuário, a alimentação, a descrição dos espaços, as festas e os jantares, os brindes e as bebidas, são descritos de forma a transportarem o leitor para as salas onde se discutiu a vida de milhões de pessoas.

Desde o início da obra somos constantemente interpelados por uma questão: qual a verdadeira importância do relacionamento pessoal entre os dirigentes mundiais nos processos históricos? Ou, neste caso particular, qual foi o impacto dos contactos directos entre Roosevelt, Churchill e Estaline no desenrolar da guerra e no novo sistema mundial que dela emergiu?

 

A IMPORTÂNCIA DA «QUÍMICA PESSOAL»

O autor defende que «a Segunda Guerra Mundial foi uma luta pessoal entre figuras de grande relevo» e que «estes homens tiveram uma influência vital não apenas no curso da guerra, mas no mundo que dela emergiu» (p. 18). Não vamos aqui debater a célebre questão de saber se são os grandes homens que lideram e encabeçam os grandes acontecimentos ou se são os grandes acontecimentos que catapultam para a ribalta lideranças que de outra forma não teriam deixado grandes marcas, pois parece-nos que neste caso podem encontrar-se exemplos que se adequam ora a uma, ora a outra formulação. A ênfase do livro não está aí, mas sim na importância dada ao estabelecimento de relações pessoais, e nesse aspecto o autor parece comungar com Churchill a crença na utilidade de tais ligações ao afirmar que «a química pessoal era fundamental» (p. 46). O primeiro-ministro britânico foi o grande impulsionador deste tipo de encontros tendo tido 11 conferências bilaterais com o Presidente dos Estados Unidos, atravessado seis vezes o Atlântico e visitado duas vezes Moscovo. A sua primeira preocupação fora a de convencer Roosevelt a ultrapassar a política isolacionista que vigorava deste a I Guerra no seu país e garantir que a entrada dos Estados Unidos na guerra não se faria apenas no cenário do Pacífico. No primeiro encontro entre os dois, em Placentia Bay no mês de Agosto de 1941, Churchill não conseguiu que os americanos entrassem na guerra como pretendia, mas conseguiu estabelecer a relação pessoal que pretendia com o Presidente, como revela uma carta de Roosevelt a uma prima: «Gosto dele – e almoçarmos juntos, a sós, quebrou o gelo dos dois lados» (p. 72). Um ano depois, Churchill aterrava em Moscovo. A sua missão era dizer pessoalmente a Estaline que ao contrário do que havia sido previamente acordado não seria aberta uma segunda frente na Europa em 1942. Mais uma vez a grande preocupação do primeiro-ministro era conseguir um encontro a sós com Estaline, que se realizou no fim da sua estada em Moscovo num jantar privado no apartamento de Estaline no Kremlin, tendo exclamado exultantemente depois desse encontro ao embaixador britânico em Moscovo: «Levou-me à família dele. Ficámos amigos» (p. 190). Mas, afinal, qual teria sido a diferença se, em vez de fazer uma viagem com todos os riscos inerentes, Churchill tivesse elaborado, na sua escrita -eloquente, um telegrama a Estaline a comunicar que o desembarque em França teria de ser adiado?

No final do conflito o que contou não foram as relações pessoais estabelecidas entre os três grandes mas a situação militar no terreno. Apesar dos esforços de Churchill somos tentados a pensar que a América entraria mais tarde ou mais cedo na guerra de forma a impossibilitar a formação de uma grande coligação do Eixo que ameaçava os seus interesses ao estender-se da Europa à Ásia. Relativamente à ideia de que graças aos acordos estabelecidos e ao relacionamento criado, Estaline permaneceria um aliado fiel, os acontecimentos na Polónia cedo revelaram que tal não iria acontecer (pp. 343-353).

A força moral de Churchill, indispensável na primeira fase da guerra, não podia comparar-se nem à força material americana nem à força humana soviética que desenharam o mundo saído do conflito. Em Janeiro de 1944, no regresso de Teerão, o primeiro-ministro não tinha dúvidas em afirmar que liderava «uma nação pequena», apesar de, entre o «urso» russo e o «búfalo» americano, o «jumento» inglês ser «o único dos três que conhecia o caminho correcto para casa» (p. 319). Aqui Churchill enganara-se. Todos sabiam qual o caminho, mas o «jumento» era o único que apesar de ter conseguido chegar a casa – o que já fora uma vitória – esgotara todas as suas forças durante o percurso. O primeiro-ministro britânico pode ter conseguido algumas vitórias com a sua diplomacia relacional como o adiamento da invasão da França (p. 158) ou a vitória na Grécia (pp. 395-400); contudo, à medida que o tempo ia passando e se avizinhava a vitória, adensava-se uma nuvem de incerteza sobre o futuro do Império Britânico que, graças às eleições, o primeiro-ministro derrotado não teve de enfrentar.

No entanto, apesar dos laços pessoais estabelecidos durante a guerra não terem sido determinantes para o seu desfecho, talvez tenham desempenhado o seu papel ao permitir que se tivesse evitado uma nova guerra, desta vez entre os aliados, e nesse sentido poderá ser mais pertinente referirmo-nos ao período que se seguiu à guerra como uma Paz Quente em vez de Guerra Fria, o que implicaria uma alteração do subtítulo do livro para «Como Roosevelt, Estaline e Churchill venceram uma guerra e impediram outra».