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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.19 Lisboa set. 2008

 

O «Império» do pós-Imperialismo

Ana Margarida Craveiro

 

 

HERFRIED MÜNKLER

Empires

Cambridge, Polity Press, 2007, 248 páginas

 

A análise política contemporânea está refém de modas. Os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 determinaram a necessidade de definir categoricamente o papel dos EUA no mundo, isto é, a necessidade de balizar, catalogar, e assim estabelecer os limites e alcances da acção americana. Se nomear significa uma apropriação de, então, nenhum dos rótulos trazidos a debate – unipolaridade, império e hegemonia1 – está inocente. Qualquer um deles traz consigo uma carga ideológica, um peso normativo sobre o papel dos EUA. Convenientemente, o significado de cada um poucas vezes ficou suficientemente esclarecido. Os proponentes de cada conceito pretendiam a introdução dos seus conceitos no léxico comum, como dado adquirido. Por exemplo, Niall Ferguson – um activo defensor do termo império – dizia que era por de mais evidente que os EUA são um império: se se mexe como um pato, parece um pato e grasna como um pato, é porque o é 2.

Herfried Münkler, professor na Humboldt-Universität (Berlim), traz maior sofisticação ao debate, de um ponto de vista da política comparada. Reúne grande parte dos argumentos a favor e contra, elaborando uma extensa crítica política; num certo sentido, este livro acaba por ser um estado da arte sobre impérios, sendo a opinião do autor quase secundarizada pela profusão de referências. Torna-se difícil avaliar – ou claramente identificar, até – a hipótese de Münkler sobre o ressurgimento imperial, perdida na constante enumeração e contraditório dos diversos autores. É claro, ainda assim, que Herfried Münkler assume como metodologia a interpretação da realidade, e não o seu julgamento, sendo esta uma das principais críticas a apontar à ortodoxia do estudo dos impérios, mais preocupada com a ideologia do império do que com a adequação do conceito à realidade.

A partir de uma leitura dos impérios ao longo da história, Münkler define três pressupostos sobre império na actualidade, muito embora o faça inicialmente pela negativa: (1) um império não é um Estado, (2) não é uma estrutura hegemónica e (3) nada tem a ver com o imperialismo do século XIX (pp. 4-8). São estas as linhas que guiam a discussão.

 

O DEBATE EM TORNO DO IMPÉRIO

A base teórica de Münkler encontra-se ancorada numa distinção entre teorias imperialistas, de natureza normativa e teorias de império, assentes numa perspectiva descritiva-analítica; o autor defende a segunda perspectiva. Bem mais do que uma questão semântica, este escudo teórico, a par do rigor na definição dos conceitos, permite a Münkler fugir à mitologia habitual sobre o imperialismo americano.

O mundo académico tem privilegiado as teorias imperialistas, impedindo a racionalidade no debate. Desde logo, porque a teoria imperialista é sempre teleológica, e, como tal, pouco séria do ponto de vista académico: tem sempre o fim do império no horizonte (p. 28), estando o império a correr para o seu fim, desde que nasce3.

Para Herfried Münkler, contudo, um império tem pelo menos um ciclo de ascensão e declínio na sua história, combinado com um alcance geográfico mundial. Um poder que experimente um movimento de ascensão, seguido de uma queda e consequente irrelevância política, soçobrando nessa primeira grande crise, não é um império.

Um império sobrevive a pelo menos um ciclo de crise, mantendo a sua ambição de domínio do mundo. Münkler esclarece desta maneira uma das principais confusões à volta da missão imperial: não faz sentido entender «mundo» como globo, em qualquer ponto da história. O império romano dominou o mundo – ainda que aos olhos da contemporaneidade seja geograficamente circunscrito numa região do globo; dominou o seu mundo. A literalidade no entendimento, falhando na compreensão da elasticidade histórica dos conceitos, obsta a uma leitura comparada dos impérios mundiais, porque não permite a criação de categorias de análise gerais. É evidente que hoje em dia só os EUA têm uma capacidade verdadeiramente global no seu alcance; os anteriores impérios não dispunham da tecnologia ou do conhecimento suficientes para tal. A insistência de autores como Hardt e Negri nesta versão literal de império mundial é tão-somente um esforço exagerado de ênfase da ambição americana, uma insistência na falsa ideia da omnipotência americana.

Mais: é uma máscara para um julgamento ideológico sobre a realidade, omitindo os factos relevantes.

O mundo de hoje encontra-se unificado: o alcance mundial, missão de qualquer império, traduz-se pelo domínio global nas suas três dimensões (terra, água e espaço). Com base neste pressuposto, Herfried Münkler apresenta a tese de que a singularidade é uma característica fundamental dos impérios. Quer com isto dizer que não há impérios (plural) em simultâneo, porque é impossível haver dois poderes a controlar o mesmo espaço.

Quanto muito, há estados mais fortes (superpotências, por exemplo) em igualdade de circunstâncias, a concorrer por uma mesma esfera de influência. A ambição imperial não se compadece de outras ambições: um império é sempre a gradação máxima de poder e influência, não sujeita a partilhas. A coexistência resultaria numa guerra total, primeiro pela conquista da esfera de influência do outro, e depois pela aniquilação desse mesmo outro, dado que o simples facto da sua existência minimiza o poderio imperial a um nível insustentável.

Chegamos assim à centralidade dos EUA neste debate, provocada pelo momento unipolar, em que os EUA são um poder singular (isto é, único e sem rival). Há um ponto prévio a trazer à discussão sobre o hipotético império americano: qualquer ideia sobre império hoje nada tem a ver com os impérios de ontem. Como Michael Walzer refere, um império, hoje, será sempre uma entidade pós-moderna4; argumento, aliás, também apresentado por Michael Ignatieff, que considera a existência de uma forma de poder imperial numa época pós-moderna, sustentada pelos pilares dos direitos humanos, democracia e mercado livre (p. 150). Uma certeza fica, porém: é impossível falar de império na contemporaneidade sem o adjectivar, como Carlos Gaspar ou Michael Walzer referem5. Do ponto de vista liberal, é o império benigno – imperialismo liberal. Do ponto de vista marxista, é o imperialismo informal, da globalização neoliberal como império. Ou ainda, na visão a partir da periferia, o «império por convite», expressão usada por Münkler para salientar esta inesperada relação entre centro e periferia, em que a periferia solicita a intervenção do centro, mesmo que sob a forma de uma estrutura de dominação, devido aos efeitos estabilizadores que produz.

 

HEGEMONIA: A SOLUÇÃO?

Face aos problemas associados ao epíteto de império, Herfried Münkler avança com a hipótese do recurso à palavra «hegemonia», mais satisfatório por evitar os quadros-referência tradicionais de império.

A hegemonia traz consigo um diferente peso histórico, por não necessitar de maior adjectivação, só da própria definição. Na análise clássica de Heinrich Tribel, explorada pelo autor, não havia distinção entre império e hegemonia (pp. 42-43)6. No entanto, há uma diferença fundamental entre os dois conceitos, à qual Münkler atribui a máxima importância: a hegemonia de um Estado afecta a política externa das outras entidades; já a natureza imperial de uma entidade política carrega consigo a missão de transformação do outro, e consequentemente a intervenção na política interna (p. 44). Citando o autor: o hegemon é primus inter pares, incluindo a igualdade não só direitos e deveres, mas também capacidades reais e resultados.

Münkler considera que o termo «império», neste entendimento, só teria lugar se a divergência entre a potência central – os EUA – e as restantes unidades tornasse qualquer noção de igualdade formal uma ficção insuportável, em termos de categoria (p. 46).

A hegemonia assume o conservadorismo da ordem vigente, que reproduz padrões de estabilidade. Conserva a distribuição de poder, dentro de uma igualdade formal de estados, entre os quais há uma ou mais potências cujo poder é reconhecido pelas restantes entidades políticas como legítimo.

A ordem hegemónica, dada a sua legitimidade, resulta de um equilíbrio, concorrendo para uma paz internacional por contrato (p. 82). É, assim, uma ordem benévola, e, neste sentido, está próxima da paz democrática tal como foi enunciada por Kant, opondo-se directamente à paz imperial ou paz dos cemitérios. Reconhece a pluralidade de estados, e a paz que resulta da ordem estabelecida entre eles (p. 83), apesar da assimetria entre eles.

Numa leitura diametralmente oposta, John Mersheimer classifica esta situação de tragédia das grandes potências: todos querem a hegemonia, concorrendo entre si pela primazia na distribuição de poder, e o sistema perde-se na máxima instabilidade (p. 40). Para os defensores da ordem imperial, só havendo um império, a estabilidade é máxima, na medida em que o império impõe ordem e hierarquia.

Para Herfried Münkler, porém, a classificação dos EUA enquanto hegemonia benévola torna-se pouco apropriada, quando se relembra que os EUA emergiram vitoriosos de um prolongado conflito entre grandes poderes. Assim, no seu entender, está em causa uma hegemonia com um potencial de imperialismo, apenas contrariado pela ordem legal americana, sensibilidade da população americana (que, como Walzer também intui, provavelmente não tem «estômago» para o imperialismo) ou por astúcia política, que vê os riscos destabilizadores de uma política imperialista (p. 41). Uma hegemonia é, portanto, a supremacia limitada por regras. E, como diz Andrew Bacevich, a única forma de supremacia que o regime interno americano permite (p. 157).

Parece, pois, haver acordo em relação à incapacidade americana de criação ou manutenção de um império tradicional.

A comparação com o império britânico torna esta limitação mais clara. Para alguns historiadores, este teria sido criado «in a fit of absence of mind» (p. 8). Ou seja, os ingleses avançaram com a construção de um império de maneira inconsciente, sem estar a vontade política convicta do empreendimento. Nos EUA, pelo contrário, Herfried Münkler salienta que qualquer vocação imperial chocaria com o seu próprio sistema político, cujos limites e regras impedem a expansão imperial (p. 155). Não é possível ignorar a ordem interna e seus constrangimentos, que desafiam quaisquer julgamentos de império. A natureza democrática da sua ordem constitucional consagra uma fraqueza que põe em causa a viabilidade do império: qualquer império tem de fazer frente a sublevações e guerras a partir da periferia, que resiste à subjugação (p. 129); os eua, porém, enquanto potência democrática, limitam‑se no uso da força, têm barreiras institucionais à defesa do imperialismo. Este é o principal paradoxo americano, segundo o autor: o regime constitucional estabelecido contraria as acções a que o imperialismo obrigaria. A solução de Münkler para este paradoxo, o chamado «imperialismo democrático», passaria pela identificação do império moderno não enquanto estrutura repressiva e exploradora mas como regime que assegura paz e prosperidade; ou seja, o problema deixaria de existir se o império de hoje tivesse mais características de hegemonia benévola que propriamente de império. No entanto, o autor não acredita nesta possibilidade. No seu entender, esta visão de benevolência seria sempre uma máscara da estrutura tradicional de dominação de uma periferia por um centro (p. 130). Imperialismo democrático é, assim, uma contradição nos termos.

 

O RENASCIMENTO IMPERIAL

O esforço de contraditório por parte do autor acaba por tornar confusa a sua posição. Depois de concluir que os EUA são constitucionalmente incompatíveis com um império, Münkler acaba por declarar que o renascimento imperial está de facto a ter lugar, apesar das tensões e constrangimentos. A ordem imperial foi alterada: um poder imperial no século XXI não tem uma natureza territorial, mas controla o ar e o espaço. Perdeu opções políticas, por se manter democrático; mas compensou essa perda relativa de poder com desenvolvimentos tecnológicos (p. 138).

A grande inovação do império americano, salienta o autor, é que os EUA cumprem a tarefa imperial de manutenção da paz sem assumir o papel imperial (p. 143) – talvez iludindo desta maneira os tais constrangimentos imperiais. No entanto, isto desdiz determinadas afirmações anteriores de Münkler, nomeadamente na comparação com a inconsciência imperial britânica. Na sua visão, os EUA vêm completar o vazio que ficou entre a perspectiva da ordem mundial governada pela ONU e a rede global económica, respondendo às necessidades da periferia. Mais, respondendo a exigências estruturais de estabilidade, pelos efeitos que tem também no centro.

De qualquer maneira, esta tendência – ou tentação – imperial, consciente ou não, está em tensão com o regime democrático, e ainda não suficientemente estabelecida para que se possa assumir como tal. Os paradoxos a resolver ainda são demasiados para que se possa falar abertamente em nova era imperial.

 

 

NOTAS

 

1 Cf. GASPAR, Carlos – «O momento imperial», 2004. (Disponível em http://www.ipri.pt/investigadores/artigo.php?idi=3&ida=37).

2 Esta analogia foi avançada pelo historiador britânico em debate com Robert Kagan, organizado pelo American Enterprise Institute, cujo resumo se encontra disponível em http://www.aei.org/events/filter.,eventID.428/summary.asp.

3 Michael Mann, por exemplo, tem devotado grande parte da sua carreira ao estudo do «império americano», anunciando já a sua prematura morte, enquanto forma de esquizofrenia política e fantasma ideológico. MANN, Michael F. – Incoherent Empire. Londres: Verso, 2003.

4 Cf. WALZER, Michael – «Is there an American empire?». In Dissent, Outono de 2003.

5 Veja-se, por exemplo, o título do artigo de DAALDER, Ivo, e LINDSAY, James – «American empire, not "If" but "What Kind"». In The New York Times, 10 de Maio de 2003.

6 Esta ideia, aliás, é consentânea com o realismo de Henry Kissinger, que também considera serem império e hegemonia sinónimos entre si (p. 42).