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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.26 Lisboa mar. 2014

 

ARTIGOS

Pequenas narrativas de educação artística: O uso da ilustração e de “brinquedos de autor” na comunicação de conhecimentos e afectos entre crianças e idosos numa pequena comunidade rural

Little narratives of art education: The use of illustration and “author toys” in the communication of knowledge and affects in children and elderly people of a small rural community

Petits récits d’éducation artistique: L’utilisation d’illustration et de «jouets d´auteur» dans la communication de la connaissance et de l’affection entre les enfants et les personnes âgées dans une petite communauté rurale

Pequeños relatos de la educación artística: El uso de ilustración y “joguetes de autor” en la comunicación del conocimiento y el afecto entre los niños y los ancianos en una pequena comunidad rural

 

*Leonardo Charréu & **Daniela Bacalhau

*CIEP- Centro de Investigação em Educação e Psicologia da Universidade de Évora I2ADS – Instituto de Investigação em Arte Design e Sociedades da Universidade do Porto GEPAEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura da Universidade Federal de Santa Maria. Email: charreu@gmail.com

**Artista Visual CIEP- Centro de Investigação em Educação e Psicologia da Universidade de Évora. Email: dcodfish@gmail.com

 

RESUMO

O texto constitui a síntese dos momentos mais significativos de uma experiência investigativa realizada no âmbito de um mestrado. Metodologicamente, está situada entre a investigação-ação e o estudo de caso e foi levada a cabo numa pequena aldeia do interior rural de Portugal. A partir do mapeamento das tradições e das histórias de vida das pessoas mais idosas de uma pequena comunidade, um dos autores deste texto desenvolveu um conjunto de materiais didático-artísticos (ilustrações e brinquedos híbridos) que foram aplicados em sessões presenciais de educação artística de índole visual, com um pequeno grupo crianças do primeiro ciclo da educação básica. A “pequena” narrativa que propomos é, pois, o registo/testemunho do impacto que a experiência teve, junto dos envolvidos, também eles em “pequeno” número – crianças e idosos -num momento histórico em que se torna difícil não ter, como referência, uma escala em que todas as coisas são micro, (nº de pessoas, nº de crianças, nº de escolas, nº de empregos, nº de médicos...) que infelizmente se tornou muito comum no espaço rural português. Dentro de uma matriz das pequenas coisas, consideramos interessantes os resultados alcançados, ou pelo menos dignos de atenção académica. Achamos que poderia trazer um contributo honesto a um território educativo cada vez mais carente de experiências centradas nos sujeitos que aprendem.

Palavras Chave: educação artística; educação comunitária; educação intergeracional; ilustração infantil; brinquedos didáticos.

 

ABSTRACT

From the mapping of traditions and life stories of older people in a small community, one of the authors of this paper developed a set of didactical-artistic materials (illustrations and hybrid toys) that were applied in the classroom sessions of visual art education, with a small group of children of the first cycle of basic education. A “small” narrative that we propose relates to the record/testimony of the impact that the experience had with the people involved in “small” numbers -children and the elderly – considering this historical moment in which it becomes difficult not to have as a reference a scale in which all things are micro, (number of people, number of children, number of schools, number of jobs, number of doctors...) that has unfortunately become very common in rural Portugal. Within a matrix of small things, we consider the achieved results interesting, or at least worthy of academic attention. We think that this research could bring an honest contribution to an increasingly devoid territory of educational experience focused in the learners.

Keywords: arts education, community education, inter-generational education, children’s illustration, didactic toys.

 

RÉSUMÉ

Le texte est le résumé des moments les plus importants d’une expérience d’enquête réalisée dans le cadre d’une étude de «master». Méthodologiquement, il est situé entre la recherche-action et l’étude de cas et a été réalisé dans un petit village dans la campagne du Portugal. Partant de la cartographie des traditions et des histoires de vie des personnes âgées dans une petite communauté, l’un des auteurs de ce document a élaboré une série de matériaux artistiques-didactiques qui ont été appliqués dans une classe d´éducation artistique de type visuel, avec un petit groupe d’enfants. Le «petit récit» que nous proposons est alors le témoignage de l’impact que cette expérience a eu sur les personnes impliquées, elles aussi en «petit» nombre - les enfants et les personnes âgées – dans un moment historique où il devient difficile de ne pas avoir comme référence une échelle dans laquelle toutes les choses sont micro (nombre de personnes, nombre d’enfants, nombre d’écoles, nombre d’emplois, nombre de médecins...) ce qui est, malheureusement, devenu très commun dans les régions rurales portugaises. Nous avons détecté, parmi les résultats, un ensemble de faits peu rélevants, du point de vue de leur dimension, que nous classerons toutefois comme intéressants ou, du moins, dignes d’attention académique. Nous pensons qu’ils pourraient se configurer comme une réflexion honnête sur/à propos d’un territoire de plus en plus dépourvu d’expériences éducatives axées sur les sujets qui apprennent.

Mots-clés: éducation artistique; éducation communautaire; éducation intergénérationnelle; illustration enfantine; jouets didactiques.

 

RESUMEN

El texto es el resumen de los momentos más significativos de una experiencia de investigación realizada en un ámbito de un master. Metodologicamente, se encuentra entre la investigación-acción y el estudio de caso y fue llevada a cabo en un pequeño pueblo del interior rural de Portugal. A partir de la identificación de las tradiciones e historias de vida de las personas mayores en una pequeña comunidad, uno de los autores de este trabajo ha desarrollado un conjunto de materiales didáctico-artísticos que se han aplicado en sesiones de educación artística de naturaleza visual y plástica, con un pequeño grupo de niños en el primer ciclo de la educación básica. La “pequeña narrativa” que proponemos es el registro/testimonio del impacto que la experiencia tuvo con las personas involucradas, también ellos en “pequeño” número -los niños y los ancianos - en un momento histórico en el que se hace difícil no tener como referencia a una escala en la cual todas las cosas son micro, (número de personas, número de hijos, número de escuelas, número de puestos de trabajo, número de médicos …), y que se ha convertido, lamentablemente, muy común en la zona rural portuguesa. Dentro de una serie de pequeñas cosas, consideramos interesantes los resultados alcanzados, o por lo menos digno de atención académica. Pensamos que podría traer una contribución honesta a un territorio cada vez más carente de experiencias educativas que se centran en los sujetos que aprenden.

Palabras clave: educación artística; educación comunitaria; educación inter-generacional; ilustración infantil; joguetes didácticos.

 

 

“Os homens não são problemas ou equações mas sim histórias, somos menos parecidos com contas do que com contos”. (Savater, 1997, p. 99)

“… se ouvimos uma história aprendemos, e se contamos uma, ensinamos.” (Daniela, participante no estudo, 8 anos)

 

Introdução: aclarar um ponto de partida, contingências e constrangimentos no mundo rural português contemporâneo, a necessidade de reconsideração da infância e da terceira idade enquanto sujeitos sociais e culturais.

O contexto social, cultural e político vivido no Portugal contemporâneo exigiu-nos, após algumas hesitações, a adoção de um discurso que procurasse aclarar as condicionantes que hoje estrangulam, de certo modo, o espaço rural português. Sentimos que neste inicio de reflexão poderíamos honestamente re-velar, desde logo, aos nossos hipotéticos leitores uma parte das nossas preocupações e motivações, procurando, enfim, aclarar o nosso ponto de partida. Nele ecoam as palavras profetizadoras de Paulo Freire: educa-se sempre a favor de alguém, e contra alguém, uma rara afirmação tão radical e, por isso mesmo, estranha, vinda de uma personagem tão doce, humana e consensual. Na realidade, para além de todas as poéticas imanentes ao fazer artístico, território mais ou menos tranquilo pelo qual transitaremos mais adiante, somos dos que acreditamos, como John Dewey, que “educação é política” o que, consequentemente, torna necessário o discurso que se segue nos próximos parágrafos.

As crianças e os idosos são hoje, como o têm sido sempre, os atores mais debilitados dos tecidos sociais contemporâneos. Quer vivam em ambientes urbanos, quer vivam em ambientes rurais, a sua desconsideração como “sujeitos” políticos (e a erosão crescente e subliminal dos direitos a que se lhes estão adstritos) tende a crescer nas democracias ocidentais. Tendo como desculpa conveniente a omnipresente crise económica e uma pseudonecessidade de racionalização, consequência da mesma, o diligente poder político central tem levado uma “ofensiva” que muitos consideram lesiva de direitos e garantias, sem precedentes, sobre praticamente todos os cidadãos do interior rural português.

Começando por encerrar valências de hospitais do interior -incluindo as maternidades -para logo depois se começar a encerrar as escolas rurais com menos de 10 alunos (esse ratio passou depois para menos de 21, e seguirá por aí fora!) e a fazer viajar crianças, por vezes dezenas de quilómetros, até ao mega-agrupamento de escolas mais próximo, o corolário desta política de sangria, no que diz respeito ao ordenamento território, será a anunciada extinção de um número assinável de freguesias, muitas delas rurais, contribuindo ainda mais para a extinção de apoios à terceira idade, conhecida que é a função de apoio à velhice que muitas juntas de freguesia hoje proporcionam (em muitas se recolhe o correio, se paga o telefone, a eletricidade etc.).

Estão, portanto, lançados os dados para uma aceleração da crescente desertificação do interior rural português. Esse abandono – já registado nos últimos censos -começando por ser humano, fatalmente também será cultural, pois a cultura é feita com pessoas, para pessoas, e será muito difícil “fazer” cultura em ambientes deprimidos demograficamente.

Esta proposta de trabalho procura, na sua escala humilde, reagir contra um futuro triste e anunciado, procurando, nas suas estratégias, o estabelecimento de pontes criativas por onde possam transitar a sabedoria do idoso e a curiosidade da criança. Agora que os mass media “descobriram” que os idosos vão morrendo em casa, abandonados e sozinhos, e colocaram a problemática da velhice na agenda da discussão política, originando uma espécie de consciencialização social alargada, (com os “primeiros” debates televisivos sobre o tema) estão talvez agora criadas condições para que o flagelo deixe de ser incómodo e passe a ser prioritário e a exigir respostas urgentes. Requer-se agora dos educadores que tenham sensibilidade para a problemática e ousem propor projetos que liguem gerações, em vez de separarem. A coesão social e a dignidade possível com que poderemos viver num futuro próximo dependerá, portanto, da ousadia e da criatividade com que nos envolveremos em projetos intergeracionais e interculturais, num mundo em que o equilíbrio macro depende das realizações micro. E nesse sentido são as pequenas coisas que realizamos que contribuirão decisivamente para as mudanças e transformações realizadas em grande escala, que também almejamos.

 

Fundamentação e enquadramento conceptual da investigação-ação: as vozes de intelectuais e institucionais da sustentação teórica. Um papel (mais um) para a arte na educação.

A nossa investigação sedimentou-se em diversas preocupações, umas de âmbito educativo, naquilo que poderá pertencer ao campo das expressões artísticas, outras de natureza sociocultural, buscando estreitar laços entre os idosos e crianças de uma comunidade. Mas o veio principal, motor de todo o projeto, enfocou-se nas histórias de vida, entendidas na perspectiva de Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut (1999), no que delas podemos retirar como traços de identidade cultural de uma determinada comunidade e como podemos utilizar esse conhecimento para dinamizar os contextos educativos.

Para corresponder aos nossos propósitos criámos uma estreita ligação entre as três peças fundamentais que alicerçam este estudo: A Pedagogia/Didática, no que concerne ao nosso papel enquanto agentes educativos e às nossas preocupações e possíveis abordagens; a Arte, em particular a ilustração infantil, considerada na sua dimensão criativa e como recurso didático, presente numa série de propostas gráfico-plásticas de natureza ilustrativa e lúdica, que tiveram um papel axial naquilo que considerámos como instrumentos de investigação e, por fim, a Antropologia Cultural, entendida no âmbito da exploração de conteúdos das histórias de vida, tradutores de marcas identitárias de uma cultura local.

Este projeto proporcionou-nos uma longa viagem, fez-nos conhecer e cruzar caminhos entre o passado e o presente. Acreditamos que também nos tenha dado uma certa visão de futuro.

No nosso entender, a Educação não deve perder o seu sentido humanizador, abrindo o horizonte de cada aluno, apresentando-lhe desafios que o coloquem face a si mesmo, aos seus sentimentos e às suas percepções da vida e do mundo, uma vez que ensinar a olhar, bem como a importância que esse olhar representa. É tão fundamental como compreender matérias e conteúdos teórico/científicos, pois estamos em crer que é através do equilíbrio entre os dois que o ser humano se pode adaptar ao seu mundo interno e externo e, assim, inovar as suas perspectivas e participar com as mesmas para um enriquecimento intelectual, a nível global.

Como refere Merani (1977, pp. 121-122) “O conceito de humanidade é necessário, ou, melhor dizendo, é a base de qualquer pedagogia futura”, ou pensando ainda nas palavras de Patrício (1983, p. 2), o objectivo da educação encontra-se dentro de uma dimensão a ser “moldada” num equilíbrio que pondere as características humanas do educando. Ora dentro de uma sociedade cada vez mais globalizada, urge encontrarmos uma forma de transmitir e preservar o património cultural para gerações futuras, como aponta Hans D’Orville (Diretor do Bureau of Strategic Planning da UNESCO), sabendo simultaneamente enquadrar as referências identitárias que nos chegam pelos alargados e diversificados meios de comunicação.

Julgámos ser importante voltar a sublinhar a temática do papel das artes na educação formal à luz do que também tem sido produzido ao nível do panorama internacional. Na verdade, em termos internacionais, remonta pelo menos a 1996, as preocupações de organismos como a UNESCO relativamente ao papel e importância das artes na educação. Esta organização tem desenvolvido um pa-pel fundamental para a divulgação dos “benefícios” que uma educação artística pode trazer para o desenvolvimento dos povos, mas foi em 1999, na 30ª conferência e em sequência dos vários relatórios publicados pela referida entidade, que foi enfatizada, a um nível global, a importância de uma educação escolar não só artística, como também criativa.

Podemos ainda olhar com particular interesse para as palavras de Koichiro Matsuura (2004) Director-Geral da UNESCO. Na mesma conferência, encontramos preocupações comuns às que demonstramos pelos conteúdos temáticos que escolhemos, e passamos a citar:

(…) more peoples and communities of the world have begun to recognize the importance of their cultural heritage – whether tangible or intangible – as a contribution to the world’s cultural diversity. Communities in every land have come to realize that their cultural heritage, which is by nature fragile, plays a crucial role in their identity and that their engagement in safeguarding activities contributes to a sense of continuity. As a result, while globalization has undeniably contributed to the dissemination of cultures, its effects on cultural diversity can, if we are not careful, be negative (Matsuura, 2004, p. 17).

Para que não se gerem equívocos preliminares em torno das questões que pretendemos abordar sobre Arte e Educação, é necessário referir uma diferenciação fundamental entre educação pela arte; educação para a arte e arte na educação.

A primeira, segundo Santos (1989, p. 31), concentra esforços para a “formação da personalidade”, a segunda procura a “formação de artistas”. A terceira, muito enraizada na documentação pedagógica que se vai produzindo nalguns ambientes intelectuais contemporâneos (Seminários, Congressos, etc.) tende a ser, mesmo assim, tão lata (englobando outras expressões como a música, o drama ou o teatro) quanto vaga nos escassos efeitos que produz sobre o sistema educativo alargado.

Apesar de tudo julgámos serem claros os nossos objectivos. Desejámos explorar a dimensão humana e sensitiva dos alunos, neste caso uma vertente talvez mais ligada à “formação da personalidade”, recorrendo a uma pedagogia apoiada e delineada por materiais didático-artísticos de autor, produzidos por nós, como percutores, por um lado, do interesse da criança em saber mais sobre os que o rodeiam, por outro lado, como objetos inspiradores para futuras concepções de materiais autónomos com as mesmas finalidades.

Como ideia-chave de partida, sustentamo-nos também na perspectiva apresentada por Bronowski citado por Santos (1989, p. 28) “as artes são um veículo de conhecimento e, especialmente, porque extraímos delas uma compreensão de experiência humana e, através delas, dos valores humanos”. Achamos uma justificação forte para a fundamentação geral do nosso projeto. Então, considerando as artes como um veículo de conhecimento, torna-se difícil entender porque não se estabelecem ligações mais profícuas entre estas e os contextos educativos. Como refere O’Toole (2006) e Bamford (2006) muitas vezes as artes são marginalizadas nos currículos educativos a nível mundial, ainda que sejam uma forma de captar e compreender as realidades sociais e humanas e, simultaneamente, sejam veículos pedagógicos capazes de potenciar uma maior experimentação interdisciplinar em todo o currículo educativo.

 

A arte da ilustração aplicada na mediação entre os extremos etários da comunidade. A construção plástica dos materiais.

A parte que podemos definir como empírica começou com o conhecimento da dimensão rural que caracterizava social e culturalmente a aldeia de Santana do Campo, com pouco mais de 300 habitantes (censos de 2001) pertencente ao concelho de Arraiolos, no Alentejo, nas décadas de 40 e 60, bem difíceis, por sinal, através de diversos depoimentos recolhidos por intermédio de metodologias de recolha de dados tomadas de empréstimo ao campo da investigação qualitativa (Strauss & Corbin 1990, Kvale 1996, Stake 2007).

Como questão-guia da investigação, procurou-se compreender, em primeira instância, em que medida este tipo de materiais didáticos eram relevantes no processo de ensino/aprendizagem de um conteúdo específico. Em segunda instância, de que forma os conteúdos já explicitados, sendo transmitidos a partir dos referidos materiais de autor (que pressupõem um conhecimento prévio do público a quem se destinam) contribuíam (ou não) para uma maior sensibilização e conhecimento do local (património tangível e intangível) onde se inseria o público a ser estudado.

A presente investigação adoptou então uma forma metodologicamente híbrida, mas seguramente qualitativa e situada entre Investigação-Ação Participativa por interferirmos e participarmos sobre/com os sujeitos da investigação, enquanto autores dos materiais dos próprios instrumentos de investigação e o Estudo de Caso (Stake, 2007), pela exiguidade, assumida, da amostra e particularidade da mesma. Consideramos serem estas as plataformas de investigação mais adequadas ao nosso objecto de estudo e às finalidades do próprio estudo. Por conseguinte, alguma transdisciplinaridade foi requerida, em vários momentos da investigação, para lhe dar coesão interna e legitimá-la enquanto investigação científica, no âmbito das ciências humanas.

Procurou-se, preliminarmente, seguir uma filosofia de recolha etnográfica tão naturalista quanto possível, como nos aconselha Henry Mayhew (citado por Burgess 1990, p. 112). Segundo este antropólogo, para se conhecer verdadeiramente os indivíduos de uma dada comunidade devem buscar-se uma “descrição literal do seu trabalho, dos seus rendimentos, das suas provações e dos seus sofrimentos expressos na sua própria linguagem; e retratar as condições das suas casas e das suas famílias”.

Tivemos por isso o cuidado de não nos deixarmos envolver por uma certa tendência para aquilo que Mayhew (agora citado por Green, 2002) designa como “poetic ethnography”, quando os etnógrafos se deixam enredar pelo exótico e pelo pitoresco das comunidades que querem estudar, turvando um pouco a objectividade com que deveriam descrever a realidade observada. No entanto, devemos confessar que não deixou de nos parecer “poéticas”, ou pelo menos (e por isso mesmo) inspiradoras, algumas das narrativas e histórias de vida “reais” contadas pelos mais velhos. Julgámos, até, que essa espécie impressão poética é prévia ao ato criativo nas artes visuais, no nosso caso na ilustração. É, no fun-do, um ponto de partida para aquilo a que se quer dar uma forma plástica.

Interpretamos como um voo conectando pessoas de várias gerações o ambiente que circunscreve umas festas populares. Na arte, e na ilustração em particular, o exercício do pensamento e da ação criativa divergente de cânones e valores pré-estabelecidos é, muitas vezes, uma espécie de normalidade (Figura 1 e 2). Para quem faz e para quem aprecia. Na realidade, nesta saída da norma reside o seu encanto e a razão para que continue a ter tantos e variados apreciadores.

 

 

 

Daí que, ultrapassando um pouco os conselhos metodológicos de Mayhew, tenhamos também acrescentado a descrição das festividades e dos rituais sociais e religiosos levados a cabo pela comunidade (Figuras 3, 4 e 5). Numa simples análise de conteúdo, o que de comum foi relatado foi verdadeiramente o que nos inspirou para a concepção dos materiais que posteriormente apresentámos aos alunos.

 

 

 

Num momento de atual profunda crise económica, que já passou também a ser social, nesta seleção de temas e “histórias”, tanto previlegiamos os que, de algum modo, colocassem as crianças em contacto com algo de positivo, como exemplificamos nas figuras precedentes, como procuramos também confrontá-los com temas que lhes permitissem entender as privações e provações de “outras” infâncias que caracterizaram a geração de seus avós (Figuras 6, 7 e 8).

 

 

 

 

Uma determinada corrente pedagógica de natureza essencialista, ou autoexpressiva, herdeira das visões e posturas educativas libertárias dos anos 1960 e 1970 e que tiveram em Read, Lowenfeld e Stern (entre outros) os seus expoentes máximos poderiam desmontar, com argumentos fáceis, as premissas fundamentais e as estratégias básicas do nosso projeto. A ideia de que a criança é potencialmente criativa e a influência do adulto só a pode prejudicar na sua criatividade “pura” serviu de guia à ação de um sem número de educadores de infância ao longo das últimas décadas. Poder-se-ia argumentar que poderia ter sido aconselhável deixar às nove crianças do grupo experimental a responsabilidade da produção dos materiais visuais.

No entanto, como bem afirmam os investigadores contemporâneos que trabalham temas próprios, ou colaterais, à Cultura Visual (Buckingham 2007, Wilson & Thompson, 2007, Barra 2004), nunca tanto como hoje, as crianças estiveram expostas a tantas solicitações visuais, a tantas estratégias de sedução e de persuasão.

Os aparatos tecnológicos, objetos de lazer e simultaneamente símbolo de status social (Nitendos, Playstations, Ipods, etc) proliferam nos lares, mesmo nos de zonas rurais. E muitos pais preferem abrir os cordões à bolsa do que suportar a choradeira irritante e persistente dos infantes. A publicidade globalizadora, mediada pelos canais de televisão, que entra sem permissão em cada lar, encarrega-se de criar essas novas necessidades para que a família, definitivamente, esteja “in”, isto é, integrada na suposta modernidade por intermédio dos hábitos de consumo e respetivos aparatos tecnológicos emblemáticos.

Consequentemente, o contacto dos alunos com as caixas e respetivas ilustrações que poderemos considerar “tradicionais” face aos processo digitais que tem tomado de assalto os ateliers de produção gráfica, sobretudo o entusiasmo com que o fizeram, fez-nos pensar da permanência, no imaginário infantil contemporâneo, de determinados denominadores comuns que ainda justificam os processos de produção analógica. Há um “conhecer pelos dedos“ subjacente a estes materiais muito próprio da infância e da curiosidade infantil. Procuramos, por isso, elaborar os materiais com um mínimo de interatividade para encaixar na ludicidade manipulativa própria das crianças. Assim, algumas das figuras deslizavam instaladas (coladas) em êmbolos de finas varetas instaladas em caixas de madeira, favorecendo a animação e despertando (estimulando) na criança a vontade de “continuar e completar a história” (Figuras 3 e 8).

 

A construção plástica dos materiais e a sua relação com os dados etnográficos

Tentámos então, partindo da nossa recolha prévia junto da comunidade, encontrar uma forma apelativa, para organizar as nossas informações nestes materiais tridimensionais, que os alunos pudessem mexer, manipular ou usar. São apenas alguns dos mais significativos os que mostramos nas figuras das páginas anteriores (a produção resultou no dobro).

Procurámos também, nas sessões práticas que tivemos com as crianças, que os próprios pudessem recriar à sua maneira uma outra dimensão das histórias que iríamos contar. Fundamentalmente procurámos que fossem materiais que esboçassem a criatividade, e que simultaneamente estimulassem a criatividade e imaginação dos alunos no sentido de poderem refletir sobre os assuntos abordados e “brincarem” com os conhecimentos adquiridos.

Desde sempre nos interessou uma certa dimensão de proteção que as caixas significam em si enquanto objetos. Referimo-nos à capacidade de conter, guardar, ocultar ou mostrar o seu conteúdo, arrumando tudo de uma forma compartimentada. Ao pensarmos na construção destes materiais, acabamos por importar um pouco esse conceito, tentando tornar de certa forma “precioso” o conteúdo que atribuímos a cada uma das caixas que utilizámos. Sobretudo, tentámos dar “corpo” às histórias, para que pudessem ser visuais e tridimensionais, atributos que normalmente não existem quando as histórias (de vida) são contadas diretamente de pessoa para pessoa.

Como vimos atrás, os materiais foram divididos por três temáticas, “A Família”; “As Festas em Santana do Campo” (apenas abordamos as festas de Verão); “O Trabalho”.

Para a primeira temática destinámos quatro caixas com pequenos sub-temas:

Caixa 1 – Abandono escolar precoce / motivos e perspectivas laborais.

Caixa 2 – Dimensão do agregado familiar, condições de vida nas habitações, dieta alimentar da zona / fome.

Caixa 3 – Tipos de trabalho e rotinas diárias.

Caixa 4 – Casamento e repetição do “ciclo” familiar já descrito.

Na segunda temática utilizámos apenas uma caixa em que abordamos os diferentes passos para a organização das festas de verão na aldeia: a frente da caixa retrata o momento do ano em que eram celebradas as festas, e o grupo responsável pela sua organização, bem como o processo de financiamento das mesmas. O interior retrata um pouco da “ambiência da festa”, estando presentes os elementos descritivos que recolhemos:

- A organização e angariação de fundos

- O local de realização das mesmas -

- A procissão

- A venda de fogaças

- Os “desafios” à população (maçã no poste)

- A decoração do recinto da festa

- A fanfarra e o baile

- A cerimónia de encerramento

Nesta face incluímos também diferentes personagens móveis que os alunos podiam manipular, para tentar retratar as diferentes gerações que frequentavam as festas, bem como os vários níveis sociais presentes. Na face posterior, retratámos o final das festas, através de dois elementos emblemáticos que nos foram referidos nas entrevistas com os idosos, o fogo de artifício e o balão de papel.

Para o último tema, reservamos dois suportes a que chamamos “tábuas”. A primeira foca a rotina diária ligada ao trabalho. Esta dimensão é explorada em três imagens que mostram aspectos como os horários de trabalho, a forma como as crianças eram incluídas na rotina diária de trabalho das mães, e por fim, o tipo de atividades económicas desenvolvidas na zona (colheita de trigo, fruta, azeitona, cortiça, fabricação de carvão e os bordados de Arraiolos).

A segunda tábua foca dois aspectos de certa forma também ligados ao trabalho. A primeira imagem, por um lado, faz referência à forma como a população introduzia alguns momentos de lazer nas rotinas semanais de trabalho (bailes), por outro, mostra a interajuda entre os habitantes, uma vez que era prática comum organizarem-se pequenos bailes em casas particulares, como forma de auxiliar no acabamento dos pavimentos interiores que normalmente eram feitos com terra e água, (este era conseguido pela movimentação das pessoas, pelos passos e pelo peso que exerciam no solo).

Como última imagem, escolhemos a representação a construção do posto médico e a canalização de água potável até à aldeia, uma vez que envolveu o esforço conjunto da comunidade para um bem comum.

 

Considerações finais

Fazendo um ponto de situação, podemos confirmar que os materiais apresentaram considerável relevância no processo de ensino e aprendizagem dos conteúdos a que nos propusemos, uma vez que os alunos alcançaram alguns níveis de pormenorização dos factores abordados, e mantiveram as suas descrições da “vida de antigamente” em grande conformidade com o que lhes foi passado por nós através dos materiais.

Após a aplicação dos materiais, estamos em crer que foi adquirida por parte do grupo de estudo uma maior objectividade na forma de intuir o propósito e a importância que as histórias podem representar na formação dos próprios alunos.

Os alunos focaram, para além do papel intimamente ligado ao ato do ensino/ aprendizagem, a dimensão fundamental que procurávamos despoletar: o interesse pelo passado e pela preservação do mesmo, através do reconhecimento dos elementos que simbolizam a tradição e a importância de a fazer perdurar em futuros próximos.

Podemos referir que, no decorrer desta investigação, tivemos o privilégio de poder assistir e participar num percurso importante no âmbito do desenvolvimento dos alunos.

Tendo em linha de conta que os passos desta investigação foram marcados por vários espaços temporais, acreditamos poder constatar com relativa segurança que os materiais surtiram um efeito construtivo junto dos alunos. Percebemos que existia, aquando das recolhas iniciais, uma lacuna considerável ao nível do conhecimento relativo às “vivências antigas” da aldeia.

Contudo, e recorrendo aos registos efectuados pelos alunos, nos livros em branco que posteriormente lhes entregámos para completarem, conseguimos ler em cada um dos relatos por eles prestados, que o “guião informativo” que tínhamos seguido na apresentação dos materiais, foi em grande parte reproduzido por estes, revelando dessa forma uma boa apreensão dos conteúdos e dos já referidos pormenores.

Tivemos ainda a possibilidade de encontrar um livro completado com ilustrações “inspiradas” nos materiais didáticos que apresentámos, e outro completado por fotografias da aldeia, demonstrando assim, entre outras possibilidades, uma dimensão participativa e interessada sobre a temática.

Por outro lado, no decorrer das últimas entrevistas de avaliação informal do projeto, pudemos também constatar que a valorização atribuída ao ato de con-tar histórias, tomou outra proporção para os alunos. Estes situaram o potencial das histórias e o ato de as partilhar, dentro das preocupações de salvaguarda das tradições e dentro do domínio do ensino/aprendizagem. O que também nos surpreendeu, por percebermos a dimensão pedagógica que as crianças atribuíram à problemática. Extrapolando para essa acepção, parte dos propósitos dos materiais que lhes levámos, podemos depreender que as crianças também reconheceram utilidade, interesse e importância ao projeto do qual fizeram parte.

Como balanço final do processo inerente à investigação, podemos referir, enquanto agentes educativos, que a dinâmica alcançada nos momentos em que estivemos com o grupo de estudo e a participação envolvente do mesmo, foi um factor importante que nos leva a considerar a importância da concepção deste tipo de “suportes didáticos” para a nossa prática profissional, e para outras áreas que assim o desejem.

Retiramos das nossas abordagens a atenção com que os alunos se situaram ao ouvir e participar nos relatos que foram feitos, e no prazer que estes demonstraram com a manipulação dos materiais (figura 9), a descoberta dos pormenores que introduzimos, e a tentativa de compreensão das imagens e contextos que os constituíram.

 

 

Esta última dimensão teve particular interesse para nós, uma vez que percebemos existir, por parte dos alunos, para além da falta de referências sobre a cultura local, falta de referências visuais. Percebemos também que esta dimensão pode facilitar a compreensão de determinadas situações que muitas vezes se perdem, pelo facto de apenas serem orais.

Para terminar, devemos ainda referir também o profundo impacto que julgamos ter sido possível alcançar através deste estudo. As entrevistas de avaliação final provam isso. Apesar do projeto ter sido constituído por diversas facetas, estamos em crer que foi possível entrelaçar caminhos que confluíram expressivamente num propósito comum: um desejável equilíbrio entre o desenvolvimento sócio-afetivo, humano e sensorial, mediados por conteúdos relativos aos materiais didácticos de autor que concebemos, possibilitando assim a demonstração da aquisição de conhecimentos sob uma perspectiva do local envolvente, sobre a sua história e sobre as particularidades que a tornam singular.

Permitiram, dessa forma, o início de um desafiante percurso de identidades partilhadas dentro de uma mesma comunidade.

 

Referências Bibliográficas

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Data de Submissão: Janeiro 2013
Data de Avaliação: Abril 2013
Data de Publicação: Abril 2014