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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.24 Lisboa  2013

 

Paulo Freire e a Educação Superior

 

José Eustáquio Romão

 

Sempre entendi que a relação de Paulo Freire com a Educação Superior foi tão importante quanto sua relação com a Educação de Adultos (EA) – pela qual se tornou mais conhecido em todo o mundo – e com os demais graus de educação, regular e não regular, porque, quando examinado com mais cuidado e profundidade, o legado do autor de Pedagogia do oprimido, ou seja, os fundamentos, princípios e propostas metodológicas freirianos aplicam-se a qualquer tipo de reflexão ou de intervenção educacionais.

No entanto, da parte das instituições de Educação Superior (IES), especialmente das universidades, esta relação nem sempre foi muito conectiva, na medida em que, como tenho dito e escrito, “Paulo Freire não penetrou na Universidade a não ser como epígrafe de teses e de publicações, bem como de denominação de salas, bibliotecas e auditórios”. Além disso, salvo as exceções que confirmam a regra, a maioria dos intelectuais considera que o educador pernambucano foi um “intuitivo genial”, mas que suas teorias “não são lá muito científicas e que, hoje, ele estaria superado” sem jamais ter sido devidamente aplicado.

Inicialmente, imaginei que esta indiferença quase olímpica pelo pensamento freiriano fosse provocada pelo fato de ele não ter sido, em vida, muito a favor do credencialismo imperante nas IES corporativizadas, nem ser portador de títulos acadêmicos regulares, como graduação em educação, mestrado e doutorado. Paulo Freire cursou direito, já adulto e, mesmo assim, não se dedicou à profissão, conforme a deliciosa história que ele mesmo contava sobre sua desistência de advogar na primeira causa. Porém, com o passar dos anos, fui percebendo que, talvez, as razões, eram certamente outras, uma vez que Paulo Freire foi agraciado com dezenas de títulos de doutor honoris causa por universidades dentre as mais prestigiadas do mundo.

Parece que as verdadeiras razões estão relacionadas com alguns dos princípios desenvolvidos pelo educador pernambucano e que incomodaram (e incomodam intelectuais e acadêmicos em geral. Dentre esses princípios, eu destacaria o que se refere à vantagem epistemológica dos(as) oprimidos(as). Segundo Paulo Freire, nas relações de opressão, emergem os atores históricos (não naturais, portanto) opressor(a) e oprimido(a). Afirma ainda que somente os oprimidos e oprimidas em se libertando é que libertarão, também, seus opressores(as). Estes(as), ocupados em oprimir e apropriar-se de tudo, não libertam quem quer que seja, nem a si próprios(as). Ora, em se concordando com esta afirmação e estendendo-a ao universo mais amplo das relações humanas, poder-se-ia concluir que o pensamento humano só se liberta e avança em relação ao conhecimento instituído, quando os(as) oprimidos(as) logram avançar com seu conhecimento, universalizando-o. Em suma, o “conhecimento oprimido” teria uma vantagem gnosiológica e epistemológica em relação à “ciência” hegemônica e opressora.

Com isso, não queria dizer que os(as) oprimidos(as) sempre construirão um pensamento libertador e mais avançado, já que, na maioria das vezes, são “hospedeiros” de seus opressores(as) – como gostava de dizer Paulo Freire –,alienados pelas categorias da visão de mundo dos opressores(as). Portanto, como Marx, entendia que, nas sociedades hierarquizadas, as classes dominadas pensam, em geral, como as classes dominantes, seja porque aspiram viver como seus algozes, seja porque são convencidos pelos argumentos de que eles estão com a razão, dado seu sucesso. “É natural que o mundo seja assim dividido e hierarquizado em classes sociais superiores e subalternas”, pensam os (as) oprimidos(as), naturalizando as relações histórico-sociais e caindo no fatalismo. Porém, em contextos sociais em crise, as contradições afloram e se explicitam para a maioria dos atores sociais e potencializam a capacidade de os(as) oprimidos(os) pensarem com sua “consciência possível” e, não apenas, com sua “consciência real” carregada de conceitos, categorias e valores espúrios, impostos pelos grupos dominantes – Paulo Freire extraiu os dois conceitos de consciência de Lucien Goldmann, a quem ele aconselha-nos a ler em Pedagogia do oprimido. Certamente por isso, as revoluções científicas não serem tão frequentes, porque, em geral, a cultura dos(as) opressores(as) domina, por largos espaços de tempo, a cultura dos(as) oprimidos(as).

A convicção de que a “ciência normal”, para usar o conceito de Thomas Kuhn na Estrutura das revoluções científicas (São Paulo: Perspectiva, 1985), só pode ser superada por uma construção gnosiológica e epistemológica contra-hegemônica dos(as) dominados(as) parece ser suficiente para que Paulo Freire seja, no mínimo, alvo de um desdém dos arautos da educação superior cientificista, acadêmica e credencialista.

No entanto, examinando a história da ciência, das artes, das religiões, enfim de todo o “processo civilizatório”, há fortes indícios de que Paulo Freire tinha razão, não por reflexões intuitivas primitivas, mas por uma elaboração altamente sofisticada e, portanto, necessária nos currículos das universidades.