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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.19 Lisboa set. 2008

 

Um realismo para os nossos tempos?

Pedro Aires Oliveira

 

 

ANATO L LIEVEN E JOHN HULSMAN

Ethical Realism. A Vision for America’s Role in the World

Nova York, Vintage, 2006, 199 páginas

 

As opções mais controversas da Administração Bush provocaram divisões na comunidade de analistas de política externa nos Estados Unidos como não sucedia desde a Guerra do Vietname. Nos últimos anos, temos assistido a uma sequência de actos de contrição por parte de figuras que até 2003 haviam apoiado, ou dado o benefício da dúvida, à estratégia gizada pelo Presidente após o 11 de Setembro (e até em relação à decisão de depor Saddam pela força). Francis Fukuyama, Kenneth Polack, George Will ou até mesmo Richard Haas são alguns dos nomes mais conhecidos deste cortejo de renegados.

À medida que os argumentos invocados para legitimar a expedição militar ao Iraque foram sendo desmentidos pelos factos no terreno, muita gente começou a ficar preocupada em ver o seu nome associado a uma Administração tão inepta. De 2005 a esta parte, o mundo das universidades, dos think tanks e das revistas académicas norte-americanas entregou-se à tarefa de delinear novas abordagens estratégicas para o pós-bushismo. Infelizmente, nem sempre esse esforço tem sido acompanhado de um questionamento mais profundo de algumas das premissas de base da política externa americana, as mesmas que em larga medida contribuíram para a situação delicada em que se encontra o gigante americano.

Daí que este pequeno livro – meio panfleto, meio ensaio – mereça ser acolhido por todos quantos prezam um debate aberto, informado e sem tabus. É assinado por dois autores, um britânico e o outro norte-americano, que se situam em pólos políticos senão opostos, pelo menos bem distintos. Anatol Lieven, actualmente professor no King's College em Londres, foi durante anos correspondente internacional de jornais como o Times e o Financial Times, actividade que abandonou em 2001 para se radicar nos eua como investigador no Carnegie Endowment e, mais recentemente, na New America Foundation.

De ascendência russa e irlandesa, diz-se influenciado pela cultura católica progressista (ou «solidária») em que foi educado e pela tradição realista das Relações Internacionais. A fama radical que o acompanha há alguns anos deve-se em parte à sua análise desassombrada do nacionalismo americano, exposta em America Right or Wrong (2004)1, bem como às farpas que gostosamente lança à postura conformista de grande parte da comunidade de política externa de Washington.

Até recentemente, John Hulsman poderia ser exactamente uma das personagens visadas por Lieven. Investigado sénior da ultraconservadora Heritage Foundation, colunista do Washington Times e comentador assíduo da Fox News, foi um apoiante entusiasta da decisão de invadir o Iraque em 2003. A demonstração de incompetência e arrogância que produziu a situação caótica no Iraque pós-Saddam levou-no contudo a repensar a bondade da expedição e toda a retórica messiânica que a justificou. Assim que começou a tornar públicas essas dúvidas, os dissabores não tardaram. Em meados de 2006, quando os seus patrões na Heritage tomaram conhecimento de que se iria associar a Lieven para expandir em livro um ensaio conjunto publicado na National Interest, foi rapidamente convidado a abandonar a organização.

 

CENTRISMO RADICAL

Sendo a ambição do livro o esboço de uma alternativa coerente e viável às «ortodoxias e piedades» que ditam as agendas dos dois campos partidários nos EUA, os autores esforçaram-se ao máximo por envolver as suas propostas num background familiar.

Foram assim procurar inspiração naquelas que consideram duas das mais bem-sucedidas presidências americanas do pós-II Guerra Mundial, a de Truman e a de Eisenhower, e trataram de fundamentar «filosoficamente» as suas propostas numa das variantes da tradição realista das Relações Internacionais, por eles designada de «realismo ético». O resultado é uma visão «centrista radical» que sem perder nunca de vista o interesse nacional americano procura evitar o amoralismo cínico que tantas vezes associamos aos praticantes do realismo político.

Vindos de campos tão distintos, é natural que os dois autores não se conseguissem pôr de acordo em relação a alguns dos desafios fundamentais que se colocam às sociedades contemporâneas, em especial no mundo industrializado. No tocante às alterações climáticas, por exemplo, Liven e Hulsman acharam melhor deixar esse tópico de fora, tendo em conta as profundas divergências que dizem manter em relação a ele.

Os dois primeiros capítulos do livro tentam estabelecer um paralelismo entre a situação vivida pelos EUA à saída da II Guerra Mundial e no pós-11 de Setembro. Há seis décadas atrás, a América enfrentava igualmente uma ameaça formidável à sua segurança nacional: uma superpotência de instintos expansionistas e armada de uma ideologia prosélita preparava-se para pôr em xeque as posições, os interesses e os aliados dos Estados Unidos em vários pontos do globo. Retrospectivamente, sabemos que a Rússia de Estaline era na verdade um adversário bem mais «racional» do que é hoje a Al-Qaida, mas à época essa percepção estava longe de ser partilhada pela generalidade dos observadores e decisores políticos no Ocidente. A incerteza acerca das reais intenções do Kremlin era imensa.

É por isso que o exemplo de Truman é especialmente inspirador. Apesar da sua praticamente nula experiência em assuntos internacionais – e de ter de suportar o peso da comparação com Roosevelt – o antigo senador do Missouri deu crédito aos elementos da sua Administração que lançaram o alerta relativamente à necessidade de a América desenvolver uma estratégia coerente para lidar com a ameaça soviética, mas sem nunca descurar as possíveis consequências de uma confrontação militar directa com Moscovo. Para além disso, Truman merece ainda ser louvado pela assinalável destreza com que construiu o consenso doméstico indispensável para a viabilização da estratégia de «contenção» da URSS, a qual, como é bem sabido, estava longe de possuir apenas uma componente militar. A forma como logrou, por um lado, neutralizar as críticas de Henry Wallace e da ala esquerdista do Partido Democrata, e, por outro, evitar uma escalada nuclear do conflito da Coreia, como pretendia o general Douglas MacCarthur e outros «falcões», dá-nos a exacta medida do seu génio político.

Louvor idêntico deverá ser reconhecido a Eisenhower. Desde logo, porque, ao contrário do actual Presidente Bush, que com um zelo militante procurou distanciar-se de todas as iniciativas do seu antecessor, Ike não teve problemas em validar a maior parte das políticas de Truman, nem em contrariar as posições mais extremistas de alguns membros da sua equipa (como o secretário de Estado John Foster Dulles, que durante a campanha presidencial de 1952 havia denunciado a doutrina da contenção como «fútil e imoral» por abandonar «milhões de seres humanos ao despotismo ateu do comunismo»). Ainda mais do que Truman, o antigo herói da Normandia estava especialmente bem colocado para dizer não aos lunáticos da estratégia do roll back (uma espécie de antecessora da doutrina da «guerra preventiva») ou para denunciar os perigos de uma influência excessiva dos interesses ligados às indústrias militares nas opções de política externa dos EUA. É certo que foi durante a Administração Eisenhower que a corrida armamentista entre as duas superpotências atingiu o seu paroxismo, ou que os EUA se envolveram em acções altamente questionáveis, como a deposição de Mossadegh no Irão, mas, tudo somado, a autoridade moral dos EUA entre os seus aliados e em muitos países do emergente Terceiro Mundo saiu reforçada.

Infelizmente, como assinalam Lieven e Hulsman, nos últimos anos o palco central da política americana tem sido ocupado não pelos descendentes pragmáticos, moderados e centristas de Truman e Ike, mas pelos discípulos dos ideólogos megalómanos que ao longo da Guerra Fria foram – afortunadamente! – relegados para as margens do mainstream. As consequências dessa inversão de papéis são bem conhecidas e constituem o cerne do legado da Administração Bush.

 

OS PAPAS DO RE ALISMO ÉTICO

O movimento correctivo que os autores advogam apresenta como base intelectual os ensinamentos de algumas das figuras mais emblemáticas do pensamento realista em política externa. Os nomes aqui invocados são o teólogo protestante Reinhold Niebhur, o professor de Relações Internacionais Hans J. Morgenthau e o diplomata e historiador George Kennan. Para além do impacto que as suas obras exerceram na própria disciplina das Relações Internacionais, todos eles desempenharam, por via da sua intervenção cívica ou actividade diplomática, uma influência crítica no desenho conceptual e na fundamentação ética da postura americana durante a Guerra Fria.

Aquilo que os torna originais no seio da tradição realista é a atenção que sempre dedicaram à questão das consequências morais do exercício do poder, à necessidade de escrutinar as nossas escolhas e decisões em função não apenas das suas intenções mas também das suas consequências previsíveis (uma preocupação cara ao sociólogo Max Weber). A rejeição dos absolutismos morais não pressupõe uma aceitação resignada do relativismo ou até do cinismo; apenas nos encoraja a procurar o melhor compromisso possível entre os princípios éticos que nos são caros e um mundo imperfeito e ambíguo. Segundo os autores,

«a conduta da política internacional num espírito realista requer por isso líderes que combinem mentes abertas, convicções morais profundas e nervos fortes. As convicções morais por si só, não acompanhadas por mentes abertas, conduzem à rigidez fanática. Mentes abertas sem uma fundação moral levam a um oportunismo cínico e de vistas curtas. E até mesmo a combinação de uma mente aberta e uma fundação moral sólida pode não ser suficiente caso o líder não exiba a coragem moral que as decisões claras e duras requerem» (pp. 56-57).

Partindo destas premissas, os principais visados pela sua crítica são os «democratistas», os ideólogos do destino da América enquanto promotora universal da democracia. Lieven e Hulsman reconhecem que esse sentido providencial investido à política externa americana constitui uma verdadeira «fé bipartidária», comungada quer pelos neoconservadores republicanos, quer pelos falcões liberais do Partido Democrata. A sua resiliência histórica deriva em grande parte das afinidades que possui com certas facetas do Credo Americano e dos mitos que lhe estão associados2. Sendo a sua finalidade eminentemente louvável, o problema reside na forma como muitos dos «fiéis» imaginam a sua concretização: invariavelmente ligada a um modelo de democracia predeterminado e subordinado aos objectivos de curto e médio prazo da política externa americana, mesmo quando estes colidem com os interesses nacionais do país a democratizar. A crença cega neste guião de «transição democrática» resulta em grande medida dos casos de sucesso ocorridos na Europa de Leste após a queda do comunismo, mas o problema é que muitos dos factores que os tornaram possíveis (a perspectiva de adesão à nato e à União Europeia, por exemplo) infelizmente não são replicáveis noutros contextos.

 

A «GRANDE PAZ CAPITALISTA»

É pois necessário encontrar outro projecto que, sem atraiçoar a fé democrática do povo americano, ofereça perspectivas mais realistas relativamente à emergência de uma ordem internacional cooperativa e pacífica. O conceito aqui avançado é o da «Grande Paz Capitalista» (assim mesmo, com maiúsculas), fundado na premissa de que os valores associados à economia de mercado (embora não necessariamente segundo a variante anglo-saxónica) gozam hoje de uma aceitação muito mais ampla do que os princípios democráticos. Nesse sentido, será mais fácil conquistar os governantes das novas potências emergentes para um projecto visando a regulação pacífica e ordeira da globalização capitalista. Sentindo-se «accionistas» da nova ordem internacional, os líderes desses países tenderão a ser mais contidos na expressão das suas ambições, porque cientes da estreita ligação entre a prosperidade económica global e os benefícios que dela colhem para se legitimarem no plano doméstico. A longo prazo, é muito provável que os progressos económicos experimentados por algumas das novas potências emergentes criem as condições para uma democratização política, a qual inevitavelmente adoptará elementos do modelo americano, à semelhança do que sucedeu com algumas das antigas colónias da Grã-Bretanha relativamente ao parlamentarismo e à rule of law.

A concretização deste grande desígnio (se quisermos ser mauzinhos, poderíamos chamar-lhe antes utopia) depende, desde logo, de uma liderança americana esclarecida e corajosa. Esclarecida porque disposta a aceitar o pressuposto kantiano de que a legitimidade de um sistema concebido naqueles moldes estará sempre dependente da percepção geral relativamente à aplicação universal das suas regras. E corajosa porque essa aceitação irá inevitavelmente deparar-se com uma forte resistência da parte dos sectores mais soberanistas da política americana que desde o fim da Guerra Fria têm adquirido uma influência formidável (como ainda recentemente nos recordaram os obituários do senador Jesse Helms).

Num capítulo final, os autores avançam uma série de recomendações que poderão ser deduzidas da sua estratégia (e que por razões de espaço apenas poderemos resumir de forma muito genérica). A primeira é o abandono das ilusões associadas à «unipolaridade americana» – a ideia de que a discrepância entre o poderio militar e económico dos eua e seus competidores mais directos deverá ser guardada a outrance, nem que isso leve Washington a tratá-los como rivais hostis. Em alternativa, os eua deverão enveredar por um caminho em tudo semelhante ao do Império Britânico em finais do século XIX, que quando confrontado com a emergência de novos poderes tratou de reequacionar as suas prioridades e alianças para salvar os seus interesses vitais. Deverão também «actualizar» a componente económica da Pax Britânica, assente na difusão universal do livre-cambismo, cujos benefícios económicos tornavam os países mais propensos a alinhar as suas políticas com as de Londres.

Essa actualização deverá consistir num impulso à liberalização do sector agrícola do comércio mundial, e na reconfiguração dos programas de ajuda a países cujas perspectivas de desenvolvimento estão intimamente ligadas à segurança dos EUA (Afeganistão, Paquistão e vários países árabes, mas também os estados mais frágeis da América Latina). Nas regiões do mundo onde os EUA não terão capacidade para isoladamente influenciarem a resolução de certas disputas, ou conter determinadas ameaças, a sua preocupação deve consistir em fomentar, e se possível liderar, consensos regionais (no fundo, o regresso à velha ideia do «concerto» praticada na Europa pós-Congresso de Viena).

Como facilmente se depreende, nada disto parece especialmente radical. A «Grande Paz Capitalista» e a filosofia do realismo ético têm ambas um pedigree suficientemente americano para poderem ser aproveitadas (se não na íntegra, pelo menos em alguns dos seus aspectos) por uma futura administração, seja ela democrata ou republicana. No entanto, não é isso que parece indicar a agenda de política externa dos dois actuais candidatos à Casa Branca. Ou por calculismo eleitoral, ou por convicção genuína, tanto Obama como McCain encontram-se ainda demasiado próximos das correntes «democratistas» tão verberadas neste ensaio.

O mais provável, contudo, é que os limites cada vez mais notórios do poderio americano acabem por empurrá-los na direcção de algumas das sugestões avançadas por Lieven e Hulsman.

 

 

NOTAS

1 E ditado em português pela Tinta‑da‑China (trad. de Pedro Aires Oliveira), com o título América a Bem ou a Mal (2007). A versão inglesa foi recenseada por Bernardo Futscher Pereira no número 7 da Relações Internacionais (Setembro de 2005).

2 Sobre o conceito de «Credo Americano», cf. o cap. 2 de América a Bem ou a Mal.