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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.19 Lisboa set. 2008

 

A América e o regresso à humildade e à política de poder

Diana Soller

 

Quando se analisa a literatura recente sobre política externa americana encontram‑se duas novas tendências.

Primeira: A maioria dos autores passou a avaliar os períodos pós-Guerra Fria e pós-11 de Setembro como fases atípicas (e, porventura, irrepetíveis) da história dos eua e do mundo. Consequentemente, é necessário recomeçar a análise em novas condições sistémicas.

Segunda: As prioridades nas análises da política externa americana alteraram-se.

A ameaça que o terrorismo constitui deixou de ser a preocupação quase exclusiva para passar a ser um problema integrado numa realidade mais vasta – a futura transformação do sistema internacional. Os analistas identificam uma fragilização do poder americano, desgastado pela Guerra do Iraque, e a crescente afirmação de novas potências no sistema. Por outras palavras, os problemas da segurança americana (terrorismo) passaram a estar contidos na questão da ordem internacional (novas potências), o que exige uma revisão de grandes estratégias.

Estes dois novos pontos de partida lançaram os scholars na procura da resposta à pergunta essencial: Qual o papel dos Estados Unidos neste sistema em mudança? As respostas vêm sob a forma de três propostas que não são propriamente inovadoras, mas estão adaptadas à realidade do início do século XXI. As propostas estão relacionadas com: (1) o regresso ao optimismo da década de 1990; (2) o regresso à power politics; e (3) o regresso às estratégias de equilíbrio de poder.

Numa outra vertente, alguns analistas têm-se concentrado na forma como o poder deve ser exercido, de modo a que o próximo presidente possa recuperar a confiança dos aliados dos Estados Unidos e a imagem de «potência benigna» de que o país beneficiou nos anos de 1990. Para esses autores, a Administração de George W. Bush colocou a liderança americana numa crise de legitimidade que tem de ser corrigida. Os danos provocados à imagem norte-americana deram origem a uma linha de análise que procura referências no passado. Mas em vez de regressar aos heróis de sempre – os Pais Fundadores, que são cada vez mais citados para justificar impulsos expansionistas 1 – procuram-se agora teóricos e políticos de uma época considerada como uma das fases de maior êxito da política externa norte-americana: os primeiros anos da Guerra Fria.

É neste quadro que se recuperam Reinhold Niebuhr (que passou de pensador esquecido a referência incontornável no discurso político) e George Kennan (o estratega da doutrina da contenção). Niebuhr e Kennan, referências da moderação característica do liberalismo realista, sintetizam nas suas análises e propostas traços da identidade americana. Esta recuperação serve dois propósitos: substituir a doutrina Bush por uma estratégia mais moderada e chamar a atenção para a necessidade de adoptar uma política mais humilde face à emergência de grandes potências.

A literatura actual procura, em suma, uma nova grande estratégia e uma nova grande referência teórica. Sem pretender traçar um quadro exaustivo do que se tem escrito do outro lado do Atlântico, seguem-se alguns exemplos.

 

O REGRESSO ÀS GRANDES ESTRATÉGIAS

É notória a transformação que se tem operado recentemente na academia norte-americana. Da insistência em temas centrados nos dilemas americanos e nas divergências internas dos EUA, como a solução para o combate ao terrorismo, ou críticas ou elogios à doutrina Bush, está a passar-se, aos poucos, para os estudos regionais, especialmente nas áreas onde emergem novos actores. Estuda-se agora a «ascensão pacífica» da China, a crescente «assertividade» da Rússia, a Índia como «maior democracia do mundo», o Brasil como parceiro económico e diplomático «inesperado», que pode funcionar como contrapoder em relação à Venezuela, rica em petróleo e antiamericanismo. Uma parte importante dos analistas norte-americanos reconhecem que os Estados Unidos não estão sozinhos no mundo e, mais importante, que outras potências se posicionam para lhes disputar o poder. A expressão «unipolaridade», em voga desde o 11 de Setembro (em sentido literal ou irónico), praticamente desapareceu do vocabulário dos analistas. A emergência de novas potências leva, inevitavelmente, a pensar, outra vez, num mundo em que os EUA já não estarão tão destacados na hierarquia dos estados. Mas, mais importante, há quem refira que o longo ciclo de preponderância ocidental no sistema está prestes a terminar.

As consequências do declínio do poder ocidental são imprevisíveis. Mas é preciso encontrar novas estratégias que aceitem a emergência de novas potências. Qual, então, poderá ser o papel dos Estados Unidos no novo sistema internacional? Estão em cima da mesa três propostas: a da Fareed Zakaria (The Post-American World), a de Robert Kagan (The Return of History and the End of Dreams), e a de Michael Lind (The American Way of Strategy). Todas reflectem a aceitação tácita de que os Estados Unidos tenderão a perder poder relativo; todas oferecem alternativas diferentes.

 

O NOVO FIM DA HISTÓRIA – FAREED ZAKARIA E O MUNDO PÓS-AMERICANO

A proposta de Fareed Zakaria, ensaísta e director da edição internacional da Newsweek, assenta, à primeira vista, num enquadramento teórico muito interessante e actual: o realismo neoclássico2. Esta fórmula aceita a abordagem sistémica dos realistas clássicos (a anarquia do sistema, a auto-ajuda e a vontade de domínio como reguladores do comportamento dos estados) mas adiciona-lhe algumas características internas do Estado que influenciam o modo como os decisores definem as suas estratégias e decisões relativamente ao exterior. Por outras palavras, a política externa dos estados é o resultado da tensão entre os constrangimentos e oportunidades criados pela distribuição de poder e a identidade do Estado. No mesmo sistema, os Estados Unidos, a China e a Índia actuarão consoante as suas capacidades relativas e a sua própria narrativa histórica.

Até aqui o argumento é convincente: num mundo cada vez menos unipolar e menos uniforme, a análise deve centrar-se nas particularidades das unidades no sistema.

O problema é que, para Zakaria, o Post-American World é, de alguma forma, um mundo onde o sistema anárquico foi ultrapassado. Ao contrário de Kagan, que vai retomar em força a power politics, Zakaria permanece, até certo ponto, na narrativa do «fim da História».

O seu argumento é que estamos a entrar num mundo pós-americano, em que um «genuíno crescimento global» (p. 3) está a levar a uma distribuição de poder cada vez mais dispersa (por estados e actores não estatais), que acabará por transformar a natureza da ordem internacional (p. 5). No entanto, ao contrário do que aconteceu no passado, existem forças reguladoras do sistema, uma vez que «across the world economics is trumping politics» (p. 18) e que o mundo, desde os anos de 1980, é notoriamente mais democrático, aberto e tecnológico (p. 25). Zakaria não o diz, mas aparentemente pensa que é um mundo mais americanizado.

Neste contexto, os novos actores da ordem internacional – os papéis principais cabem à China (o provável challenger) e à Índia (o possível aliado) – estarão a viver uma tensão entre este mundo mais globalizado e o nacionalismo das grandes potências emergentes. Estão em confronto a sua estabilidade e confiança na economia e a sua própria narrativa histórica – nem sempre pró-americana. Por esse motivo, a transição de poder só se fará com o mínimo de conflito se «Washington for capaz de mostrar que está disposta a permitir que outros países se tornem accionistas da nova ordem» (p. 44).

Por outras palavras, os Estados Unidos deverão seguir o exemplo da Grã-Bretanha (que cedeu o seu lugar de grande potência aos EUA, ganhando, com isso, estabilidade e importância política), ao mesmo tempo que adoptam uma política à Bismark, assumindo o papel «honest broker» do sistema (p. 233).

Assim, se se introduzirem alterações no sistema institucional internacional (como a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e das instituições de Bretton Woods, de forma a acomodar as recém-chegadas potências), se a sociedade americana se souber revitalizar e se a política externa dos EUA se dirigir para um caminho mais «responsável», diz Zakaria, a liderança americana – e a ordem americana da globalização – manter-se-á. A unipolaridade é que não.

Não se pode dizer que Fareed Zakaria ignora o que se passa no mundo. O ensaísta reconhece que a China é um regime «incorrigivelmente mau» (p. 98) e a Índia é uma sociedade caótica de contrastes, assimetrias e debilidades (p. 153). Reconhece ainda que estes estados estão a definir políticas externas autónomas face à vontade de Washington e que os valores chineses e indianos são diferentes dos valores ocidentais (por isso é que continua a usar a divisão entre «the West and the Rest»). O problema é que o autor, que identifica tão bem as tensões, quase as ignora em nome dos dois paradigmas que dominaram o pensamento da América: o de que as forças da modernização e da globalização levam à democracia e ao respeito pelos direitos humanos (p. 218) e que por muito que a imagem da América esteja danificada, o paradigma americano é sempre a melhor opção (p. 250). Conclusão: se os EUA respeitarem a legítima procura de poder do Resto, tudo vai correr bem. Quem lhe garante que assim seja?

 

A NOVA GUERRA FRIA – ROBERT KAGAN, OS BONS LIBERAIS E OS MAUS AUTOCRATAS

A proposta de Robert Kagan, investigador no Carnegie Endowment for International Peace e no German Marshall Fund, reveste-se de particular importância: o autor é conselheiro do candidato republicano às presidenciais americanas e tem sido uma influência relevante na construção das propostas de política externa de John McCain.

The Return of History é o ensaio que está na origem de uma das mais importantes ideias da campanha presidencial republicana: a criação de uma Liga das Democracias.

Robert Kagan começa onde Zakaria acaba: o mundo voltou à normalidade, ou seja, recomeçou a competição entre grandes potências (p. 1). O «fim da História» – a crença de que o mundo se tinha rendido à democracia e à economia de mercado, muito popular no pensamento ocidental nos anos de 1990 – não passou de uma ilusão (p. 5).

A partir de agora, iremos assistir a várias formas de tensão internacional, sobretudo a uma mais persistente divergência entre os estados desde o iluminismo: o confronto entre regimes liberais e regimes autocráticos (p. 4).

Na óptica de Kagan, esta disputa entre democracias e autocracias recomeçou simbolicamente com a Guerra do Kosovo (1999), uma situação que colocou em oposição duas visões sobre as relações entre os estados (pp. 66-67). Por um lado, as democracias favoreceram (e efectuaram) uma operação militar contra o regime de Milosevic, porque no centro do «credo liberal» está o «direito natural» de os albaneses kosovares preservarem a sua existência. No pensamento ocidental, a soberania está condicionada à capacidade de os governos protegerem a vida e os direitos dos seus cidadãos. Por esse motivo, a intervenção militar da NATO foi considerada legítima, independentemente da ausência de autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Segundo Kagan, para o Ocidente, a legitimidade reside na natureza do regime, não na soberania do Estado.

Por outro lado, a Rússia e a China opuseram-se à intervenção porque as autocracias colocam no centro da sua doutrina internacional o direito inviolável à soberania. Em nenhuma circunstância um Estado pode imiscuir-se nos assuntos internos de outro.

As autocracias não admitem a existência de direitos naturais em contexto internacional, apenas dos direitos do Estado. Assim sendo, para a Rússia e para a China, a invasão da Sérvia foi uma violação do direito internacional, possível porque os estados liberais são dominantes no sistema. Para as autocracias, a legitimidade encontra-se na soberania, não na natureza do regime.

Neste contexto, diz-nos Kagan, do ponto de vista da ordem liberal dominante, os regimes autocráticos são ilegítimos. Por isso, Pequim e Moscovo vêem a permanência da ordem ocidental como uma ameaça à sua ordem interna e à sua política externa. Por conseguinte, têm evidenciado esforços para contrabalançar o poder norte-americano (p. 86). Exemplos: a Organização de Cooperação de Xangai; a venda de equipamento militar russo à China; exercícios militares conjuntos; a escolha de Pequim como destino da primeira visita oficial de Medvedev como chefe de Estado da Federação Russa. Paulatinamente, o Irão vai-se tornando parceiro deste eixo das «autocracias».

Numa lógica de continuidade da política de preponderância que tem vindo a ser seguida nos últimos anos, Kagan argumenta que cabe ao Ocidente reagir em conjunto à emergência da Rússia e da China. Kagan reconhece que os EUA não têm capacidade de o fazerem sozinhos, e devem ser líderes de uma nova instituição internacional, um «concerto» ou «liga de democracias» (p. 97) que assegurará a preponderância do «credo liberal» sobre o soberanismo autocrático.

Para preservarem os princípios de liberdade no sistema, estes estados terão de encontrar mecanismos de manutenção da ordem internacional liberal. Para este objectivo deverão contribuir não só as potências ocidentais tradicionais (os membros da nato), mas também outros estados liberais, como o Japão, a Índia, o Brasil ou a Austrália.

O que Kagan não confessa – mas se depreende – é que esta será a forma (possível, se McCain for eleito, em Novembro) de reabilitar os Estados Unidos como líderes do mundo ocidental. O problema é que Kagan insere o concerto numa lógica de confronto relativamente às autocracias. É que se a Liga for vista como mais um instrumento de imposição da ordem ocidental, será sempre recebida por outros estados como um agente agressivo no sistema.

 

O NOVO EQUILÍBRIO DE PODER – MICHAEL LIND E O ESCUDO DO LIBERALISMO

O regime liberal é também o tema central de Michael Lind, investigador da New American Foundation, em The American Way of Strategy. Mas esta é a única semelhança entre os argumentos de Kagan e Lind. O primeiro está preocupado com os regimes dos outros estados; o segundo, com a qualidade do regime americano. O primeiro considera que o liberalismo é um instrumento de política externa; o segundo considera que a política externa deve ter como objectivo central defender o liberalismo. Se Walter Lippman – a grande referência deste livro – dizia que a política externa deveria ser o «escudo da república», Lind argumenta que a política externa deve ser o escudo do liberalismo.

Lind afirma que existe uma diferença considerável entre republicanismo/democracia e liberalismo: os primeiros são a forma (não indispensável) e o segundo é a substância (indispensável) do american way of life (p. 8). Essa substância depende da manutenção das «quatro liberdades» de Franklin Roosevelt, a liberdade de expressão e a liberdade de religião e a liberdade de viver em paz e sem medo (p. 30). Por conseguinte, a política externa deverá, acima de tudo, servir o imperativo de evitar que o Estado se transforme num «Estado-guarnição» – um sistema que coloca a segurança acima da liberdade – o que só se atinge se se verificarem duas condições: a existência de um sistema internacional estável e a rejeição do envolvimento em confrontos militares em que a segurança e/ou o liberalismo americano não estejam ameaçados (p. 21).

Quanto à primeira condição, Lind não tem ilusões de que o sistema internacional é propenso ao confronto entre estados. A ideia de «escudo» – de protecção contra a instabilidade internacional – não significa (nem no conceito de Lippman, nem no de Lind) isolacionismo dogmático; significa que o valor mais importante é a estabilidade internacional. Como se consegue? Através da síntese – que inspirou Wilson, Roosevelt e Truman – entre o liberalismo internacionalista (a doutrina da legitimidade política) e o realismo (a doutrina do uso do poder) (p. 23). O liberalismo deve pautar-se pela construção da ordem internacional, abrindo caminho para as potências emergentes e integrando-as através da economia de mercado. O realismo deve ser o guia para a renovação de uma das mais antigas estratégias na política internacional: um concerto das grandes potências (p. 175).

Para Lind, o século XXI será dominado pela geopolítica asiática, pelo que os Estados Unidos, a Índia e a China deverão ser os novos «três polícias do mundo». Deste concerto devem emanar outros pequenos concertos regionais em zonas de interesse vital – em regiões da Ásia, na Europa e, desejavelmente, no Médio Oriente. O concerto deve ser o motor da política hegemónica numa lógica de burden sharing, que evite sobrecarregar a América e retirar-lhe a margem de que precisa para manter o seu way of life. Mais uma vez, sublinha‑se, a estabilidade do sistema é a chave da manutenção do liberalismo interno.

A segunda condição – a ponderação do uso da força militar – encontra-se no equilíbrio (p. 250). A guerra deve equacionar-se apenas quando a segurança nacional dos EUA esteja ameaçada ou quando o modo de vida americano esteja em risco (como aconteceu durante a Guerra Fria). Lind acredita que o liberalismo realista desapareceu em John Kennedy – partidário da expansão democrática. Desde então, a política externa americana tem oscilado entre a realpolitik (Richard Nixon, George H. W. Bush) e uma devoção excessiva à intervenção em nome da democracia (John Kennedy, George W. Bush).

O caminho certo é retomar os exemplos positivos do passado e desistir da hegemonia como objectivo político: procurar o internacionalismo liberal («to make the world safe for democracy») e rejeitar a «revolução democrática» («to make a democratic world») associada aos neoconservadores (p. 25).

Afinal, o que Lind propõe é uma estratégia realista clássica, que pretende, sobretudo, defender a integridade americana num sistema em que o tipo de regime pouco ou nada conta.

Zakaria, Kagan e até mesmo Lind aceitam que o poder americano se está a diluir, mas continuam a acreditar na importância fundamental da liderança americana para a estabilidade do sistema internacional. Contudo, diferem no papel que atribuem à potência americana. Zakaria, que acredita no papel regulador da economia de mercado, pretende que os EUA continuem a liderar o processo de globalização. Kagan procura relançar a liderança hegemónica americana através de uma organização que reflicta os interesses e os valores americanos, numa lógica de preponderância e, em última análise, de confronto com as potências emergentes. Para Kagan, o valor mais importante da ordem é o «credo ocidental», o direito natural; a verdadeira paz só se obtém em democracia.

Lind relança o liberalismo realista, onde os Estados Unidos devem liderar o mundo democrático, enquanto partilham o poder num concerto de nações que lhes permita maior previsibilidade nas relações com os rivais. Uma vez que o objectivo último é a vitalidade do liberalismo interno, o valor mais importante é a estabilidade, o que passa, na visão de Lind, pela rejeição da hegemonia.

Zakaria, Kagan e Lind reflectem três correntes de pensamento da política externa norte‑americana. Zakaria procura a lógica da economia de mercado como veículo das relações entre os estados. Reflecte o espírito hamiltoniano de que o capitalismo cria previsibilidade e o optimismo clintoniano de que o mundo globalizado gera democracia. Kagan reflecte o espírito jeffersoniano de que os valores devem estar na base da política externa, e aplica-o ao princípio partilhado por Bill Clinton e George W. Bush de que a hegemonia (pax) americana – agora (pax) democrática – é o mais curto caminho para a manutenção da paz internacional. Lind torna o pensamento de Walter Lippman (a política externa deve ser o escudo da república) mais abrangente (a política externa deve ser o escudo do liberalismo). De alguma forma, o autor procura começar onde Roosevelt e Truman terminaram, agora num sistema que exige uma reformulação: um concerto das nações e novas alianças regionais. O equilíbrio de poder é inevitável, o que importa preservar é a estabilidade que garanta a existência das democracias.

Numa outra perspectiva, quando se prevê a reestruturação do equilíbrio de poder, é natural que se comecem a apurar fidelidades. Lind detecta uma certa harmonia do mundo liberal, mas o que distingue os estados e os qualifica para pertencerem a um concerto de nações são as suas capacidades, não as suas narrativas ou tipo de regime.

Em contraste, Kagan e Zakaria apresentam concepções diferentes sobre o «Ocidente».

A de Kagan relaciona-se com o tipo de regime: pertence ou pertencerá à ordem liberal todo aquele Estado que escolher a democracia (no sentido amplo do termo). O Ocidente, na óptica de Kagan, é uma escolha política que conduz a uma política externa mais pacífica. Para Zakaria, o Ocidente está dependente da sociologia histórica. Por isso, pertencem à ordem ocidental apenas a Europa e aos Estados Unidos. Não é uma escolha política, é uma certa concepção do mundo. Sendo assim, o Resto opõe-se ao Ocidente (incluindo a Índia democrática), porque o futuro será constituído por um conjunto de narrativas históricas relacionadas com cada Estado.

É difícil saber qual das visões virá a ser preponderante. Possivelmente, a política externa americana, a partir de 2008, terá componentes das três. Mas uma coisa é certa: começou um debate diferente daquele que se tem feito nos últimos anos e não existem propostas consensuais.

A Europa perdeu a sua centralidade nas análises de relações internacionais nos Estados Unidos. Lind e Zakaria estão certos que os grandes poderes do século XXI serão os EUA, a China e a Índia. Kagan dilui a Europa num conceito vasto de democracia, sem lhe atribuir um lugar especial. Se o pensamento norte-americano está a passar por uma fase de autocrítica, cabe à Europa fazer o mesmo esforço. Seria útil debater que papel deverá a União Europeia (e os países europeus) desempenhar num sistema em transformação, onde os grandes poderes se irão alinhar no Pacífico, e não no Atlântico.

 

O REGRESSO À PRUDÊNCIA

Vários analistas demonstram alguma apreensão com o sentido da expansão americana, com o resultado daquilo que consideram ser a hubris que levou a Administração Bush a intervir militarmente no Iraque. A questão hoje já não é tanto o debate sobre o possível erro da ocupação do Iraque, mas o receio de que o pensamento estratégico associado à expansão da democracia tenha passado a dominar as opções dos decisores americanos. Os teóricos que se opõem a esta orientação acreditam que os Estados Unidos estão a quebrar a sua tradição liberal-realista, que tão bem serviu a política externa americana no passado, seguindo um caminho utópico que aumentará a resistência de outros estados à liderança internacional dos EUA.

Em consequência, muitos críticos de Bush acreditam que é necessário interromper a narrativa da «revolução democrática global» (Lind, p. 31). Isto é, tornou-se necessário regressar à prudência realista no uso do poder. Não à prudência maquiavélica com traços tão europeus, nem à realpolitik, que caracterizou as relações de poder dos estados europeus durante o seu domínio internacional: mas sim à prudência na tradição americana expressa no realismo ético de Reinhold Niebuhr. É neste contexto que deve ser lida a nova edição de The Irony of American History (1952), prefaciada por Andrew Bacevich, que relembra o diagnóstico de Niebuhr de que os Estados Unidos têm a tendência para a acção transformativa da história – expressa, hoje, na doutrina Bush e na intervenção militar do Iraque. Para conter essa tendência deve ler-se o filósofo que melhor compreendeu o excepcionalismo americano na sua versão messiânica e melhor identificou os perigos a ela associados. «Os tempos em que pedem um regresso a Niebuhr» (p. IX) – escreve Bacevich na primeira linha do seu prefácio.

 

O REGRESSO DA HUMILDADE DE NIEBUHR

O regresso a Reinhold Niebuhr, teólogo protestante e um dos mais brilhantes teóricos das relações internacionais, é recente. Niebuhr, como é apresentado hoje, é o pensador da moderação, que avisa para os perigos do uso irreflectido do poder. As suas palavras figuram nas mais diversas análises e nos discursos dos candidatos presidenciais. A este regresso de Niebuhr não foi alheia a reedição de um dos seus mais influentes trabalhos, enquadrado por um prefácio contundente de Andrew Bacevich, que aplica as lições do teólogo protestante à política externa pós-11 de Setembro.

The Irony of American History (originalmente publicado em 1952) é, sobretudo, uma crítica ao idealismo americano. Uma advertência: Niebuhr acreditava na bondade do sistema americano e na justiça das razões da Guerra Fria – «Defendemos a liberdade contra a tirania e estamos a tentar preservar a justiça contra um sistema que, diabolicamente, destilou injustiça e crueldade a partir da sua promessa original de uma forma de justiça mais elevada» (p. 1). Para um teólogo como Niebuhr, os valores são fundamentais.

Porém, quando a democracia deixa de ser «um método de encontrar soluções aproximadas para problemas irresolúveis «(p. XIII) e passa a ser «idolatria» (p. XIV), deixa de ser uma virtude e passa a ter consequências políticas desastrosas.

É nesta dicotomia que reside a ironia da história: a democracia é, por excelência, a virtude americana, mas contém duas variantes utópicas herdadas do calvinismo e do jeffersonianismo (p. 7) que colocam em risco o bom uso do poder americano. Isto porque anulam o sentido de «modéstia» e «humildade» necessário ao exercício de uma política externa realista, prudente e pautada por objectivos limitados.

Niebuhr critica os idealistas que se recusam a exercer o poder para preservar a «pureza da alma americana» e os que defendem o uso de poder em nome de uma causa «maior e inequivocamente virtuosa» (p. 5). Mas atribui-lhe uma origem comum: «uma versão religiosa do nosso destino natural» (p. 4), que levou, desde muito cedo, os dirigentes americanos a acreditar que os Estados Unidos eram uma obra da providência divina, um recomeço para a humanidade. Por outras palavras, muitos dos líderes americanos acreditavam que os EUA faziam o «trabalho de Deus» na terra.

Segundo Niebuhr, a utopia leva à ilusão de que o Estado pode determinar o rumo da história. Era o que acontecia na União Soviética, com um resultado destruidor, mas é também uma tendência da política americana. A única forma de a ultrapassar era a manutenção cuidada de uma democracia moderada e de uma política externa simultaneamente ética (que tivesse em conta a preservação do outro) e realista (que tivesse em conta a preservação da segurança americana).

Aquando da publicação de The Irony of American History, o principal receio era o confronto atómico e a destruição total – outra ironia da história: era necessária uma arma de destruição maciça para defender a democracia americana. Hoje, diz Bacevich, o jeffersonianismo utópico sobrevive, mas o risco é a eventual decadência da liderança americana. Por isso, acredita que «Niebuhr antecipou que a veneração americana pela democracia podia degenerar numa forma de idolatria» (p. XII) a que se assiste desde o 11 de Setembro.

Para Bacevich, Bush corresponde ao protótipo de idealismo, a que tem de ser aplicado o antídoto niebuhriano que compreende essencialmente quatro conceitos: (1) a modéstia na resolução das perplexidades da história; (2) a necessidade de tentar promover um sistema internacional estável aceitando a lógica do equilíbrio de poder como objectivo de política externa; (3) a renuncia à vontade de domínio; (4) o contrariar da tentação expansionista, ainda que esteja enraizada na auto-imagem americana.

 

O RESGATE DO PRAGMATISMO DE KENNAN

Ethical Realism, de Anatol Lieven, da New American Foundation, e John Hulsman, actualmente investigador no Council on Foreign Relations, é uma resposta prática ao ensaio de Niebuhr. Como resistir à tendência natural do credo americano de fazer da América um Estado expansionista em nome da democracia? Com o realismo ético.

Este livro delimita duas esferas, influentes na política externa de qualquer Estado: a persecução do interesse nacional e a variante moral através da qual cada Estado exerce o seu poder no sistema. É neste equilíbrio, dizem os autores, que reside a justa medida da política externa norte-americana.

Os Estados Unidos definiram a sua própria política no momento em que foram chamados a exercer funções de liderança a nível mundial – a seguir à II Guerra Mundial. A inspiração das regras morais veio de Reinhold Niebuhr e foi George Kennan que as codificou numa grande estratégia (p. XV). O resultado foi o «realismo ético» em que se enquadra a «estratégia da contenção». Niebuhr e Kennan reconheciam que os estados são sempre constrangidos pelo equilíbrio de forças, mas são livres de aplicar as regras morais que entenderem (p. XVIII). Esta variável é muito importante: veja-se a diferença entre a justa medida de Truman e Eisenhower e o «excesso moral» de George W. Bush.

Quais são os valores do realismo ético, ou melhor, da medida que a história mostrou ser justa na política externa americana? São cinco: (1) a prudência em todas as decisões, especialmente no uso da força militar; (2) a humildade no reconhecimento das capacidades e da falibilidade moral do Estado, e a consequente autovigilância e tolerância para com os outros actores; (3) a capacidade de se colocar na pele do outro para evitar erros estratégicos; (4) a preocupação com o equilíbrio entre custos/benefícios e a legitimidade dos objectivos; e (5) a aproximação do Governo e da população através de um mesmo patriotismo, de modo a suportar as dificuldades e o peso das obrigações de potência hegemónica (p. XVII). Lieven e Hulsman acrescentam ainda que o estadista deve defender o interesse do Estado e não a sua concepção pessoal de ética (p. xvii) e ter em conta que a decisão adequada num caso pode ser desaquada noutro, porque cada situação é uma decisão distinta, enquadrada por determinadas circunstâncias (p. 57).

Neste contexto, o resultado estratégico do realismo ético deve ser o ajuste das instituições de Roosevelt e Truman e da estratégia de contenção de Kennan ao século XXI. Deve ser a persecução da «Grande Paz Capitalista» (economia de mercado como regulador das relações entre estados) e a criação de concertos regionais para a resolução de problemas internacionais e o desenvolvimento de relações de previsibilidade que mitiguem a insegurança do sistema anárquico. Significa também olhar para a história como um guia; seguir os bons exemplos do passado – como o de Harry Truman, que travou a Guerra da Coreia como um conflito limitado, conseguindo conter o expansionismo comunista sem ceder à tentação imperial (p. 18) – e aprender com as decisões que se mostraram ineficazes por violarem o realismo ético – como no Vietname (uma guerra que Niebuhr e Kennan criticaram) onde se ignoraram critérios de prudência e humildade (p. 42). Assim se deve proceder, dizem os autores, para encontrar um consenso bipartidário – cada vez mais difícil – necessário à política externa de uma grande potência.

As críticas que estes dois livros lançam à actual Administração norte-americana não são inteiramente justas. A doutrina Bush e a intervenção militar no Iraque não são apenas expressões de um excepcionalismo americano mais expansionista (nem são as únicas decisões que o Presidente Bush tomou). São, também, respostas a uma crise política para a qual não havia exemplos na política externa do passado. A intervenção no Iraque pode ter sido uma guerra de escolha, mas foi também a tentativa da resolução de um problema de segurança que se agudizou depois do 11 de Setembro. Esse debate não cabe aqui; o que se pretendeu demonstrar foi que os Estados Unidos estão numa fase de revisão quer da sua estratégia – na sua relação com as potências emergentes e no relançamento da sua liderança num sistema internacional em vésperas de mudança –, quer do pensamento relativamente ao seu comportamento como actor internacional.

Pretendeu-se passar em revista as linhas de pensamento para uma nova ordem, que oscilam entre estratégias mais realistas e menos utópicas, que visam preservar o liberalismo como factor de regulação nas relações entre os estados, num contexto de regresso à power politics. Identificou-se outra tendência na literatura: a mudança das referências e a defesa de modelos de maior moderação e cepticismo. Tudo aponta, pois, para dois regressos: o regresso à política de poder e o regresso à humildade política.

Se não se devem esperar rupturas drásticas com o passado recente, fica ainda por se saber para que direcção penderá a política externa norte-americana, agora que a Presidência Bush está a chegar ao fim.

 

 

NOTAS

1 Cf., por exemplo, DONNELLY, Tom – «Empire of liberty: The historical underpinnings of Bush doctrine». American Enterprise Institute for Public Research, Junho de 2005 (Disponível em: www.aei.org), e, mais recentemente, KAGAN, Robert – «Neocon Nation: Neoconservatism, C. 1776». In World Affairs. Vol. 170, N.º 4, Primavera de 2008.        [ Links ]

2 Fareed Zakaria foi um dos «criadores» desta abordagem teórica, juntamente com Gideon Rose, Randall Schweller e William Wohlforth, entre outros. O livro de Zakaria sobre este assunto é From Wealth to Power: The Unusual Origins of America’s World Role (Princeton: Princeton University Press, 1998).

 

Textos discutidos neste artigo

Fareed ZAKARIA The Post-American World Nova York: W. W. Norton & Company 2008

Robert KAGAN The Return of History and the End of Dreams. Londres: Atlantic Books, 2008

Michael LIND The American Way of Strategy – U.S. Foreign Policy and the American Way of Life. Oxford: Oxford University Press, 2006

Reinhold NIEBUHR The Irony of American History. Chicago: Chicago University Press, 2008

Anatol LIEVEN, e John HULSMAN Ethical Realism – A Vision for America’s Role in the World. Nova York: Pantheon Books, 2006.