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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.23 Lisboa  2013

 

Liderança singular na escola plural: as culturas da escola perante o processo de avaliação externa

Singular leadership in a plural school: the school cultures facing the external evalution process

Leadership singulière dans l’école plurielle: les cultures scolaires à l’épreuve du processus d’évaluation externe

Liderazgo singular en el colegio plural: las culturas del colegio ante el proceso de evaluación externa

 

Leonor Lima Torres *

*Professora Associada do Instituto de Educação da Universidade do Minho (Braga, Portugal) e Investigadora Integrada do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da mesma universidade.
leonort@ie.uminho.pt

 

Resumo

Numa altura em que a instituição escola alcança níveis de sofisticação cultural e organizacional inéditos, assistimos à implementação de uma liderança unipessoal, centrada na figura do Diretor de escola/agrupamento. Contudo, este novo rosto, erguido paradigma da nova gestão escolar, defronta-se com as múltiplas caras das escolas públicas, cada vez mais mascaradas face à imposição de um modelo de liderança unidimensional. Partindo deste cenário, focamos a nossa abordagem sobre: i) os traços que têm vindo a institucionalizar um perfil-ideal de liderança escolar; ii) até que ponto a liderança unipessoal servirá (melhor) como veículo de expressão de uma cultura escolar que se pretende reproduzir nas diversas escolas; iii) de que modo o rosto (Diretor) exercerá um efeito homogeneizador, marcando quadros de interação e lógicas de organização, sobre o quodiano das escolas. As questões enunciadas serão exploradas utilizando como dispositivo metodológico a análise crítica dos Relatórios de Avaliação Externa das Escolas produzidos durante o I ciclo avaliativo (2006-2011), com o objetivo de apreender os modelos implícitos de cultura de escola e de liderança e as suas implicações na reconfiguração do quotidiano das escolas.

Palavras-chave: cultura escolar; cultura organizacional escolar; estilos de liderança; escola democrática

 

Abstract

At a time when the school institution reaches levels of cultural and organizational sophistication unprecedented, we witnessed the implementation of a unipersonal leadership, focused on the Director of school / school cluster. However, this new face, emerged from the new public mangement paradigm, confronts with many faces of state schools, increasingly masked by the imposition of a one-dimensional model of leadership. Based on this scenario, we focused our perspective on: i) the characteristics that have come to institutionalize a ideal profile of school leadership; ii) how the unipersonal leadership will (better) serve as a vehicle for expression of a school culture that is intended to reproduce in different schools; iii) how the face (Director) will exert a homogenizing effect, establishing frameworks for interaction and logical organization on the daly of schools. This issues outlined above will be explored using as methodological strategy the critical analysis of the External Evaluation Report of Schools produced during the first evaluation cycle (2006-2011), aims to understand the implicit models of school culture and leadership and their implications for the reconfiguration of the daily school. From a total of 1131 Reports produced, we limited the empirical field to the universe of non-grouped educational establishments (n=335), conducting a document analysis and combining a quantitative approach to objective variables with a qualitative-interpretative focus on the content of the Reports. In generic terms, the results indicate the presence of a management type leadership profile, reverential and receptive, guided more by a logic of accountability (to the state and the market) than by principles for the development of democratic citizenship. The majority of the Reports reveal an image of a school with a techno-bureaucratic nature, which subordinates the values of democratic participation to imperatives of control and the mediation of results. This paradigm of school seems to induce the development of leadership increasingly more stripped of a strategic and political sense, and thus more reproductive of a centrally diffuse school culture. As a result, from the perspective of the current political agenda, it makes complete sense to elect a single-person leader who operates as a vehicle of expression for school culture.

Keywords: school culture; organizational school culture; styles of leadership; democratic school.

 

Résumé

À une époque où l’institution scolaire atteint des niveaux de sophistication culturelle et organisationnelle inédits, nous assistons à la mise en place d’une leadership unipersonnelle, centrée sur la figure du directeur d’école/groupement. Néanmoins, cette nouvelle figure, érigée comme paradigme de la nouvelle gestion scolaire, se trouve face aux multiples visages des écoles publiques, de plus en plus éclipés face à l’imposition d’un modèle de leadership unidimensionnelle. Partant de ce scénario, nous focalisons notre abordage sur: i) les caractéristiques spécifiques qui ont institutionnalisé un profil idéal de leadership des écoles; ii) jusqu’à quel point la direction unipersonnelle servira (mieux) de véhicule d’expression d’une culture scolaire qui prétend être reproduite dans les diverses écoles; iii) de quelle manière la figure (directeur) exercera un effet d’homogénéisation, en définissant des contextes d’interaction et des logiques d’organisation, au niveau du quotidien des écoles. Les questions énoncées seront explorées en utilisant comme outil méthodologique l’analyse critique des rapports d’évaluation externe des écoles, générés durant le 1er cycle d’évaluation (2006-2011), afin d’appréhender les modèles implicites de culture scolaire et de leadership, ainsi que leurs implications au niveau de la reconfiguration du quotidien des écoles.

Mots-clés: culture scolaire; culture organisationnelle scolaire; styles de leadership; école démocratique.

 

Resumen

En un momento en el que la institución colegio alcanza niveles de sofisticación cultural y de organización inéditos, asistimos a la implementación de un liderazgo unipersonal, centrado en la figura del director de colegio/agrupamiento. Sin embargo, este nuevo rostro, constituido paradigma de la nueva gestión escolar, se enfrenta a las múltiples caras de los colegios públicos, cada vez más enmascaradas debido a la imposición de un modelo de liderazgo unidimensional. Partiendo de este escenario, centramos nuestro abordaje en: i) los rasgos que han institucionalizado un perfil ideal de liderazgo escolar; ii) hasta qué punto el liderazgo unipersonal servirá (mejor) como vehículo de expresión de una cultura escolar que se pretende reproducir en los diversos colegios; iii) de qué modo el rostro (director) ejercerá un efecto homogeneizador, estableciendo modelos de interacción y lógicas de organización, en el día a día de los colegios. Las cuestiones enunciadas se explorarán utilizando como dispositivo metodológico el análisis crítico de los Informes de Evaluación Externa de los Colegios realizados durante el 1.er ciclo evaluativo (2006-2011), con el objetivo de comprender los modelos implícitos de cultura de colegio y de liderazgo y sus implicaciones en la reconfiguración del día a día de los colegios.

Palabras clave: cultura escolar; cultura de la organización escolar; estilos de liderazgo; colegio democrático.

 

Introdução

Nas últimas duas décadas, o modelo de gestão escolar constituiu uma das trave-mestras das reformas educativas, a par do desenvolvimento de modelos de avaliação (das escolas, dos professores, dos alunos), ambas as preocupações, aliás, profundamente articuladas com o paradigma de gestão neoliberal que tem marcado, nos últimos anos, a agenda educativa. Surge com evidência nos discursos políticos e nos meios de comunicação social a ideia de que os problemas educacionais, resultantes da tão propalada crise da escola, se podem resolver ou minimizar por via da implementação de um modelo eficaz de gestão escolar. Ensaiaram-se figurinos vários em substituição dos Conselhos Diretivos, órgão colegial instituído desde 1975, cujas mudanças de designação (Diretor Executivo, em 1991; Conselho Executivo em 1998; Diretor em 2008), foram acompanhadas por alterações na sua composição, competências e modos de funcionamento. Em todos estes regimes de governo, com a exceção do último instituído pelo Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de abril, a colegialidade da gestão baseada em equipas democraticamente eleitas constituiu um princípio estruturante do modelo de “gestão democrática” que vigorou por mais de três décadas. De feição marcadamente unipessoal, o atual modelo centrado na figura do Diretor veio instituir novas dinâmicas de gestão, impulsionadas igualmente por novas lógicas de regulação da educação em curso na sociedade portuguesa.

A compreensão dos processos de governação da escola e dos seus efeitos no quotidiano das organizações requer uma abordagem contextualizada da ação dos líderes no quadro mais vasto de pressões e constrangimentos que regulam a vida das instituições educativas. Elegemos neste texto, a exploração de um dos dispositivos mais influentes no condicionamento da atuação dos líderes escolares, apesar da sua subtileza e invisibilidade mediática (Abrantes, 2010) - a Avaliação Externa das Escolas. A implementação progressiva do modelo de avaliação externa a todas as escolas e agrupamentos escolares do país, tem gerado fenómenos relevantes de apropriação do processo por parte dos atores escolares. Alguns destes efeitos podem ser deduzidos da análise dos Relatórios de Avaliação Externa, na medida em que aí se consubstanciam modelos implícitos de escola que funcionam, sobretudo para os líderes escolares, como um paradigma normativo regulador da ação. A disseminação de padrões ideal-típicos de liderança, de organização pedagógica, de organização e gestão escolar, tem contribuído para mascarar as diferenciações culturais coexistentes nas escolas, tornando-as o mais semelhantes possível à cultura escolar que se pretende instituir à escala nacional.

Começamos por esclarecer os não-objetivos deste texto: não se pretende efetuar uma avaliação da avaliação externa, nem tão pouco questionar a validade dos fundamentos do modelo avaliativo em curso; o foco da abordagem dirige-se fundamentalmente para a análise dos efeitos que este modelo exerce, de forma quase sempre dissimulada, sobre o condicionamento das práticas escolares. Deste ponto de vista, interessa apreender, num primeiro momento, os traços que têm vindo a institucionalizar um perfil-ideal de liderança escolar para, de seguida, interrogar o papel da liderança unipessoal como veículo de expressão de uma cultura escolar que se pretende reproduzir e sedimentar nos mais diversos universos simbólico-ideológicos das escolas. Por outras palavras, de que modo o rosto (Diretor) poderá exercer um efeito homogeneizador, marcando quadros de interação e lógicas de organização, sobre o quodiano das escolas?1

1. A cultura da escola a três tempos

A problemática da cultura organizacional em contexto escolar constitui na atualidade um eixo de investigação fundamental. O desenvolvimento e expansão de âmbito internacional de que foi objeto nas últimas quatro décadas permitiu, por um lado, abrir a problemática a uma grande variedade de perspetivas e enfoques disciplinares e metodológicos e, por outro lado, consolidar uma base de conhecimento sobre os processos de construção da cultura e seus impactos ao nível do funcionamento das organizações. Da análise que efetuamos à literatura internacional, foi possível identificar dois pólos de pesquisa distintos presentes nas abordagens culturais das organizações (escolares e não escolares): um primeiro de inspiração mais gerencialista, focado nas dimensões integradoras e unificadoras da cultura e seu impacto na produção de resultados aos mais diversos níveis (desde o nível micro ao macro-organizacional); um segundo pólo, de âmbito mais reflexivo e crítico, orientado para a compreensão dos processos de construção do simbólico e para a identificação dos fatores intervenientes no desenvolvimento da cultura das organizações. Se nas décadas de oitenta e noventa do século XX era bem visível a distância que separava e dicotomizava estes dois pólos de pesquisa, quer do ponto de vista do enfoque epistemológico e teórico, quer ao nível das estratégias metodológicas, hoje, aquelas fronteiras parecem ter-se esbatido. Paralelamente a este processo, assistimos a uma certa banalização de conceitos estruturantes do campo das organizações, apropriados (a)criticamente por agentes situados nos mais diversos espaços profissionais. As designações cultura escolar e cultura organizacional escolar passam a ser indistintamente utilizadas, como se se tratassem de conceitos equivalentes e radicados em agendas teóricas conciliáveis.

Por se revelarem conceitos centrais à análise e compreensão das dinâmicas escolares, sinalizamos de seguida algumas das dimensões teóricas que caracterizam e diferenciam a cultura escolar da cultura organizacional escolar. Nesta sequência, propomos um novo patamar analítico que designamos de cultura organizacional de escola, que contempla as dimensões mais profundas da vida cultural de cada estabelecimento escolar. A delimitação analítica que propomos inspira-se nas especificidades do campo educativo e das organizações escolares e sustenta-se teoricamente numa abordagem sociológica das organizações educativas2.

1.1. A cultura escolar

A natureza centralizadora da administração da educação, no caso português, constitui uma dimensão histórico-cultural essencial à compreensão das dinâmicas organizacionais das escolas. As orientações normativas difundidas pelos organismos centrais e pericentrais configuram um quadro cultural orientador do sistema escolar, traduzido em regras, valores, crenças e ideologias que se vão institucionalizando ao longo das diferentes conjunturas históricas. A cultura escolar recobre justamente as dimensões culturais historicamente sedimentadas nas organizações escolares, sob a forma de ritos, rituais e cerimónias legimadoras da ação educativa, e por isso, relativamente comuns e generalizáveis às diversas organizações escolares. Por exemplo, como bem salienta Barroso (2005), uma das marcas mais distintivas da cultura escolar, visível desde a génese da organização pedagógica da escola primária pública e, mais tarde, dos liceus, é o princípio da homogeneidade assente na estrutura nuclear da “classe” (grupo de alunos que recebiam simultâneamente o mesmo ensino). Esta forma escolar que se manteve praticamente inalterada até à atualidade, sedimentou no tempo padrões organizativos mais ou menos estáveis e de sentido homegeneizador. Quanto mais acentuada for a tendência para a escola concreta reproduzir a estrutura formal-legal e as dimensões simbólicas que ela incorpora, maior será a sua aproximação à cultura escolar institucionalmente difundida. Ao invocar as semelhanças culturais que perpassam nos mais diversos contextos escolares, a noção de cultura escolar pode encerrar dois sentidos, consoante o ângulo de análise se restrinja apenas ao sistema escolar ou o extravaze, recaindo sobre todas as organizações sociais. O primeiro, conceptualmente próximo das noções “cultura genérica” (Prosser, 1999, p. 8) e “cultura institucional” (Pérez Gómez, 1998, p. 127), faz sobressair os aspetos culturais (normas, estruturas, rituais e tradições, valores e ações) mais ou menos estabilizados (pela previsibilidade) que atravessam holisticamente o sistema escolar. No segundo, a noção cultura escolar, passa também a traduzir a especificidade cultural do sistema educativo em contraponto com outras singularidades culturais constitutivas de outros sistemas sociais, como por exemplo, o sistema de sáude, o sistema de justiça, o sistema produtivo, entre outros.

1.2. A cultura organizacional escolar

Se bem que as organizações escolares reflitam, com maior ou menor intensidade, os traços dominantes da cultura escolar, as dinâmicas quotidianas obedecem a todo um trabalho de bricolage sócio-organizacional, que combina, numa disposição original, elementos reproduzidos da ordem estrutural e elementos resultantes do jogo social, da ação concreta vivida nos contextos de trabalho. A forma como cada instituição interpreta, recontextualiza e operacionaliza localmente as orientações centrais configura teoricamente a noção de cultura organizacional escolar. Assim, enquanto a cultura escolar pressupõe uma relação de continuidade entre as orientações normativas e culturais e os contextos de ação concretos, a cultura organizacional escolar, remete-nos para a importância dos contextos endógenos de ação no processo de construção da cultura organizacional. Ambos os conceitos são constitutivos da realidade escolar, estando intrinsecamente ligados: os contextos estruturais formalizados (cultura escolar) são objeto de recriação quotidiana a partir da interação humana não estruturada, desordenada, aleatória e fluida (cultura organizacional escolar). Isto é:

[...] as regras formais, por mais maciças e impositivas que se apresentem, só são culturalmente estruturantes e indutoras da reprodução se a sua aplicação puder ser suspensa, modelada, extravasada ou subvertida por um conjunto de práticas, de jogos sociais que quotidianamente desafiam a ordem prescrita e estabelecida. A apreensão das descontinuidades culturais entre estas duas realidades paralelas, que ora geram estabilidades relativas ora induzem novas instabilidades resultantes dos jogos sociais, permitem perceber o complexo processo de construção da cultura organizacional escolar. (Torres, 2011a, p. 145; itálico no original).

1.3. A cultura organizacional de escola

Do ponto de vista teórico-conceptual, a diferenciação que fomos estabelecendo entre cultura escolar e cultura organizacional escolar revelou-se útil, pertinente e operacional no plano da pesquisa empírica. As várias investigações desenvolvidas numa escola secundária (Torres, 2004) permitiram dilucidar as nuances entre aquelas duas realidades, mostrando as diferentes facetas da cultura da instituição (mais escolar ou mais organizacional) consoante as diferentes conjunturas sóciopolíticas e as circunstâncias locais da ação. Todavia, o avanço da pesquisa empírica exigiu um aperfeiçoamento conceptual, a consideração de uma terceira noção adjacente e sobreposta à de cultura organizacional escolar, que desse conta dos fenómenos que se interpõem entre o ator e o sistema — os valores, as práticas e crenças enraizadas nas lógicas de ação coletivas e erigidas em modelo de ação, as manifestações identitárias nascidas das esferas da informalidade. Esta terceira conceção que designámos de cultura organizacional de escola contempla “[...] as especificidades culturais da escola que se desenvolvem e que se perpetuam no tempo para além e através da cultura organizativa imposta ou recriada no contexto escolar” (Torres, 2011a, p. 146).

Perante a atual conjuntura política, a noção de cultura organizacional de escola ganha nova centralidade. O desenvolvimento de novas formas de regulação da educação (Barroso, 2005, 2006; Teodoro & Aníbal, 2007; Teodoro, 2011), expressas pela intensificação dos mecanismos de controlo sobre as escolas, pela multiplicação das modalidades de prestação de contas e pela adoção de uma visão gerencialista de autonomia limitada apenas às dimensões técnicas, desencadeou nas periferias escolares, a construção de múltiplos dispositivos de adaptação contextual. As pressões que se exercem sobre o sistema escolar, seja da parte da administração central, seja da comunidade local, ao condicionarem as dinâmicas de funcionamento dos estabelecimentos de ensino, abrem igualmente possibilidades de “fuga”, de clandestinidades várias, muitas vezes fundadas no modus operandi historicamente instituído em cada organização escolar. São estes modos de ser e de fazer coletivamente construídos nas escolas, que ultrapassam e estão para além das orientações normativas e estruturais que nos permitem aceder à cultura organizacional de escola.

O novo modelo de governo das escolas públicas, assente em lideranças unipessoais centradas na figura do Diretor de escola/agrupamento, tem vindo a acentuar algumas tensões nas dinâmicas escolares. Ao erigir o Diretor como o “rosto”, o “primeiro responsável” pelo funcionamento da instituição, pressionando-o à conformidade burocrático-política por via da “prestação de contas”, o paradigma de gestão imposto tende a colidir com as lógicas pedagógicas, corporativas e profissionais características do espaço escolar, fazendo emergir com mais força e expressividade as singularidades de cada escola. De igual forma, a implementação do programa de avaliação externa das escolas, sustentado num determinado quadro de referência, arrasta consigo todo um processo de uniformização da diversidade inerente às instituições escolares. O impacto deste processo pode assumir várias formas, mais ou menos conflituosas, em função das especificidades culturais das escolas. Todavia, vários estudos têm demonstrado que as situações de adversidade e de choque cultural são frequentemente impulsionadoras de movimentos de resistência e de solidificação de ideários coletivos que tendem a funcionar como agência reguladora da ação. E nestes casos, a categoria cultura organizacional de escola assume uma pertinência ímpar na explicação tanto da eficácia como da falácia de algumas tentativas de mudança normativa determinadas pelo poder político.

 

 

A consideração destes três patamares na abordagem cultural da escola (cultura escolar, cultura organizacional escolar e cultura organizacional de escola) aproxima-nos, do ponto de vista teórico-concetual, de um enfoque reflexivo e crítico da cultura. Este posicionamento assenta nos seguintes pressupostos: i) a cultura é um processo dinâmico resultante do jogo da interação social; ii) a cultura desenvolve-se na longa duração, com particular incidência nos espaços-tempos socialmente partilhados; iii) a cultura apresenta tanto regularidades como descontinuidades; iv) a cultura resulta de uma multiplicidade de fatores internos e e xternos à or ganização escolar.

Em síntese, a cultura organizacional da escola desenvolve-se no tempo, podendo ser aferida por via dos costumes, dos hábitos, das rotinas e rituais enraizados pelos atores no seu contexto de trabalho. Porém, tal não significa que estes padrões comportamentais sejam consensuais ou mesmo pacíficos. Pelo contrário, admitimos, na perspetiva de vários autores (cf. Frost et al., 1991; Martin, 2002), a coexistência no mesmo estabelecimento de ensino de pelo menos três tipos de manifestação cultural: a integradora, quando o grau de partilha e de identificação com a missão da organização é elevado; a diferenciadora, quando o grau de partilha se confina ao grupo de referência, sendo previsível a eclosão de diversas subculturas no mesmo contexto escolar; a fragmentadora, quando se constata o grau mínimo de partilha cultural, em muitos casos circunscrita à mera esfera individual. Sinalizado de forma esquemática, este posicionamento teórico permite-nos apreender a natureza multifatorial da cultura em contexto escolar e as suas relações não lineares com o novo modelo de governação da escola.

2. Design da pesquisa empírica

Apesar de beneficiar de reflexões produzidas no âmbito de outras pesquisas em curso, o foco deste artigo incide sobre a análise efetuada aos Relatórios de Avaliação Externa das Escolas produzidos ao longo do primeiro ciclo avaliativo (2006 e 2011)3. Na sequência de um primeiro trabalho desenvolvido sobre esta matéria (cf. Torres & Palhares, 2009), voltamos a concentrar a nossa atenção sobre estes dispositivos, ampliando agora o universo de Relatórios às restantes fases do primeiro ciclo avaliativo. No final de seis anos de intensa atividade avaliativa, atinge-se mais de um milhar de unidades de gestão avaliadas (n = 1131) e contabilizam-se igual número de Relatórios reportados a escolas e a agrupamentos de escolas. Considerando as especificidades políticas, organizacionais e educativas inerentes a cada um dos contextos escolares avaliados, optamos por circunscrever a análise ao universo de escolas não agrupadas, excluindo deste estudo os dados relativos aos agrupamentos de escolas. Ainda assim, debruçamo-nos sobre 335 Relatórios de Avaliação de estabelecimentos de ensino não agrupados, na sua maioria escolas secundárias (com ou sem o 3º ciclo do ensino básico) e, num número residual, escolas artísticas e escolas profissionais. A estratégia de circunscrever o campo empírico apenas a escolas não agrupadas revelou-se ajustada à nossa proposta teórica, focada fundamentalmente na compreensão dos padrões de liderança desenvolvidos no interior de estabelecimentos de ensino geograficamente não dispersos por várias unidades.

Em termos metodológicos, recorreu-se à análise documental, articulando a abordagem quantitativa das variáveis objetivas com um enfoque qualitativo-interpretativo do conteúdo dos Relatórios. Apesar de se efetuar uma leitura global de todos os relatórios-objeto, selecionou-se para análise mais aprofundada apenas os domínios da “organização e gestão escolar” e da “liderança”. Num primeiro momento, os dados de caracterização das escolas, bem como os resultados de avaliação obtidos nos diferentes domínios, foram inseridos informaticamente no programa SPSS, com o objetivo de identificar algumas regularidades estatísticas e de aferir a pertinência de algumas correlações significativas entre variáveis. Num momento posterior, procedeu-se à análise de conteúdo categorial dos domínios referidos, procurando extrair dos textos os sentidos dominantes de excelência e de insuficiência no campo da liderança e da organização escolar.

3. Caracterização sócio-organizacional dos estabelecimentos não agrupados

Integraram o corpus empírico deste trabalho 335 Relatórios de Avaliação Externa de Escolas reportados por diferentes regiões do país, com prevalência para as regiões de Lisboa e Vale do Tejo e do Norte (cf. quadro 1), congregando as respetivas Direções Regionais (DREN e DREL) mais de dois terços das escolas avaliadas.

 

 

Em termos temporais e de conjuntura organizacional, o gráfico 1 mostra-nos que o programa de avaliação incidiu sobre os dois últimos modelos de gestão escolar: cerca de 50% das escolas foram avaliadas durante a vigência do regime de autonomia, administração e gestão das escolas instituído pelo Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de maio, e igual percentagem de escolas foi avaliada já no período de implementação do modelo unipes soal de gestão.

 

 

A grande maioria das escolas não agrupadas apresenta a configuração de escola secundária com 3.º ciclo ou de escola básica do 3.º ciclo com secundário (59,4%), sendo que apenas 40,6% daquele universo corresponde à tipologia de escola secundária. Quanto à identidade fundacional da instituição, constatamos uma realidade escolar diversificada, com a presença de escolas recentes, construídas no pós-25 de Abril e vocacionadas para o ensino básico e secundário (44,8%), mas também escolas mais antigas, herdeiras do ensino liceal (20,0%) e do ensino técnico, industrial e comercial (27,2%). As escolas profissionais e de natureza artística representam apenas 4,8% e 2,1%, respetivamente, do universo de escolas estudadas (cf. quadro 2).

 

 

Em cerca de 20% dos relatórios não foi possível identificar a origem da escola, todavia, conseguimos reduzir esta lacuna para um valor residual de 1,2%, recorrendo à consulta desta informação diretamente nos portais das respetivas escolas. No que se refere à dimensão das escolas, a amostra recobre uma variedade de situações, muito embora prevaleçam as escolas de média e grande dimensão, em número de alunos, professores e funcionários.

4. As escolas que temos ... na perspetiva da avaliação externa

O retrato final da avaliação das escolas não agrupadas representado no gráfico 2 traduz um panorama escolar globalmente positivo em todos os domínios, sendo de destacar a avaliação mais positiva dos domínios da “liderança” e da “organização e gestão escolar”. À semelhança do que se fez no Relatório Nacional de 2006-2007, da autoria da Inspeção-Geral da Educação, se conjugarmos as classificações de Muito Bom e de Bom para os cinco domínios, também aqui a “liderança” (90,4%) e a “organização e gestão escolar” (91,0%) aparecem destacados. Sendo certo que os dados não deixam qualquer dúvida a este propósito, interrogamo-nos sobre o sentido desta tendência, precisamente numa altura em que a agenda política vem focando a sua intervenção nos órgãos de governação da escola e, muito em particular, nos processos de liderança.

 

 

Efetivamente, os resultados aferidos parecem não justificar a necessidade de introduzir mudanças na estrutura organizativa da escola, muito menos amputar os órgãos do seu ethos de gestão democrática instituído há mais de três décadas no sistema público de ensino. Mas este divórcio entre os resultados do programa avaliativo e a tomada de decisão política, mais do que confirmar a inoperância do conhecimento produzido no apoio à decisão, reflete a crença de que todos os problemas sócio-educacionais do país se resolvem com o recurso a uma gestão mais profissional e a uma liderança mais eficaz. Interessa, portanto, compreender e discutir o modelo implícito de “boa liderança” e de “boa organização e gestão escolar” presente nos Relatórios de Avaliação.

Entretanto, antes de avançar na identificação das dimensões mais valorizadas nos domínios da “liderança” e da “organização e gestão escolar”, importa situar estes referenciais no contexto sócio-organizacional mais amplo das escolas avaliadas. Por outras palavras, em que tipo de escolas se encontram as melhores lideranças e as melhores formas de organização e gestão?

Circunscrevendo a análise ao patamar cimeiro da classificação utilizada neste primeiro ciclo (Muito Bom), desde logo porque veicula uma conceção ideal-típica de escola, supostamente com níveis de desempenho consistentes e referenciáveis, efetuamos um conjunto de cruzamentos estatísticos, na procura de tendências e relações inerentes a este nível de classificação, de que destacamos a seguinte síntese no que respeita ao domínio “organização e gestão escolar” (cf. gráfico 3): as escolas avaliadas com Muito Bom estão localizadas na sua grande maioria na região Norte e na área metropolitana de Lisboa e Vale do Tejo, são organizações mais antigas, de grande dimensão, com rácios mais elevados (alunos/professores e alunos/funcionários) e que apresentam uma oferta que incide sobre o ensino básico e secundário.

 

 

Do ponto de vista da “liderança” voltamos a encontrar os mesmos fatores condicionadores da classificação Muito Bom, com a exceção da antiguidade da escola, que agora aparece em sentido inverso: as escolas mais recentes tendem, na ótica dos avaliadores, a desenvolver uma melhor liderança (cf. gráfico 4). O sentido desta constatação não deixa de ser pertinente, sobretudo se tivermos em consideração as tendências observadas em diversos estudos internacionais e que apontam numa direção oposta: as escolas mais antigas e de pequena dimensão são aquelas que melhores condições sócio-organizacionais apresentam para desenvolver uma gestão e liderança escolar mais sustentável (Hargreaves e Fink, 2007) e de tipo comunitário (Sergiovanni, 2004), associada à produção de bons resultados escolares.

 

 

Igualmente curioso, registamos ao longo do processo avaliativo a atribuição da uma percentagem constante de Muito Bom no domínio “liderança”, com a exceção da 4ª fase, ocorrida no ano letivo 2008/2009, justamente o período de implementação do (novo) modelo de organização escolar instituído pelo Decreto-Lei nº 75/2008 e, correlativamente ou não, a fase com menos atribuições de Muito Bom no domínio “liderança”.

5. Traços das escolas excelentes e das escolas insuficientes

Antes ainda de explorarmos o perfil ideal de “liderança” e de “organização e gestão escolar”, convém deter-nos brevemente sobre os traços das escolas excelentes e, em contraposição, das escolas insuficientes. Para o feito, selecionamos do universo de escolas avaliadas, aquelas que obtiveram a classificação máxima (Muito Bom a todas os domínios) e a classificação mínima (Insuficiente a pelo menos dois dos cinco domínios), resultando deste exercício a identificação das cinco melhores e das cinco piores escolas do país.

Ao focarmos a atenção nas características das escolas melhor classificadas (cf. quadro 3), detetamos um cenário algo ambíguo do ponto de vista da matriz identitária dos estabelecimentos: três escolas integram o 3º ciclo e o ensino secundário e duas escolas apenas este último grau de escolaridade; a origem organizacional das escolas é diversa (liceal, comercial e industrial, preparatória e secundária), assim como o é a antiguidade dos estabelecimentos. Já do ponto de vista da localização geográfica, as melhores escolas situam-se todas em meio urbano e acima do Vale do Tejo. Vale a pena, entretanto, destacar algumas dimensões mais identitárias destas escolas: oferta educativa reduzida, estabelecimentos de grande dimensão em termos da população escolar e racios professor-aluno e aluno-funcionário elevados, com registos acima de 7 e de 18, respetivamente. Ou seja, volta a surgir como evidente a dimensão do estabelecimento, associada a uma oferta pouco diversificada. Acresce ainda, do ponto de vista sociocultural, o facto de estas escolas apresentarem um público escolar relativamente homogéneo do ponto de vista económico e cultural, já que as famílias dos alunos apresentam, na maioria dos casos, uma situação profissional estável e um elevado grau de escolaridade, não obstante os dados relativos ao apoio social parecerem contradizer este diagnóstico.

 

 

O perfil-tipo de escola excelente aqui esboçado não deixa de traduzir uma dupla contradição. A primeira, relacionada com a missão da escola pública, denuncia a opção destas instituições por uma vocação mais elitista, restrita a uma oferta pouco diversificada, contrariando deste modo, as prioridades atuais da agenda política. Mas esta redefinição local das prioridades não deixa de traduzir o grau de autonomia relativa de que toda a escola dispõe, o que nestes casos em concreto, se revelou fundamental para ajustar aos interesses e às expectativas de um público escolar mais homogéneo do ponto de vista sócio-cultural. A segunda contradição volta a incidir sobre a relação paradoxal entre dimensão da escola e resultados de excelência, o que colide com as conclusões de algumas investigações sobre esta temática.

O retrato das cinco escolas pior classificadas representado no quadro 4 revela que os domínios considerados mais insuficentes são os da “liderança” e da “organização e gestão escolar”, justamente aqueles que apresentam melhores resultados na globalidade das escolas avaliadas. Do ponto de vista da identidade sócio-organizacional, estamos perante cinco casos muito similares: em todas as escolas se ministra o ensino básico e o ensino secundário, sendo a maioria dos estabelecimentos recentes (menos de 35 anos), projetados nas décadas de 70 e 80 para o ensino secundário. Distribuídas pelo território nacional (Norte, Centro, Alentejo e Lisboa e Vale do Tejo) e inseridas em meios predominantemente rurais, estas instituições apresentam uma significativa diversificação da sua oferta educativa, privilegiando um leque variado de cursos de jovens e de adultos, incluindo a dinamização de Centros de Novas Oportunidades. Não obstante agregar esta variedade formativa, a maioria das escolas é de pequena dimensão e apresenta racios aluno-professor e aluno-funcionário relativamente baixos, em comparação com as escolas melhor classificadas. Também em contraste com as escolas de nível excelente, as condições económicas e culturais das famílias dos alunos são relativamente baixas e instáveis: índices significativos de desemprego, trabalhos precários e mal remunerados e baixo nível de escolaridade. Perante este cenário, não deixa de ser estranha a percentagem de alunos que aufere apoio social, situada ligeiramente abaixo dos valores atribuídos aos alunos das escolas melhor classificadas.

 

 

De feições claramente distintas, as caras das escolas excelentes e insuficientes espelham alguns traços antinómicos que denunciam a controvérsia que envolve a definição local da missão estratégica da escola. Se por um lado, a administração central pressiona a instituição escolar no sentido da promoção simultânea da excelência (escola de qualidade) e da inclusão social (escola para todos), por outro, tal objetivo torna-se na prática de difícil conciliação, fragilizando, em muitos casos, a avaliação global da escola (Torres, 2011b). Com efeito, as escolas melhor classificadas do país, que se encontram no top five, parecem ser aquelas que optaram pela garantia de um ensino excelente, secundarizando a sua vocação democratizadora. Resta saber, então, se a definição da missão da escola reflete mais as condições económico-culturais do seu público ou se constitui uma opção estrategicamente pensada para potenciar o rendimento académico de determinados grupos de alunos.

6. Perfil-ideal de líder escolar

A liderança nas escolas representa na atualidade uma das prioridades da agenda da política educativa, tendo gerado uma onda de preocupações nos vários espaços sócio-educativos: nos serviços desconcentrados do Ministério da Educação, nas escolas e agrupamentos, nos sindicatos e associações profissionais, nas famílias, nos diversos agentes da comunidade local, nos meios de comunicação social e, por arrastamento, na comunidade académica das ciências sociais e da educação. Assistiu-se, neste último contexto, ao ressurgimento do interesse pelo tema, bem evidente no número de dissertações de mestrado e teses de doutoramento já defendidas e em curso. Todavia, apesar da multiplicação dos estudos ter animado o debate em torno das velhas tipologias da liderança, quase sempre travestidas de novas designações, persiste no panorama sócio-educacional uma conceção dominante de liderança, agarrada a uma visão mecanicista de escola, herdeira dos modelos racionalistas da organização. Para além de nato, o líder deverá, em termos de ideal-tipo, ser treinado (e.g. pós-graduado em administração educacional) e ajustável aos múltiplos contextos em que está inserido. Mas enquanto rosto da autoridade e ator-cimeiro da vida da escola, o líder assumirá também funções de gestão e manipulação da cultura, no sentido de garantir a mobilização coletiva convergente com a missão e visão instituída centralmente para a escola.

Os quadros que a seguir apresentamos sintetizam as dimensões-chave mais significativas de “boa liderança” (quadro 5) e de “boa organização e gestão escolar” (quadro 6) identificadas nos Relatórios que obtiveram a classificação de Muito Bom, bem como, a um nível mais minucioso de análise, os vários indicadores que sustentaram este nível de classificação.

 

 

 

A primeira dedução genérica retirada desta análise aponta para a subordinação do perfil de liderança às lógicas da prestação de contas e de responsabilização (accountability) (cf. Afonso, 2009), bem como da racionalização dos recursos. Pressionada à regulação dos resultados, a escola precisa, na ótica do quem avalia, de um “líder forte”, de um “rosto” que se responsabilize pela implementação eficiente de um projeto educativo que se pretende partilhado. Mas o significado de partilha é perspetivado mais como uma técnica de gestão de afetos do que de um processo resultante da participação democrática dos atores nas suas esferas significativas de ação. O que efetivamente é valorizado pelas Equipas de Avaliação é o perfil de desempenho da escola ao nível dos resultados, dependendo estes da eficiência com que os atores operacionalizem, nas periferias escolares, uma tecno-estrutura imposta por instâncias supraorganizacionais. Neste contexto, as organizações escolares, situadas abaixo e fora dos centros de decisão, são conceptualizadas como “escolas-reflexo” (Lima, 2008: 85) das orientações emanadas do aparelho central, cuja missão primordial é maximizar a produção de resultados.

A focalização na figura do Presidente do Conselho Executivo e, a partir da 4ª fase de avaliação, do Diretor, como referência para avaliar a liderança da escola subentende claramente uma imagem de liderança individual, contrariando a tradição das práticas de colegialidade culturalmente instituidas nas organizações escolares. Valoriza-se primordialmente o domínio de ferramentas de gestão que permitam a concretização das metas nas esferas do mercado (angariação de verbas, projetos e parcerias; inovação tecnológica; oferta educativa; indicadores de procura), do estado (eficiência dos processos e eficácia dos resultados, com monotorização e avaliação; qualidade e excelência) e da escola (cultura organizacional da escola) (cf. quadro 5). Transparece um perfil de liderança de tipo gestionário, reverencial e recetivo, orientado mais por uma lógica de prestação de contas (ao estado e ao mercado) do que por princípios de desenvolvimento da cidadania democrática. Nesta lógica, as dimensões culturais da escola assumem-se como técnicas de gestão facilitadoras da concretização dos resultados, reforçando-se a crença culturalista de que o empenhamento, o comprometimento, as tradições culturais promovem a eficácia e a excelência escolar.

A imagem dominante de escola bem organizada e bem gerida presente no quadro 6 remete-nos novamente para as dimensões mensuráveis da educação, inspiradas nos valores típicos da “cultura do novo capitalismo”, sugestivamente enunciados por Sennett (2006): a eficácia, a eficiência, a racionalização, a flexibilidade, a rotatividade. Todavia, a hegemonia destes valores, expressos nos relatórios numa linguagem economicista (“indicadores de medida”, “otimização de resultados”, “gestão rigorosa dos recursos humanos”), confronta-se com a apologia de outros princípios de natureza distinta: equidade, justiça e participação. Mas se analisarmos os significados atribuídos a estes princípios em função do contexto em que são mobilizados, depressa confirmamos a sua aproximação à ideologia de tipo gestionário. A participação dos atores na vida escolar é valorizada enquanto instrumento indutor de consensos, de comunhão e convergência de objetivos e interesses, enfim, de garantia de um clima e de uma cultura propícios à concretização eficaz dos objetivos educacionais. Se, por vezes, em alguns relatórios, parece desenhar-se uma conciliação entre os valores mais instrumentais da gestão empresarial e os princípios mais substantivos de natureza político-educativa, na maioria dos documentos analisados sobressai uma imagem de escola de feição tecnoburocrática, que subordina os valores da participação democrática aos imperativos do controlo e da medição de resultados.

Conclusão

Confrontada com desafios cada vez mais complexos decorrentes da transformação económico-social, política e cultural em curso, a escola pública tem vindo a repercutir nos processos e atos educativos diversas e contraditórias tensões, interesses, objetivos, quase sempre impostos pela ordem exterior. As diferentes ordens que hoje atravessam e se cruzam no espaço escolar tornaram-na menos linear do ponto de vista socioinstitucional, simultaneamente mais densa e estereoscópica na sua configuração organizacional e mais contraditória na realização da democratização. Paradoxalmente, perante a sofisticação sócio-organizacional da escola responde-se politicamente com medidas de alcance nivelador e universalizante, seja ao nível da estrutura de governação, seja no plano da definição da missão da escola, ou ainda, no domínio da organização pedagógica. Regista-se uma discrepância cada vez mais acentuada entre o conhecimento científico produzido sobre a realidade escolar que ao longo dos anos tem vindo a antecipar, problematizar e reunir visões diversas sobre as dinâmicas plurais de funcionamento das escolas portuguesas e, por outro lado, o sentido e a natureza das orientações políticas para a educação, designadamente nos domínios da gestão e administração escolar.

Quando apresentamos pela primeira vez os resultados preliminares desta pesquisa num evento científico ocorrido em janeiro de 2009 (cf. Torres & Palhares, 2009), várias foram as reações e perplexidades manifestadas pelo público presente, que contava inclusive com um grupo de avaliadores externos. Basicamente questionavam-se dois aspetos, na altura por nós enunciados como “pontos de entrada” na problemática, mais tarde, formulados como hipóteses teóricas metodicamente transpostas para o núcleo central das nossas reflexões. A primeira “entrada” reportava às dimensões-chave do perfil ideal de liderança, ainda não totalmente claro para a maior parte dos atores educativos, se bem que alguns dos gestores escolares conseguissem já corroborar algumas das facetas deste retrato-robot. A segunda “entrada” referia-se à possibilidade deste modelo se transformar num paradigma de referência, funcionando como uma matriz nortedora e reguladora da ação dos líderes escolares. Esta tese de cariz eminentemente sociológica, a exigir um olhar atento sobre a reflexividade da ação social e escolar, defrontou-se, na altura, com uma recetividade algo resistente e desconfiada advinda sobretudo de atores situados nos mais diversos patamares da administração do sistema educativo.

Com o avançar desta e de outras pesquisas, entretanto multiplicadas à escala nacional, não só os traços do líder ideal acima referidos foram adquirindo consistência e espessura teórica e empírica, instituindo-se em sistemas de verdade, como os seus efeitos começaram a tornar-se visíveis na dinâmica quotidiana das escolas (cf., por exemplo, pesquisa desenvolvida por Veloso, Abrantes & Craveiro, 2011). Basta constatarmos, durante os primeiros quatro anos de avaliação (2006-2009), a centralidade conferida à atuação do Presidente do Conselho Executivo no processo de liderança, antecipando já (e legitimando) a implementação, em 2008, de lideranças unipessoais assumidas pelo Diretor de escola. Não estranha, por isso, que perante a recente mudança dos órgãos de governação das escolas e das relações de poder que naturalmente enformam os processos de liderança, os referentes de avaliação nestes domínios específicos se tenham mantido inalterados. Afinal de contas, o paradigma de one best leadership já estava encontrado.

Numa altura em que tanto se fala, se escreve e se opina sobre a liderança, importa perguntar até que ponto ela efetivamente existe para além da mera reprodução das lógicas centrais? Mais, como gere o líder a pressão bipolar a que é diariamente submetido, de um lado, a sua total dependência do centro a quem deve prestar contas, de outro, a sua vinculação à identidade profissional e organizacional da escola que representa? O paradigma de escola que emerge das instâncias políticas de regulação poderá induzir o desenvolvimento de lideranças cada vez mais desapossadas de sentido estratégico e político e, neste senti-do, mais reprodutivas da cultura escolar centralmente difundida. E ao contrário do que é proclamado, o que se avalia não é a escola, tão pouco a sua cultura e identidade organizacional, mas antes a sua capacidade de exibir e copiar o modelo escolar que se pretende difundir à escala nacional. Por isso, na perspetiva da atual agenda política, faz todo o sentido eleger um líder unipessoal que funcione como veículo de expressão da cultura escolar.

 

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Data de Submissão: Fevereiro de 2012

Data de Avaliação: Maio de 2012

Data de Publicação: Abril de 2013

 

Notas

1 O texto apresentado recupera e aprofunda os dados empíricos apresentados em vários eventos científicos de âmbito nacional e internacional. A primeira publicação científica sobre esta temática pode ser consultada na Revista Lusófona da Educação, nº 14, 2009, intitulada “Perfis de liderança e escola democrática”.

2 Sobre a discussão em torno da delimitação do conceito de cultura escolar, a partir dos campos disciplinares da Gestão, Antropologia e Sociologia, sugerimos a leitura do trabalho publicado na Revista Lusófona de Educação (Pol, Hlousková, Novotny & Zounek, 2007).

3 Na sequência de uma série de ações e medidas legislativas promovidas pelo XVII Governo Constitucional, o programa de avaliação externa inicia experimentalmente a sua fase piloto em 2006 com a avaliação de 24 “unidades de gestão” (leia-se escolas e agrupamentos de escolas), a cargo de um Grupo de Trabalho constituído por Despacho conjunto do Ministro de Estado e das Finanças e da Ministra da Educação (Despacho conjunto n.º 370/2006, de 5 de abril), prosseguindo nos anos seguintes com as 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª fases, agora já sob a responsabilidade da Inspeção-Geral da Educação. No inicío do ano letivo 2011/2012 deu-se início ao II ciclo de avaliação externa das escolas públicas. Os Relatórios de Avaliação das escolas podem ser consultados na página oficial da Inspeção-Geral da Educação e Ciência (http://www.ige.min-edu.pt/), bem como o Relatório relativo ao I ciclo avaliativo.