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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.20 Lisboa dez. 2008

 

«Aprender Uma Nova Língua»

D. Carlos e a Arte da Biografia Histórica

Douglas L. Wheeler

 

Rui Ramos

D. Carlos. 1863-1908.

Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores 2006-2008, 512 páginas

 

Rui Ramos, doutorado em Oxford, investigador do  Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tem publicado extensamente sobre a história política de Portugal no século xix, em especial sobre a sociedade e a vida política das últimas décadas da Monarquia Constitucional – suas instituições, partidos e protagonistas. Tendo em conta a importância do penúltimo monarca reinante de Portugal, D. Carlos I (1863-1908), assim como as amargas divisões entre monárquicos e republicanos durante o final do século xix e mais de metade do século seguinte – já para não mencionar os mistérios que rodeiam ainda a sua morte – não surpreende que o infortunado e muito vilipendiado D. Carlos fosse há muito um objecto em busca de um bom biógrafo.

D. Carlos I foi malfadado em dois sentidos. Foi-o pela tragédia pessoal do seu reinado e a sua morte violenta; e foi-o pelo fracasso persistente de vários biógrafos em compreender o indivíduo e os vários papéis por ele desempenhados. Os poucos trabalhos de alguma relevância remontam aos anos de 1930: o tributo monumental de Francisco da Rocha Martins, D. Carlos. História do seu Reinado (1930), e o estudo diplomático pioneiro, soli-damente alicerçado, de Luís Vieira de Castro, D. Carlos I. Elementos de História Diplomática (1936). Nas décadas seguintes e até aos anos de 1960, houve trabalhos dispersos, alguns bastante controversos, que seguiam uma orientação monárquica ou republicana, ora em defesa ora em ataque da personagem real. Na década de 1990 assistiu-se a um certo revivalismo do interesse por D. Carlos, muito embora nenhuma biografia documentada tenha aparecido, e aquilo que saiu pouco mais adiantou aos sobejamente conhecidos pecadillos sexuais do monarca e às provações e atribulações da sua sempre sofredora mulher, consorte e viúva sobrevivente, rainha D. Amélia.

 

UM MARCO EDITORIAL

A publicação deste estudo é tanto oportuna como significativa. É bastante apropriado que em 2006, pouco antes do centésimo aniversário do seu assassinato, tenhamos finalmente disponível a definitiva e modelar biografia de D. Carlos e que esta esteja integrada na série «Reis de Portugal», sob a chancela do Círculo de Leitores/Temas e Debates.

Este é um notável acontecimento editorial em Portugal porque, após décadas de desvalorização do género, poderá contribuir para recolocar a biografia no lugar que esta merece no âmbito dos estudos históricos sérios em Portugal (a biografia como exercício isento, sem intenções diabolizantes ou hagiográficas). Apesar dos contínuos e acesos debates em torno de D. Carlos, este esforço sugere que é possível escrever um estudo realista e objectivo acerca de uma figura bastante contestada, e torná-lo acessível a gerações futuras.

Dada a sua preparação e obra já publicada, e o tempo que felizmente passou desde as discussões apaixonadas entre monárquicos e republicanos em torno do tema em apreço, o historiador Rui Ramos era indubitavelmente o «biógrafo indicado» entre a geração mais nova de académicos portugueses de ciências sociais. Esta biografia, no entanto, é muito mais do que um trabalho científico competente: é uma obra de grande distinção literária, baseada num domínio notável de fontes literárias e históricas, investigação arquivística exaustiva e uma selecção de importantes ilustrações. O facto de D. Carlos ter sido, ele próprio, um indivíduo de grandes aptidões artísticas, culto, imaginativo, assim como um diplomata de sucesso, marinheiro amador, biólogo marinho e naturalista (e ainda um  intérprete e compositor de fados), não deixa também de constituir um atractivo adicional para os leitores.

O trabalho inclui uma breve introdução e conclusão, e oito capítulos substanciais, organizados por ordem cronológica da vida de D. Carlos, que aquando do seu assassinato contava apenas quarenta e cinco anos. Os títulos dos capítulos são sugestivos, quer no sentido literário quer no histórico. O capítulo sobre os primeiros anos de vida é intitulado, de forma não chistosa, «Um perfeito príncipe», ao passo que os dos capítulos finais têm uma carga dramática mais simbólica: «O rei incompreendido», «D. Carlos, o último?», «Uma monarquia sem monárquicos», «O rei e os seus “amigos”», «Um grande rei consti-tucional?», «Uma revolução de cima» e «O fim da monarquia».

A ênfase recai sobretudo nos últimos anos do reinado de D. Carlos I (1889-1908); apenas 52 páginas são dedicadas aos seus vinte e seis anos como jovem príncipe e herdeiro antes de 1889, quando ascendeu ao trono após morte do seu pai, D. Luís I. Ramos dedica a maior parte do seu estudo ao período 1893-1908 e ao ambiente e consequências do regicídio (pp. 126-341). Esta ênfase coincide aliás com o cerne dos estudos históricos já realizados pelo autor.

As fontes e documentação utilizadas? Numa palavra, exaustivas! As notas de rodapé são numerosas e as suas fontes e bibliografia extensas. Os manuscritos consultados são muitos, incluindo mais de uma dúzia de colecções de manuscritos de figuras históricas de proa consultadas em arquivos públicos e privados em Portugal e na Grã-Bretanha, incluindo arquivos reais no Castelo de Windsor e os National Archives/Public Record Office, assim como um estudo aprofundado dos jornais portugueses e inúmeros livros e artigos. Não é claro, pelo menos para este autor, que teses de mestrado e doutoramento não publicadas possam ter sido úteis ao estudo, se é que algumas o foram. Só a secção das fontes representa a mais completa bibliografia sobre a vida e o tempo de D. Carlos I reunida num volume. Além disso, há uma lista de primeiros-ministros que serviram durante o reinado do rei, os membros e gabinetes da Casa Real e uma extensa cronologia de eventos durante o reinado. Com os materiais elencados, este volume arris--ca-se a ser uma obra de referência que tão cedo não será destronada.

E quais são os principais argumentos e teses do autor? Dois dos principais argumentos ou juízos de valor parecem desafiar não só os numerosos e negativos retratos politizados de Carlos, mas também algumas visões correntes acerca do carácter e papéis do monarca e do período em que este viveu. Ramos afirma, inequivocamente, que D. Carlos foi, no seu tempo, «um dos mais inteligentes e capazes reis» quando a Europa era, à excepção da França e da Suíça, ainda monárquica. Mais, o rei foi assassinado «por causa das suas qualidades, não por causa dos seus defeitos». Num país com uma história turbulenta e, por vezes, violenta, o autor ressalta o facto de D. Carlos ter sido o primeiro rei de Portugal depois de D. Sebastião a perecer de uma morte violenta. Na sua «Introdução: uma vida política», Ramos expõe as suas intenções e o objectivo principal do seu livro, após salientar que José Maria de Alpoim, antigo ministro de D. Carlos, observou que Carlos se via a si mesmo como «um grande rei constitucional», o que ele sempre desejou ser. Ramos indica que é por isso que é hoje «tão difícil compreendê-lo». E acrescenta: «Este livro é uma tentativa de recuperar o modo como D. Carlos pensou ser rei, e o foi de facto. Assenta num esforço rigoroso, na medida em que o permite a documentação conhecida, para restituir o rei ao seu mundo, à sua linguagem e aos seus pontos de vista» (p. 9).

Além disso, observa que não é fácil para os leitores do século xxi compreenderem as nuances de uma época em que a maioria da Europa era monárquica, quando a monarquia era toda a existência dos monarcas – e eles não eram como as figuras reais dos nossos dias, que o público se foi habituando a encarar sobretudo como «celebridades», ou como reis «das 9 às 5». Compreender esta época histórica, observa Ramos, é como aprender uma língua estrangeira – temos de aprender como pensar de forma diferente numa idade que já não é nossa. Finalmente, o biógrafo admite candidamente que o seu foco principal é D. Carlos o rei e não o «homem», embora factos pessoais sejam abordados.

No espaço limitado de que dispomos, apenas se discutirão dois de muitos episódios: Carlos e o incidente do ultimato britânico de 1890 e a causa da investigação oficial do Governo após o regicídio de 1908.

 

O IMPACTO DO «ULTIMATUM»

A 11 de Janeiro de 1890, o Governo de Londres apresentou um ultimato ao seu congénere português, ameaçando que se este não ordenasse a retirada imediata das suas forças armadas da África Central, numa região que hoje faz parte do Malawi, enviaria uma frota para Moçambique, onde Lourenço Marques podia ser bombar-deada, ao mesmo tempo que ponderaria a hipótese de revogar a multissecular aliança luso-britânica. Lisboa cedeu prontamente a esta ameaça, ordenando a retirada; seguiu-se depois a demissão do Governo em funções. Notícias destes desenvolvimentos desencadearam uma vaga de protestos patrióticos, às vezes violentos, cuja fúria era dirigida contra a Inglaterra, mas principalmente contra o Governo português e a Casa de Bragança. Na «questão inglesa», intimamente ligada ao futuro do império africano de Portugal, que lentamente renascia, os dois principais partidos políticos exploraram, desavergonhadamente, as questões em seu benefício e o prestígio da monarquia ressentiu-se com isso.

A interpretação de Ramos da questão do ultimato britânico afirma que o maior perigo para a monarquia a seguir aos protestos do início de 1890 residia não no ainda débil Partido Republicano mas no Partido Progressista da Monarquia Constitucional, de «centro-esquerda», e que nesta crise, exceptuando Lisboa e uns poucos estudantes em Coimbra, a maioria da província permaneceu apática ou indiferente. Além disso, D. Carlos e a família real apoiaram activamente as expressões populares de ultraje contra a «pérfida Albion». D. Carlos, por exemplo, pediu em privado assistência à sua tia, a rainha Vitória, e a família real de Portugal doou um quinto dos fundos angariados no contexto da mobilização patriótica com vista à aquisição de um navio de guerra, com o qual se esperava que Portugal fosse capaz de defender melhor as suas possessões africanas. O autor acrescenta que a crise do Ultimato, que em muita historiografia tem sido tratada como tendo enfraquecido a Monarquia e encorajado o advento da República, foi, em última análise, irracional e destituída de senso. Mesmo depois da perda de território reclamado na África Central a partir de 1890-1891, e de um novo e impopular tratado com a Grã-Bretanha, Ramos nota que as substanciais possessões africanas de Portugal dificilmente poderiam ter sido ocupadas como deve ser, além de que eram demasiado extensas para as capacidades colonizadoras do país. Claro está que muita da emoção em torno do hipernacionalismo e imperialismo desta era tinha características irracionais, tal como sucedia noutros países. O contri-buto do livro para o estudo desta questão é excelente, embora haja uma generalização que me permito contestar: Ramos sugere que a antiga possessão espanhola de Cuba, perdida em 1898, não tinha valor equivalente na antiga África portuguesa (p. 94); mas em potencial económico, mineral, geográfico e estratégico, pelo contrário, a colónia portuguesa de Angola era tão importante como Cuba, embora tenha permanecido largamente subdesenvolvida, brava e desocupada, até aos anos de 1920-1930.

 

REVISITANDO O REGICÍDIO

O autor oferece também uma contribuição significativa com a sua discussão detalhada do regicídio e da investigação oficial do Governo depois de 1 de Fevereiro de 1908. Esta investigação, embora inicial e incompleta, nunca foi oficialmente concluída, e parece mais importante do que estudos anteriores haviam sugerido. Rui Ramos aborda as histórias dos assassinos, tanto quanto se pode saber, assim como uma razoavelmente bem urdida conspiração republicana.

Muitas fontes importantes, antigas e recentes, informam esta discussão. Novas provas sobre o assassinato são apresentadas – umas baseadas numa investigação forense de 1980 à carruagem da morte, assim como às roupas de D. Carlos e do seu filho, D. Luís Filipe, levada a cabo pelo Laboratório de Polícia Científica de Lisboa; outras em fontes mais antigas, os registos poeirentos da investigação oficial. Quase 25 páginas são dedicadas ao regicídio, sua investigação e consequências. O estudo forense da Polícia de Lisboa à carruagem e às roupas das vítimas revelou novas informações sobre os vários tiros disparados por ambas as pistolas e carabinas, e sobre as feridas das vítimas. A partir disto o autor confirma a presença no local de não-somente os dois assassinos conhecidos, prontamente abatidos no local, mas pelo menos mais dois, e provavelmente mais, assassinos com pistolas e carabinas que dispararam sobre as vítimas.

No que respeita ao planeamento prévio e à conspiração de «quem ordenou o ataque», o autor tem a certeza de que mais de dois assassinos estavam envolvidos, que eles eram republicanos revolucio-nários, e que a acção fora planeada. Nota que durante anos a discussão do regicídio estava confinada a duas questões: qual dos assassinos matou o rei? E quem ordenou o assassinato? Numa abordagem revisionista, o autor desvaloriza estas questões, considerando-as menos importantes do que outra que emerge do que Júlio de Vilhena afirmou após o regicídio: o que matou o rei foi o erro imperdoável de não ter qualquer protecção militar na carruagem real. Quem foi o responsável por esta falha de segurança? Muitos culpam o primeiro-ministro João Franco, que estava numa carruagem atrás da da família real. Franco argumentou depois a que nunca lhe ocorrera que a vida do rei pudesse estar em perigo.

Em suma, por tudo aquilo que fomos referindo, não restam dúvidas de que esta -biografia é seguramente um dos mais importantes acontecimentos editoriais na área da história de Portugal nos últimos anos. Graças a uma pesquisa escrupulosa e a uma soberba análise histórica, D. Carlos encontrou, de facto, o seu biógrafo.

 

Tradução: Helena Ferreira Santos Lopes