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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.24 Lisboa  2013

 

Streck, D., Redin, E., & Zitkoski, J. J. (org). (2008). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Editora Autêntica.

 

Ana Lúcia Souza de Freitas*

*Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) ana.freitas@pucrs.br

 

A organização do Dicionário Paulo Freire, realizada pelos educadores Danilo Romeu Streck, Euclides Redin e Jaime José Zitkoski, anuncia a atualidade do pensamento freireano. “Paulo Freire foi um semeador e um cultivador de palavras” (2008, p.13), frase que inicia o texto de apresentação da obra, justifica a intenção dos organizadores de “apreender algumas dessas palavras vivas, travar com elas um diálogo e devolvê-las ao público para que continuem a sua trajetória humanizadora” (2008, p. 13), sem a pretensão de dizer a palavra derradeira, mas de “fazer um exercício do pensar certo na perspectiva de uma reflexão rigorosa e metódica” (2008, p. 13).

A organização dessa publicação, contando em sua primeira edição com a participação de 75 autores e autoras para a elaboração de 182 verbetes, reveste-se de uma complexidade que é, em si mesma, um testemunho da atualidade de Paulo Freire. Os significados de cada um de seus verbetes, tanto quanto a concepção de educação libertadora que conjuntamente ratificam, evidenciam o potencial mobilizador do pensamento freireano que se realiza na práxis educativa, em diferentes campos de atuação. A publicação de uma segunda edição do Dicionário, no ano de 2010, ampliada com a participação de 103 autores e autoras para a elaboração de 232 verbetes, é também representativa da atualidade do pensamento freireano. De igual modo, a tradução para a língua inglesa, no ano de 2012, ratifica o significado desta publicação.

Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual é o capítulo introdutório do Dicionário, cuja escrita contextualiza os verbetes apresentados, fazendo referência a Paulo Freire como “um pensador dialógico em busca de novas sínteses” (op. cit., p.19). Os autores consideram que a obra de Paulo Freire inspira processos inovadores, argumentando que seu pensamento “é provocativo e instigante porque está sempre em movimento, aberto às diferenças culturais e aos novos desafios diante das realidades sociais” (2008, p.23).

O Dicionário Paulo Freire apresenta, entre os conceitos fundantes do pensamento freireano, o verbete política, explicitando sua compreensão acerca de que “a educação como ato político compreende a existência dos vários projetos que estão em disputa na sociedade, bem como a opção que fazemos na defesa de um, e não de outro” (Costa, 2008, p.327). O texto do verbete ratifica a proposição freireana de que precisamos de uma educação para a decisão, para a aprendizagem da responsabilidade política, considerando que faz parte da função social da escola educar para o desassossego, para a indignação e para a transgressão.

Indignação é também um dos verbetes apresentados no Dicionário Paulo Freire, fazendo referência às emoções e aos sentimentos que perpassam a produção do pensamento freireano, considerando que “ele não fazia e não acreditava poder pensar-se e escreverem-se textos fora da intuição e da observação, longe do cotidiano vivido molhado de emoções e dos sentimentos, somente com a razão intelectiva” (Freire, Nita, 2008, p.229). O verbete apresenta o entendimento de que “a indignação ou raiva legítima é ponto fundamental na teoria crítico-político-pedagógica que ele concebeu” (ibidem), sem dissociar de seu sentimento oposto antagônico, o amor. O amor, assim como a justa ira são, portanto, constituintes da esperança, justificando-se como aspectos indispensáveis à prática da educação libertadora, em que a conscientização é assumida como finalidade.

A conscientização, apresentada no Dicionário como o “processo de criticização das relações consciência-mundo” (Freitas, 2008, p.99), é analisada como um conceito que pode ser percebido em três momentos distintos na produção teórica de Paulo Freire. Suas primeiras obras apresentam explicitamente a conscientização como finalidade da educação, ao argumentar que “a realidade não pode ser modificada, senão quando o homem descobre que é modificável e que ele pode fazê-lo. É preciso, portanto, fazer desta conscientização o primeiro objetivo de toda a educação: antes de tudo provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação” (Freire, 1979, p.40). Num segundo momento, Paulo Freire deixou de empregar o termo sem deixar de perseguir sua intencionalidade. Em suas palavras: “Tive, indiscutivelmente, razões para desusar a palavra. Nos anos 70, com exceções, é claro, falava-se ou se escrevia de conscientização como se fosse ela uma pílula mágica a ser aplicada em doses diferentes com vistas à mudança do mundo” (Freire, 1991, p.114). Por fim, na escrita da Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire afirma claramente: “Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização” (1996, p. 60). Este conceito elucida a compreensão de que, para além de uma visão evolucionista, é importante perceber a complementaridade do pensamento freireano em diferentes momentos históricos.

O diálogo, outro conceito fundante do pensamento de Paulo Freire, é apresentado no Dicionário como um desafio à práxis freireana, considerando que “O desafio freireano é construirmos novos saberes a partir da situação dialógica que provoca a interação e a partilha de mundos diferentes, mas que comungam do sonho e da esperança de juntos construirmos o nosso ser mais” (Zitkoski, 2008, p. 131). O ser mais é uma possibilidade que se gera a partir do diálogo, considerando que “(...) a partir do diálogo crítico e problematizador será possível aos oprimidos construírem caminhos concretos para a realização do seu ser mais” (Zitkoski, 2008, p. 380). Neste senti-do, importa considerar que o diálogo problematizador, característico da educação libertadora, não se reduz a uma técnica ou metodologia, mas representa uma opção teórico-política de enfrentamento à lógica social dominante, a serviço do ser mais.

A experiência da interação com o outro, por meio do diálogo, permite problematizar as relações consciência-mundo. O diálogo mediatiza sujeitos cognoscentes, com diferentes leituras de mundo, viabilizando um encontro em que “não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos. Há homens que, em comunhão, buscam saber mais” (Freire, 1987, p. 81). Nas palavras de Fiori (1987), o diálogo autêntico requer o “reconhecimento do outro e reconhecimento de si, no outro – é decisão e compromisso de colaborar na construção de um mundo comum. Não há consciências vazias; por isto os homens não se humanizam, senão humanizando o mundo” (p.20).

A respeito do diálogo na produção teórica de Paulo Freire, é importante ainda referir sua manifestação também por meio da escrita, especialmente sob a forma de cartas pedagógicas. O verbete cartas pedagógicas elucida as peculiaridades desta comunicação freireana: “a carta, como um instrumento que exige pensar sobre o que alguém diz e pede resposta, constitui o exercício do diálogo por meio escrito (...) um diálogo que assume o caráter do rigor, na medida em que registra de modo ordenado a reflexão e o pensamento” (Vieira, 2008, p.71). A amorosidade é também referida como uma característica da escrita sob a forma de cartas, uma vez que “só escrevemos cartas para quem, de alguma forma, nos afeta, nos toca emotivamente, cria vínculos de compromisso” (Vieira, 2008, pp.71-72).

Enfim, o diálogo, a política, a conscientização e o ser mais, entre outros verbetes apresentados no Dicionário Paulo Freire, reiteram alguns dos conceitos fundantes/ estruturantes do pensamento freireano. Além disso, o Dicionário apresenta também conceitos complementares, que compõem a complexidade da trama de conceitos que sustentam o pensamento freireano, incluindo o próprio conceito de trama. O verbete trama elucida a compreensão de que, “Paulo Freire usa de forma surpreendente a palavra “trama”. Ela cresce nos seus escritos como uma metáfora aplicada às relações cotidianas ou nas amplas relações políticas e socioeconômicas” (Passos, 2008, p.415). A construção de tramas contra-hegemônicas se torna possível a partir de tarefas pessoais e coletivas, à medida que “na teimosia, na luta diária, na retomada e no movimento, se instaure uma revolução viva e permanente” (Passos, 2008, p.416).

Entre a trama de conceitos apresentados no Dicionário, merecem ainda ser destacados os neologismos que caracterizam a linguagem de Paulo Freire, entre eles, os verbetes boniteza e sulear. Com o conceito de boniteza Paulo Freire expressa seu entendimento acerca da dimensão estética dos processos de ensinar e de aprender na perspectiva da educação libertadora, considerando que “a vida há que ser bonita, não só a vida do indivíduo, mas a realização de um povo” (Redin, 2008, p.66). A boniteza da educação está associada à amorosidade, à alegria e ao querer bem, entre outros saberes necessários à prática educativa, reveladores da subjetividade que lhe é inerente.

De igual modo, sulear é um verbete revelador das peculiaridades do pensamento freireano. Com o emprego do termo sulear, Paulo Freire chama a atenção para o caráter ideológico do termo nortear. Sulear expressa a intenção de dar visibilidade à ótica do sul como uma forma de contrariar a lógica eurocêntrica dominante a partir da qual o norte é apresentado como referência universal. Sulear significa construir paradigmas alternativos em que o sul se coloca no centro da “reinvenção da emancipação social” (Adams, 2008, p.397). Sulear pensamentos e práticas é uma perspectiva que se anuncia no pensamento freireano para fortalecer a construção de práticas educativas emancipatórias.

Enfim, por meio da trama de seus verbetes, o Dicionário Paulo Freire fomenta o questionamento e a reflexão/investigação permanente que caracteriza a práxis freireana. Retomando as palavras de seus organizadores, “se Paulo Freire nos ensinou a ler o mundo, hoje devemos buscar novas formas de expressá-lo” (2008, p.25). Orientar a atualidade das leituras de Paulo Freire, tendo em vista a sua recriação, é uma perspectiva que se amplia a partir da publicação do Dicionário Paulo Freire.

 

Referências

Adams, T.(2008) Sulear (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 396 – 398). Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Costa, D. (2008) Política (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 325 – 328). Belo Horizonte: Editora Autêntica,.

Fiori, E. M. (1987). Aprender a dizer a sua palavra. In P. Freire (1987). Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Freire, A. M. A. (2008) Indignação (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 229 – 230). Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Freire, P. (1979). Conscientização: teoria e prática da libertação - uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes.         [ Links ]

Freire, P. (1991). A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Freire, P. (1996). Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.         [ Links ]

Freitas, A. L. (2008) conscientização (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 99 – 101). Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Passos, L. A. (2008) Trama (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 415 – 416). Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Redin, E. (2008) Boniteza (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 66 – 69). Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Vieira, A. (2008) Cartas Pedagógicas (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 71 – 73). Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Zitkoski, J. J. (2008). Diálogo/Dialogicidade (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 130 – 131). Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Zitkoski, J. J.. Ser mais (verbete). In D. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (org). Dicionário Paulo Freire (pp. 380 – 382). Belo Horizonte: Editora Autêntica.