SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número19Alguns destaques estratégicos do consulado Bush índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.19 Lisboa set. 2008

 

O legado de Bush

José Cutileiro

 

Embora uma administração de outra coloração política pudesse não ter seguido uma política radicalmente distinta daquela que foi desenvolvida pela actual Casa Branca após o 11 de Setembro, parece indiscutível que o antigo governador do Texas imprimiu uma marca muito singular ao exercício do poder americano à escala mundial.

O presente artigo passa em revista algumas das decisões mais controversas destes oito anos, avaliando os seus prós e contras. Uma nota final é reservada àquela que poderá ser considerada a consequência mais perigosa da era Bush: a diminuição do prestígio moral dos Estados Unidos a nível global.

Palavras-chave: George Bush; Política Externa Americana; 11 de Setembro

 

 

The Bush Legacy

It is possible that a Democratic administration would not have followed a very different path from that of the present White House in the aftermath of September 11. But it seems indisputable that the former Governor of Texas has left his fingerprints on the exercise of American power. His most controversial decisions during these last eight years have pros and cons, but the most perilous consequence of the Bush era is the loss of the moral stature of the United States at a global level.

Keywords: George Bush; American Foreign Policy; September 11

 

 

 

No passado dia 28 de Julho, o Presidente George W. Bush aprovou a condenação à morte de um soldado americano, condenado em 1988 por quatro assassinatos e oito violações cometidos entre Abril de 1986 e Janeiro de 1987, que percorrera o percurso de condenações e recursos de instâncias sucessivas da justiça militar até chegar à mesa do comandante-em-chefe, cuja aprovação é precisa para execução da pena. O caso não acabará aí. No mundo civil, se perdão ou comutação tivesse sido pedido ao Presidente e este não houvesse satisfeito o pedido, o soldado Ronald A. Gray seria executado brevemente mas a justiça militar é mais complexa e seguir-se-ão recursos apresentados pelos advogados do condenado Gray a tribunais civis. Com o público americano quase esquecido de Bush e a campanha presidencial preocupada e animada por outras questões, o caso só foi notado em alguns jornais porque o último Presidente a aprovar a sentença de morte aplicada a um militar fora Eisenhower em 1957 (executada em 1961); em 1962, o Presidente Kennedy comutara uma em prisão perpétua; a lei fora depois mudada. E, embora o Presidente Reagan tivesse restabelecido a sentença de morte para crimes de militares em 1984 e o Supremo Tribunal tivesse asseverado a constitucionalidade da medida em 1996, não houvera até hoje mais condenações. Mas não houve protestos de grupos opostos à pena de morte que, depois de terminada a moratória decidida há anos pelo Supremo Tribunal, tem vindo a ser aplicada nos estados da União que não a aboliram.

George W. Bush é partidário convicto da pena capital (por razões eleitoralistas, durante a sua primeira campanha para a presidência, em 2000, exerceu prerrogativa de governador do Texas para comutar a sentença de um atrasado mental cujo processo – como tantos outros no seu Estado – estava recheado de ilegalidades, mas foi vez sem exemplo) embora as suas preferências pessoais não cheguem para explicar a decisão. Se os recursos civis que vão agora começar levarem a pedido de graça ao novo Presidente dos Estados Unidos não é certo que o resultado venha a ser diferente, seja quem for na altura o inquilino da Casa Branca (tão-pouco é certo, bem entendido, que venha a ser o mesmo).

Conto este episódio porque ilustra bem alguma dificuldade em separar Bush do resto dos Estados Unidos quando se trate do que nele ou neles agrade ou desagrade à maioria dos europeus: a pena de morte é anátema na Europa (para os políticos, para os povos nem sempre...) e é perfeitamente aceitável para a esmagadora maioria dos americanos, políticos e povo.

Julgo que toda gente estará de acordo em supor que, se o Supremo Tribunal americano tivesse dado a vitória a Al Gore e não a George W. em Janeiro de 2001, a reacção oficial ao «9/11» – que marcou o rumo das presidências Bush – teria sido diferente, mas quão diferente e de que maneiras, já variarão muito as opiniões. Se é certo que, na entourage de Gore, não havia a obsessão de acabar com Saddam Hussein partilhada por tanta gente próxima de Bush e de Cheney, o facto é que Hillary Clinton e muitos outros senadores democratas votaram pela guerra e foram também a favor desta muitas pessoas fora do Congresso que tinham trabalhado na Administração de Bill Clinton. Na realidade, alguns dos opositores mais radicais da invasão do Iraque foram republicanos, como Brent Scowcroft, antigo conselheiro nacional de Segurança de Bush pai. (Deve dizer-se em abono da verdade que muitos dos apoiantes da guerra não esperavam que, depois da ofensiva inicial brilhante, viesse incompetência tão egrégia e de tão fatídicas consequências no exercício da ocupação, desde o exíguo número de tropas colocadas no Iraque até ao consentimento da desordem nos primeiros dias e à dissolução das Forças Armadas iraquianas e saneamento do seu pessoal pouco tempo depois. Que esses erros monumentais tenham sido deixados impunes revela, apesar da complexidade da matéria, falta de análise lúcida e de clareza de comando da Administração.)

Além desta dificuldade há outra – lembrando a resposta atribuída a Chu En-Lai quando lhe perguntaram quais as principais consequências da Revolução Francesa de 1789: «É cedo de mais para dizer.» No Iraque, por exemplo, a chamada surge tem vindo a dar resultado e não se deve excluir que a reconciliação xiitas/sunitas que começou a verificar-se nos últimos tempos (bem como uma reconciliação xiita/xiita, mais incerta neste momento do que a anterior) venha a vingar e a permitir a sobrevivência de um Iraque inteiro, mais democrático no seu método de mudar de dirigentes do que os países da vizinhança (excepto Israel) e muito menos autoritário, violento e repressivo do que o regime de Saddam Hussein. É claro que o mapa geopolítico da região terá sido radicalmente mudado, com implicações estratégicas de monta. Nomeadamente, a Administração Bush, ao destruir o regime de Saddam no Iraque e o regime dos taleban no Afeganistão, libertou o regime iraniano de uma tenaz sunita temível, com um braço de audácia fanática em Cabul e o outro braço, militarmente forte e bem relacionado na vizinhança, em Bagdade. Teerão vive hoje com um desafogo que não tinha antes da expedição da Al-Qaida a Manhattan e ao Pentágono (atempadamente, de resto, oferecera os seus préstimos a Washington na luta contra os taleban). Se isso será bom ou mau para os interesses americanos – e europeus, que neste domínio como noutros com eles estão entrosados – depende de como as relações com o Irão progredirem. Entre aqueles americanos (e israelitas) convictamente alarmados que, apesar dos riscos políticos e militares da operação, querem ir bombardear, de preferência antes de chegar à Casa Branca um novo presidente, e outros americanos, europeus (e israelitas) que julgam que uma solução negociada no quadro das Nações Unidas é possível – embora com o credo na boca, porque nem russos nem chineses têm mostrado ser de fiar nesta saga – os segundos têm ganho algum terreno ultimamente: Washington agora manda gente sua a negociações com o protagonista que restava do Eixo do Mal. A estimativa do futuro depende de certa maneira de como se olhe para o copo: quem o considere meio cheio em vez de meio vazio, poderá visionar um Irão mais próximo de valores e interesses do Ocidente nos arranjos políticos internos e nas relações internacionais do que, por exemplo, é hoje a monarquia saudita. Se as coisas forem por esse caminho, dentro de dez anos o Médio Oriente será menos ameaçador para as conveniências europeias e americanas e para a estabilidade do mundo em geral do que o foi aqui há dez anos, isto é, por linhas tortas a invasão e ocupação do Iraque terão escrito direito e levado ao estabelecimento de regimes menos indecentes e perigosos – para os seus e para os outros – do que o que vigorara em Bagdade sob Saddam Hussein. Poderia é claro discutir-se até vir a mulher da fava se os horrores intermédios provocados pela invasão haviam valido a pena e não se teria chegado a esse melhor estado de coisas usando vias menos brutais.

Quanto à «Guerra contra o Terror», esta sofre desde o começo da sua denominação absurda – o terror é só um método e há requisitos para o uso do termo «guerra» que não estão preenchidos neste caso – e de um falhanço espectacular, ao mesmo tempo objectivo e simbólico: Osama bin Laden continua a monte e a mandar ameaças, o que não abona das capacidades antiterroristas americanas e entusiasma a rua árabe (menos agora do que aqui há poucos anos porque a barbaridade da Al-Qaida contra outros muçulmanos não tem caído bem e cada vez mais grupos islamitas se distanciam dela). A guerra no Afeganistão, de resto, mais bem fundamentada do que a do Iraque, tão-pouco foi levada a bom termo: também nela não se usou a força precisa, se escolheram mal aliados e se ignoraram mais de mil anos de história de resistência local. Na embalagem dessa guerra, Washington aumentou a sua ajuda ao Paquistão, apesar de posições ambíguas de políticas e serviços secretos paquistaneses. Entretanto, num acto raro de visão, fez um acordo nuclear com a Índia que é – nunca será demais repeti-lo – a maior democracia parlamentar do mundo. Por outro lado, não tornou a haver ataques terroristas aos Estados Unidos, desenvolveu-se cooperação muito eficaz entre os serviços de informação europeus, de outros países e americanos que tem permitido desmantelar redes e frustrar planos nefastos (por exemplo, o de abater dez grandes jactos comerciais sobre o Atlântico Norte no mesmo dia) e nenhum grupo terrorista se apropriou de armas de destruição maciça.

Quanto às outras relações de Bush e das suas duas administrações com o resto do mundo, a questão de Israel e da Palestina é aquela onde a sua acção – ou falta dela – foi mais nociva. Sabe-se quais são os passos que cada um dos dois lados tem de dar para que se caminhe no sentido de um modus vivendi tolerável que possa um dia levar à paz – retirada de Israel para as fronteiras de 1967; admissão da existência do Estado de Israel e renúncia à violência contra este – e sabe-se também que não haverá progresso na questão sem intervenção dos Estados Unidos: ninguém mais tem influência e força para obrigar as duas partes a dar esses passos. Os Estados Unidos foram sempre o melhor aliado de Israel, às vezes quase o único, os palestinos sabem e aceitam isso e as administrações americanas que melhor encaminharam as coisas no sentido de um entendimento foram as que levaram também em conta interesses dos palestinos (incluindo a de Bush pai). Ora apesar de ter declarado a necessidade de um Estado palestino, Bush, ou para satisfazer a sua clientela eleitoral evangélica, crente em profecia que dá para sempre aos judeus terras que estes ocupam ilegalmente desde a guerra de 1967, ou por ele próprio acreditar na profecia, não exerceu sobre Israel a pressão necessária para um compromisso, deixando a direita mais radical ir ganhando poder em Israel e, inversamente, o extremismo islâmico ir ganhando apoio entre os palestinos (o Hamas consolida cada vez melhor o seu controlo de Gaza). Essa recusa constante de intervenção significativa desde Janeiro de 2001 deixará a região em muito pior estado do que no fim da presidência Clinton ou mesmo em Dezembro de 1992 quando o pai Bush terminava o seu mandato. Entre as muitas tarefas de recuperação do papel e da influência dos Estados Unidos no mundo de que o próximo inquilino da Casa Branca deverá ocupar-se urgentemente a partir de Janeiro, acudir à questão de Israel e Palestina será uma das primeiras.

Quanto ao terceiro membro do Eixo do Mal, a segunda Administração Bush emendou a mão da primeira e, em vez de ameaças vãs e declarações bombásticas, dedicou-se ao trabalho de equipa pertinaz e reflectido que a questão nuclear norte-coreana exige, tendo obtido até agora alguns resultados satisfatórios e acentuando os méritos de quadro multilateral para abordagem de certos problemas.

Em África e na América Latina a acção da Administração Bush foi positiva: na primeira deu ajuda substancial à luta contra a sida que é, quer se queira quer não, um problema fulcral do continente; na segunda, a despeito de barragem quase constante de retórica antiamericana (e anti-Bush) ajudou a acantonar Chávez e a promover Uribe e estabeleceu relação estável e frutuosa com Lula. Sendo o Brasil, de longe, o parceiro latino‑americano mais vantajoso para os Estados Unidos e os Estados Unidos o maior investidor e role model da região, o entendimento convém tanto ao inquilino da Casa Branca quanto ao inquilino do Palácio da Alvorada.

Duas relações historicamente importantes que se projectam no futuro – com a Europa e com a China – começaram muito mal com Quioto e a guerra no Iraque, por um lado, e escaramuça aérea embaraçosa no mar da China, por outro, mas acabaram menos mal. Bush, amparado pelas chegadas de Merkel e Sarkozy ao poder e avisado pela experiência da negociação frustrada da ronda de Doha deixa ao seu sucessor um ambiente desanuviado quando for a vez de este se sentar à mesa com os vários representantes avalizados da União Europeia (o número de telefone único para onde ligar continua a não existir). E as contradições inevitáveis ao tratar com a China – direitos do homem e interesses comerciais; relações bilaterais e equilíbrio regional; Taiwan – levam Bush a dar uma no cravo, outra na ferradura, indo assistir à abertura dos Jogos Olímpicos depois de ter fustigado dias antes a atitude oficial chinesa quanto ao exercício de direitos humanos (tal como entendidos no Ocidente). Em suma, vai navegando à vista que é a melhor maneira de prevenir naufrágios e não se tem dado mal com isso.

Quioto foi pomo de discórdia, o que talvez tenha trazido vantagens a todos, por levar a revisões do problema e à procura de melhores métodos não só de avaliar alterações climáticas, mas sobretudo de lidar com elas de maneiras economicamente comportáveis. A tentação milenária de chegar ao Paraíso através de um Inferno intermédio, tão cara a entusiastas da felicidade sobre a Terra, tem vindo a levar um rombo. Contribuições estaduais americanas apoiadas em indústrias de ponta e esforços europeus de avaliação mais exacta de condições e circunstâncias sugerem que se possa vir a delinear um regime pós-Quioto acordado por todos. A oposição de Bush a Quioto era, de resto, largamente partilhada nos Estados Unidos; Clinton, que assinara o protocolo, sabia que, no Senado, este seria um nado-morto.

Guardei para o fim o mal maior feito pelos oito anos de Bush à chamada comunidade internacional ou, melhor dito, a todos nós. Desde 1945 que os Estados Unidos haviam sido não só um resoluto detentor de força física suficiente para desencorajar quem com eles se quisesse meter – durante a maior parte do tempo, a urss fora, nessa matéria, a fonte principal de preocupação –, mas também um padrão moral de comportamento (mais do que os grandes aliados europeus, marcados por passados coloniais). Nesses dois pilares se apoiara, primeiro que tudo, o chamado mundo livre, e eles continuaram a vingar como referência e seguro mesmo depois do colapso da urss. Ora Guantánamo, Abu Grahib, tortura de presos, mentiras e ilegalidades ligadas à apresentação do risco que o Iraque representava para a paz mundial (bem como outras ilegalidades da Administração, nomeadamente a politização indevida de certos sectores do funcionalismo público) deram um enorme golpe ao lado moral da construção e afundaram os Estados Unidos nas tabelas de estima no estrangeiro que agências especializadas elaboram e actualizam há muitos anos.

Em princípio, de volta desses pegos insondáveis os Estados Unidos levariam muito tempo até chegarem à superfície. E todavia... Se a idolatria de Obama na Europa for indicador fiável e ele ganhar a eleição, esse regresso seria muito mais rápido do que o que se teria antecipado. Embora, evidentemente, acompanhado pela descoberta de que, apagadas as tropelias indecentes da Administração Bush, interesses americanos e interesses europeus (ou russos, ou chineses, ou indianos, ou brasileiros) nem sempre coincidirão e o Presidente dos Estados Unidos foi lá posto para defender os dos seus compatriotas e não os nossos – quer se chame Barack Obama quer não.

A concorrência implacável no mundo globalizado aproxima Estados Unidos e Europa mais do que os anos entre a queda do muro de Berlim e a queda das torres de Manhattan fizeram porque há interesses comuns mais visíveis agora e em comum melhor defendidos. Mas restarão diferenças importantes que virão ao de cima, esteja quem estiver na Casa Branca – e não só quando chegar à Sala Oval outro pedido de confirmação da condenação à morte de um soldado.

NB : Não falei de subprimes porque Bush teve nelas poucas e indirectas culpas, nem do resto da política interna. Mas deve registar-se o ferro conservador marcado no Supremo Tribunal.