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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.19 Lisboa set. 2008

 

Aliados do Armagedão

J. A. Teles Pereira

 

 

VICTORIA CLARK

Allies for Armageddon: The Rise of Christian Zionism

Londres, Yale University Press, New Haven, 2007

 

Existe algo de peculiar no judaísmo – porventura mais nos judeus do que no judaísmo –, difícil de definir mas fácil de detectar enquanto fenómeno recorrente, sempre presente numa análise diacrónica da história. Referimo-nos à propensão a gerar nos outros (nos não judeus, fora do judaísmo) construções teóricas, oscilando entre um cariz religioso, antropológico, sociológico ou político, de adesão ou repúdio, construções que tendem a manifestar-se, ou se manifestam mesmo, em termos paradoxais.

Perseguições religiosas e políticas muitas religiões e grupos as sofreram e sofrem. Todavia, nenhuma se teorizou ou foi teorizada enquanto categoria conceptual com vocação de generalidade, nos termos em que isso sucedeu com o anti-semitismo, como fenómeno mais ou menos endémico, em todo o caso persistente – notavelmente persistente, diga-se – na cultura ocidental.

 

Embora o livro ao qual se refere a presente recensão nos fale de uma forma de filojudaísmo, o chamado «sionismo cristão», que poderíamos qualificar, dentro do mesmo modelo de análise, como o «reverso da medalha» do anti-semitismo, não deixa de ser adequado convocar aqui a construção, enquanto categoria, do anti-semitismo, como modelo de aproximação a algo que, sendo aparentado ao seu oposto (ao seu contrário), não deixa de traduzir uma impressiva relação de simetria com o anti-semitismo.

Na expressiva caracterização do anti-semitismo feita por Hyam Maccoby, prefaciando a sua obra A Pariah People: The Antropology of Antisemitism (Londres: Constable, 1996),

«sugere-se frequentemente que o ódio ao judeu traduz, de alguma forma, algo de que os próprios judeus seriam responsáveis: seriam muito elitistas, teriam uma religião diferente da norma, estariam envolvidos numa conspiração para controlar o mundo, seriam os fundadores do capitalismo e do comunismo, haveria algo errado com o seu sangue, teriam longos narizes, mau hálito ou pele pálida, vestir-se-iam de forma diferente ou, mais astutamente, da mesma forma que toda a gente. Seriam cobardemente pacifistas (como o demonstra a forma dócil como caminharam nus para as câmaras de gás, sob a mira das metralhadoras) ou militarmente agressivos (como o demonstraram quando, finalmente, obtiveram armas para as usar contra os inimigos)» (p. 7).

Trata-se, como é óbvio, de sublinhar o carácter irracional que, paradoxalmente, parece irmanar o anti-semitismo e o filo-judaísmo. Nada no judaísmo – nada de intrínseco ou racionalmente apreensível – explica ou justifica uma relação de amor ou de ódio relativamente a ele ou àqueles que, quis o acaso, nasceram judeus ou como tal se consideram. Só uma construção psicológica de tipo mitológico pode pretender o contrário, mas não deixará, no confronto com a realidade, de ser isso mesmo: uma construção mitológica.

Nesse mito, aliás, e trata-se de um exemplo particularmente adequado, não embarcaram os construtores do Estado de Israel – os sionistas –, quando confrontados, em condições dramáticas, com a sobrevivência do seu projecto. Trataram de construir, em bases racionais, um exército forte (um exército muito forte), ignorando a suposta superioridade de «Povo Eleito», não confiaram a sua sorte à espuma daquilo que mais não era que um mito e, como tal, nunca os poderia defender. É a velha história, frequentemente contada em Israel, da conversa entre David Ben Gurion e um rabino, em que este lhe dizia: «vocês lutam porque nós rezamos por vós», ao que Ben Gurion retorquia, «vocês rezam porque nós lutamos».

É deste mito – de um mito deste tipo – que trata o livro da jornalista (correspondente do jornal Observer em Moscovo) Victoria Clark. Com efeito, da mesma forma que alguns consideraram os judeus responsáveis pelas desgraças do mundo, outros, cuja origem remonta ao século XVI e a algumas franjas do calvinismo, viram neles uma espécie de «predestinados» ao cumprimento da profecia bíblica do triunfo final do Bem sobre o Mal, «anunciada» no último livro da Bíblia cristã, o Livro do Apocalipse. Seria nesta batalha final, o Armagedão ou Armaguedon referido no capítulo 16 versículo 16 do Livro do Apocalipse, que ocorreria o confronto final entre Deus e as forças do Bem, e Satã e as forças do Mal, do qual emergiria o triunfo do Reino de Deus.

Claro que, estando em causa abstracções (o «Bem» e o «Mal»), passíveis das mais diversas leituras, a tendência irreprimível do sionismo cristão foi a de ir actualizando este conceito em função dos problemas contemporâneos, daqueles que sempre se vêem – que ao longo da história sempre se viram – na recta final que antecede a «Batalha do Armagedão». É assim (e estamos a avançar para exemplos que, sendo mais recentes, são mais facilmente apreensíveis) que o pastor Billy Sunday (um ex-jogador de basebol dos Chicago White Sox), um dos mais carismáticos pregadores do período da I Grande Guerra, se recusava a tomar partido em 1915, dizendo que nada lhe garantia que o «Plano de Deus» fosse «[…] usar os Aliados para punir a Alemanha […] pelas suas heresias […]» ou «[…] usar a frota aliada para esmagar a fortaleza islâmica dos Dardanelos e expulsar os Turcos da Terra Santa, para restaurar o domínio dos judeus na Palestina», ou até que «[…] o Todo-Poderoso usasse as tropas do Kaiser como vingança pela licenciosidade e imoralidade da França» (p. 125). Embora em 1917, quando o Presidente Wilson declarou guerra à Alemanha, o mesmo pastor tenha «descoberto» que o conflito da Alemanha com a América opunha, pela mesma ordem, «o Inferno ao Céu» (p. 126).

Como não poderia deixar de suceder, toda esta construção adquiriu um renovado significado com o advento do movimento sionista, no final do século XIX, e a construção do Estado de Israel, que conduziu à sua declaração de independência em 1948. Foi então que os cristãos sionistas descobriram, naqueles que recusaram a dimensão religiosa desse movimento e dessa construção, «The wrong Kind of Jew» (título do cap. 6), os que «[…] frequentemente se sentiam embaraçados por aqueles que obsessivamente os queriam ajudar» (p. 129), passando a identificar-se (num traço distintivo que se mantém nos nossos dias), tão-só, com aqueles «bons judeus», dos quais constituiu paradigma Zeev Jabotinsky (1880-1940). Passando a identificar-se apenas com aqueles que, com pequenas variações de «pormenor», partilharam (e partilham) a construção mítica do destino do «Povo Judeu» própria do sionismo cristão.

É com este sentido que a «Batalha do Armagedão» foi transferida para o cenário moderno do conflito do Médio Oriente (para a política corrente da Administração Bush), representando o lado árabe do conflito (e mais recentemente o Irão e a Síria), na visão apocalíptica dos mentores da chamada Moral Majority, como Jerry Falwell e o pastor John Hagee, o lado do Mal, maxime o Diabo.

Ilustrando impressivamente a visão destes «amigos de Israel», temos, na introdução do livro, o relato de uma visita de Victoria Clark a Jerusalém, à «Esplanada das Mesquitas», na companhia de um grupo de «sionistas cristãos» norte-americanos.

O que estava a mais nesse cenário, antiga localização do «Segundo Templo», carente de uma destruição purificadora do local?

Nada mais que a Mesquita de Al-Aqsa, o segundo lugar mais santo do islão.

A este resultado, à intolerância religiosa, conduziria – como sempre conduziu ao longo da história – a construção de opções políticas assentes na subjectividade das interpretações religiosas. Não é este – nunca o foi – o sentido profundo do sionismo, enquanto projecto de recuperação, sob a forma de um Estado moderno, da soberania dos judeus, perdida dois mil anos atrás. Como verdadeira realização fora de um quadro religioso de uma utopia originariamente religiosa, libertou-se esta, na construção de uma verdadeira Pátria para os judeus, da «Pátria portátil» que a religião representara durante a Diáspora.

É neste sentido que Max Nordau, um dos pais do sionismo, sucessor de Theodor Herzl à frente do movimento sionista, afirmava enfaticamente: «[p]retendemos chegar à Palestina como emissários da cultura europeia e ampliar as fronteiras da Europa até ao Eufrates».

Neste processo, o papel da religião teve a importância que teve: a de um sinal identitário. Em qualquer caso, um papel bem menor do que aquele que lhe atribuem os «cristãos sionistas». Na difícil luta pela sua sobrevivência, nas várias «Batalhas do Armagedão» que travou no decurso dos seus sessenta anos de vida, o Estado de Israel confiou pouco, muito pouco mesmo, nas profecias bíblicas.

É também por isso que ainda hoje existe, quando alguns – eles sim presos na espuma de mitos religiosos – o querem «apagar do mapa».