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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.19 Lisboa set. 2008

 

Qual pós-positivismo?

 

Filipe Canas da Silva* e L. G. Freire**

*canas.filipe@gmail.com

**lgfreire@gmail.com

 

 

José Pedro Teixeira Fernandes afirma que a disciplina das Relações Internacionais é hoje dominada por uma «nova ortodoxia» resultante da viragem pós-moderna que ocorreu no final dos anos de 1980 1. Essa situação foi, segundo o autor, motivada por processos exteriores à disciplina, nomeadamente a popularização de abordagens pós-positivistas noutros campos, o que motivou uma transformação radical na forma de se estudar a política internacional. Teixeira Fernandes vê esta viragem como algo extremamente negativo para a produção académica nas Relações Internacionais. Esta mudança preocupa Teixeira Fernandes, que termina o seu artigo com uma declaração de missão para toda a disciplina. De acordo com o próprio, a desconstrução da ortodoxia pós-moderna «é a principal tarefa com que se confronta a Teoria das Relações Internacionais no início do século XXI»2.

Não podíamos deixar de elaborar este comentário, dado entendermos que Teixeira Fernandes faz uma leitura incorrecta do que é o pós-positivismo, confundindo-o com pós-modernismo e multiculturalismo, conceitos que, embora relacionados, não se sobrepõem inteiramente. É com base nesta confusão conceptual que Teixeira Fernandes acaba por retratar todo o póspositivismo como a «nova ortodoxia» nas Relações Internacionais.

A falha de Teixeira Fernandes em propor uma definição útil de «positivismo» e o facto de o termo ser frequentemente usado mais como uma ofensa 3 do que como qualquer outra coisa (inclusive por alguns «pós-positivistas») colocam em xeque a inteligibilidade de um argumento construído em torno de binárias como pós-positivismo/pós-modernismo e positivismo/ciência 4. Essas binárias parecem ser a única aproximação a uma definição de «positivismo», «ciência» e «pós-positivismo» que se pode encontrar no texto.

Dessa confusão conceptual recorrente resultam, pelo menos, dois problemas.

Em primeiro lugar, ao contrário do que Teixeira Fernandes sugere, nem todo o positivismo é ciência e nem toda a ciência é positivista. O apego metafísico dos comteanos à leitura positivista da história – chegando a constituir uma religião humanista, a «igreja positivista» – ilustra que o positivismo não é necessariamente científico e, muito menos, a base da única concepção de «ciência» possível. Por outro lado, existem diversas metateorias não positivistas que, ao distinguirem entre ciência e outras formas de conhecimento, ilustram bem a possibilidade de ciência não positivista. No plano metateórico, podem citar-se os casos da metodologia dos programas científicos de pesquisa de Lakatos e a teoria realista da ciência de Bhaskar 5. Nas Relações Internacionais, os casos dos «pós-positivistas» Wendt, Colin Wight e tantos outros6.

Em segundo lugar, nem todo o pós-positivismo é pós-moderno e multiculturalista, como o próprio Teixeira Fernandes parece reconhecer quando afirma que existem «diferentes versões» 7 de abordagens pos‑positivistas. Todo o seu argumento, porém, depende desta divisão. O autor refere que as «concepções da "epistemologia multiculturalista" […], grosso modo, são as mesmas que sustentam as abordagens pós-positivistas das Relações Internacionais» 8. A construção da binária pós-positivismo/pós-modernismo (e pos‑positivismo/multiculturalismo) por Teixeira Fernandes serve a função de homogeneizar o «pós-positivismo», eliminando potenciais anomalias que resistiriam ao seu argumento. É somente através desta simplificação que o autor consegue criticar o que ele chama de «pós-positivismo» por intermédio de uma crítica ao multiculturalismo. Ora, de acordo com os moldes utilizados, nos quais pós-positivismo equivale a pós-modernismo, a rejeição do pós-positivismo significa, na prática, a eliminação de uma série de abordagens teóricas e metateóricas que, embora pós-positivistas, não são nem pós-modernas nem multiculturalistas 9.

Sendo que o pós-positivismo e o pos‑modernismo não são equivalentes, torna‑se complicado avaliar o que constitui a «nova ortodoxia» que Teixeira Fernandes afirma existir na teoria das Relações Internacionais. O autor afirma, com razão, que desde os anos de 1980 o panorama teórico foi «pulverizado» por uma multiplicidade de abordagens 10. No entanto, postular que «a "desconstrução" desta nova ortodoxia, de imitatio-postmodernum, e das suas estratégias ideológicas e epistemológicas de legitimação, é a principal tarefa com que se confronta a Teoria das Relações Internacionais neste início do século XXI»11 parece-nos exagerado, até porque Teixeira Fernandes em nenhuma ocasião demonstra que o pós-positivismo é a «nova ortodoxia» nas Relações Internacionais.

Fazê-lo, aliás, iria contra a ideia de pulverização12. Além disso, a mera existência de novos manuais que mencionam diversas abordagens pós-positivistas não é indicador seguro de que há uma «nova ortodoxia» no campo. Diversos estudos mais detalhados sugerem o contrário, a saber, que o campo gira e reproduz-se exactamente em torno da «velha ortodoxia»13.

O autor parece indicar que o problema da «nova ortodoxia» é, justamente, a pluralidade de novas perspectivas, contrastando com a «relativa homogeneidade teórica de um passado não muito distante». «Homogeneidade» corresponderia à «fase científica» (ou imitatio scientia) da disciplina.

Associar a dominação de um determinado paradigma num campo a uma «fase científica» é um juízo metateórico que nos remete à ideia de «ciência madura» de Kuhn14, que, por sua vez, segundo a visão do próprio Teixeira Fernandes, poderia ser classificado como um «pós-positivista»15.

Sendo assim, o autor depende de critérios metateóricos pós-positivistas para protestar contra a pluralidade de perspectivas que caracteriza a «nova ortodoxia» pós‑positivista.

Dado que pós-positivismo e pós-modernismo não são a mesma coisa, e tendo em conta que o primeiro não é uma teoria das Relações Internacionais (mas sim uma atitude metateórica), torna-se complicado avaliar o argumento de Teixeira Fernandes no que respeita à ligação entre teoria e ideologia. O autor reconhece que uma das principais críticas pós-positivistas ao «positivismo científico» se refere ao facto de este «"mascarar" a sua ideologia e de legitimar o status quo internacional, sob uma capa de "neutralidade" e de "conhecimento científico"»16. Mais adiante, Teixeira Fernandes acusa alguns autores pós-positivistas (sem especificar) de usarem «uma "máscara" académico-científica»17 já depois de ter citado Semprini, que define como principais características do «pós-positivismo» (entendido, vale lembrar, como pós-modernismo e «epistemologia multicultural») a celebração da multiplicidade de interpretações subjectivas e o carácter político da produção de conhecimento. Tendo em conta a descrição de Semprini, usada por Teixeira Fernandes, fará sentido acusar o pós-positivismo (como um todo) de se procurar legitimar sob uma suposta neutralidade ideológica? Até porque – como é bem sabido – nem todos os pós-positivistas reivindicam conceitos de ciência18 e neutralidade19 nas suas próprias abordagens.

Mais importante, todavia, é que Teixeira Fernandes depende do próprio argumento pós-positivista (de que a produção intelectual positivista mascara um projecto ideológico) para criticar o posicionamento pós-positivista, incorrendo numa contradição performativa. Ou seja, admitir a validade da crítica pós-positivista é condição fundamental para o sucesso do seu argumento20. Dessa forma, o autor menciona mais um caso empírico que corrobora o argumento pós-positivista de não neutralidade da produção académica, demonstrando o valor do pós-positivismo enquanto crítica.

Teixeira Fernandes conclui afirmando que a nova tarefa da Teoria das Relações Internacionais é desconstruir a «nova ortodoxia» pós-positivista. Tal desconstrução, conforme o argumento ilustra, depende do pós-positivismo. Teixeira Fernandes, ao fechar a porta ao pós-positivismo, na verdade abre a janela. Eis uma desconstrução da desconstrução do autor sobre a desconstrução dos pós-positivistas. O autor realiza um acto louvável, que é o de fazer menção às teorias pós-positivistas. Contudo, não podemos concordar com a forma como essas abordagens foram retratadas. O número da revista onde o artigo de Teixeira Fernandes foi publicado é bem exemplar de que o pós-positivismo não constitui uma nova ortodoxia na disciplina das Relações Internacionais como o autor afirma. Acreditamos que o potencial do pós-positivismo supera em muito o seu uso como mero instrumento de crítica e vemos a pluralidade teórica nas Relações Internacionais como o caminho a ser seguido para que a disciplina continue a ganhar relevância e, mais importante, para que esta nos ajude a perceber melhor um mundo cada vez mais complexo, onde a multiplicidade de eventos e de causas apenas pode ser compreendida com mais teorias e diversos pontos de vista.

 

 

 

NOTAS

1 FERNANDES, José Pedro Teixeira – «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das Relações Internacionais». In Relações Internacionais. N.º 16, Dezembro de 2007, pp. 75-82.        [ Links ]

2 Ibidem, p. 82.

3 WIGHT, Colin – Agents, Structures and International Relations: Politics as Ontology. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 15-23.

4 FERNANDES, José Pedro Teixeira – «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das Relações Internacionais», p. 75.

5 LAKATOS, Imre – The Methodology of Scientific Research Programmes: Philosophical Papers, v.1. Cambridge: Cambridge University Press, 1978; BHASKAR, Roy – A Realist Theory of Science. 3.ª ed. Londres: Verso, 2008.

6 Cf. WENDT, Alexander – Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, pp. 47-91; WIGHT, Colin – Agents, Structures and International Relations, pp. 23-61. O próprio Waltz critica diversos pontos nevrálgicos do positivismo e considera-se um pós-positivista. Cf. WALTZ, K. N., HALLIDAY, F., e ROSE NBER G, J. – «Interview with Ken Waltz». In Review of International Studies. Vol. 24, n.º 3, 1998, pp. 379-386.

7 FER NANDES, José Pedro Teixeira – «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das Relações Internacionais», p. 81.

8 Ibidem, p. 80.

9 Cf., inter alia¸FINNEMORE, M. – National Interests in International Society. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1996.

10 Ibidem, p. 75.

11 Ibidem, p. 82.

12 Parece-nos complicado imaginar uma «ortodoxia pulverizada» onde coexistem perspectivas como, por exemplo, Feminist standpoint e Green Theory que se opõem em princípios fundamentais.

13 Cf., inter alia, TICKNER, A. B., e WAEVER, O. – Global Scholarship in International Relations: Worlding Beyond the West. Londres: Routledge, 2008.

14 KUHN, T. S. – A Estrutura das Revoluções Científicas. 7.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

15 O próprio autor reproduz essa classificação. Apesar do equívoco na grafia do nome de Kuhn, trata-se da mesma pessoa. FER - NANDES, José Pedro Teixeira – «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das Relações Internacionais», p. 79.

16 Ibidem, p. 76.

17 Ibidem, p. 81. Cf. p. 77.

18 Os pós-modernos, por exemplo, estão confortáveis com a ideia de que seu discurso é «só mais um discurso» e de que as suas abordagens são tão ideológicas quanto as abordagens positivistas. Cf. DER DERIAN, J., e SHAPIRO, M. (eds.) – International/Intertextual Relations: Postmodern Readings of World Politics. Lexington: Lexington Books, 1989.

19 É difícil ser mais claro quanto a isto que Robert W. Cox, que, em 1981, afirmou que «a teoria é sempre para alguém e serve sempre algum propósito». COX, R. W. – «Social forces, states and world orders: beyond international relations theory». In KEO HANE, R. O. (ed.) – Neorealism and its Critics. Nova York: Columbia University Press, 1986, p. 207.

20 Interessante também é que Teixeira Fernandes parece acreditar que as teorias têm capacidade de «transformar a realidade» de acordo com um determinado programa político, o que nos parece ser uma posição pós-positivista por excelência que pressupõe a interferência do sujeito no objecto. Cf. FERNANDES, José Pedro Teixeira – «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das Relações Internacionais», p. 81.