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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.18 Lisboa  2011

 

A função inalienável das Artes Visuais. Reflexão a duas vozes

 

José B. Duarte* & M.ª Constança Vasconcelos**

*Professor da Universidade Lusófona. Investigador do CEIEF. j.b.duarte@netcabo.pt

**Professora na Universidade Lusófona. Investigadora do CICANT. mcpvasconcelos@gmail.com

 

Este texto constitui um debate sobre a função da arte, entre dois professores com diferente formação de base (Maria Constança Vasconcelos com formação específica em Artes Visuais e José B. Duarte em Ciências da Educação). Ambos evocam o apoio que diversas obras de arte lhes proporcionaram em diferentes momentos da vida. E por ambos é sublinhado como a história da expressão criativa está ligada à história da luta pela liberdade e pela democracia, uma luta que se insere numa visão da arte como fundamental recurso ao serviço da aspiração a um mundo mais feliz e fraterno. Os autores fazem ainda uma reflexão em torno da integração das artes e dos outros saberes, pois, se o objectivo final da educação é a ativação do potencial cognitivo do aluno, terá de haver maneiras de integração que evitem as perspectivas compartimentalizadas existentes. Por isso, no plano epistemológico, o artigo pretende constituir uma tentativa de interdisciplinaridade, algo julgado por todos como fundamental numa universidade, mas pouco posto em prática. No final, os autores desafiam o leitor para uma pedagogia crítica como orientação de outros saberes e também das artes.

The arts construct representations of the world, which may be about the world that is really there or about the imagined worlds that are not present, but that might inspire human beings to create an alternative future for themselves. Efland (2002, p. 171)

Arte como inspiração para um futuro diferente

J.B.Duarte:

O ensino das artes visuais (e das outras artes…) tem sido remetido para um plano de secundaridade nas nossas escolas. Importa refletir sobre as potencialidades das artes visuais numa outra possível integração no currículo. A proposta de Efland, em epígrafe, traz à minha consciência o efeito que alguns quadros tiveram na visão-do-mundo da minha geração. Por exemplo o quadro Guernica de Picasso. Nos anos sessenta, em tempos de greves académicas, em que pequenos jornais clandestinos passavam de mão em mão com reflexões sobre questões académicas e políticas, aquele quadro, em reproduções amplas nos nossos quartos de estudante ou em pequenas reproduções guardadas em livros, era um expoente fundamental da nossa reflexão sobre a vida.

Esse quadro era um expoente da nossa contestação, pois sentíamos na pele o grave e preocupante problema da guerra colonial - que iria roubar a alguns de nós quatro anos de vida - e víamos colegas voltarem com pernas amputadas ou sabíamos da morte de amigos em terras africanas. Naquele quadro, por sobre figuras humanas destroçadas, olhávamos a metáfora do touro como símbolo dos poderes ditatoriais da época e sentíamos que resistir-lhe de todas as maneiras era imperativo de consciência. Esses sentimentos, expressos nos olhares e nas meias palavras, eram depois verbalmente clarificados pelas canções de Adriano: "Há sempre alguém que resiste! Há sempre alguém que diz não". Em suma, se as palavras da canção eram claras, aquele quadro era também uma referência fundamental da nossa representação da realidade. Um outro pintor profusamente reproduzido nos nossos ambientes era Dali, cujo surrealismo era sentido de modo existencial, como se os relógios com ponteiros distorcidos fossem um apelo à nossa fuga à "normalização" imposta pelo poder. E, menos numerosas, havia também reproduções de obras de Chagal, com pares amorosos a voltejarem no espaço, a lembrar-nos que, como diz Efland, era possível uma alternativa…

M.C.Vasconcelos:

A história da expressão criativa está ligada à história pela liberdade, pois há uma ligação entre o estado da expressão artística e o estado de democracia (Pujol, E. 2009). Os ditadores sempre odiaram as artes, não só porque as artes apresentam múltiplas interpretações ou soluções para um mesmo tema ou problema, uma vez que projectam sempre uma visão individual e única do mundo, como também pelo fato de não apresentarem apenas o que existe, mas o que poderia ser ou que gostaríamos que fosse. Este quebrar as barreiras da realidade, proporcionando "aventuras de significado", ajuda-nos a compreender os mistérios da vida que a ciência não chega para explicar e tem muitas vezes um carácter revelatório, mostrando-nos novas dimensões. Ao fomentar a imaginação e a criatividade as artes permitem aceitar desafios que podem melhorar as nossas vidas. A frase de Ricoeur em Dickinson (2005) é abrangente e sintética: "The arts offer us models for the redescription of the world. They attach us to others, to our history, and to ourselves by providing a tapestry rich with threads of time, place character and even advice on what we might do with our lives.

Limitar, portanto, a educação ao desenvolvimento de capacidades verbais e matemáticas é extremamente redutor do potencial humano, pois as artes permitem desenvolver diferentes tipos de cognição como a teoria de Gardner das inteligências múltiplas defende. Sendo as artes um fenómeno social e cultural de carácter universal, um subsistema da cultura e sendo as escolas, meios privilegiados de cultura, o lugar das artes na educação, é, como se diz no título, inalienável, embora tantas vezes menosprezado por incompreensão da sua importância no desenvolvimento humano. Fowler (2001, pp. 9-13) resume muito bem o papel das artes: ensinam a pensar receptivamente, desenvolvendo a sensibilidade e consciência; pensar esteticamente sendo que a consciência estética como modo de nos relacionarmos com o mundo permite a referência da arte para outros aspectos da vida; ensinam a pensar criativamente, pois a ambiguidade das formas de expressão simbólica requer um pensamento de ordem superior; e a pensar comunicativamente, pois sendo todas as formas de arte, meios de comunicação, dão acesso ao ser expressivo e comunicativo e à participação na criação do seu próprio mundo. Sendo linguagens da civilização através das quais contamos as nossas vidas, são também formas de comunicação que nos dão acesso à sabedoria armazenada dos tempos; assim ensinam a pensar culturalmente, pois estabelecem uma relação básica entre o indivíduo, a herança cultural e a família humana. As fundações para a paz entre pessoas dependem da interconexão cultural, partilhar criações artísticas entre culturas é partilhar os nossos valores mais profundos.

Por outro lado, a importância da "visualidade" no mundo contemporâneo é avassaladora. Fala-se do incremento de analfabetos visuais, apelando para a reestruturação da escola e das universidades de modo a ensinar uma "gramática visual" (Hernandez, 2005). Esta questão tem produzido um dos debates mais criativos dos últimos tempos como diz Hernandez (2005, p. 89):

Un debate que ha dado lugar a programas de investigación en la teoria crítica contemporánea, la filosofía postmoderna, la teoria estética, la deconstrucción y los estudios culturales, en torno de la ´visualidad´, haciendo de él uno de los temas centrales en el pensamiento crítico contemporáneo.

Currículo: um caminho de pensamento e acção

J.B.Duarte:

Das condições para fazer o melhor possível o percurso escolar sempre se ocupou a pedagogia ou a educação, com conceitos como metodologia de ensino, estratégia de ensino, e outros. Aliás, na literatura pedagógica francesa o termo currículo é pouco frequente. E é curioso lembrar que "currículo" foi adoptado entre nós através da literatura pedagógica de língua inglesa, mas é de origem latina (de currus, carro e currículum ou curriculus, ou seja, o percurso que um cavaleiro com seus cavalos e carro fazem no hipódromo). Mas é de reconhecer que a "literatura curricular" trouxe preocupações que enriqueceram a reflexão pedagógica. Por exemplo, a questão de saber quais as "fontes" ou perspectivas a ter em conta ao construir um currículo (o saber, o aluno, a sociedade) ou de discutir se o currículo pode ser neutro, como pretende Kelly (1980), ou se existe uma relação do currículo com o(s) poder(es), como propõe Apple (1997).

Organização e Desenvolvimento Curricular se chamava ou chama uma disciplina leccionada nalgumas instituições de ensino superior. Sempre senti, quando leccionei essa disciplina, que o termo de "concretização" seria preferível ao de "desenvolvimento", tradução do inglês development. Pensando nessa perspetiva operativa, propus para uma unidade de mestrado a designação de Currículo, metodologia de ensino e de avaliação. E não surpreende que Roldão, reconhecida estudiosa desta problemática, conclua que currículo é "uma passagem vitalizadora e útil, compreendendo o processo de aprender como um caminho esforçado, mas estimulante de pensamento e acção" (2004, p.14).

M.C.Vasconcelos:

Vem no sentido do que Eisner (2002, 2005) defende, o currículo como um instrumento de alteração das mentes, feito para melhorar o modo como se pensa. Quando os políticos e os teóricos da educação definem um currículo para o ensino, a escola ou a disciplina, estão a propor formas de pensar, estão a estabelecer uma agenda para o desenvolvimento da mente em que os professores são os principais agentes de mediação. Aqui reside a diferença entre aquilo a que se costuma chamar currículo in vitro e currículo in vivo, ou seja, o desenvolvimento das actividades na prática. É sempre o professor que desenha e organiza as situações reais que promovem as experiências de aprendizagem, dependendo do contexto escolar, das características dos alunos, das suas próprias convicções etc., mediando permanentemente interacções.

Penso que a problemática que refere é muito importante porque a escola como principal meio de socialização e o seu inerente currículo escolar têm de acompanhar as mudanças que ocorrem nas sociedades dum modo reflexivo e crítico e cada vez mais, dadas as condições de incerteza, mudança rápida e radical em que vivemos hoje. Se como Hernandez (2005, p. 93) diz, pela primeira vez na história, nos confrontamos com um ciclo de renovação do conhecimento mais curto do que o ciclo de vida do indivíduo, é preciso pensar e incorporar esses temas na prática no sentido, sobretudo, de formar cidadãos capazes de participar criativa e criticamente na sociedade global cada vez mais formatada pela tecnologia e os media. As tentativas de compreensão das mudanças socioculturais e epistemólogicas que ocorrem hoje são fundamentais na situação educativa. Rodriguez (2005, p.47) refere que esta situação é especialmente evidente na área da Educação Artística porque ela se ocupa das presentações e representações artísticas, visuais e materiais dos mundos reais, dos mundos possíveis, dos mundos imaginários e dos olhares e interpretações.

Arte e ciência

J.B.Duarte:

Para Popper um processo comum a todas as ciências é o da falsificabilidade, segundo o qual as ciências se devem submeter a observações ou experiências o mais difíceis possível de modo a pôr à prova a sua validade, só resistindo assim algumas teorias, todavia provisórias pois sempre ameaçadas por possíveis novas experiências ou novas teorias. A crítica entre os cientistas é algo de fundamental em Popper no desenvolvimento da ciência ou, por outras palavras, há um "debate" através dos tempos entre cientistas e as suas teorias que dá ao conhecimento científico um caráter de "aproximação à verdade", verdade sempre mais complexa que as teorias (1999).

Atualmente alguns autores ligados ao chamado pos-modernismo estabelecem uma equivalência entre todas as formas de conhecimento, chegando a equiparar astronomia com astrologia, religião e arte. Poderíamos argumentar que é errado reivindicar um estatuto científico para a astrologia à semelhança da astronomia. Mas, por outro lado, é interessante como Popper assinala na ciência momentos criativos em analogia com a criação artística e com a própria vivência comum:

Há um Mozart, há um Beethoven, há um Einstein, há um Boltzmann. Portanto nós somos criativos. Há pessoas que descobriram algo de novo que com certeza não ocorreu apenas por mera reunião de actos singulares. E que também não era simplesmente inato, mas que foi realmente produzido por essas pessoas. Ora eu digo que todos nós somos criativos e originais. Todas as nossas reacções são criativas e originais e de entre muitas criações novas é depois, por meio da selecção, escolhida a melhor (Popper, 1991. p.51).

Popper propõe, aliás, a criatividade como algo que está na base da evolução do universo e da vida mas dá um lugar fundamental à criação artística: "A vida é, o mundo é, antes de haver vida, criativo. Mas a prova só vem através da vida e a prova absolutamente decisiva só vem através de Mozart (p.59).

M.C.Vasconcelos:

As artes são domínios criativos por excelência o que não quer dizer que a criatividade não exista nas ciências ou em qualquer outra área; a criatividade faz parte da condição humana. Uma diferença importante entre as artes e as ciências é que exatamente a regra nas artes é a celebração da diversidade, da individualidade e da surpresa enquanto nas ciências domina a fatualização, linearidade, correcção, ajudando-se os alunos a obter certezas, regras e generalizações (Eisner, 2002). No entanto, a verbalização e a quantificação são apenas algumas das formas de literacia, de modos de se configurar a compreensão humana do mundo. São outras as formas de literacia em artes no sentido em que descrevem qualidades dum mundo que não se pode explicar discursivamente, mas experienciar apelando à nossa sensibilidade e contribuindo de um modo distinto para o conhecimento e aprendizagem.

Ao contrário das ciências, nas artes o artista não precisa, de contar as coisas como elas são, usa os materiais para criar formas que estejam de acordo apenas com os seus propósitos, sem ser acusado de distorcer a realidade (Efland, 2002). A imaginação tem licença para voar (Eisner, 2002). Para além disso, como refere Gisbert (2005), o artista move-se não só entre exigências de expressãocomunicação como de inovação-criação, entre o uso convencional do código e a sua inovação, pois a utilização criativa da forma de representação plástica supõe o uso dos elementos integrantes do código, de modo pessoal e inovador subvertendo-o e indo mais além do já conseguido.

As artes são domínios mal estruturados "ill structured domains", como Spiro et al. (1987) definiram. São domínios de grande complexidade onde o conhecimento é caracterizado pela flexibilidade, em que se juntam fragmentos de conhecimento para responder às necessidades de um determinado contexto. Os domínios do conhecimento são confusos, inconsistentes no sentido em que falta a regularidade de limites e categorias claras (Efland, 2002). Como refere este autor, não há generalizações amplas que se apliquem à maioria dos casos como p ex. acontece com a lei da gravidade da física, mas aprende-se juntando o conhecimento de casos individuais. A aprendizagem de novo conhecimento é dificultada pela falta de grandes generalizações. A expressão de Dewey do propósito flexível, "flexibly purposeful", que Eisner (2002) retoma, refere-se ao lado de improvisação da inteligência que é usada nas artes. Inteligência que é a capacidade de mudar de direção, redefinir objetivos quando opções melhores emergem no decurso de um trabalho.

Este propósito flexível que as artes promovem pode desenvolver formas de pensamento e atitudes para com os problemas que emergem noutros campos. Acompanhar a surpresa exige a capacidade de correr riscos, pois prossegui-la é uma escolha, e é sempre um caminho incerto onde os esquemas familiares e as técnicas habituais podem provar ser pouco efetivas. Uma das tarefas mais desafiadoras das artes é a tendência para reverter rotinas e quando a arte é bem ensinada estes propósitos flexíveis são encorajados (Eisner, 2002).

Convidar os alunos a usar a sua imaginação para ver coisas novas é um processo comum às ciências e às artes, perceber o que lá está, mas imaginar o que poderá ser e então usar o conhecimento e competências técnicas, bem como a sensibilidade para prosseguir o que se imaginou (Eisner, 2002). Oddleifson (1996) argumenta que o processo das artes é similar ao processo científico de descoberta, representando as artes uma medida igualmente poderosa de explorar as relações do homem com a natureza, usando símbolos próprios enquanto as ciências usam números e palavras. Mas ambas despertam o que apelida de "craving to comprehend" com as suas contínuas revelações e interpelações. Este "craving to comprehend" é a força motriz da aprendizagem. Trabalha-se hoje em dia cada vez mais em paradigmas e novos modelos para ligar processos de descoberta nas ciências e nas artes.

Um debate intemporal nas ciências e nas artes

J.B.Duarte:

Concordo com Popper sobre o debate realizado através dos tempos entre os cientistas, que opôs o heliocentrismo de Copérnico e Galileu ao geocentrismo de Ptolomeu, levou Kepler e Newton a corrigir as propostas de Galileu, aliás iniciadoras da ciência tal como a concebemos hoje, e levou Eisntein a dizer que a massa é energia e a alargar o princípio de Newton sobre a atração dos corpos. Mas esse debate intemporal também acontece nas artes visuais. Pois se Platão propôs a imitação da natureza ou mimesis como fundamento da arte, com Baumgarten no séc. XVIII apareceu o debate sobre a alteração pela arte daquilo que é observado. Isto é, importará à arte procurar ver para lá da superfície das coisas, procurando o sentido mais profundo que as coisas e o mundo têm para os seres humanos.

Essa procura do sentido mais profundo passou de uma procura de harmonia e equilíbrio por parte dos artistas inspirados pelo classicismo, às formas mais "sonhadas" do romantismo, à análise das contradições sociais no realismo, ao retomar da pesquisa da visão pessoal pelo impressionismo e expressionismo ou outras. O que opõe Monet a Corot ou a Courbet, o que opõe Van Gogh a Cézanne, o que opõe Picasso cubista ao Picasso rosa é esse debate implícito, menos de palavras e sobretudo concretizado pela produção artística, entre os diferentes artistas e por vezes no mesmo homem, sobre a visão profunda do mundo e da vida, para lá da observação comum e superficial do mundo.

Assim, "quando Cézanne desrespeita a realidade, o seu objetivo é trazer à tona o que é permanente e está para além do que é acidental e de superfície" (Janson, 1989, p.641). "Profundamente insatisfeito com os valores da sociedade industral", Van Gogh foi "pregador laico junto de mineiros de carvão" (Janson, 1989, p.644) e "este mesmo sentimento profundo pelos pobres domina os quadros do período pré-impressionista, 1880-1885" (ou seja de metade dos dez anos da sua vida de pintor). E o mesmo Van Gogh declara em carta ao seu irmão o seu desejo de "exagerar o essencial e deixar o óbvio no vago" (p.645). Janson conclui que em Van Gogh os quadros pintados no sul de França (como o quadro Seara de Trigo com Ciprestes) mostram uma "fé numa força criadora a animar todas as formas de vida".

No quadro sobre o poeta Blaise Cendras, o pintor Marc Chagal "manifesta já as suas primeiras tentativas numa procura de ultrapassar a geometrização do objeto tal como a concebiam os cubistas", escrevem Walther e Metzger (2008, p.22). Os mesmos autores comentam assim o quadro Concerto de 1957: "uma barca que leva a bordo um par amoroso avança num rio, enquadrado à direita por uma cidade e à esquerda por um grupo de músicos (…). O conjunto assume um movimento ascendente da direita para a esquerda (…) a um mundo superior, povoado de músicos celestes" (p.80). Pares amorosos, músicos e animais preenchem o espaço da pintura de Chagal, personagens em posições diversas e até invertidas espacialmente, mostrando uma "outra visão das coisas" e exprimindo, em tempo de guerra mundial e de perseguições, "a esperança numa humanidade fraterna e num mundo de paz" (p.89).

Em suma, a discussão crítica das soluções para os problemas e das teorias que ditam essas experiências, proposta por Popper, como vimos, parece-me algo de comum à ciência e à arte, embora sejam diferentes os problemas que a ciência e arte enfrentam, mais de ordem física na ciência e mais de ordem existencial na arte. Por outro lado, o debate entre artistas é concretizado mais pela sua produção artística e menos pelas suas palavras, que em todo caso exempliquei com a oposição expressa de Chagal ao cubismo ou por Van Gogh ao impressionismo. Mas poderemos dizer que todos os pintores e artistas exprimem verbalmente ou pela sua produção uma visão do mundo diferente da de outros, já que a originalidade é, entre eles, uma aspiração comum. Por outro lado o caráter de provisoriedade e de "aproximação à verdade" que a epistemologia de Popper propõe retira à ciência a áurea de rigidez ainda divulgada por muitos autores e aproxima-a de outras formas de conhecimento, incluindo o conhecimento artístico.

M.C.Vasconcelos:

Encontrei esta frase de Campbell citado por Oddleifson (1996, p. ?) que traduz bem o caso das ciências na linha de pensamento de Popper:

For the really great and essential fact about scientific revelation – the most wonderful and challenging fact - is that Science does not and cannot pretend to be true in any absolute sense. It does not pretend to be final. It is the tentative organization of 'mere working hypothesis' that for the present appear to take into account all the relevant facts now known.

É também um ponto comum entre a ciência e a arte tentar ver para além do que se nos apresenta pelos sentidos. Usando a imaginação e a criatividade, tanto artistas como cientistas buscam através dos respectivos meios, muito diversos, perceber não só o que é, mas também prosseguir para o que imaginaram.

Na criação artística plástica é possível usar, de acordo com Eisner (2002), três formas de representação que podem actuar conjuntamente numa obra: a mimesis que já referiu e que pode ter um grau de similitude total ou aproximativa, como no uso de sinais gráficos (sinalização) que se tornam familiares pela sua simplificação e acessíveis a todos, comunicando o que é fundamental; a criação da forma expressiva em que se representa não o que se vê, mas o que se sente através dos elementos estruturais da linguagem plástica e a que o público reage diferentemente, dependendo do seu background, pois todas as formas possuem propriedades fisiognomónicas, qualidades que expressam ou evocam sentimentos ou emoções; e uma terceira forma de representação através de signos convencionais que são socialmente aceites e se referem a ideias, objetos etc.. e por isso existe a iconologia e a iconografia das artes para estudar os símbolos que têm significados iconográficos para além do que aparentam.

Como exemplos duma excepcional representação destes três modos conjuntamente, Eisner (2005, pp. 80-81) convoca Jasper Johns, Chagall, Joseph Cornell, Jack Levine, Rauschenberg e Warhol. Mas deixe-me prosseguir a sua resenha pela história da arte que ficou por Chagall. Acompanhando Pujol (2009) a industrialização despoletou o fim do artesão e dividiu fazedores de pensadores; a fotografia aliviou a pintura e escultura do fardo de documentação da realidade. O modernismo permitiu décadas de arte com autocontemplação psicológica, definindo universalismo puramente através da forma que acabou por se tornar repetitiva e decorativa. A condenação de Duchamp da "arte retiniana" da arte perceptiva em geral, com a elevação das ideias ao estado de meio primordial levaram à desmaterialização conceptual da arte (Storr, 2005, p. 61).

A arte conceptual, nascida nos anos sessenta, trouxe as ideias tangíveis ou intangíveis para o trabalho artístico que tomaram a precedência sobre o produto final - "an idea is a machine to make art" e "banal ideais cannot be rescued by beautiful execution", de Sol LeWitt, foram conceitos marcantes. Apesar do peso desta última afirmação, Sol LeWitt não acreditava que o trabalho pudesse existir apenas como ideia pois a banalidade pode existir na incapacidade do artista para agir dentro das qualidades do meio escolhido (Storr, 2005, p. 63).

A arte contemporânea pede a justificação da arte para além do subjectivo, interroga com propósito. Assiste-se à quebra dos limites tradicionais entre Belas Artes e Arte Popular, a um alargamento do território das artes e assistimos ao uso pelos artistas plásticos de estratégias dos media e vemos os publicitários a usar as chamadas Belas Artes para vender os seus produtos. Tanto o que se apresenta como obra de arte como o papel social dos artistas na sociedade contemporânea é de grande diversidade e ecletismo. A "metanarrativa" da modernidade deu origem a uma pulverização de "micronarrativas". Há uma hibridização de meios e propostas, nas produções culturais (filmes, fotografia, vídeos, imagens digitais, anúncios, net-art etc.). A introdução da chamada cultura visual no ensino artístico como evocam os seus promotores principais Efland, Freedman e Stuhr (2003), configura-se indispensável, embora dê os primeiros passos, acusada ainda de indefinição didática.

Aprendizagem em artes visuais e integr ação curricular

J.B.Duarte:

Voltando a Efland (2002), este autor sugere que o conhecimento científico é guiado por uma lógica proposicional sistemática, expressa em símbolos verbais e matemáticos, que permite generalizações ou leis, enquanto o conhecimento artístico é guiado por uma lógica metafórica e narrativa, de base não-proposicional, que não permite generalizações (p.160). Essa proposta levanta uma pergunta: não há "propostas" ou "proposições" sobre o mundo e a vida num quadro como Guernica ou nos quadros de Chagal? Ou, por outros termos, a imagística das artes visuais, apesar de ser não verbal e não usar símbolos matemáticos, não é também "proposicional"? Por outro lado, essas obras não permitem uma generalização pelo observador a outras situações por ele vividas?

Esta reflexão implica toda a problemática da distinção entre "generalização estatística" da investigação baseada em amostragens e "generalização analítica" da investigação realizada a partir de situações singulares, como propõe Yin para os estudos de caso (2005). Aliás, em discordância de Efland, esta última generalização é designada de "naturalística" por Eisner para os estudos de caso em artes visuais, pois "the function of a case study is to learn about more than that particular case, for a case is always a case of something (2002, p. 213). Ou seja, um caso estudado em profundidade e mostrando claros registos do observado pode trazer contribuições generalistas a quem o vier a conhecer (Duarte, 2008). Tal como em arte o quadro Guernica.

A integração das artes no currículo escolar é assim uma questão subtil, a depender do mais do efeito cognitivo profundo que o professor de arte for capaz de desenvolver junto dos estudantes do que de orientações oficiais. E toda a pedagogia atual mostra que a ação do professor terá de saber desencadear atividades a desenvolver pelos estudantes e não se limitar ao verbalismo. É, em suma, mais uma questão de currículo real que de currículo oficial, na distinção de Kelly (1981). Por outro lado, é pertinente a ideia de uma especificidade do ensino das artes, como propõe Efland, apoiando-se em Eisner e Gardner, ou seja "the idea that the arts provide unique oportunities for the development of mind that are not available in other modalities" (2002, p.157). O argumento é que "different domains of knowledge utilize different cognitive abilities for their mastery and that such capacities are not likely to evolve if absent from the life experience of individuals". Ou seja, tais considerações são reflexo da proposta de Gardner de que cada uma das "inteligências múltiplas" requer uma didática adequada para se desenvolver.

A integração das artes no currículo ao lado de outras disciplinas, reivindicação expressa pela generalidade dos projetos de investigação realizados por professores de artes, é assim uma questão a dirimir sobretudo no terreno da prática docente e na investigação que sobre ela se fizer. Essa prática saberá partir de situações problemáticas trazidas para a aula pelos estudantes ou pelo docente, provocará debate de fundo teórico-metodológico acerca do processo de resposta à situação problemática. Mas essa situação problemática e todo o processo consequente, será tanto mais integradora no currículo quanto mais potencial tiver para envolver docentes de outras áreas. Por isso discordo de Efland quando propõe para o currículo a centralidade do ensino das artes ("the arts should be centrally located within the curriculum as an overlapping domain"), mas concordo em que "the work of art becomes meaningful when it is seen in the context of the culture, and the culture becomes understandable as read through the arts" (2002, p.164).

No esquema visual apresentado no texto, Efland coloca as artes no centro, com as "ciências físicas" do lado esquerdo e as "humanidades" à direita, a "história" por cima e as "ciências sociais" por baixo e do centro em que as artes se situam partem ligações undirecionais para as quatro outras matérias de estudo. Ligações unidirecionais a partir das artes é algo já em si discutível. Pelo menos que fossem bidirecionais, a sugerirem influência mútua entre as áreas de trabalho escolar.

A disputa da égide duma ciência sobre as outras foi frequente na história da ciência a partir do séc. XVIII em que Kant, com base nos Princípios Matemáticos da Filosofia da Natureza de Newton propôs que a matemática seria a ciênciabase de todas as disciplinas (Geymonat, 1990). Este autor recorda ainda tentativas de sobreposição por parte de algumas ciências sobre outras, a biologia por sobre a psicologia, a física por sobre a química e outros casos. Entre nós um conhecido sociólogo tem proposto em sucessivas obras que as ciências físiconaturais funcionem sob a égide das ciências sociais. E nas nossas escolas cada professor tende a defender a sua disciplina tal como em tempos passados um cavaleiro defendia a "sua dama" (comparação ouvida por mim a um professor de matemática).

Ora cada professor deve defender sobretudo a integridade mental dos jovens a seu cargo e, de algum modo, saber deixar envolver o seu jardim pelas plantas do jardim vizinho, ao contrário do desejo da personagem Cândido de Voltaire, que apenas pretendia cultivar o seu jardim. Num plano epistemológico, a dinâmica do conhecimento não vive de égides de ciência alguma, mas da dinâmica do tal debate intemporal entre as diferentes formas de conhecimento, que mencionei acima. Concordo com Efland em que as artes constituem mapas ou imagens que nos orientam dentro da sociedade e aqui evoco o que disse sobre Guernica. Mas os graves problemas da ecologia ou da necessária descoberta de novas fontes de energia (situações problemáticas a aprofundar em disciplinas físico-naturais) não serão também questões centrais em todo o currículo das nossas escolas? Questões que obviamente envolvem várias disciplinas e podem integrar toda a imagística das artes.

Aliás, quanto à integração curricular, Efland (descontando o leitor a questão da centralidade acima evocada) propõe a ligação de todas as disciplinas à experiência do estudante: "We have multiple forms of cognition (propositional and nonpropositional) but in my view these do not stand in opposition to each other. Rather both emerge from the same common source, the basic level of experience" (2002, p.171). Efland evoca depois o físico David Bohm acerca de uma "ordem implícita" (implicated order) subjacente à humanidade e que poderá constituir uma "fonte" para superação do dualismo mente e corpo, pensamento e sentimento, indivíduos e sociedade: "The construction of lifeworlds requires access to such sources as represented and extended symbolically in thinking, feeling and willed action. Such building is, in final analysis, "an achievement of the imagination" (p.171).

Lembrei acima a proposta de Popper de que a criatividade é comum a todos os homens e fundamental na ciência como na arte. A criatividade ou imaginação é também fundamental aos docentes e aos estudantes para uma integração de todas as disciplinas numa unidade dinâmica do currículo escolar.

M.C.Vasconcelos:

Efland defende que se o objectivo final da educação é a activação do potencial cognitivo do aluno, terá de haver modos de integrar o conhecimento que evitem as perspectivas compartimentalizadas existentes. São essas abordagens integradas que favorecem a tranferência de conhecimento. A ideia das artes no centro do currículo, não é nova, como Efland reconhece e os argumentos usados prendem-se com 4 dimensões potenciadas pelas artes: flexibilidade cognitiva (tal como na vida, na arte os julgamentos não são guiados por regras ou generalizações); a integração do conhecimento (a interpretação de trabalhos de arte baseia-se em conhecimentos de domínios colaterais, que permitem o conhecimento do contexto); a imaginação (actividade estruturante usando a metáfora e a narrativa para estabelecer novos significados e obter representações coerentes, e unificadas) e a estética (os encontros estéticos vividos através da percepção têm grande valor educativo).

Falando dos paradigmas do ensino artístico, Eisner (2002) refere também o modelo de artes integradas com outras artes ou com disciplinas não artísticas, organizado por 4 estruturas curriculares. 1) ajudar os alunos a compreender p.ex. um período histórico ou uma cultura; 2) a compreensão das diferenças entre as artes pois embora todas as artes se ocupem com a criação da forma expressiva usam meios diferentes; 3) a partir dum grande tema ou ideia explorá-lo com trabalho de diferentes áreas, dando como exemplo o conceito de metamorfose; 4) a prática da resolução de problemas desenhando o currículo à volta de um tema em que se integram várias disciplinas.

No seu novo livro Reimagining Schools, Eisner (2005) inverte de um modo muito interessante a questão tão discutida - para que serve o ensino artístico ou o que se aprende em artes - para uma outra: o que é que a educação tem a aprender com as artes. A tentativa de disciplinar as artes exigindo mais rigor tanto na avaliação como na pesquisa educativa é errónea na sua perspectiva, pois as artes não devem parecer-se com outros campos académicos, mas seria relevante que outros campos olhassem para as artes quando elas são bem ensinadas, pois "artistry" deveria ser em todos os campos o ideal regulativo, presidindo ao modo como pensamos os meios e os fins da educação.

No centro do currículo ou não, o que é importante é que as artes desempenhem nele o seu papel fundamental - desenvolver o pensamento qualitativo e a inteligência artística. Com a revolução cognitiva das artes, a teoria das inteligências múltiplas e investigações ligadas ao campo das artes (Gardner, Perkins, Hetland e o Project Zero da Universidade de Harvard) colocam-se novos problemas às escolas, não no sentido de uniformizar, mas apontando para a heterogeneidade de resultados a tal "idiossincrasia produtiva" que Eisner refere. Provocatória e desafiadora dum certo status quo enraízado, que negligencia o ensino das artes e que as vê como actividades não cognitivas, a teoria das inteligências múltiplas reforça o papel das artes no currículo, se a escola quiser ser o lugar de socialização e de integração. Se a mente humana tem diferentes capacidades cognitivas e cada pessoa tem um perfil diferente, a educação deve fornecer oportunidades de explorar e desenvolver todas essas capacidades. Como diz Eisner, citado em Fowler (2001, p 42): "School curricula would become equitable when they provide different strokes for different folks. Equity requires diversity. Sameness is not the same as equity".

Conteúdos e competências

J.B.Duarte:

A criatividade e a solução de problemas são termos fundamentais na epistemologia de Popper, como vimos. Face aos problemas criamos teorias e tentativas de solução delas decorrentes para os resolver. É aqui que encontramos a problemática da aprendizagem. A pedagogia tendeu no passado a ocupar-se de conceitos a aprender, com o professor ou com os manuais (nomes de países, acontecimentos históricos), e também de capacidades (saber ler, escrever, calcular) que podem situar-se a vários níveis de profundidade. Mas o reconhecimento do pendor verbalista e mecanista da escola tradicional fez sentir a necessidade de uma escola mais preocupada com a experiência sobre situações problemáticas, com o saber-fazer, com as competências, e até nos media tornaram-se recentemente mais exigentes as vozes daqueles que exigem que a escola desenvolva competências para o trabalho a realizar na sociedade. Tratase de uma problemática complexa que leva a ambiguidades e em que aparecem opiniões diversas.

Desde 2001 em Portugal o currículo do Ensino Básico propõe o desenvolvimento de "competências essenciais", gerais e específicas, em que os conteúdos sejam abordados "com base em situações e problemas" (p.17). Para o ensino secundário, o documento orientador da revisão curricular recomenda um equilíbrio entre a "aquisição de conhecimento" e "o desenvolvimento de competências vocacionais e a capacidade de pensar cientificamente os problemas" (2003, p.5). Mas há controvérsia na literatura pedagógica francesa e portuguesa sobre o conceito de competência. Crahay (2006) e Schneider-Gilot (2006) dizem que é uma noção demasiado simples, por não permitir aos professores a possibilidade de distinguir noções relativas a conhecimento, prática, atitudes, capacidades e esquemas operativos.

Esta controvérsia pode ser ultrapassada pela articulação de competências com as outras dimensões da aprendizagem, como conteúdos e capacidades, a partir de situações problemáticas ou pelo menos motivadoras da curiosidade. Digamos com Giordan (1998) que, para que resulte a transição para uma "sociedade aprendente", será prioridade a introdução dos alunos numa abertura pessoal aos saberes, num dispositivo de condições materiais e humanas para uma autoaprendizagem a prosseguir ao longo da vida.

A metodologia da aprendizagem por situações problemáticas visa precisamente o desenvolvimento da invenção e distingue-se da solução tradicional de problemas, ou seja, "problemas ou exercícios de aplicação que têm por objectivo accionar uma noção adquirida" (Fabre, 1999, p.86). O pensamento deste autor francês coincide com o do norte-americano Arends que faz depender a exploração das situações problemáticas, de "novas" tarefas do professor: "ajudar os alunos a aprender a formular questões e a procurar respostas e soluções para a sua curiosidade" (p.396). Por isso Fabre situa o uso da situação problemática entre a gestão pedagógica e a gestão didática (p.138).

M.C.Vasconcelos:

Face às caracteristicas da sociedade contemporânea a aprendizagem é cada vez mais estratégica em qualquer área de conhecimento, pondo-se cada vez mais ênfase nas estratégias para aprender a aprender e menos nos conteúdos.

O modelo português, construtivista como a maioria dos modelos europeus, coloca a literacia em artes como o grande objectivo programático nas suas 4 competências essenciais: apropriação das linguagens elementares das artes, desenvolvimento da capacidade de expressão e comunicação, desenvolvimento da criatividade e compreensão das artes no contexto, subdivididas por sua vez em inúmeras competências específicas. Possui este documento curricular mais recente, "Competências Essenciais" (ME 2001), uma inspiração do DBAE de Eisner e do Getty Center sem, no entanto, promover a divisão pelas disciplinas de estética, história, crítica da arte e produção de arte como o modelo inspirador refere. Resgata o interesse educativo da arte como experiência necessária para o desenvolvimento individual e social, referindo "a dinâmica propiciadora da capacidade de descoberta, da dimensão crítica e participativa e da procura da linguagem apropriada à interpretação estética e artística do mundo".

Do ponto de vista metodológico propõe-se a organização de projecto educativo em unidades de trabalho que valorizam processos e produtos em que se inserem, de forma sistemática, as competências e os conteúdos nelas implicados. Refere-se também que os temas a tratar devem ser relevantes, actuais e orientados para uma visão de escola aberta ao património artístico e natural e fala-se de cooperação, e participação em trabalhos colectivos. Este modelo curricular incorpora de certo modo a visão de Efland do currículo com a metáfora da cidade ou da rede, ou rizomático, para domínios mal estruturados como o das artes, ao contrário do currículo em espiral de Bruner para domínios bem estruturados. Significa a possibilidade de diferentes percursos a partir de diferentes pontos de partida ou de chegada que ao cruzarem-se fortalecem aprendizagens.

Por conseguinte, este programa está aberto a operacionalizações muito diversificadas, quer nas temáticas a definir pelos grupos disciplinares e seus professores quer na articulação de competências e conteúdos ao longo das experiências de aprendizagem, quer ainda nas actividades propostas para a sua consecução. Ir ao encontro dos interesses dos alunos, promover a conexão entre o contexto social real e a escola através da escolha de temas de relevância sociocultural, facilitar a integração de conhecimentos através da interdisciplinaridade, alargar o território da arte às produções culturais de hoje, fomentando o entendimento da cultura visual que nos rodeia e a compreensão do conceito de pluralidade estética numa sociedade multicultural, parecem caminhos promissores na educação artística da contemporaneidade.

A pedagogia crítica nas artes visuais

J.B.Duarte:

Dilmé e outros (1999) afirmam que os professores de artes visuais devem desenvolver "uma "serie de funções" (p.81): o domínio do gesto, a representação simbólica, as técnicas, as recriações, a observação e a memória visual. Poderíamos substituir funções por « competências » ou capacidades para mobilizar recursos, já que competência, nos termos mais completos de Boterf (cit. por Gerard & Roegiers, 2003, p.60) é:

un savoir agir, c'est-à-dire, un savoir intégrer, mobiliser et transférer un ensemble de ressources (connaissances, savoirs, aptitudes, raisonnements, etc.) dans un contexte donné pour faire face aux différents problèmes rencontrés ou pour réaliser une tâche.

Competência é assim a capacidade de mobilização de recursos (conhecimentos, aptidões) para novas situações. Quanto àquelas seis "funções", poderíamos ordená-las em dois grupos de competências, duas competências de base, comuns a todo o currículo:

- a observação,

- a memória visual.

E um segundo grupo de competências, parcialmente comuns a outras disciplinas, mas desenvolvidas de modo específico no ensino das artes:

- o domínio do gesto (a motricidade fina, a motricidade ampla)

- as técnicas (bidimensionais, como o desenho a pintura; tridimensionais, como a escultura, a modelagem, estruturas de diferentes materiais; as novas tecnologias)

- as recriações (reformulações a nível formal ou temático a partir de um modelo)

- a experimentação que os autores mencionam numa primeira lista, a partir da qual "é possível transgredir os limites, inventar novas formas" (p.81)

- a representação simbólica (descritiva, narrativa e expressiva, comum também a disciplinas de letras e outras),

- a reflexão sobre os processos (competência fundamental que não consta daquela lista).

Essa necessária competência de reflexão crítica aparece sob outros termos em diferentes autores como naqueles que se situam numa "didática da suspeita" (López-Bosch, M., 2005). Dois princípios são importantes segundo essa "didáctica de la sospecha" em termos castelhanos:

- saber analizar el grueso entramado de imágenes que nos rodean, especialmente las que nos llegan bajo la etiqueta de información (…);

- saber construir productos visuales que alertan a los demás sobre esta manipulación (…).

Acho interessante a proposta mas desnecessária tal designação, face às propostas da pedagogia crítica, no rasto de Freire, Lacan e outros, de uma procura de desenvolvimento da consciência crítica face aos discursos predominantes. Como escrevem Morrow e Torres (1997, p. 382):

os pedagogos críticos mostram que a cultura assente em "discursos múltiplos" (habitados por diferentes vozes) em sociedades multiculturais, multirraciais ou multilinguísticas, nunca é despolitizada (…) essa cultura é campo de luta, a linguagem, a cultura e educação deveriam incluir sempre a pluralidade dos valores, as vozes e as intenções dos sujeitos.

Em suma, a reflexão crítica é uma competência inalienável da escola, em conexão com todo o processo da aprendizagem. Nas palavras de Gardner (1990, 2008, p.49):

students learn effectively when they are engaged by reach and meaningful projects; when their artistic learning is anchored in artistic production; when there is an easy commerce among the various forms of knowing, including intuitive, craft, symbolic, and notational forms; and when students have ample opportunity to reflect on their progress.

A perspetiva do autor engloba por outros termos as várias dimensões acima mencionadas, acrescida da dimensão de projeto, em que as várias competências são postas à prova e também a de saber trabalhar em cooperação com outras pessoas. Viver e trabalhar em cooperação é uma aprendizagem essencial ao desenvolvimento pessoal de cada indivíduo e ao desenvolvimento de uma sociedade mais harmoniosa. Mas a capacidade crítica de cada homem e mulher face à sua própria vivência e à múltipla informação envolvente é a condição sine qua non ao progresso material e social da humanidade. Nesse processo, as artes visuais, em conexão com outras formas de conhecimento, têm uma função inalienável, na procura de futuros alternativos (como propõe Efland em epígrafe).

M.C.Vasconcelos:

O fato das artes serem domínios complexos e pouco estruturados no sentido
de Spiro e de Efland, referidos anteriormente, não implica abordar o seu ensino
de modo ambíguo, impreciso ou demagógico. Em termos genéricos:

Planificar y gestionar la Educación Artística supone estructurarla en un sentido relativamente objetivo, de modo que permita informar claramente de sus propósitos instructivos, prácticos y lúdicos; significa establecer, del modo más preciso posible, las conexiones y diferencias con las otras disciplinas en el contexto de la educación general y adecuarse a sus propósitos desde una perspectiva cultural amplia.(…) Supone establecer su conciencia epistemológica, su conocimiento base en el contexto del conocimiento general (Gisbert 2005, p. 25).

Mais uma vez socorro-me de Eisner (2002) que, depois de apresentar diversos modelos ou visões de ensino artístico refere que qualquer que seja o modelo ou paradigma usado, o ensino das artes deve focar o que é verdadeiramente distinto, característico e único nas artes. São cinco princípios que tento resumir aqui. 1) tornar visíveis aspectos do mundo como as suas qualidades expressivas, do modo único que as artes propõem; 2) acentuar o desenvolvimento da inteligência artística, pois a reflexão inteligente é uma condição fundamental para fazer arte; 3) ajudar os alunos a criar imagens visuais satisfatórias, ensinando a ver e responder às artes e outras formas visuais, aprendendo a experienciar os factores estéticos nas imagens e compreender a sua relação com a cultura de que são parte; 4) reconhecer o que é pessoal e distinto e mesmo único neles próprios e no seu trabalho – a criação duma visão pessoal; 5) desenvolver esforços especiais no sentido dos alunos adquirirem formas de experiência estética no seu quotidiano - um quadro de referência estético.

Considerando que a educação artística deve ser continuamente repensada e reinventada, há aspectos como compreensão, comunicação, resolução de problemas e pensamento crítico que são competências comuns às artes e outras disciplinas e com elas se devem articular. Defendo cada vez mais o ensino artístico no contexto de temáticas sociais com projetos educativos de arte e produções culturais, em que se definem situações, questões e problemas, focando a produção e apreciação de arte e que promovem a integração comunitária e identitária a par da subjectividade individual. Por exemplo, "Issues Based Approach" de Gaudelius e Speirs (2005) permite agir dentro do mundo que nos cerca e, ao mesmo tempo, olhar para dentro de nós próprios, quando os temas intersectam as nossas vidas. Para além disso, como recordam Gaudelius e Speirs (2005), muitos artistas contemporâneos lidam com temas sociais como conteúdo prioritário das suas obras e criam arte no sentido de promover mudanças sociais.

 

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