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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.24 Lisboa  2013

 

O Trabalho Coletivo como Princípio Pedagógico

 

Moacir Gadotti

 

A Revista Lusófona de Educação nos coloca uma tarefa nada fácil: “apresentar um princípio do pensamento de Paulo Freire que possui maior aplicabilidade à Educação Superior”.

Como se trata de uma escolha, precisamos nos perguntar quais seriam os princípios do pensamento freiriano aplicáveis à Educação Superior. Para não me estender, neste pequeno texto, gostaria de apontar alguns princípios que poderiam ser escolhidos. Para Paulo Freire a educação não é um processo neutro porque sempre implica um projeto de Sociedade. Partindo desta politicidade da educação, eu apontaria como seus principais princípios: teorizar a prática para transformá-la; reconhecer a legitimidade do saber popular numa época de extremado elitismo; construir uma ciência aberta às necessidades populares (relevância social como critério de qualidade da ciência); utilizar um método de ensino e de pesquisa que parta da leitura da realidade (leitura do mundo); harmonizar o formal e o não-formal, portanto, não considerar a universidade ou a escola como únicos espaços de construção de conhecimentos; a defesa de uma educação pública popular, que atenda, com qualidade, aos interesses da maioria da população, superando padrões elitistas.

Qualquer um desses princípios poderia ser escolhido. Entretanto, prefiro me deter mais no trabalho coletivo como princípio pedagógico, defendido por ele como uma forma de incidir, simultaneamente, sobre o currículo e sobre a gestão. Ele traduziu esse princípio, de um lado, pela sua visão interdisciplinar do currículo, das ciências, da cultura e da educação, e, de outro, pela defesa intransigente da gestão democrática. Para Paulo Freire, a educação é uma prática social que se realiza em espaços para além da escola e enquanto prática social, presente em diferentes espaços, cada vez mais precisamos da construção coletiva.

Dois anos antes de ser nomeado Secretário Municipal de Educação de São Paulo, entre os anos 1987 e 1988, ele participou ativamente de um grupo de reflexão constituído de professores de várias áreas da Universidade de Campinas (UNICAMP) o qual discutia como realizar a interdisciplinaridade não só na Universidade, mas, igualmente, nos trabalhos com comunidades populares. No ano seguinte, já como Secretário Municipal de São Paulo, Paulo Freire deu início a um amplo processo de reorientação curricular no qual propôs a discussão da “Interdisciplinaridade via Tema Gerador” que foi chamada de “Projeto Inter”.

A ação pedagógica através da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade aponta para a construção de uma escola participativa e decisiva na formação do sujeito social. Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade exigem diálogo que se confunde com o próprio processo educativo. Numa perspectiva emancipatória, não é possível ensinar e aprender sem o diálogo, sem uma comunicação dialógica. Nesse processo, o educador, sujeito de sua ação pedagógica, é capaz de elaborar programas e métodos de ensino-aprendizagem, sendo competente para inserir a sua escola numa comunidade. O objetivo fundamental da interdisciplinaridade é experimentar a vivência de uma realidade global que se inscreve nas experiências cotidianas do aluno, do professor e do povo e que, na escola tradicional, é compartimentada e fragmentada. Articular saber, conhecimento, vivência, escola, comunidade, meio-ambiente etc é o objetivo da interdisciplinaridade que se traduz na prática por um trabalho coletivo e solidário. Não há interdisciplinaridade sem descentralização do poder, portanto, sem a gestão democrática e sem uma efetiva autonomia da escola.

Na reorientação curricular de Paulo Freire, o processo envolvia três fases ou momentos, articulados entre si: o estudo da realidade, a organização do conhecimento e a aplicação do conhecimento. O estudo da realidade era orientado pela problematização, partindo da história de vida dos educadores, educandos e das comunidades, envolvendo visitas, entrevistas, questionários e situações significativas para se chegar aos temas geradores. A organização do conhecimento era feita por meio da seleção das áreas do conteúdo programático, a sistematização do conhecimento já construído, a relação entre o afetivo e o cognitivo e o levantamento de hipóteses, pressupostos, noções e teorias. A aplicação do conhecimento implicava no planejamento e na implementação do programa, a reconstrução do conhecimento já construído, usando como ferramentas não só livros e materiais didáticos mas, igualmente, a leitura do mundo vivido, visando à transformação, no processo, do educador e do educando.

Na visão de Paulo Freire, a aplicação do conhecimento pressupunha necessariamente a demonstração da compreensão mais aprofundada por parte do educando mas também a apresentação de propostas de mudança e o compromisso com elas. Ela tinha a ver com o aprofundamento da compreensão, do conhecimento e também com a capacidade de o educando utilizar o conhecimento construído para a transformação da realidade. Para Paulo Freire, o conhecimento tem uma função emancipatória: saber pensar por si mesmo, ser autor, sujeito, com autonomia, aprender para governar-se e governar, para ser soberano. A palavra “emancipar” - do latim ex-manus – significa tirar a mão, tirar o poder de cima. Emancipar seria, então, “retirar a mão que agarra”, “libertar, abrir mão de poderes”, significa “pôr fora de tutela”. Emancipar-se é, então, dizer a quem nos oprime: “tire a sua mão de cima de mim!”.

Paulo Freire falava de uma rigorosidade metódica no processo de construção do conhecimento que não pode ser dissociada de uma rigorosidade ética. O primeiro dos 27 saberes necessários à prática educativa expostos em seu último livro Pedagogia da autonomia, é a “rigorosidade metódica”. A noção de rigor em Paulo Freire não é meramente formal e metodológica; ela não está separada da relevância social do conhecimento.

Por outro lado, a gestão democrática defendida por Paulo Freire, não é só um princípio pedagógico. Ela é pressuposto. Sem ela, a construção do conhecimento na perspectiva da emancipação humana não se dá. Ela faz parte da tradição das chamadas pedagogias participativas e incide positivamente na aprendizagem. Pode-se dizer que a participação e a autonomia compõem a própria natureza do ato pedagógico. A participação é um pressuposto da aprendizagem. Não se consegue melhorar a qualidade da educação sem a participação. A melhoria da qualidade da educação e das políticas educacionais está intrinsecamente ligada à criação de espaços de deliberação coletiva.

A gestão democrática pode impregnar todos os sistemas e redes de ensino. O princípio da gestão democrática também não se limita à educação básica: ela se refere a todos os níveis e modalidades de ensino. Ela não está separada de uma certa concepção da educação. Não tem sentido falar de gestão democrática no contexto de uma educação tecnocrática ou autoritária. Ela deve ser coerente com uma concepção democrática e emancipatória da educação. O princípio da gestão democrática não deve ser entendido apenas como prática participativa e descentralização do poder, mas como radicalização da democracia, como uma estratégia de superação do autoritarismo, do patrimonialismo, do individualismo e das desigualdades sociais. Desigualdades educacionais produzem desigualdades sociais.

A questão que se coloca é como incorporar nas teorias e práticas do Ensino Superior essa visão interdisciplinar e democrática. Portanto, como realizar um trabalho coletivo na universidade.

Como Piaget, Paulo Freire entendia a interdisciplinaridade como uma etapa para chegar à transdisciplinaridade na busca da totalidade, isto é, como atitude e como método, indispensáveis ao pesquisador e ao educador e como dimensão essencial de tudo o que existe. A interdisciplinaridade está na prática do ensino e da pesquisa porque está lá fora, nas coisas.

A transdisciplinaridade procura compreender mais do que acumular conhecimentos, inclui, agrega, compartilha, não divide. Por isso, Paulo Freire, como cruzador de fronteiras, aproximava a atitude interdisciplinar da atitude transdisciplinar, porque encontrava nas duas, o coletivo instituinte, o trabalho em grupo, a convivialidade, a transversalidade, o diálogo. É nesse sentido que a transdisciplinaridade pode nos ajudar a construir sentido numa era em que muitos estudantes e muitos professores se perguntam que sentido tem estudar isso ou aquilo que pouco significado tem em suas vidas.

Talvez, mais do que nos perguntar quais são os princípios freirianos que podemos “aplicar” na Educação Superior, deveríamos nos aprofundar mais na concepção de universidade em Paulo Freire.

A Universidade é um espaço privilegiado de construção do conhecimento e de elaboração da cultura. Em sua compreensão, o conhecimento é uma construção social e não uma mera “aquisição”, “assimilação” de algo pré-existente ao sujeito que conhece. Não se trata de “transpor” o conhecimento de quem sabe para quem não sabe. Antes de conhecer o sujeito se “interessa por”, “é curio-so de”... que Paulo Freire chama de “curiosidade epistemológica” o que o leva apropriar-se do que a humanidade já produziu historicamente, desde que isso faça sentido para ele. No processo de construção do conhecimento passa-se da “curiosidade ingênua” à “curiosidade epistemológica”, diz ele em Pedagogia da autonomia. A Teoria do Conhecimento de Paulo Freire fundamenta-se numa Antropologia, numa concepção de ser humano inacabado, inconcluso, incompleto. Ele precisa conhecer para tornar-se sujeito de sua história. Ele precisa do outro para completar-se. Por isso, precisa dialogar.

Em sua compreensão, a universidade deveria ser “popular”, o que não significa uma universidade dirigida apenas às “camadas populares” e, muito menos, uma universidade “empobrecida”, “aligeirada”. Como dizia Kant, o popular se opõe ao vulgar: enquanto o vulgar empobrece o real, o popular manter toda a sua complexidade. Uma educação superior popular deve ser para todos e de boa qualidade. E ele nos falava de uma “nova” qualidade. Não pode ser a extensão da universidade burguesa elitista e sua concepção colonialista. Trata-se de uma instituição alternativa à universidade neoliberal que combate toda forma de mercantilização, privatização, alienação e desumanização.

Uma universidade popular é uma universidade sem fronteiras, agregadora, aberta à diversidade, transversal, sem cercas ou poder acadêmico. Ao contrário da merco-universidade e de uma educação submetida à lógica do mercado que cria empresas fornecedoras de professores, sistemas de ensino, currículos e prédios, que avaliam e certificam, a universidade popular ocupa-se do conhecimento cidadão, da democracia e da solidariedade, questões excluídas do projeto mercantil das indústrias do conhecimento. Na visão de Paulo Freire, uma universidade popular não pode prescindir da construção de um projeto de poder popular. Não pode haver universidade popular sem projeto político-pedagógico popular entendido como uma práxis, um processo de experimentação e construção de novas relações sociais não mercantilizadas.

A sociedade contemporânea está marcada pela questão do conhecimento. E não é por acaso. O conhecimento tornou-se peça chave para entender a própria evolução das estruturas sociais, políticas e econômicas de hoje. Fala-se muito hoje em sociedade do conhecimento, às vezes com impropriedade. Mais do que a era do conhecimento, devemos dizer que vivemos a era da generalização da informação: existe mais disseminação da informação e de dados do que, propriamente, de construção de conhecimentos. O acesso ao conhecimento emancipador é ainda muito precário.

Paulo Freire nos aponta para uma educação do século XXI e não a “expansão” da educação do século XIX que temos. Uma educação para a emergência do que ainda não é, o ainda-não, a utopia, uma educação crítica e criativa. Assim fazendo, estamos assumindo a história como possibilidade e não como fatalidade. Educar para a ruptura, para a rebeldia, para a recusa, para dizer “não”, para gritar, que é, exatamente, o contrário da educação mercantilizada que temos. A mercantilização da educação é um dos desafios mais decisivos da história atual, porque ela sobrevaloriza o econômico em detrimento do humano. Só uma educação emancipadora poderá inverter essa lógica, através da formação para a consciência crítica e para a desalienação.

A utopia é uma categoria central do pensamento de Paulo Freire. Por isso ele se opõe diametralmente à educação bancária neoliberal pois o neoliberalismo recusa o sonho e a utopia. Na perspectiva bancária (neoliberal) de universidade a qualidade visa a uniformizar procedimentos e projetos. Nessa concepção da qualidade os professores são excluídos da discussão. Eles não têm voz. O que se busca é a estandardização (fordismo) da qualidade, da avaliação, da aprendizagem. Para essa concepção os docentes não têm conhecimento científico; seu saber é inútil. Por isso, não precisam ser consultados. Eles só precisam receber receitas, “como fazer”, sem se perguntar porque fazer. Eles só servem para aplicar novas tecnologias: a sala de aula perderá sua centralidade e a relação professor-aluno entrará em declínio em favor da relação aluno-computador. Freire se opôs a essa mercantilização da educação, ao ensino burocratizado e ao pragmatismo político que reduz a educação à escolarização, uma educação estandardizada, que exclui o debate político do mundo que queremos.