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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.23 Lisboa  2013

 

Emília de Sousa Costa: educação e literatura

Emília de Sousa Costa: Education and Literature

Emília de Sousa Costa: Éducation et Littérature

Emília de Sousa Costa: Educación y Literatura

 

Carlos Nogueira *

* Professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigador no IELT
carlosnogueira1@sapo.pt

 

Resumo

Escritora, professora, conferencista e feminista militante, Emília de Sousa Costa (1877–1959) é uma personalidade que devemos associar a outras portuguesas ilustres do seu tempo como Maria Amália Vaz de Carvalho (1847–1921), Ana de Castro Osório (1872–1935) e Virgínia de Castro e Almeida (1874–1945). Mas, ao contrário destas mulheres, cuja obra literária continua a ser lida e estudada, Emília de Sousa Costa é hoje conhecida quase exclusivamente devido às suas ideias acerca da mulher e da educação feminina. Prova deste esquecimento é o facto de, apesar de ter sido intensa a sua actividade literária, sobretudo enquanto autora de textos destinados ao público infantil e juvenil, não lhe ter sido dedicado qualquer verbete num dos dicionários de literatura portuguesa da Figueirinhas, da Presença e da Verbo, nem a mais breve observação nas histórias da literatura portuguesa. Neste artigo ocupar-nos-emos, por isso mesmo, da obra literária de Emília de Sousa Costa, mas não deixaremos de abordar outras vertentes do seu pensamento e da sua acção. Não podemos dissociar a mulher que defendeu durante toda a sua vida a educação feminina da mulher que expressou o seu pensamento em textos de diverso tipo, dirigidos quer ao público infantil e juvenil quer ao público adulto.

Palavras-chave: Emília de Sousa Costa; literatura; educação.

 

Abstract

As a writer, teacher, public speaker and militant feminist, Emília de Sousa Costa (1877– 1959) should take her place alongside other famous Portuguese women of her time, such Maria Amália Vaz de Carvalho (1847–1921), Ana de Castro Osório (1872–1935) and Virgínia de Castro e Almeida (1874–1945). But unlike these women, whose literary output continues to be read and studied, Emília de Sousa Costa is known today almost exclusively for her ideas on women and women’s education. Proof of this neglect is to be found in the fact that in spite of her vigorous literary activity, especially as a writer for children and young people, she has not been dignified with any entry in the dictionaries of Portuguese literature published by Figueirinhas, Presença or Verbo, nor even the briefest mention in any history of Portuguese literature. Emília de Sousa Costa wrote her books for children and young people at a time when such literature was undergoing a significant development, and despite her rather inflexible approach to style, language and morality she contributed to that process. The large number of books she wrote, the techniques she developed, and her numerous activities for promoting books and reading would on their own justify the study being devoted to her here. But many of her writings also have an undeniable aesthetic quality, in particular the short texts in which she rewrote tales from the oral tradition and the Polichinelo series, which make use of the well-known figure of Pinocchio. In this article, then, we shall focus on the literary output of Emília de Sousa Costa, while not neglecting in the first instance other aspects of her thinking and her activity, which we shall take as our point of departure, in terms of content, ideology and form, for some of the literary works that we regard as most significant — we cannot dissociate the woman who all her life defended feminine education from the woman who expressed her ideas in different types of text, whether for a juvenile audience or for an adult public. In all her writings, Emília de Sousa Costa expresses a moderate feminism, patriotic and devout. In each text we find a celebration of the modern woman, educated and free, and most likely devoted to her roles of wife, mother and educator. In each we find a denunciation of those men who regard women as an object and an instrument. And in each we find a defence of teaching according to modern principles.

Keywords: Emília de Sousa Costa; literature and education.

 

Résumé

Écrivain, professeur, maître de conférences et une grande féministe militante, Emília de Sousa Costa (1877-1959) est une personnalité à qui on doit associer d’autres femmes portugaises si célèbres, notamment Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921), Ana de Castro Osório (18721935) et Virgínia da Castro e Almeida (1874-1945). Cependant, au contraire de ces femmes-ci, dont l’ouvrage continue à être lu et étudié, Emília de Sousa Costa est connue aujourd’hui surtout à cause de ses idées concernant la femme et l’éducation féminine. Bien que son ouvrage soit intense, surtout dans le domaine de la littérature pour enfants, Émilia de Sousa Costa est oubliée par les dictionnaires de littérature portugaise : il n’y a aucune référence à cette femme dans les volumes de Figueirinhas, Presença ou Verbo. Dans cet article, on s’occupera précisément de l’ouvrage d’Émila de Sousa Costa, pas seulement au niveau littéraire, mais aussi au niveau de sa pensée et de son action. On ne peut jamais dissocier la femme qui a défendu toute sa vie l’éducation féminine de la femme qui a exprimé sa pensée dans une variété de textes, dirigés soit à un public enfantin soit à un public d’adultes.

Mots-clés: Emília de Sousa Costa; littérature; éducation.

 

Resumen

Escritora, profesora, conferenciante y feminista militante, Emília de Sousa Costa (1877–1959) es una personalidad que debemos asociar a otras portuguesas ilustres de su tiempo como Maria Amália Vaz de Carvalho (1847–1921), Ana de Castro Osório (1872–1935) y Virgínia de Castro e Almeida (1874– 1945). Pero, a diferencia de estas mujeres, cuya obra literaria continua siendo leída y estudiada, Emilia de Sousa Costa es hoy conocida casi exclusivamente debido a sus ideas sobre la mujer y sobre la educación femenina. Prueba de este olvido es el hecho de que, aunque su actividad literaria fue muy intensa, sobre todo como autora de textos destinados al público infantil y juvenil, no le ha sido dedicada ninguna entrada en los diccionarios de literatura portuguesa de las editoriales Figueirinhas, Presença y Verbo, ni tampoco la menor observación en las historias de la literatura portuguesa. En este artículo nos ocuparemos, por esta misma razón, de la obra literaria de Emília de Sousa Costa, pero no dejaremos de abordar también otras vertientes de su pensamiento y de su acción. No podemos disociar la mujer que defendió durante toda su vida la educación femenina de la mujer que expresó su pensamiento en textos de diferentes tipos, dirigidos tanto al público infantil y juvenil como al público adulto.

Palabras clave: Emília de Sousa Costa; literatura; educación.

 

1. Todas as biografias de Emília de Sousa Costa a associam à criação da Caixa de Auxílio a Raparigas Estudantes Pobres, e todas referem a sua ligação ao Conselho Central da Federação Nacional dos Amigos das Crianças e a sua actividade docente na Tutoria Central de Lisboa, que acolhia crianças abandonadas ou delinquentes. Estes apontamentos indicam claramente a orientação da vida de Emília de Sousa Costa, que sempre defendeu a educação infantil e, em especial, a instrução feminina.

Mas é só em 1982 que o nome de Emília de Sousa Costa surge devidamente valorizado. No ensaio “Feminismo em Portugal na voz de mulheres escritoras do início do século XX”, publicado primeiro pela Comissão da Condição feminina e em 1983 na revista Análise Social, Maria Regina Tavares da Silva contribui de modo muito consistente para o conhecimento mais alargado de uma mulher que defendeu em várias obras e intervenções públicas um feminismo moderado. Neste estudo (de 1981), a autora destaca diversas vezes as opiniões de Emília de Sousa Costa, que escreveu diversos livros sobre a questão feminista: A Mulher no Lar (1916), A mulher. Educação Infantil (1923), Ideias Antigas da Mulher Moderna (1923), Olha a Malícia e a Maldade das Mulheres (1932) e A Mulher Educadora (n.d.).

Empenhada na emancipação social e cultural da mulher, Emília de Sousa Costa distingue-se das feministas que advogam a “total inversão dos papéis do homem e da mulher na sociedade” (Silva, 1983, p. 880). É com ironia queirosiana que a autora se refere a este “falso feminismo”, que ela vê como contrário à natureza mais intrínseca de homens e mulheres:

Assim… eles o afirmam – enquanto o marido aleitará a biberon o filho mais pequenino (porque a natureza não entrará em acordo com a revolucionária) e dará ordens para o jantar, fiscalizará a cozinha, remexerá os estrugidos nas caçarolas e nas horas de lazer tocará piano –, a senhora, entalando no olho direito o seu monóculo perturbador, chupando gulosamente o seu havano, empunhando a sua bengalinha de sândalo, irá para o ministério regular os altos problemas do Estado!... (1923a, pp. 15-16)

No mesmo texto, Emília de Sousa Costa reclama educação e dignidade para a mulher, mas não a quer ver envolvida no universo da política, porque desse modo “A sua principal função desvirtuar-se-ia, sem nenhum prestígio lhe resultar daí” (p. 48). Contudo, avisa que a mulher pode ser obrigada a assumir comportamentos de liderança, se o homem, insensível às suas reivindicações, a isso a conduzir: “É tempo do homem culto acabar com esses preconceitos absurdos e cuidar dos problemas do feminismo, antes da mulher tomar o partido de exigir uma interferência directa, com o prejuízo talvez da sua tarefa secular” (p. 49).

Mas, apesar de não ser apologista da participação activa da mulher na política, de não fazer parte de organizações feministas e de não ter «simpatia pelos “excessos” das sufragistas inglesas” (Samara, 2007, p. 157), a autora não deixa de fazer comentários políticos apartidários. Não são raras, nas suas intervenções públicas e na sua obra, palavras muito críticas e ao mesmo tempo construtivas em relação à situação política portuguesa e à necessidade de mudança de paradigma político, em nome do país. Em O Poeta do Amor (1924), por exemplo, escreve:

Urge que um governo, um parlamento, só preocupados com os interesses vitais da nacionalidade, e não com políticas de seita, mesquinhas e enervantes, depressivas de energias, animem a fé, estimulem as cruzadas beneméritas da educação e da instrução verdadeiras, orientando as novas gerações (…). (p. 28)

Emília de Sousa Costa é, como vemos, ao mesmo tempo progressista e conservadora. A mulher, que se realiza sobretudo enquanto mãe e guardiã do lar, não precisa de aspirar a cargos políticos nem às “altitudes do génio” (1923a, p. 57) masculino. Palavras como estas mostram-nos bem por que motivo, apesar de todas as reivindicações, “a luta pela participação política, e particularmente pelo direito de voto”, foi “um longo e difícil processo na história do feminismo português” (Silva, 1983, p. 895).

Também no capítulo da independência económica Emília de Sousa Costa assume uma posição mais moderada do que a da “generalidade das defensoras do feminismo” (Silva, 1983, p. 895). Esta autora não fala em emancipação absoluta, nem na possibilidade de a mulher poder decidir, sem qualquer restrição, que vida deseja para si; é no lar e na maternidade que a mulher, mais sensível e mais fraca fisicamente do que homem, encontra a sua verdadeira natureza. Mas, e nisto Emília de Sousa Costa já está de acordo com as demais feministas e com o pensamento moderno e contemporâneo mais avançado, é necessário ter em conta os direitos das mulheres que se vêem obrigadas a trabalhar fora de casa: “E será equitativo, será admissível, que haja desigualdade na distribuição de salários ou ordenados quando o trabalho dos dois sexos seja igual ou equivalente?” (1923a, pp. 35-36).

A independência económica também traz liberdade de espírito à mulher, “que não necessitará de fingir amor, quando o não sinta” (1923a, p. 39). Francamente progressista neste ponto, Emília de Sousa Costa é, imediatamente a seguir, conservadora, já que volta a insistir na vocação feminina por excelência: “Apta a ganhar a vida, só aceitará o amparo do braço masculino quando a paixão lho aconselhar, e nesse caso depressa se aclimatará ao lar, se o marido por si só puder prover às despesas, dedicando-se ela ao bem-estar dos seus, sem por isso se julgar diminuída” (p. 39). A mulher não está obrigatoriamente condenada a um casamento que não deseja, mas a condição de casada é a que mais se lhe ajusta.

A educação da mulher é, em todo este processo, fundamental. Carolina Michäelis de Vasconcelos, Ana de Castro Osório e Virgínia de Castro e Almeida são algumas das mulheres que, como Emília de Sousa Costa, lembram que o analfabetismo e o atraso cultural da mulher são a causa da subalternização e da decadência feminina. Mas também nesta questão Emília de Sousa Costa é menos ambiciosa do que as feministas mais empenhadas na libertação e emancipação absolutas da mulher. É na escola, segundo ela, que se deve começar por mudar a condição feminina e, consequentemente, toda a sociedade, cuja ética e grandeza dependem, em grande parte, da mulher e da família: “A mulher não pode continuar a ser para o homem apenas o enlevo dos sentidos, porque é uma alma; um objecto de luxo, porque é um valor social como ele. Não se perverta, eduque-se” (1923a, p. 54).

Aquela transcrição permite-nos sublinhar a já referida relação, em Emília de Sousa Costa, entre progressismo e conservadorismo. A renovação da mentalidade social não se pode fazer sem a aceitação da inteligência das mulheres, numa época em que, como se sabe, se defendia que a mulher era intelectualmente inferior ao homem. A educação feminina deve adequar-se à função principal da mulher, que é a de zelar pelo crescimento integral dos filhos e pelo bem-estar e harmonia da instituição familiar. Daí, para Emília de Sousa Costa, não ser conveniente cair no exagero de pretender que “todas as mulheres devam ser doutas” (p. 54).

2. A obra literária de Emília de Sousa Costa concretiza o pensamento da autora sobre a mulher e sobre a educação feminina. Os temas das suas novelas e dos seus contos escritos para o público adulto têm a ver directamente com a dedicação da mulher ao marido e aos filhos. Estilisticamente, a prosa de Emília de Sousa Costa compraz-se no amaneiramento e na solenidade oratória, na frase longa e no vocabulário erudito e raro. A popularidade da escritora, que quis provar que se enganavam aqueles para quem uma mulher educada e letrada não podia ser uma boa dona de casa, deveu muito a este estilo tardo-romântico que tanto acompanhava o arrebatamento dos gestos e dos sentimentos das personagens como enfatizava o tipo de urbanidade em que Emília de Sousa Costa acreditava:

Leonor, abalada pelas frases curtas e austeras da amiga, cai de joelhos, diante do corpo desfalecido da pobre mãe e unge-lhe as mãos com beijos. O seu rosto, alumiado pelo viço radioso e sensual da cabeleira fulva, curva-se na graça penetrante da humílima penitente, orvalhada de contrição e tem agora a castidade esmaecida dos lírios esmaecidos. (1933, p. 16)

A novela “Quem Tiver Filhas no Mundo…”, inserida no livro com o mesmo nome, é um elogio da mulher, abnegada e civilizada, que se dedica incondicionalmente à família e a Deus. Olga de Santiago, “viscondessa do Rosal” (1933, p. 5), reúne todos os predicados femininos que Emília de Sousa Costa exalta na sua obra de intervenção social: “linda mulher, vibrante de paixão, amante fiel, inteligente, culta e educada” (p. 5). Toda a narrativa acentuará o desencontro entre esta mulher ao mesmo tempo angelical e cultivada, que saíra do “colégio” “ignorante da vida, sedenta de ternura e do carinho que a orfandade lhe negara em tenros anos” (p. 5), e o marido, “boémio e volúvel” (p. 5). Olga de Santiago, perante a rebeldia da filha, que não quer seguir uma vida regrada, morre dignamente: “Ao ter conhecimento do drama, não fala, não gesticula, não chora. Recolhe ao seu quarto. Ali tranquilamente, santamente, pena, e de morte lenta se fina passados meses, na graça do Senhor” (p. 35).

Mas esta morte, que é um dos vários motivos românticos e sensacionais da novela, não será em vão. Leonor, depois de se entregar sem reservas a uma vida de devassidão, retrata-se, de repente, ao ser trazida à razão por uma amiga da sua mãe, que a encontrou por acaso num dos “clubs elegantes de Lisboa” (p. 36): “A tua mãe morreu por ti. O teu desgraçado pai só espera os teus braços, para neles morrer. Vai amanhã a minha casa. Acompanhar-te-ei junto daquele desgraçado. Nunca é tarde para te arrependeres” (p. 37).

Numa narrativa atravessada do princípio ao fim por uma ambiência marcadamente romântica, não faltam os tópicos do arrependimento, dos remorsos e da morte por amor (a morte física e a morte em vida): Leonor altera completamente o seu comportamento e passa a viver apenas para os outros. Fiel à memória de Adriano de Lacerda, não casa, apesar de ser muito pretendida; “a sua alma, lustrada pelo hálito da munificência divina, exalçou-se às alturas, onde não chegam as máculas dos humanos delitos. Só para o bem ela vive. Todas as suas horas são dedicadas a socorrer os que lho solicitam e carecem auxílio moral ou material” (p. 40). O pai de Leonor, o visconde, há muito arrependido por não ter sabido educar a filha, “ainda viveu alguns anos acarinhado” por ela (p. 39).

Entre a escrita de Emília de Sousa Costa e a sua condição de burguesa educada e letrada há uma correspondência perfeita. A linguagem cuidada destas narrativas é um prolongamento da preparação cultural que a autora vê como própria da mulher evoluída; os temas, ligados a episódios do quotidiano de famílias da aristocracia ou da burguesia, ou a situações que têm a ver com a maternidade, vêm directamente de uma sociedade em que a mulher, considerada inferior ao homem, não beneficia dos mesmos privilégios.

Esta consciência do estatuto da mulher e da necessidade de o alterar explica os arquétipos que encontramos na obra ficcional de Emília de Sousa Costa, e que permitem estabelecer uma ligação imediata com outros(as) autores da época e com muitos dos romances e novelas-folhetim do século XIX (que a crítica literária, talvez porque não os conhece devidamente, tende a designar de paraliteratura): as dicotomias masculino/feminino, bem/mal, verdade/mentira, fidelidade/traição, etc., que alimentam o maniqueísmo que sustenta toda a acção. Há, com efeito, um padrão que se repete: a protagonista é esposa e mãe dedicada, mulher, educada em colégios, que não agride quem a agride, e o marido um devasso que a maltrata. Interagem com estas personagens outras, secundárias, que são muito virtuosas ou muito viciosas.

Mas “Renúncia”, da colectânea de novelas Coração – O Ditador (1942), para além daqueles elementos, que já se encontram na novela “Quem Tiver Filhas no Mundo…”, contém outros que também se inscrevem integralmente no pensamento feminista de Emília de Sousa Costa. Rosina, abandonada repentinamente pelo marido, que vende tudo antes de partir para o Brasil com uma amiga de ambos, recompõe a sua vida e garante o crescimento equilibrado dos filhos. O narrador, sem se deter em pormenores, diz-nos que ela “encontrou amparo e protecção nas velhas tias e em almas justas, condoídas do seu abandono”, e que, “Dotada de excepcional valor, e de virtude inabalável, recorrendo ao esforço quase sobre-humano do seu braço e do seu cérebro, conseguiu restabelecer o seu lar e educar os filhos” (p. 105). Convergem aqui todos os princípios defendidos por Emília de Sousa Costa e pelas outras feministas do seu tempo: dignidade, autonomia, trabalho, direito de educar os filhos em liberdade, na sequência de uma educação escolar que torna a mulher esclarecida e a prepara para as adversidades.

Pátria, religião e família: recorrendo a um lugar-comum, assim podemos definir a ideologia que está bem evidente nestas narrativas e, muito em particular, em “Renúncia”. Nesta novela, mais do que em qualquer outra, a “Pátria” (palavra que surge várias vezes) aparece enaltecida por um homem, o filho da protagonista, que se mostra feliz por ter sido “provido no lugar que requerera na África Oriental” (p. 108), onde há oportunidades para quem, como ele, quiser “trabalhar com gana” (p. 109). Mas também a protagonista exalta os valores patrióticos e os sacrifícios que todos têm de fazer pelo Império português: “Sou mãe amorosa, mas não egoísta, nem piegas. Não criei e eduquei os meus filhos para mim, mas para eles e para a sua Pátria” (p. 108).

A dimensão feminina das novelas de Emília de Sousa Costa indica claramente o público privilegiado: as jovens, em especial aquelas que se encontravam em processo de formação escolar e cultural, mas também qualquer mulher leitora, feminista ou não. A autora tinha em vista a leitora que iria ver nestas narrativas uma confirmação do seu comportamento moderno; mas, como é óbvio, não desprezava as leitoras antifeministas nem as feministas radicais. Num tempo em que o analfabetismo era elevadíssimo, sobretudo entre as mulheres, é fácil concluir a que classes sociais pertenceriam estas leitoras.

Mas as próprias novelas explicitam o perfil desta clientela: mulheres que tiveram acesso a uma educação consistente, às vezes ricas, mas infelizes no casamento ou com obstáculos a uma vida conjugal equilibrada que devem saber ultrapassar. “É de Sogra!” lembra, neste aspecto, que a sogra antiquada e intrusiva deve ser tratada com respeito mas não com subserviência, para que não se intrometa na vida do casal; e “Renúncia” assinala bem a posição da mãe e sogra consciente do seu lugar. Rosina diz à criada e aos filhos que não quer viver com eles, por saber que “O aceitar tal situação é comprar caro uma regalia que custa, em geral, a felicidade dum dos donos da casa, ou de ambos” (p. 116).

A ocorrência, na citação anterior, da palavra “criados”, e a presença de criados(as) nestas narrativas, aponta imediatamente para o universo retratado e para o público que se pretende atingir. Nestas novelas há, não criados, mas criadas: mulheres que se distinguem das protagonistas pela situação social, postura, educação e, como é evidente, pela linguagem. A criada de “Renúncia” introduz nesta narrativa e no conjunto das novelas desta autora uma variação no registo de língua erudito. As duas falas longas e castiças de Camila, a que o narrador se refere como “fraseado ingénuo da criada” (p. 115), nada têm da teatralização da fala da patroa. No seu discurso entram vocábulos, ditados e expressões correntes, corruptelas e populismos que são, nos casos mais evidentes, assinalados a itálico: “Casar, apartar – já o dizia a minha mãe que Deus tenha em santa guarda, porque o pão alheio amarga que nem piornos, entantes seja pão de ló. A criatura de corage a tudo se afaz, até a viver sem família” (p. 115).

Apesar da diferença de estatuto e cultura, Rosina dialoga com Cesária e até sabe adequar o seu discurso ao dela. Rosina, ao usar um dos termos populares da criada, não por acaso um dos menos elegantes e, portanto, um termo que ela vê como sinónimo de mau gosto, mostra a sua condescendência e civilidade (também visível no vocativo afectivo, com recurso ao deíctico de posse, “minha Cesária”). O itálico, na fala de Rosina, faz essa ligação à linguagem própria da criada e, em sentido mais lato, à voz do povo: “sim, minha Cesária, de facto ainda não sou velha, nem quero ser trambolho, nem quererei sê-lo, mesmo em velha” (p. 117).

3. Escritora multifacetada e incansável, Emília de Sousa Costa publicou dois livros que podemos integrar simultaneamente na literatura memorialística e na literatura de viagens, e ainda, no segundo título, no género epistolar: Como Eu Vi o Brasil (1925) e Cartas a uma Brasileira (1927).

Como Eu Vi o Brasil tem a particularidade de integrar as duas formas que constituem o memorialismo: a “memória” e o “diário”. Este livro obedece a uma estrutura que tem directamente a ver com a viagem de Emília de Sousa Costa ao Brasil (em 1923, conforme, aliás, a autora assinala no final da obra): embarque no Andes, viagem até à Madeira, desembarque no Funchal, passagem por Cabo Verde, avistamento de várias cidades brasileiras, a começar por Fernando Noronha, desembarque no Rio de Janeiro, embarque no Curvelo, desembarque na Bahia, no Recife e em Olinda, desembarque na Madeira, e chegada a Portugal, a Lisboa.

Apesar da composição de conjunto, à subordinação de todas as partes do texto à narração de uma viagem, Como Eu Vi o Brasil, que teve duas edições (a segunda não datada), não esconde o tom de registo quotidiano de factos e impressões. Esta dimensão é, de resto, assinalada graficamente ao longo de todo o livro, cujos oito capítulos incluem inúmeras partes separadas através de três asteriscos (***). A autora empírica, a propósito de um tema e do seu desdobramento em motivos, ora é mais objectiva ora se concentra mais nas emoções que lhe despertam pessoas, cenários e acontecimentos. Esta oscilação gera um efeito de autenticidade que o uso constante de formas verbais no presente do indicativo confirma. Independentemente da distância temporal que possa existir entre esta escrita e os acontecimentos evocados, o leitor o que a autora vê e sente no momento. Emília de Sousa Costa narra, rememora, combina rigor testemunhal e subjectividade: “O mar flagela o costado do Curvelo, arremete contra as vigias, entoa lá fora a sua salmodia plangente e funérea. Asfixia-me uma sensação indefinível. É a austeridade tétrica da morte? É uma infinita piedade a comprimir-me, a dilacerar-me o coração?” (p. 130).

Paisagens, comportamentos, aspectos sociais e culturais de Portugal, Brasil e não só (há, em especial, algumas notas sobre Inglaterra e Cabo Verde) suscitam em Emília de Sousa Costa reacções que vão do subjectivismo mais íntimo e sensorial à observação mais crítica e construtiva sobre feminismo, política, economia ou recursos naturais. Notemos, por exemplo, que a autora está em sintonia com o pensamento ambientalista mais avançado da época. Ela lamenta a ausência de vegetação em Cabo Verde e faz esta pergunta retórica, que lhe suscita, imediatamente a seguir, um comentário que vem provar que a sua visão do país e do Império português é alargada:

Porque não se aproveitará a energia daqueles braços, a força daqueles arcaboiços, a destreza daqueles membros, a rijeza daqueles pulsos, para replantação das árvores que a cupidez de antepassados ignorantes – arboricidas como os nossos incultos campónios de hoje – devastou, transformando em aridez o que era fértil, em horrível o que era belo, em inóspito o que era acolhedor?

É que, para isso, seria preciso um esforço que nos libertasse das algemas de uma política sem finalidade patriótica… (p. 19)

Em Como Eu Vi o Brasil, Emília de Sousa Costa refaz, simbolicamente, a via-gem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. A voz da autora celebra o glorioso passado nacional e, enaltecendo o Brasil, presentifica o que em Portugal houve e há de heróico e único no mundo. Simbólica e afectivamente, o Brasil, apesar de ser um país independente, é, para Emília de Sousa Costa, Portugal, que ela exalta constantemente pelos feitos épicos dos seus heróis passados mas também modernos:

É o Brasil! É Portugal, o bem amado, a acorrer ainda solicito como uma lembrança grata.

É a Cruz de Cristo a baixar a sua benção de luz trazida nas mãos gloriosas de Gago Coutinho, de Sacadura Cabral, a afirmar mais uma vez ao mundo o valor ingente de nossa raça imortal. (p. 22)

Cartas a uma Brasileira reúne as epístolas que Emília de Sousa Costa (alegadamente) enviou a uma amiga do Brasil, Leonor. De acordo com o que nos diz a autora no texto introdutório, que também parece ser uma carta, esta Leonor não é apenas a destinatária de cartas escritas e enviadas desde Portugal, Espanha e França; ela pede que Emília de Sousa Costa lhe escreva. Não sabemos se se trata de um artifício de uma escritora que via no Brasil um país com futuro em todas as áreas, da economia à ciência e às artes, e que, por razões históricas e culturais óbvias, ela queria exaltar; mas a ausência quer de datação das cartas quer de informações acerca da destinatária (diz-se apenas, no primeiro parágrafo, que Portugal é a pátria do marido de Leonor), parece sugerir que Emília de Sousa Costa criou esta figura. Leonor representaria o “leitor modelo” (Umberto Eco) deste livro; ou, com mais rigor, a leitora modelo, literalmente, tendo ainda em conta que a autora dedica o livro “Às mulheres brasileiras / que o amor sagrou portuguesas” (p. 5).

4. Em 1987, na “Introdução” da sua Bibliografia Geral de Literatura Portuguesa para Crianças, Natércia Rocha perguntava, destacando, ao lado de nomes célebres, Emília de Sousa Costa: “para quando os estudos devidos às obras de Ana de Castro Osório, Virgínia de Castro e Almeida, Emília de Sousa Costa ou Augusto de Santa Rita?” (p. 14). Vinte e cinco anos volvidos, esta pergunta e este convite continuam a fazer todo o sentido. Escasseiam ou são inexistentes os estudos sobre autores que, de um modo ou de outro, marcaram a literatura infanto-juvenil portuguesa. Ana de Castro Osório e Virgínia de Castro e Almeida têm merecido alguma atenção dos estudiosos, e alguns dos seus livros continuam a ser editados e lidos; mas Emília de Sousa Costa não foi até hoje, que saibamos, objecto de qualquer investigação científica. Apesar disso, o seu nome não está ausente das obras que descrevem as linhas gerais da literatura portuguesa para a infância e a juventude como as de Maria Laura Bettencourt Pires e Natércia Rocha.

Emília de Sousa Costa impõe-se na história da literatura infantil e juvenil, antes de mais, pelo número de obras publicadas, que atinge praticamente a meia centena, entre originais, adaptações, traduções e colectâneas; e pela sua dedicação a esta literatura também enquanto directora de duas colecções (a “Biblioteca Infantil” e a “Biblioteca dos Pequeninos”, editadas, respectivamente, pela Livraria Clássica Editora e pela Empresa Nacional de Publicidade).

Tanto nos contos da sua autoria como nas versões de contos tradicionais e de fadas, mas também nas obras mais extensas a que podemos chamar novelas juvenis ou memórias, Emília de Sousa Costa promove princípios morais, normas e padrões de comportamento considerados exemplares. Esta é uma literatura que visa, antes de mais, uma pragmática. Para acentuar a dimensão didáctica e utilitarista destas narrativas, nas quais o narrador e os adultos aconselham e advertem, censuram e castigam os mais novos, há uma técnica que se repete: as personagens infantis e juvenis, como acontece nas novelas da autora, assumem os seus erros e comprometem-se a corrigi-los. Polichinelo, depois de se envolver num episódio que o levou à prisão e obrigou o professor a castigá-lo, declara-se culpado: “Meu bom mestre! Meu bom amigo! Estou arrependido de todo o meu coração! – soluçou Polichinelo. Aceito contrito o castigo! Sou um rapaz muito mau! Hei-de emendar-me! Prometo-o! Juro-o!” (1921, p. 29).

Os livros da série Polichinelo são talvez aqueles que, de entre os textos mais extensos da autora, poderiam ainda hoje ser lidos com proveito por crianças e jovens. Polichinelo em Lisboa (1918), Polichinelo em Trás-os-Montes (1918) e Polichinelo no Minho (1921) são uma espécie de narrativas de aventuras em que a finalidade formativa aparece equilibrada por um humor discreto e por situações imprevistas que prendem a atenção do leitor. O leitor, que acompanha, em cada uma destas obras, uma viagem de Polichinelo, Giorgio e o professor, é seduzido pelas notas relativas a paisagens, costumes, tradições, escritores e outras personalidades, monumentos e outros aspectos da história dos espaços onde a acção vai decorrendo. Apesar das constantes repreensões moralistas do adulto, há boa disposição, riso e aprendizagem.

O estilo da série Polichinelo, ora solto e familiar ora mais formal, permite a precipitação dos acontecimentos. As frases mais longas e espetaculosas do narrador ou do professor alternam com as falas de Polichinelo, que é ao mesmo tempo educado e irreverente, regrado e livre: “Venha um beijinho, que estou curado deste, paizinho do mais meigo dos bonecos! – galhofou Polichinelo” (1921, p. 93).

É fácil de concluir, pelos exemplos que já transcrevemos, que a linguagem da obra infantil e juvenil de Emília de Sousa Costa nem sempre está de acordo com o público a que se destina. Nas breves fichas de leitura preparadas para a Fundação Calouste Gulbenkian, o desajustamento entre a história e o estilo é notada em muitos dos livros desta escritora. Este problema levou a que os recenseadores tivessem alguma dificuldade em indicar a idade dos leitores preferenciais e se vejam obrigados a situar em faixas etárias mais avançadas livros que, se a linguagem fosse outra, poderiam ser lidos por crianças medianamente alfabetizadas. No Reino do Sol merece esta observação de Maria João Vasconcelos, que extraímos da ficha datada de 9 de Dezembro de 1968:

As histórias deste livro são, de facto, para crianças de 8 anos. O português empregado é alternadamente para crianças daquela idade e para crianças de 12 anos ou mais. Encontra-se neste livro (mais uma vez!) a inadequação dos termos à singeleza das histórias, defeito usual na nossa literatura para crianças.

Patrícia Joyce, nesta série de recensões, também nota a distância que por vezes existe entre o conteúdo e a idade dos leitores dos livros de Emília de Sousa Costa. Esta contradição é visível, como em nenhum outro livro da autora, em Joanito Africanista (1932), que exalta o imperialismo e o colonialismo português. Este livro tem pouco a ver com as tendências actuais da literatura infantil e juvenil portuguesa, que promove a reflexão sobre a diferença. Racismo, etnocentrismo, discriminação, paternalismo, estereótipos são, entre outras palavras afins, termos que o leitor adulto médio, com mais ou menos indignação, tenderá a usar para classificar esta narrativa; mas não podemos acusar a autora de falta de humanidade. Aliás, se nos lembrarmos da relação que existia entre a exaltação do Império e a necessidade de difundir a Fé, compreenderemos melhor o que vemos hoje como uma contradição inaceitável. Emília de Sousa Costa era, neste aspecto, uma mulher do seu tempo. Daí os momentos em que se fala da “civilização que, pouco a pouco, temos levado à raça negra, por intermédio dos nossos abnegados missionários. Sacerdotes de Cristo, os missionários são os Seus mais dignos representantes na Terra, porque sacrificam saúde e vida na tarefa cristianíssima de ensinar a religião do Divino Mestre às almas dos filhos do Portugal Ultramarino” (p. 64).

Uma parte muito significativa da obra de Emília de Sousa Costa dirigida às crianças e aos jovens é constituída por versões de contos tradicionais e de lendas; versões que são reescritas muito livres e em que o tom oral, apesar de não desaparecer completamente, se esbate. Esta produção inscreve-se na linha das colecções românticas de literatura oral, popular e tradicional, que aparecem na sequência da valorização do chamado “espírito do povo”. Maria Amália Vaz de Carvalho é, entre nós, com o livro Contos para os Nossos Filhos (1883), a primeira a publicar uma obra inspirada “nas lendas dos países escandinavos e nos contos dos irmãos Grimm” (Pires, 1983, p. 114), e Emília de Sousa Costa uma das suas continuadoras mais convictas.

Nas Lendas de Portugal (1935), Emília de Sousa Costa não deixa dúvidas relativamente à integração da sua obra no empreendimento romântico e na ideologia nacionalista e patriótica. A autora diz-se herdeira do gosto romântico pela tradição oral e popular, que é a expressão mais pura e genuína da alma nacional e dos valores universais de “nobreza”, “bravura”, “paz e amor” de que Portugal se quer exemplo. O leitor infantil e juvenil encontra também nestas lendas os princípios cristãos por que se regem Portugal e o mundo dito civilizado. A transmissão da lei de Deus às gerações mais novas é um imperativo que esta escritora quer cumprir e incentivar através da divulgação de lendas portuguesas, em cuja simplicidade e pureza se reflecte a “graça divina” (pp. 11-12).

Não sabemos concretamente a que fontes recorreu Emília de Sousa Costa para compor estas Lendas de Portugal; mas o que ela nos diz a abrir a “Apresentação” permite-nos concluir que se terá baseado em cronicões, nobiliários, livros de História e, muito em particular, na literatura popular, sempre “pronta a renascer do silêncio que pesa sobre muitas das suas práticas e das suas formas” (Nogueira, 2011, p. 96):

Em todas as nações cultas, as lendas e os contos tradicionais são recolhidos e acariciados com amor. (…) Para isso se afadigam os escritores a rebuscar na tradição popular, na história dos seus respectivos países, ou na massa densa e complexa dos livros antigos, o que nos folclores nacionais deleita e fornece traços de costumes desaparecidos (…). (pp. 9-10)

A tendência para o aperfeiçoamento do estilo não desaparece completamente nas versões de textos da tradição oral, mas os índices de formalismo aparecem atenuados. A autora não ignora que os leitores ou ouvintes das suas narrativas mais breves estão naturalmente menos receptivos a pormenores e a descrições cuja função não seja a de contribuir para a legibilidade e para o avanço da acção. Seja como for, é perceptível, mesmo a uma leitura apressada, que Emília de Sousa Costa não resiste à tentação de elevar o nível de língua das suas versões, e por isso encontramos termos, expressões e orações que ampliam e solenizam o registo simples e económico do conto oral. Nesta frase, que ante-cede um discurso directo, em vez de algo como “A mãe disse aos filhos”, temos: “À luz prateada dum luar puríssimo, a pobre mãe viu brilhar a arma e alucinada disse aos pequerruchos” (1927, p. 9).

O perfil literário e as ideias de Emília de Sousa Costa em relação à sociedade e à educação não são menos evidentes nos contos originais. Em todos eles encontramos animais ou motivos da natureza, à semelhança do que se verifica nas versões de contos populares. Apesar da rigidez didáctica e moralizante a que já nos referimos, estas narrativas atraem as crianças e os jovens porque começam por ser recreativas e lúdicas. Situam, regra geral, os leitores infantis e juvenis num mundo natural e vivo que tem tudo a ver com o imaginário animista que lhes é próprio. O terceiro dos cinco contos de O Peru Aviador (1927), “A Aventura de Focinhito Cor-de-Rosa”, é talvez o melhor texto deste tipo que a autora escreveu. Neste conto, em que entram coelhos, tocas, caçadores, pássaros e outros animais, há um encadeamento constante de acontecimentos e situações imprevistas que justificam plenamente o título.

Este é um texto que começa por nos apresentar uma família de coelhos cuja organização e felicidade o narrador exalta explicitamente. Toda a narrativa pro-move uma ideia de sociedade fundada em valores ao mesmo tempo tradicionalistas e modernos, na linha do pensamento feminista moderado de Emília de Sousa Costa. É dentro desta perspectiva que o leitor actual deve ler o incipit, que não deixa dúvidas quanto aos lugares do masculino e do feminino (lembremos: ao homem compete trabalhar; e, se possível, à mulher, educada e competente em diversas áreas, cabe ficar em casa a tratar da educação dos filhos, sem que isso a desvalorize):

Nos montes Mel Rosado, há muito vive na mais perfeita harmonia uma família, que a algumas criaturas doutra espécie poderia servir de modelo. A Senhora Coelha – mãe duma ranchada de petizes dos mais diversos tamanhos – governa a casa, trata dos mais velhos, amamenta os mais pequenos, olha pela boa ordem de tudo. (p. 41)

Os extremos de que se faz a vida, humor e seriedade, tristeza e alegria, infância, idade adulta e velhice, articulam-se de modo equilibrado numa narrativa que mostra as consequências trágicas da desobediência e das atitudes precipitadas de Focinhito Cor-de-Rosa. Apesar do perigo que significa sair da toca por causa dos caçadores, ele propõe-se, tal como os irmãos, ir comprar “couves frescas e tenrinhas” (p. 45). A mãe, embora sabendo-o “gabarola e leviano”, escolhe-o, acreditando que ele “melhor se desenlearia de dificuldades, por ser muito ágil” (p. 45). É precisamente a sua gabarolice, de que logo se arrepende, que desencadeia toda a série de acontecimentos dramáticos e trágicos: enquanto conversava com umas perdizes, a quem dizia pertencer a uma família rica e as chamava de “pelintras” (p. 47), perde a moeda que levava; vê-se por isso obrigado a procurá-la, sem sucesso, ao longo de um regato; cansado, é perseguido pelos cães dos caçadores, que por pouco não o apanham, antes de se refugiar na toca de uns primos e desmaiar; a avô Pata de Chumbo leva-o a casa mas é morta por tiros disparados pelos caçadores no momento em que entravam: “Focinhito Cor-de-Rosa, ferido nas patinhas, Avó Pata de Chumbo, em pleno peito, caem, num grito lancinante, nos braços da senhora Coelha e do senhor Coelho, que, apavorados, os recolhem e logo trancam a porta” (p. 55).

Este é o início do momento mais emotivo do conto. Às últimas reacções e palavras da Avó Pata de Chumbo, que pede compreensão aos pais de Focinhito Cor-de-Rosa, seguem-se as lágrimas do jovem coelho e o velório, cuja frase realista “E toda a noite a família ficou a velar o cadáver” (p. 55) é acompanhada por uma ilustração, a preto e cinzento, em que vemos o caixão, velas, e as personagens em sofrimento. Há ainda a referência à ida de um membro da família “a casa dos Lebrachos a comunicar a morte da Avó Pata de Chumbo e a chamá-los para o enterro” (p. 57). Percebe-se que Emília de Sousa Costa defende que a literatura deve ser usada para familiarizar as crianças e os jovens com a morte. O conto vai terminar com a resolução do problema criado por Focinhito Cor-de-Rosa, que casa com Patinha Branca. O final é típico dos contos de fadas, mas o leitor não esquece, até pela proximidade na narrativa, a morte da Avó Pata de Chumbo. A vida continua, mas a morte é uma realidade com que se deve saber lidar. O final eufórico não apaga a aprendizagem da morte que o conto fornece: a indução ao confronto com o sentimento fúnebre e o convite à reflexão.

O conto “A Aventura de Focinhito Cor-de-Rosa” é também valioso pelo modo como reflecte sobre o lugar do Homem e dos animais na natureza. Os coelhos vêem-se privados de comida por culpa dos “homens”, “que julgam todo o mundo exclusiva propriedade sua, começaram a fazer as queimadas pelos montes, para semearem os cereais” (pp. 42-43). A consciência ecológica e ambiental atravessa toda a narrativa, concretizada ora neste tipo de comentários acerca da destruição dos habitats naturais, ora nas referências aos “maus homens” (p. 51), aos caçadores impiedosos e ferozes, que se fazem acompanhar de “sanguinários furões” e de “engenhos de morte apavorante” (p. 43). Lições de ecologia cruzam-se com lições de economia (oikos, como se sabe, significa casa): “A Senhora Coelha, boa mãe e previdente dona de casa, apertava as mãos na cabeça, aflita por ter de recorrer ao pé de meia que tanto lhe custara a poupar” (p. 43). A família de coelhos é forçada a alterar a gestão dos seus recursos porque o meio ambiente que os alimenta está a ser degradado pelo ser humano caçador, que, aliás, os impede de sair de casa.

Emília de Sousa Costa procura contrariar hábitos ancestrais de ocupação e uso do solo que prejudicam as espécies animais e vegetais e o equilíbrio do ecossistema. Para isso, sugere que a família de coelhos da sua história vive um drama que é, no fundo, o drama de qualquer família humana confrontada com a falta de alimentos trazida pelo desequilíbrio, provocado pelo Homem, da natureza e do ambiente. A afectividade e o dramatismo que a autora põe nas palavras do Senhor Coelho, que evidencia um conhecimento muito sólido das espécies vegetais que compõem a dieta da sua família, ligam empaticamente o leitor às personagens; o leitor que, através deste discurso emocionado e sinestesicamenre rico, é ainda convidado a fruir os encantos da natureza vegetal, os seus aromas, as suas cores, a sua textura:

E queimaram tudo: nem um bocadinho de urze, ou de rosmaninho tenro, qualquer pontazinha verde de malvaisco ou de mentrasto, algumas folhazinhas de trevo rústico, ou de salva brava, escaparam à sua destruição de egoístas! Nada por nada se furta à barbaridade do fogo, em atenção às nossas famílias! Raízes, folhas, rebentos – tudo estas criaturas queimam ou desvastam! (pp. 42-43).

O elevado número de títulos destinados ao público infantil e juvenil, alguns dos quais tiveram várias edições, permite-nos crer que Emília de Sousa Costa mereceu um bom acolhimento por parte dos leitores. Mas parece-nos perfeitamente lógico que várias das suas obras terão tido igual ou maior sucesso junto de leitores adultos. Os objectivos didácticos e moralizantes, que não impediram a autora de construir histórias originais e apelativas, ter-se-ão cumprido também, ou às vezes sobretudo, no leitor adulto e feminino. Ao mesmo tempo que se dirige aos leitores infantis e juvenis, aliás frequentemente convocados intratextualmente (“meus amores”, “os meninos”, etc.), Emília de Sousa Costa apela à consciência intelectual e religiosa dos adultos, orienta-os, propõe princípios morais e soluções para a difícil tarefa de educar os mais novos. A dimensão burguesa destes textos é sempre inequívoca, e o mesmo se deve dizer da componente cristã, que se desdobra em mensagens de bondade, caridade, sofrimento e abnegação, virtudes que aparecem principalmente associadas ao feminino (de que é matriz a Virgem Maria, que a autora exalta, ao lado de Jesus e de José, na História do Menino Jesus, publicada em 1928).

5. A dedicação de Emília de Sousa Costa à mulher, à criança, à educação e à cultura em geral está também muito presente nas conferências que pronunciou sobre escritores portugueses. Conhecemos quatro opúsculos que resultaram directamente dessas intervenções públicas: O Poeta do Amor (1924), Guerra Junqueiro e a Mulher (1930), Maria Amália Vaz de Carvalho: A Mulher, a Escritora e António Correia de Oliveira: Príncipe de Poetas, Alma de Portugal (n.d.).

O método usado para a apresentação das obras daqueles autores é o da crítica impressionista e psicologista, que, como se sabe, fazia escola na época. Daí a solenidade do discurso, a retórica que visa surpreender um auditório e leitores acostumados a um estilo metafórico e alegórico, o léxico rebuscado, a repetição contínua de ideias que muitas vezes nada têm a ver com os textos: exalta-se o texto porque se parte do princípio de que ele canta Deus, a Pátria e a Família. É dentro desta concepção de literatura e de crítica literária que se sucedem passagens que nada esclarecem acerca da forma e do conteúdo. Emília de Sousa Costa vê valor didáctico, formativo, moralizante nestes escritores, e é à luz desta concepção que constrói o seu exercício de interpretação, em que ecoam as ideias, os sentimentos e as emoções que ela própria põe nos textos e nos autores empíricos:

João de Deus escutou o Mar, ergueu ao azul os seus olhos, nimbados de ternura, embriagou-se com as capitosas incandescências do sol, compreendeu as vozes das amendoeiras, sentiu a misteriosa fascinação das lendas e, ungido do Senhor, seguiu a tradição dos Poetas do seu País, o seu Génio flamejante, envolvendo em ondas de luz o que a sua objectiva focou. (1924, p. 10)

6. Talvez a melhor forma de concluir esta abordagem da obra e do pensamento de uma mulher que nunca desistiu de lutar por uma sociedade mais evoluída e justa seja destacar estas suas observações, que encontramos, mais ou menos nos mesmos termos, em escritores como Fernando Pessoa e António Lobo Antunes e em filósofos como Eduardo Lourenço e José Gil:

O português é, por via de regra, adverso a reconhecer o valor dos seus, a exaltá-lo e a fazê-lo admitir por estranhos, mas é dum abjecto servilismo com os talentos estrangeiros, por mais incongruente que este facto se nos afigure. (…) Sempre a inveja e a impotência a desanimarem, a roubarem o estímulo aos que sentem dentro de si a ânsia imensa duma ascensão para a beleza! (1924, p. 23)

Estas palavras sugerem-nos prudência na avaliação de uma escrita que nos pode fazer sorrir com alguma incredulidade, rejeição ou condescendência, tal é a diferença em relação ao que hoje consideramos próprio ou impróprio da literatura e dos textos de intervenção social. Mas é por isso mesmo que devemos ler Emília de Sousa Costa, que entendeu sempre a educação como “a construção pessoal da educação da própria pessoa que deverá aprender a gerir a sua vida e estabelecendo objectivos porque a vida está repleta de tarefas que requerem autogestão” (Bahia, 2010, p. 56). O conhecimento da sua produção ajudar-nos-á a perceber melhor o que somos e o que podemos pensar da nossa cultura, da nossa sociedade e da nossa educação formal e informal; e, portanto, o que podemos fazer da e através da literatura e da escrita em geral, enquanto cidadãos empenhados na construção de um mundo mais humano, plural e democrático.

 

Referências Bibliográficas

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Data de Submissão: Julho de 2012

Data de Avaliação: Outubro de 2012

Data de Publicação: Abril de 2013