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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.17 Lisboa  2011

 

Os textos da tradição oral portuguesa no 3.º Ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário

 

Carlos Nogueira

Universidade Nova de Lisboa (FCSH & IELT)

 

Resumo

O estudo e a divulgação, em contexto escolar, dos textos da tradição oral portuguesa (e não só) pode contribuir decisivamente para a construção de um ambiente social e cultural mais pluralista, estimulante e democrático: quer porque promove um conhecimento organizado e esclarecido da língua portuguesa (desde logo na sempre actual questão da norma e dos desvios), quer porque favorece a liberdade de ser e pensar, o aprofundamento da educação para a cidadania e o desenvolvimento das capacidades cognitivas. Partimos destes pressupostos, reconhecidos por todos os agentes ligados à educação e notados em textos programáticos oficiais, mas propomos uma revisão. Através de uma nova abordagem científica, pedagógica e didáctica, é possível dar mais visibilidade a esses conteúdos já há muito presentes nos curricula dos ensinos básico e secundário, mas ainda não explorados devidamente nas suas virtualidades comunicacionais, literárias e culturais.

Palavras-chave: literatura oral e tradicional; língua portuguesa; educação; ética; estética; comunidade; cidadania.

 

Portuguese Oral Tradition in the Basic and Secondary Education: reflection, revision, proposals

Abstract The study and dissemination in school context of Portuguese oral and traditional literary texts, as it universally acknowledged, may contribute to the construction of a more pluralistic, democratic and stimulating social and cultural environment: it not only promotes liberty of being and thinking and an organized and informed knowledge of Portuguese but also deepens citizenship education and the implementation of new cognitive abilities. We assume such points of view but we also propose a revision. Through a new scientific, pedagogic and didactic approach, it is possible to give more visibility to these contents, already present in the curricula of primary and secondary schools, but not yet fully explored in their communicational, literary and cultural virtualities.

Keywords: oral and traditional literature; Portuguese; ethics; aesthetic; education; community; citizenship.

 

O que está em causa sempre que uma criança utiliza um texto da literatura oral não é uma mera “iniciação no mundo da arte” (Coelho, 1883, p. 16); um poema oral infantil, uma adivinha ou um provérbio fazem parte do mundo do literário, enquanto mundo de autonomia do estético e do belo, e permitem já a leitura e a redefinição dos condicionalismos do real; são lugares de criação, descoberta e exploração de identidades e intersubjectividades.

Por isso, sempre que o professor valoriza o património literário oral da comunidade e, muito em particular, os textos literários orais que um aluno ou os alunos usam, está a reconhecer os seus códigos linguísticos, sociais e culturais. Desse modo, investe na cultura de cada um e de todos, e faz da sala de aula e da escola espaços de acolhimento que contribuirão para a melhoria da qualidade de vida pessoal e social (do lazer ao trabalho, do exercício da cidadania ao exercício profissional). Unindo pessoas, esta literatura aproxima culturas e povos. Daí o ponto de vista da UNESCO, em carta de recomendação assinada em 1989 em Paris: a literatura oral, tradicional e popular é património universal da Humanidade.

Não é por acaso que as chamadas “dedicatórias” (com frequência quadras tradicionais ou de tipo tradicional) circulam intensamente entre os nossos alunos, que às vezes as usam nas capas dos seus cadernos diários. O sucesso da “dedicatória”, de que já recolhemos algumas centenas de exemplares, vem das características do cancioneiro popular e da lírica em geral: a concisão, a clareza discursiva, o ritmo, a métrica, a rima, a primazia dos motivos líricos e a consequente facilidade de memorização dos seus poemas. Se as quadras tradicionais sobrevivem com a função de dedicatória, muito adaptadas, com pequenas variações ou mesmo reproduzindo totalmente o texto tradicional, é porque correspondem a uma representação simbólica de sentimentos e de situações que fazem parte do tecido sociocultural e idiossincrásico dos seus utilizadores.

Uma “dedicatória” de amor, lida, declamada ou cantada, dá sentido a uma mensagem que cada intérprete-autor e cada receptor, ouvinte ou leitor, transforma em acto de conhecimento sobre si e sobre um objecto de desejo. Um texto como este é lugar de sublimação, razão e emoção em que cada um procura dizer a sua totalidade ou a sua fragmentação: “Tudo o que tenho na vida/ Cabe na minha mão/ O teu retrato cortado/ Em forma de coração” (Nogueira, 2009, p. 82). Na “dedicatória” também há graça, gracejo, humor e ironia com uma intencionalidade socializadora: “O amor é um deserto/ Que se deve atravessar;/ Tudo depende do camelo/ Que te vá acompanhar” (Nogueira, 2009, p. 92). E há a sátira, a que podemos chamar medicinal, que vem da necessidade de lidar com ressentimentos e libertar energias negativas: “Je t’aime em francês,/ I love you em inglês;/ Para te dizer a verdade,/ Detesto-te em português” (Nogueira, 2009, p. 84).

Também as lendas exigem hoje uma atenção renovada no processo de ensino-aprendizagem. Em primeiro lugar, porque dispomos de recursos teóricos e críticos cada vez mais actualizados, a que poderemos adequar processos de operacionalização tanto mais eficazes quanto mais conhecermos esses textos nas suas formas da expressão e nas suas formas do conteúdo; mas também porque há hoje uma especificidade cada vez mais enraizada na nossa cultura da globalização: a chamada lenda urbana, a que os mais jovens dedicam uma atenção muito particular, porque através dela são confrontados com a sua natureza enquanto pessoas, nas suas verdades por vezes mais recônditas e irracionais. Este género permite-lhes interagir com a alteridade às vezes mais estranha, mas nem por isso destituída de significado para um melhor conhecimento do mundo e do seu devir[1]. Tratar, na sala de aula, lendas urbanas xenófobas ou racistas pode ser muito importante para desenvolver atitudes de tolerância, aceitação e respeito pelo outro. O mesmo se deve dizer em relação a tipologias textuais como a anedota, a adivinha e o provérbio, que existem porque reajustaram a sua funcionalidade às condições sempre diferentes dos universos mental, social, religioso, político e cultural.

Também não podemos esquecer o diálogo intertextual que autores consagrados, inscrevendo-se numa tradição que nos chega dos cancioneiros trovadorescos, estabelecem com o esquema matricial de uma Língua e de uma Literatura que todos conhecemos e, não raro, usamos.

Fernando Pessoa, por exemplo, legou-nos, nas suas mais de quatrocentas quadras ao jeito popular, o conhecimento, a estetização e a transformação do mundo que só uma arte singular realiza, não através de formas a-sociais ou etéreas de arte elitista, mas da aparente singeleza ou puerilidade das construções inscritas nas tradições verbais portuguesas. Veja-se esta quadra popularizante do poeta dos heterónimos, em que o “eu” canta e simultaneamente comenta uma experiência de entrega amorosa partilhada com um “tu”: “Boca de romã perfeita/ quando a abres pra comer,/ que feitiço é que me espreita/ quando ris só de me ver?” (Pessoa, 2002, p. 102); ou esta, de Vitorino Nemésio, que nos diz como uma vida pode cumprir-se na palavra literária oral: “No Brasil há uma alimária/ chamada papa-formigas;/ eu como a vida em palavras,/ chamo-me o papa-cantigas” (Nemésio, 1989, p. 304).

Garantir a estes géneros e subgéneros da tradição literária oral e popular a merecida notoriedade dentro do nosso sistema educativo implica, primeiro, realizar uma revisão científica, à luz das mais modernas teorias e metodologias. Para isso, cada professor de língua portuguesa poderá adoptar a seguinte linha de trabalho:

1. Selecção de textos: recolha de campo (em escolas, junto de alunos) e recolha em livros (Almeida Garrett, Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos, Consiglieri Pedroso, Viale Moutinho, etc.).

2. Questões genéricas: circunstâncias da produção, transmissão e recepção (e da recepção, transmissão, produção); autoria / anonímia; tradicionalidade; oral / escrito; variantes e funções.

3. Formas e conteúdos: dos temas e motivos à poética dos géneros em versos e dos géneros em prosa e à estruturação / funcionamento da língua.

4. Relação culto / popular: do texto oral / popular / tradicional ao texto de autor (por exemplo: em escritores portugueses como Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ou Vitorino Nemésio, e brasileiros como Cecília Meireles ou Carlos Drummond de Andrade).

5. Construção de uma bibliografia actualizada e de uma referência a recursos disponíveis em páginas da Internet.

A reputação a que acima nos referíamos implica, numa segunda fase, o desenvolvimento de actividades e estratégias de operacionalização pedagógico-didáctica. É preciso articular as actividades já em curso no âmbito do currículo (ler / ouvir / falar / escrever) com actividades de intermediação que mobilizem as comunidades em torno das suas escolas; sem esta perspectiva, não é possível fomentar uma cultura de escolaridade alargada, de respeito e apreço pela instituição escolar.

Este caminho requer o desenvolvimento de projectos de parceria “escola/comunidade”, nos quais se proceda a uma prática dos textos orais, populares e tradicionais mais aptos a contribuir para a resolução das diferenças sociais, culturais e económicas. Isto exige que se considere como estratégia essencial de todo este processo a recolha de textos literários orais por parte dos alunos: quer os que eles apresentam como corpus interiorizado, quer os que circulam nos seus ambientes de socialização interpessoal, quer ainda os que atravessam todas as áreas sociais.

De facto, as especificidades literárias de transmissão oral / popular / tradicional surpreendem-nos hoje com hábeis dispositivos de adaptação a meios supostamente adversos à acomodação-recriação de textos ou microtextos da tradição oral. É sabido que os textos e os ambientes clássicos de circulação têm conhecido aceleradas e súbitas mutações que não se compadecem com o apagamento irreversível de uma determinada memória. Mas a literatura que se realiza no suporte fugaz e instável dos canais da oralidade (primária ou secundária) é sempre outra literatura, no movimento diacrónico como nas sincronias socioculturais.

A tradição, categoria virtual e dinâmica, nunca é o que era. Daí que, no caso da literatura oral, tradicional e/ou popular, assistamos à morte de géneros, textos ou de praticamente todo o sistema de várias espécies textuais; neste processo de selecção natural apenas se mantêm as composições que se adaptam a novos registos, formatos e sustentáculos: o livro, sobretudo o de recepção infantil e juvenil, a televisão, a rádio, o cinema, a internet, o CD, o CD-Rom, etc.

Examinemos alguns casos, para que se perceba bem a amplitude e a complexidade deste problema.

O texto literário oral que se mantém na memória e nos usos é, antes de mais, um texto persuasivo; se não o é, desaparece assim que nasce. Nos objectos publicitários, a forma tradicional obedece a uma brevidade poético-musical que garante a sua funcionalidade: seja nas vozes que ecoam desde o fundo cultural comunitário, seja nas vozes criadas originalmente para o registo mediático (visual-sonoro ou impresso), de onde podem libertar-se para viver na oralidade.

O slogan “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, criado por Fernando Pessoa para a coca-cola, nos inícios do século XX, ilustra bem esta tendência de renovação da oralidade literária; acontece o mesmo com o sugestivo “Há mar e mar, há ir e voltar”, de Alexandre O’Neill, que é hoje também uma forma breve já clássica.

A cultura popular é, em muitos aspectos, transversal a classes sociais e formas estéticas; pensemos em cantautores como José Afonso, Vitorino, Fausto, Isabel Silvestre ou Sérgio Godinho ou em grupos como os Gaiteiros de Lisboa, Diolinda ou Pé na Terra. Nas suas obras, os sentimentos, os valores e os símbolos ancestrais convivem com os novos valores de cidadania, com as novas ideologias e culturas; o intimismo, a sátira, o cómico, o feio, a religiosidade ou o belo (nas suas diversas formas) aparecem em função das mesmas concepções humanistas essenciais: a justiça, a honestidade, o riso como libertação humana, a luta por valores ético-morais. A ligação faz-se tanto ao nível das estruturas e das formas como ao nível dos conteúdos; os novos gostos ou tendências acolhem o gosto antigo naquilo que ele tem de expressivo e comunicativo. A clareza da linguagem e das ideias é uma das leis, mas nem por isso o texto surge destituído de ambiguidade e, logo, de poeticidade.

São também paradigmáticas as estilizações e execuções de romances tradicionais, de cantigas líricas ou narrativas[2] da responsabilidade de cantautores célebres como José Afonso, Vitorino ou Fausto, ou de grupos conceituados, profissionais ou amadores, como a Brigada Victor Jara, a Ronda dos Quatro Caminhos ou os Madredeus[3].

Essas interpretações modernas, para lá da importância do estilo linguístico, dependem muito de tudo o que torna a voz humana no mais prodigioso dos instrumentos humanos. O tom e o timbre, o sentido do ritmo e os impulsos sensoriais, em comunicação directa com a movimentação corporal, geram um universo que é corpo e poesia, arte e humanismo. Nos seus estudos sobre poesia oral, Paul Zumthor (1983) e Ruth Finnegan (1992) têm insistido num aspecto que é essencial para a construção de uma escola mais democrática e saudável: através da voz, o intérprete comunica ao seu corpo e ao dos ouvintes, por contágio rítmico-magnético, um valor expressivo que maximiza a poetização, a emocionalização e a percepção da mensagem. A oralidade mediatizada mecanicamente, isto é, diferida, adiada, prolongada, repetida no tempo e no espaço, interioriza a memória colectiva e ao mesmo tempo expressa-a, distende-a e espacializa-a.

É por isso que a voz, mais habitualmente do que a escrita, assume na poesia um discurso explícito de criação e participação, a que modernamente se junta a força da imagem estilizada; e é por isso que este é um recurso por excelência a convocar sem preconceitos nas nossas escolas. De resto, a grande poesia da nossa época é (continua a ser) cantada.

A mudança de forma é fundamental na literatura de transmissão oral, que hoje passa de puramente vocal e instrumental a oral mediatizada electronicamente (e a audiovisual). Isto implica que a imagem, já não a imagem estática mas a imagem em movimento, cumpre com o seu papel de mediação da mensagem entre a fonte (um conjunto de técnicos de publicidade de comunicação bem treinados) e os receptores.

Neste processo, a cultura oral popular liberta-se da conotação de infraliteratura que lhe está associada há demasiado tempo. Notemos apenas dois exemplos muito conhecidos: o anúncio televisivo do azeite Gallo, que recupera uma música tradicional[4], e o slogan radiofónico sobre um tarifário da rede telefónica móvel TMN, que assenta em dois versos de uma conhecida fórmula de selecção infantil: “Um dó li tá/ Cara de amendoá”.

Estes objectos literários folclóricos, cujo lugar é a memória de certas faixas sociais ou de todo um país, acabam assim por ser absorvidos e devolvidos à sociedade através de um canal que muitos ainda julgam ser incompatível com a palavra literária comunal. E nem se trata aqui de comunicação artificial suspensa entre a evolução e o conservadorismo; trata-se de uma purificação que conjuga elementos da cultura popular / oral / tradicional, da cultura de massas e da cultura erudita, numa prova notável de ligação a manifestações tradicionais que, afinal, não estão irremediavelmente perdidas.

É uma literatura, nas suas multiformes manifestações, pronta a renascer do silêncio que pesa sobre muitas das suas práticas e das suas formas; e é assim, antes de mais, porque estes textos são atravessados por uma profunda humanidade.

Sublinhemos, mais uma vez, o caso da dedicatória. Este género do cancioneiro infanto-juvenil recupera muitas quadras tradicionais, mas não é um simples memorial do cancioneiro popular português. Entre as crianças e os adolescentes em idade escolar, do 2.º Ciclo do Ensino Básico até ao final do Secundário, há inúmeros intérpretes-autores que entram em diálogo com a quadra tradicional; multiplicam-na em concretizações escritas, que se inscrevem na milenária tradição dos cancioneiros manuscritos, e criam novos textos a partir desse modelo.

Os recursos, as temáticas e os valores que no passado justificavam géneros e subgéneros literários, orais ou escritos, mantêm-se fundamentalmente os mesmos: a complexa relação homem / mulher, os enigmas do amor e da morte, o humor, a ironia, o riso, a linguagem lapidar e poética, para apelar aos sentidos e, numa osmose lapidar, combinar emoção com intelectualização, razão com emoção. Recordemos que os valores que regiam os heróis dos folhetos de cordel clássicos são praticamente os mesmos que entram nos filmes de aventuras de Hollywood: o bem e o mal, a riqueza e a pobreza.

Significa isto que o nosso projecto tem em vista um objectivo holístico: não se trata de mudar os elementos, já (bem) presentes na organização curricular, mas de optimizar a interacção entre eles.

Há, primeiro, que conhecer cientificamente estes textos nos seus múltiplos aspectos e na sua complexidade, para que todos os possamos respeitar. Importa admitir a sua exemplaridade artística e a sua profundidade enquanto signos de um labirinto vivencial: signos cuja energia mental e estética é parte de uma medicina e de uma memória da comunidade cujas propriedades terapêuticas e valências não devem ser menosprezadas. Incluímos neste grupo quer quem se encontra ligado às áreas do conhecimento que dela mais se podem valer, como profissionais da saúde, antropólogos, sociólogos, linguistas, músicos, historiadores de mentalidades, etc., quer todos os agentes do campo cultural (compreenda-se: os da esfera da disponibilização de recursos financeiros, nomeadamente políticos, entidades privadas e mecenas, e os de praticamente todos os universos artísticos).

E já nem se trata propriamente de reclamar a canonização de uma modalidade textual oral conotada apenas com as classes sociais ditas subalternas e marginalizadas; já vimos que estes géneros literários orais se acomodam hoje a um novo concerto de intervocalidades e intersubjectividades em que participam todos os estratos da sociedade. Trata-se, antes, de reivindicar a originalidade e a profundidade da cultura e literatura de transmissão oral na era da globalização. Isto só é possível com a participação de alunos e professores, desde que se entenda a verdadeira acepção da fórmula “intervenção comunitária”, dependente, em larga medida, da articulação entre as dimensões formais e não-formais do currículo, da cultura e da divulgação cultural.

Propomos, por isso, um agrupamento em categorias nas quais esses caminhos poderão adquirir sentido:

1. Actividades de animação cultural: artístico-literárias, patrimoniais e científicas.

2. Actividades de animação cultural: de integração (manifestações religiosas e festivas).

3. Actividades de animação político-social: comemorativas, cívicas.

4. Actividades de animação ecológica: ambientais (com textos sobre a natureza: alusivos à água, aos rios, aos mares, aos animais, etc.).

5. Actividades de animação tecnológica: do texto à imagem e ao som.

A tudo isto acresce a convicção de que importa publicar as conclusões a que chegarmos, de modo a que todos os interessados possam conhecer as novidades e os progressos atingidos, dentro do objectivo que todos perseguimos: a construção de cidadãos plenamente amadurecidos, civilizados, cultos e com aptidões e interesses diversificados.

Conviria que tal divulgação assumisse também a forma de um específico manual de didáctica da Língua e da Literatura Portuguesas; a realizar-se, a sua vertente científica não poderá desligar-se de uma integração efectiva no processo de ensino-aprendizagem, valorizando tanto as necessidades e especificidades dos educandos como os processos de que o professor deverá ser agente, para que se concretize a diversificação de aprendizagens que esta literatura permite.

Para que todos os interessados possam conhecer, usar e comentar o trabalho produzido, poder-se-á publicar uma parte considerável dessa produção em formato digital: numa plataforma específica, nas revistas digitais dedicadas ao ensino da língua portuguesa ou no sítio da Internet do Instituto Camões. Tornar-se-á assim possível verificar como é de excepção este campo literário e linguístico, que abre novas possibilidades de ensino-aprendizagem dentro das unidades didácticas das diversas áreas curriculares.

Exemplifiquemos com o caso da adivinha, que, na sua impressionante condensação, é pluridimensional e desencadeia no sujeito intercâmbios entre a indagação subjectiva e a sistematização objectiva, entre a desordem dos dados da experiência e o seu reagrupamento em conceitos organizados. Ao, nas composições que mais engenhosas e evoluídas, articular narração com descrição, a adivinha interage com a tendência da criança e do jovem para dar mundos ao real empírico; nela, substitui-se o existente pelo real sublime da fantasia e do maravilhoso.

No ápice de admiração e arrebatamento que coincide com a compreensão do texto, após a descoberta ou revelação da resposta, o literário torna sensível e elevado o invisível. Ninguém fica insensível a composições como estas, que unem os universos da natureza e da cultura, da inteligência e da sensibilidade: “Branco foi meu nascimento,/ Mas sou preta de geração,/ Delicada que sou de cinta/ E vivo na escuridão” (formiga); “Sou verde de nação,/ Coroaram-me em pequenina;/ Do coração me tiraram/ Quantas pedras finas eu tinha” (romã); “Altos palácios,/ Lindas janelas,/ Abre-se e fecha-se,/ Ninguém mora nelas” (olhos); “Verde foi meu nascimento/ E de luto me vesti;/ Para dar a luz ao mundo/ Mil tormentos padeci” (azeitona). Razão e deslumbramento conjugam-se num tipo de pensamento que descobre a outra plenitude das coisas.

Se, na sala de aula, tomarmos a adivinha como motivação para o comentário de um texto ou para a explicação de um conteúdo gramatical, ou se dela partirmos para questões de poética, a solução poderá reservar-se para o fim, como corolário do interesse e do assombro despertados nos alunos. A monumentalização da língua, assim concretizada em cada sujeito falante que com ela institui uma relação integral de conhecimento e prazer mental e físico, é também a monumentalização do espaço humano da língua.

Há ainda muito a aprender e a descobrir tanto no que diz respeito à antropologia e à estética das formas literárias orais como no que tem a ver com a sua didáctica. Este é um universo de surpreendentes agonias, resistências e metamorfoses, mas regista-se cada vez mais uma certeza que a verificação empírica da prática lectiva das literaturas orais, marginais ou marginalizadas, nos distintos níveis de formação, confirma: o entusiasmo dos docentes que ensinam os textos, os co-textos e os contextos, e a adesão apaixonada e activa dos alunos; o que contrasta com a tão falada crise do livro e da leitura, que o mesmo é dizer crise no ensino da Literatura (institucionalizada).

Através de métodos e suportes progressivamente mais sofisticados, estes produtos artísticos verbais, que com dificuldade têm adquirido estatuto literário, em Portugal e não só, conquistam actualmente terreno, no processo de ensino-aprendizagem, às formas literárias que os mecanismos de validação institucional procuram introduzir no tecido social.

A adesão dos alunos viabiliza, no professor, o desenvolvimento e a construção de procedimentos e materiais a implementar em ambiente de aula; e o entusiasmo do professor também se reflecte no aprofundamento da participação crítica da maioria dos alunos; e na sua compreensão da diferença social, etária, étnica, sexual e cultural, num tempo que privilegia o saber-fazer especializado e as novas tecnologias em detrimento dos afectos. Temos aqui motivos suficientes para uma reflexão séria sobre a legitimidade do ensino da Língua e da Literatura, as metodologias, os materiais de apoio e os textos a privilegiar. Neste processo, pode também verificar-se a optimização de uma prática que é própria da actividade docente: a docência enquanto campo de investigação permanente.

 

Referências bibliográficas

Coelho, F. A. (1883). Jogos e rimas infantis. Porto: Magalhães e Moniz Editores Biblioteca d’Educação Nacional.         [ Links ]

Finnegan, R. (1992). Oral poetry - Its nature, significance and social context. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press.         [ Links ]

Madredeus (1995). Ainda. Lisboa: EMI – Valentim de Carvalho.         [ Links ]

Marques, J. J. D. (2008). Leyendas vivas en Portugal: El robo de órganos en las tiendas de los chinos. In G. F. Juárez & J. M. Pedrosa (Org.). Antropologías del miedo. Vampiros, sacamantecas, enterrados vivos y otras pesadillas de la razón (pp. 259-296). Madrid: Calambur.         [ Links ]

Nemésio, V. (1989). Obras completas: vol. I – poesia. Pref., org. e fixação de texto de F. F. Morna. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.         [ Links ]

Nogueira, C. (2009). O essencial sobre o cancioneiro infantil e juvenil de transmissão oral. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.         [ Links ]

Pessoa, F. (2002). Quadras. Edição de L. Freire. Lisboa: Assírio & Alvim.         [ Links ]

Vasconcelos, J. L. de (1960). Romanceiro português. Vol. II. Coimbra: Por Ordem da Universidade.         [ Links ]

Zumthor, P. (1983). Introduction à la poésie orale. Paris: Éditions du Seuil.         [ Links ]

 

Notas

1 José Joaquim Dias Marques, que desde 2002 estuda lendas urbanas, trata este género da tradição oral moderna sem qualquer tipo de preconceito: “Muy al contrario de otros géneros de la literatura oral hoy agonizantes, las leyendas vivas tienen, para mí, el supremo atractivo de poder ser escuchadas entre amigos, encontradas un día sí y otro no colándose en mi ordenador a través del correo electrónico, leídas en los periódicos bajo el disfraz de posibles acontecimientos” (Marques, 2008, pp. 260-261). No artigo que estamos a citar, o autor aborda uma lenda muito divulgada em Portugal e noutros países, recorrendo a vários informantes, comentários e artigos publicados sobre o assunto em jornais e na Internet. A conclusão de Dias Marques sugere bem todo o potencial pedagógico da lenda urbana: “la leyenda de El robo de órganos en la tienda de los chinos, que circuló y circula por Portugal (1), nos es exclusiva de este país; es fruto de un proceso de formación en que tomaron parte por lo menos dos leyendas anteriores; (3) no es verdaderamente una leyenda autónoma; (4) su aparición y difusión constituyen una reacción de una parte de la sociedad al reciente fenómeno de las tiendas de chinos, y, a fin de cuentas, (5) es producto del miedo a la diferencia, que parece tan unido a la especie humana” (Marques, 2008, p. 295).

2 Veja-se esta versão da cantiga narrativa “A Pastorinha”, recolhida em São Tomé de Covelas, concelho de Baião, em 1902:

Um pai tinha uma filha que andava co gado no monte; ela já era grandinha, o pai queria trazê-la para casa, e ela não queria. Depois, o irmão, que chegara do Brasil, perguntou-le pela irmã, e o pai disse-le que ela não queria vir, e o irmão disse que a traria. E então se passou o seguinte:

- Deus te salve, Rosa, clara tão formosa!

Linda pastorinha, que fazes aqui?

- Por esta montanha a guardar meu gado;

Já nasci, senhor, para este fado.

- Por estas montanhas também corre perigo;

Queira a pastorinha, quer ir comigo?

- Palavras mal dadas dum homem honrado;

Como hei-d’ir consigo e deixá-lo meu gado?

- Você é ingrata, tão impertinente;

Não falo consigo como a outra gente.

- S’eu sou ingrata, passe muito bem;

Qu’eu sou ingrata.... assim me convém.

- S’assim le convém, com bem se vá embora,

Vá guardar o gado pela serra fora.

- Pola serra fora isso vou fazendo;

Qu’o amor é tanto, já me vou rendendo.

- Vamos pera a sombra qu’aqui faz calor,

E lá experimentaremos o nosso amor.

- Pastorinhos do monte, guardai o meu gado!

Foge a pastorinha co seu namorado!

- É tão namorado, não me digo nada!

Qu’a aposta que eu fiz levo-a ganhada.

E levou-a para casa.

(Vasconcelos, 1960, pp. 385-386).

3 Por exemplo: “Quando uma guitarra trina/ Nas mãos de um bom tocador/ A própria guitarra ensina/ A cantar seja quem for// Eu quero que o meu caixão/ Tenha uma forma bizarra/ A forma de um coração/ A forma de uma guitarra// Guitarra, guitarra querida/ Eu venho chorar contigo/ Sinto mais suave a vida/ Quando tu choras comigo” (Madredeus, 1995).

4 Obedecendo ao princípio da simplificação, o anúncio passou a inclui apenas, em fundo suave, a parte instrumental. Este procedimento não trouxe a diluição do texto oral tradicional subjacente (“Ó rama, ó que linda rama,/ ó rama da oliveira,/ o meu par é o mais lindo/ que anda ali na roda inteira.// Que anda ali na roda inteira,/ ali, em qualquer lugar,/ ó rama, ó que linda rama,/ ó rama do olival”), uma vez que todos os portugueses reconhecem imediatamente a música que lhe corresponde.