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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.17 Lisboa  2011

 

Democracia, Direitos Humanos e Educação. Para uma perspectiva crítica de educação para os direitos humanos

 

Carlos V. Estêvão

Instituto de Educação e Psicologia - Universidade do Minho, cestevao@iep.uminho.pt

 

Resumo

Após uma breve análise dos direitos humanos segundo algumas teorias de Estado, apresentam-se três concepções de democracia: a deliberativa, a comunicativa e a democracia como direitos humanos. A partir deste enquadramento, e depois de reflectir sobre o lugar da justiça e dos direitos na educação, o autor aborda a perspectiva crítica da educação para os direitos humanos e as suas implicações em termos de concepções de escola, de cultura escolar, de currículo e de aprendizagem, favorecedoras de uma democracia mais densa e comprometida com a emancipação e os direitos humanos.

Palavras-chave:democracia, direitos humanos, justiça, educação para os direitos humanos

 

Democracy, Human Rights and Education. Towards a critical perspective of human rights education

Abstract

After a brief review of human rights theoretical perspectives according to the prevailing conceptions of state, the author presents three understandings of democracy: deliberative democracy, communicative democracy and democracy as human rights. From this framework, and taking into account the place of justice and rights in education, the author addresses a critical perspective of human rights education and its implications for conceptions of school, school culture, curriculum, learning, committed to emancipatory democracy.

Keywords: Democracy; human rights; justice; human rights education

 

Direitos humanos e concepções de Estado

Os direitos têm sido pensados quase sempre em articulação com os Estados, como se fossem direitos estatais ou deles decorressem naturalmente. Todavia, a relação do Estado com os direitos humanos é mais complexa, feita de protecções, de apoios, mas também de traições, de infidelidades, de exclusões.

Na verdade, se é um facto que a ideia de direitos humanos recebeu a sua expressão madura e ficou profundamente devedora da teoria do contrato social liberal, reflectindo a história dos direitos humanos a evolução do Estado moderno, tal não impede de afirmar que o Estado se tornou por vezes um predador dos direitos. Aliás, alguns teóricos consideram mesmo que os direitos são primariamente protecções contra o Estado, como resposta à centralização política do poder e à crescente penetração do mercado que perturbaram a vida social no século XVII.

Contudo, no período liberal, a concepção dominante do poder regulador do Estado é predominantemente negativa, limitada à defesa e protecção, assumindo na sua forma os contornos de laissez-faire e os constrangimentos do contrato social baseado numa teoria minimalista de direitos, em que predominava a liberdade individual e os direitos à vida, à liberdade e à propriedade.

A questão do bem-estar era uma questão eminentemente particular ou a cargo de associações voluntárias e de assistência local e os direitos decorriam da própria natureza humana, sobressaindo as capacidades individuais e os direitos naturais. Estes eram sobretudo triunfos dos indivíduos sobre o Estado, devendo este proteger a autonomia individual, entendida como a livre determinação de cada um para adoptar qualquer concepção de bem e de vida boa, sem coerção externa.

Por outro lado, e na mesma época, por influência da teoria positivista, só os Estados, segundo Cumper (2003: 23), eram verdadeiramente, pelo seu estatuto legal, os “sujeitos” da lei internacional; ou seja, apenas os Estados tinham direitos na arena internacional, detendo os cidadãos o estatuto de “objectos” dessa mesma lei, sendo-lhes negado, por isso, “qualquer reconhecimento legal internacional dos seus direitos”. O estatuto de cidadania estava assim totalmente regulado pelo Estado, detendo, portanto, um cunho claramente nacionalista.

Com o Estado social e os seus modos de regulação mais intervencionistas, o princípio da igualdade ganhou nova centralidade contribuindo para minimizar diferenças entre classes. Para tal, as relações entre o Estado e os indivíduos ou grupos deviam fundar-se no contrato social baseado numa teoria mais alargada dos direitos e no intervencionismo estatal para fornecer serviços sociais. Por outro lado, o Estado social partia de pressupostos universalistas, aplicando aos indivíduos princípios como os de igualdade, direitos e justiça, tratando as suas necessidades como comensuráveis e fornecendo bens sociais caracterizados pela sua universalidade e mesmidade.

Na actual conjuntura do Estado neoliberal, do “novo espírito do capitalismo” (Boltanski & Chiapello, 1999), os direitos humanos confrontam-se com sérios desafios que resultam de novas concepções do papel do Estado e do mercado, com implicações a vários níveis, desde logo no modo como os sujeitos são valorizados, como a cidadania se constrói, como o trabalho se redefine, como os efeitos da mudança social são assumidos. Por sua vez, os direitos tendem a ser obedientes aos desígnios de mercado, prevalecendo agora os desejos e a vontade individuais; ou seja, os direitos individuais passam a ter prioridade absoluta como questão da justiça.

Do exposto, poderia sintetizar as diversas orientações e tendências em duas abordagens que claramente influenciam as concepções e práticas de experienciação dos direitos humanos: a mercantil e a igualitária.

Segundo a perspectiva mercantilista, a justiça e os direitos que interessam são sobretudo os de pendor individualista e de conservação da ordem social vigente. Na verdade, para esta corrente, o mercado é fundamentalmente amoral, devendo o Estado minimizar-se como defensor dos direitos e fortalecer-se na defesa das leis do mercado.

De uma forma crua, o mercado deve apresentar-se como uma instituição social que visa a eficiência económica, não fazendo parte dos seus intentos e preocupações a equidade social ou o gozo dos direitos humanos por todos. O processo distributivo do mercado deve reflectir antes, segundo Donnelly (2003: 201), “o valor acrescentado económico, que varia sistematicamente através dos grupos sociais (bem como entre os indivíduos)”. Saber se a sua eficiência penaliza a maioria da sociedade pouco interessa; o que verdadeiramente conta é que a eficiência potencia a melhoria de alguns ainda que à custa da privação dos outros. Aqui, os direitos humanos são entendidos sobretudo como direitos do proprietário, direitos que são pensados a partir do mercado e, neste aspecto, são direitos que se estendem não apenas às pessoas individuais mas também às pessoas jurídicas colectivas, sobretudo privadas.

Neste enquadramento, o Estado deve remeter-se a mero regulador e avaliador, qual Estado oco, devendo transformar-se num Estado fraco tendo em conta a capacidade de respeitar os direitos embora permanecendo forte na regulação (ou re-regulação) e apoio ao mercado. O Estado deve sobretudo reforçar a substância ideológica do individualismo ao mesmo tempo que deve apoiar a visão “libertária” dos direitos (ver Pogge, 2005) integrados num contexto de liberdade de mercado. Esta visão (libertária) dos direitos reforça a visão minimalista dos direitos, tendo presente a existência de um nível central mínimo a partir do qual cada um pode escolher o seu pacote de “direitos cidadãos”. O cidadão é agora um consumidor de bens e os seus direitos confundem-se com os direitos de consumidor e não de cidadão.

Não obstante estas justificações, a crítica mais funda a esta abordagem vem daqueles que consideram que o capitalismo é intrinsecamente subversivo do respeito pelos direitos humanos. Como um conjunto de relações estruturais e uma fonte de motivações, o capitalismo requer que os indivíduos sejam tratados diferentemente, dependendo como eles estão posicionados na relação do capital e do trabalho. Consequentemente, falar, neste contexto, em bem-estar só terá sentido se falarmos do bem-estar do capital mais do que das pessoas (Falk, 1999: 191).

Uma outra atitude em oposição à mercantil, embora acusada de menos realista no contexto actual, pode ser caracterizada como “igualitária”, que apresenta uma forte correlação com as funções do Estado social. Esta perspectiva defende claramente que são os direitos humanos que civilizam a democracia e é o Estado de bem-estar social que civiliza os mercados. Se os direitos civis e políticos mantêm a democracia dentro dos limites convenientes, são os direitos económicos e sociais que estabelecem os limites adequados dos mercados.

Nesta abordagem, o Estado assume claramente uma atitude interventora do ponto de vista da defesa e promoção dos direitos humanos e da justiça. Foca-se o compromisso positivo para a concessão de direitos civis de igual valor a cada um e para a manutenção de níveis mínimos decorosos para todos, dentro de um contexto geral de crescimento e de desenvolvimento. Agora, a visão dominante é a de que todas as vidas são igualmente valiosas, embora, em certos casos, o Estado social acabe por assumir um pendor claramente corporativista ou conservador, protegendo bem os que estão integrados e mal os restantes, ou seja, os outsiders.

Por outro lado, a abordagem igualitária tenta desconstruir os mecanismos sedutores da racionalidade mercantil, negando que a economia de mercado tout court exista, independentemente, portanto, de uma variedade de economias, em contextos e condições institucionais diferentes onde o Estado tem uma acção não desprezível. A actual concepção de mercado já não é a de mero mecanismo de alocação de recursos, mas é também uma instituição social inscrita num marco legal e moral, que deve ter presente a superioridade dos níveis de consciência social alcançado pela Humanidade ou por certas sociedades acerca do que é justo.

Esta perspectiva igualitária articula-se intimamente não apenas com a igualdade formal de direitos (igualdade fundamental dos cidadãos), mas requer também o combate às desigualdades sociais produzidas pela economia e a liberdade de cada um; requer, além disso, nas palavras de Sen (2003: 20), “a eliminação das principais fontes de restrições: da pobreza como da tirania, da míngua de oportunidades económicas como da sistemática privação social, da incúria dos serviços públicos como da intolerância e prepotência dos estados repressivos”; por outras palavras, exige o direito ao desenvolvimento, que engloba quer o empowerment de homens e mulheres, ou seja, o aumento das suas capacidades e escolhas, quer a cooperação, a equidade, quer, finalmente, a sustentabilidade e a segurança.

A questão do desenvolvimento dentro da perspectiva mais igualitária não pode, por conseguinte, ser interpretada como mero crescimento económico, mas deve referir-se antes “à promoção da vida que construímos e às liberdades de que usufruímos” (Sen, 2003: 30); ou então compreender-se como um processo de expansão das liberdades reais das pessoas, independentemente do seu contributo para outras realizações do desenvolvimento, como sejam, o crescimento do produto interno bruto ou a promoção da industrialização. Ora, ainda segundo este autor, “a emergência e a consolidação dos direitos civis e políticos são constitutivos do processo de desenvolvimento” (idem: 294; itálico do autor) e o papel do crescimento económico é apenas um elemento que deve ser incluído na compreensão mais fundamental do processo de desenvolvimento como alargamento da potencialidade humana de viver uma vida mais digna de ser vivida e mais livre.

Democracia deliberativa e direitos humanos

Os direitos humanos constituem uma parte intrínseca da democracia, desde logo, como afirma Beetham (2003: 93), porque a garantia das liberdades básicas é uma condição necessária para a voz das pessoas ser efectiva nas questões públicas e para o controlo popular sobre o governos ficar assegurado.

No entanto a relação entre direitos e democracia não é simples: a democracia pode violar os direitos e a protecção dos direitos pode exigir limitações à democracia. E talvez a regra mais fundamental da gramática política seja, no comentários de Hoffe (2001: 415), “quem possui suficiente poder para impor a justiça, também tem poder suficiente para recusá-la”, pelo que, acrescenta, “a democracia não é nem uma condição necessária, nem suficiente para a introdução e a protecção dos direitos humanos”.

Na síntese de Beetham (1999: 114), os direitos civis e políticos são uma “parte integrante” da democracia, ao passo que os direitos sociais e económicos podem ser descritos numa relação de “mútua dependência” com a democracia. Finalmente, os direitos culturais, no contexto de sociedades multiculturais, exige uma “concepção reavaliada” de democracia e dos seus procedimentos para realizar mais eficazmente a igualdade de cidadania, não pensando, por exemplo, os cidadãos como meros receptáculos indiferenciados de direitos, ou a identidade nacional como monopolística e singular. Do mesmo modo, Falk (1995: 48) considera, a este propósito, que a democratização é “quer uma pré-condição vital quer um ingrediente crucial de protecção dos direitos humanos”.

Independentemente dos nossos juízos avaliativos das relações entre democracia e direitos humanos, não deixa de ser elucidativo o facto, referido por Bobbio (1992), de uma das duas vias principais para se conseguir apresentar os fundamentos teóricos da democracia moderna é precisamente (para além da filosofia utilitarista) a doutrina dos Direitos do Homem. Isto significa que a democracia moderna é inconcebível sem referência aos direitos e à justiça, ainda que estes privilegiem, dentro de uma concepção individualista e atomista da sociedade, sobretudo a ideia de protecção quer da propriedade quer do próprio ser dos indivíduos. Ou seja, a democracia moderna emerge intimamente conectada com os direitos individuais, avultando aí a noção de liberdade (entendida como “licitude” e como autonomia) e o direito à felicidade, pois na visão individualista ser justo corresponde a ser tratado de modo a poder satisfazer as suas necessidades e alcançar os seus próprios fins.

Não obstante das múltiplas formas que a democracia possa assumir e as relações complexas que possam ser estabelecidas entre ela e as diferentes classificações de direitos, considero que, pelas suas implicações profundas para a temática em análise, merece uma maior atenção a proposta de Bobbio (2000: 386) ao entender a democracia como “poder em público”, que pressupõe não apenas o combate a todas as formas de poder invisível, mas também a sua compreensão como uma forma superior de dialogação social que diz respeito a todos (bem comum) e que se decide entre todos na base da igualdade política.

Então, quanto mais o processo democrático potenciar a exposição e debate públicos (ou seja, a “publicização”), tanto mais a “democratização da democracia” se sentirá; inversamente, quanto mais se perder o acesso ao público mais se residualizará a democracia, uma vez que tal pode equivaler à perda do acesso à igualdade e, portanto, à cidadania.

Neste sentido, a democracia é colocada no interior do paradigma do diálogo, pelo que se torna relevante aprofundar o modelo da “democracia deliberativa” na linha de Habermas (1999), que se reporta às pretensões que estão implicadas na comunicação humana e que se manifestam historicamente nas sociedades modernas racionalizadas. Ou seja, na discussão sempre se pressupõem normas implícitas de verdade proposicional, correcção normativa e veracidade.

Nesta concepção dialógica da política, a democracia radica num ideal intuitivo de uma associação democrática cuja justificação assenta em argumentos públicos e racionais entre cidadãos iguais. Ou seja, quer as instituições quer as decisões só serão legítimas quando receberem a concordância dos implicados num procedimento democrático, em circunstâncias de participação livre e igual. E a política só será verdadeiramente democrática se implicar a deliberação pública acerca do bem comum, requerendo, por isso, a igualdade manifesta entre cidadãos. Trata-se, então, de uma democracia como processo que cria um público, que discute o bem comum em vez de promover o bem privado, e cuja legitimidade deriva de todos os possíveis afectados pelas suas regulações a aceitarem como participantes racionais.

É o debate público, a situação ideal do discurso, que permite verificar se o resultado pode ser aceite como justo ou não pelos cidadãos. E aqui a lei, mais do que ser um modo de regular a competição (como é no liberalismo) ou uma expressão da solidariedade social (como acontece no republicanismo), constitui-se num meio de obter a institucionalização das condições da comunicação deliberativa, pois só sob estas condições de comunicação é que emerge a produção legítima do direito, cabendo então aos direitos humanos, que possibilitam o exercício da soberania popular, um papel fundamental na satisfação da “exigência de institucionalização jurídica de uma prática cidadã do uso público das liberdades” (idem: 254).

Para Habermas (1999: 348) torna-se fundamental que as próprias comunicações políticas sejam filtradas deliberativamente, reconhecendo-se embora que elas dependem também dos recursos do mundo da vida, ou seja, “de uma cultura política livre e de uma socialização política de tipo ilustrado e, sobretudo, das iniciativas das associações conformadoras da opinião”, que se constituem e regeneram espontaneamente.

Depois, e na medida em que a democracia deliberativa deve apenas propor princípios e procedimentos que garantam a fundação das normas, das convenções e das instituições na razão, o esforço de formação deve ir no sentido de procedimentalizar ou de “fluidificar comunicacionalmente” a soberania popular e de conceber o exercício do poder comunicacional (ancorado no mundo da vida e livre de dominação) segundo o modelo da ética da discussão.

Reforçando esta linha, embora com nuances próprias, Miller (2000) também considera que a democracia deliberativa tem a ver com as decisões que serão obtidas pela discussão aberta entre participantes, com pessoas que devem estar atentas às perspectivas e interesses dos outros e que modificam concordantemente as suas próprias opiniões. Neste sentido, o resultado final reflecte não apenas os interesses ou opiniões maioritárias dos participantes, mas também o julgamento que eles fazem depois de reflectirem nos argumentos vindos de todos os lados e os procedimentos ou princípios que devem ser mobilizados para resolver os desacordos.

Todavia, neste tipo de democracia as decisões finais podem não ser globalmente consensuais, podendo representar antes “um balanço justo entre diferentes visões expressas no decurso da discussão”, mas que são consideradas, mesmo para os que prefeririam outro resultado, como decisões legítimas. Esta legitimidade, porém, tem a ver não com um procedimento de descoberta na procura de um melhor resposta mas com o facto de o resultado ser visto como reflectindo a discussão que a procedeu (idem: 11).

Este autor considera ainda que os procedimentos deliberativos não são neutrais do ponto de vista de classe, da etnia, do género, etc. e que os grupos serão mais bem servidos por outras formas de comunicação política (“felicitações”, “retórica” e “contar histórias”). Acrescenta, para finalizar, que a democracia deliberativa deve cumprir três condições: ser inclusiva, ser racional, e ser legítima, uma vez que todo o participante pode compreender as razões e o modo como o resultado foi obtido, ainda se ele não ficou pessoalmente convencido pelos argumentos expostos.

Independentemente de outras leituras, é justo frisar que esta abordagem pretende ultrapassar o formalismo da democracia liberal e que foi desenhada para justificar políticas e valores não opressivos, para combater modelos de democracia baseados nos interesses e na visão privatizada do processo político. Pretende-se que a democracia seja agora um processo que crie um público que se oriente pela discussão em redor do bem comum, que mobilize a autenticidade nos procedimentos discursivos, que transforme as preferências de acordo com fins públicos e racionalmente argumentados, em diálogo aberto e livre de dominação.

No caso dos direitos humanos, estes também ganham uma relevância maior num contexto de democracia deliberativa. Com efeito, se esta tende a criar uma cidadania educada e comprometida com as políticas consensualmente construídas, então, em princípio, conduzirá a uma sociedade mais forte e protectora dos direitos humanos. Na verdade, o método do diálogo deliberativo e a tomada de decisões maioritária têm uma tendência maior para soluções imparciais do que qualquer outro método utilizado para alcançar decisões que afectam um grupo. Isto exige, pois, cidadãos soberanos, iguais e livres, em que a única limitação na constituição da democracia tem a ver com a preservação da deliberação pública racional ou “razoabilizada”, tendente a um “acordo justificável”.

Concluindo, esta abordagem tem o mérito de reforçar a ética da justiça e dos direitos, uma vez que destaca a questão da legitimação e a construção do consenso (é o objectivo da deliberação) sobre bens comuns, embora este nem sempre possa ser obtido; mas o que a democracia deliberativa de facto exige é que as partes oponentes ofereçam e estejam abertas a razões e se respeitem mutuamente, ou seja, que mobilizem o seu poder comunicativo. Além disso, é possível aproveitar os efeitos transformadores da discussão para aprofundar a nossa compreensão das escolhas políticas e para reconhecermos a legitimidade das reivindicações de outros povos.

Também no caso concreto dos direitos do homem (que aqui nos interessa particularmente discutir), o seu reconhecimento e expressão (em forma de Declarações, por exemplo) necessitam, dentro da lógica desta abordagem, de uma comunidade de justificação, de um espaço público de discussão e justificação.

Democracia comunicativa e direitos humanos

Não obstante aceitarem muitos destes pressupostos, outros autores criticam a concepção de democracia deliberativa porque frequentemente esta confina a deliberação efectiva aos fóruns legais em que os representantes das culturas e etnias dominantes continuam a estar sobre-representados. É que embora as formas deliberativas devam expressar a razão universal pura, as normas de deliberação não são, de facto, culturalmente neutras e universais, para além de tenderem a privilegiar os bem educados, os que dominam o discurso formal, os desapaixonados, os que detêm a capacidade de deliberação reflexiva sobre o que é bom para a sociedade.

Daí que os apelos à construção de um bem comum e à unidade da discussão democrática podem simplesmente revelar-se como mais um mecanismo de exclusão, privilegiando os grupos com mais regalias simbólicas e materiais, acabando deste modo a definição de bem comum por ser dominada também por esses mesmos grupos.

Outros afirmam que não é suficiente criar simplesmente as condições para um fórum no qual todas as pessoas presentes tenham o direito de participar. Numa sociedade estruturada pelo poder, as diferenças não estão todas situadas ao mesmo nível e daí, então, a necessidade uma maior vigilância sobre as regras tácitas de comunicação em acção num contexto específico, que impedem certas áreas de discussão ou modos de se exprimir.

Depois, a esfera pública tradicionalmente concebida tende a apresentar-se como um locus de obtenção de acordos harmoniosos, não incluindo, por conseguinte, “contra-públicos subalternos” (como os movimentos sociais de oposição) ou não reconhecendo que as normas de deliberação envolvidas nas esferas da discussão pública são culturalmente específicas. Outros, ainda, criticam esta concepção porque o dissenso sobre o que são bens comuns, embora irresolúvel, é essencial às políticas democráticas (a deliberação é também competição). Além disso, pode haver a tentação de, em nome da discussão razoável dirigida para o acordo, se protegerem determinados discursos, em detrimento de outros de difícil regulamentação. Finalmente, pode haver uma menor atenção aos aspectos da diferença assim como aos do desejo e da justiça afectiva, uma vez que a atenção é dada predominantemente ao discurso “formal e geral”, ao discurso desapaixonado.

Perante estas debilidades da democracia deliberativa, Young (1997), por exemplo, prefere falar de uma outra concepção de democracia, a “comunicativa”, que recolhe muito da anterior mas que a completa noutros sentidos. Esta concepção apresenta como modos alternativos de comunicação política: i) o agradecimento (greeting), que se refere aos modos formais e informais em que os participantes numa discussão política se reconhecem uns aos outros, antes e durante a discussão; tem, pois a ver com rituais que dão uma atmosfera simpática e de confiança, que podem revelar-se importantes desde logo quando a comunidade política se está alargando para incluir novos membros; ii) a retórica (rhetoric), relacionada com o discurso e a argumentação que promovem a identificação do falante com uma audiência particular e que evocam valores e símbolos culturais que estão em sintonia com os da audiência e a motivam; iii) contar histórias (storytelling), ou seja, a utilização do discurso para apresentar uma narrativa pessoal, como um modo de explicar o que significa ocupar um certo lugar na sociedade e/ou dramatizar a injustiça sofrida por um certo grupo (ver Miller, 2000).

Por outras palavras, a aceitação e respeito pelo Outro na sua singularidade (individual e social), a interdependência significante, a importância da emoção ou dos actos perlocutórios (retórica), o direito do Outro contar a sua história ou de dar o seu testemunho com a mesma autoridade e o mesmo valor do ponto de vista da situação comunicativa, tornam-se elementos-chave ou os modos essenciais da democracia comunicativa, possibilitando, deste modo, uma maior atenção à ética do cuidado assim como aos direitos humanos enquanto expressão suprema do cuidado e da solidariedade para com o Outro.

Então a interacção comunicativa não omite a diferenciação de sentidos que os vários actores atribuem aos problemas, aos interesses, às próprias coisas, ao bem comum, nem esquece as suas diferentes posições sociais. E é este reconhecimento da diferença e do que não é comum que desafia a própria argumentação, a defesa e a expressão dos interesses, e que leva a invocar a justiça e a possibilidade de uma “reciprocidade assimétrica” entre perspectivas dos sujeitos, uma vez que cada um tem a sua história que “transcende a copresença de sujeitos em comunicação” e que as posições sociais dos sujeitos são estruturadas de um forma múltipla em relação com muitas outras posições, o que dá a cada locação um sentido específico e irreversível (Young, 1997: 52).

Por outro lado, a democracia comunicativa permite dar maior solidez à possibilidade de todos sermos vistos e ouvidos num espaço público, de articularmos colectivamente a voz no debate público, tendo em conta, porém, as nossas diferenças. Esta comunicação entre perspectivas diferentes preserva a pluralidade, a qual deve ser compreendida como uma condição de publicidade. Além disso, dá um carácter contingente e parcial ao meu ponto de vista, ao mesmo tempo que reconhece aos outros o direito de desafiarem os meus argumentos e interesses forçando-me, portanto, a transformar as minhas expressões de auto-interesse pelos apelos à justiça.

E aqui voltaria a uma questão cara a certas feministas e que se prende com a possibilidade de a democracia comunicativa dar uma atenção maior à ética do cuidado, encarada esta sobretudo como um enquadramento moral das políticas sociais. Na verdade, o ideal da teoria comunicativa implica, como disse atrás, a atenção a aspectos não linguísticos da comunicação e, de uma forma geral, a outras formas de uma ética do cuidado que a democracia deliberativa, pela sua preocupação de ser uma democracia racional, omitia.

A democracia comunicativa, não obstante também as suas debilidades, favorece uma visão mais completa da própria justiça e pode vir a dar uma outra extensão à própria noção de espaço público, que surge não apenas como fundada na argumentação intersubjectiva mas também no diálogo intercultural e na “partilha da sensibilidade”.

Democracia como direitos humanos

A análise dos pontos anteriores levam-me a ter de reforçar a ideia de que a governabilidade da democracia depende da existência de canais que permitam satisfazer as demandas de participação social cidadã, para além de supor e de legitimar-se na concretização prática de valores que constituem a cultura cívica democrática.

Neste sentido, considero que, não obstante a cultura dominante actualmente valorizar a competição, o êxito económico e o consumo, acompanhados da desvalorização da esfera do político, que pode, por isso mesmo, ter impactos negativos na governabilidade democrática, há que repolitizar e eticizar a esfera pública, ampliando-a também no seu alcance e dando-lhe uma maior densidade e precisão em termos de conteúdo através da sua focalização em termos de direitos humanos.

Em consonância com o analisado anteriormente, penso que uma proposta mais concreta de democracia “como direitos humanos” equivale a afirmar o valor de uma democracia deliberativa e comunicativa, de uma democracia vinculada à emancipação, comprometida com os direitos fundamentais quer nas fronteiras nacionais quer nas arenas internacionais.

Esta concepção coloca os direitos humanos como critério que deve governar a forma como todos juntos deveríamos desenhar as regras básicas da nossa vida em comum. Trata-se do critério nuclear universal de justiça básica que nos deve reger e que todos deveriam realizar dentro do razoavelmente possível, tornando-nos atentos à infra-realização dos direitos e aos factores, globais e nacionais, que a produz. Neste sentido, concordo com Pogge (2005: 72) quando diz que uma concepção dos direitos humanos “exige desenhar as instituições sociais de tal modo que todos os seres humanos, na medida do razoavelmente possível, tenham um acesso seguro aos objectos dos direitos humanos”. E isto não impede, porém, que as sociedades concretas constrinjam as suas instituições a critérios de justiça mais estritos propiciadores de uma realização pessoal ou de um “florescimento humano” mais completos.

Face aos desenvolvimentos da democracia, o que me interessa reter neste momento é que a proliferação da democracia formal tende a mascarar o declínio da democracia substantiva e, além disso, o que é bom para a democracia de alguns Estados pode ter efeitos perniciosos em termos dos direitos dos cidadãos de outros Estados. Depois, a globalização afecta necessariamente a democracia moderna, expondo-a a tensões e contradições, ao mesmo tempo que revela os limites da liberdade e da igualdade quando confinadas às fronteiras da soberania estatal.

Perante todos estes desafios, há então que encontrar um sentido mais profundo de democracia, que substancialize e actualize os direitos humanos face aos fenómenos contemporâneos, indo para além das definições clássicas que a remetem de uma forma muito linear para a categoria da igualdade e para outras categorias políticas modernas como as de autoridade, de representação e de soberania. De facto, há hoje outros embates que têm a ver mais com a centralidade da diferença (género, idades, étnica…), com outras escalas de justiça (desde a local à global), com concepções de homem (o homem autorreferencial), com outros objectos que passaram a ser assunto de decisão do poder político e que tradicionalmente se situavam no espaço privado (como os relacionados com a biopolítica ou a política da vida, com a saúde, com a segurança).

Tendo presente este contexto, precisamos, como afirma Goodhart (2005: 112), de uma teoria da democracia global e não de uma aplicação da actual teoria democrática ao contexto global. E propõe, nesta sequência, a democracia emancipatória, realizada através dos direitos humanos, que, de certo modo, bane a soberania nacional como princípio de organização. Assim a universalidade dos direitos humanos emerge como global e diz respeito a todas as pessoas humanas como sujeitos políticos. Simultaneamente, este apelo dos direitos, se de um ponto de vista externo face ao Estado apela às normas universais contra a soberania estatal, já ao nível interno alimenta a democratização porque estabelece maior liberdade e igualdade para todos.

Daí que no seu enquadramento normativo, Goodhart (2005:135) defina democracia “como direitos humanos” entendida como “compromisso político com a emancipação universal através do assegurar igual fruição dos direitos humanos fundamentais para todos”. Emancipação aqui tem a ver com a eliminação das estruturas de opressão e de exclusão; exige sobretudo “um conjunto de direitos que, quando institucionalizados, eliminam a sujeição e garantem a emancipação” (idem:138). Então, o verdadeiro sentido da democratização prende-se, não com a criação de instituições representativas maioritárias, mas com “garantias institucionais seguras para os direitos humanos” (idem: 150), englobando: as lutas históricas pela emancipação e inclusão mas também os actuais projectos de construção de uma democracia global; o compromisso dos governos e da governança mundial com a garantia institucional dos direitos fundamentais.

O sentido mais profundo da democracia como direitos humanos prende-se, pois, com a emancipação, que, por sua vez, se articula com a eliminação das estruturas de opressão e de exclusão, ou ainda, acrescento servindo-me das palavras de Booth (1999, p. 46), com “a teoria e a prática de inventar humanidade”.

Assim sendo, há que repensar também a justiça, pois já não basta a justiça socioeconómica ou redistributiva (ligada aos direitos económicos e sociais), nem mesmo a justiça cultural-simbólica ou de reconhecimento (ligada aos direitos culturais), porque ambas se confinam na sua validade aos limites do Estado. Agora também importa a justiça como representação política ou participação. Daí que as preocupações de Fraser (2009), por exemplo, em reconstruir as fundações meta-políticas da justiça no mundo globalizado, invocando o princípio pós-Westfaliano para ultrapassar a lógica territorialista dos Estados, sejam perfeitamente justificáveis. Acrescenta, ainda, que as lutas pela justiça num mundo globalizado não podem ter sucesso a não ser que vão de mão dada com as lutas pela democracia meta-política, sendo esta precisamente uma das dimensões da democracia como direitos humanos.

Para finalizar este ponto, tal como a concebo, esta democracia como direitos humanos é profundamente redistributiva e cultural e vai além do Estado, ou seja, implica a instância estatal mas também outros agentes sociais e o seu alcance não se confina à territorialidade estatal mas alarga-se a todo o planeta, visando a garantia de patamares mínimos de inclusão e de vida decente. E isto exigirá um novo direito internacional, mais democrático e mais participativo

Aqui chegados, não deixa de ser curioso o percurso percorrido e que começa a proposta de uma democracia deliberativa, passando pela comunicativa e finalizando na dos direitos humanos. Isto significa que as dimensões deliberativas e comunicativas tal como os seus critérios são retomados agora numa concepção de democracia que apela para uma visão mais funda, mais precisa, mais substantiva, enfim, mais emancipatória da própria democracia.

O lugar da justiça e dos direitos humanos na educação

A educação constitui-se como um dos lugares naturais de aplicação, consolidação e expansão dos direitos humanos; como um direito-chave cuja negação é especialmente perigosa para o princípio democrático da igualdade civil e política; como uma arena de direitos e com direitos; enfim, como um outro nome da justiça.

Embora a educação tenha vindo, na actual conjuntura do capitalismo flexível e transnacional, a confrontar-se com sérios desafios que resultam de novas ideologias (algumas delas invocando o santo nome do humanismo) ou de novas concepções do papel do Estado mais favorável ao reforço da visão “libertária” dos direitos, ela não pode alhear-se da sua contribuição, designadamente dentro da proposta de uma democracia comunicativa e de uma democracia como direito humanos, para a criação de espaços públicos mais democráticos, para a dialogação pública, para a potenciação da “voz”, para a aprendizagem das diversas formas através das quais os direitos humanos podem ser negados, omitidos ou promovidos.

Por conseguinte, e não obstante todas as vicissitudes políticas, económicas, sociais e culturais, articuladas com a reconversão do sistema de convenções, de justificações e de metáforas associadas à transformação do modelo socio-económico e de regulação de carácter providencialista, a educação não pode, como campo que refracta as mudanças produzidas no contexto socio-político, ficar indiferente aos valores e à formação de uma cultura de respeito pela dignidade humana mediante a promoção e a vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, entre outros.

Congruentemente com estes valores, também a escola terá de ser reconsiderada como uma organização democrática, que normativamente deverá afirmar-se como uma organização dialógica ou, em sentido mais Habermasiano (mas não só), como organização deliberativa e comunicativa.

Neste sentido, tanto a comunicação como o conflito tornam-se condições de possibilidade da escola como espaço público, ou seja, como espaço de debate, de conflito, de convivialidade e de “voz”, de intercâmbio de ideias, de direitos e deveres argumentativos, de interdependência significante, de adopção colectiva das decisões que ultrapassam os muros domésticos da própria escola.

Se a política é uma emanação do espaço público ou o espaço em que se inscreve a tensão entre consenso e conflito, o espaço público, por sua vez “não é possível sem uma determinada política, isto é, sem uma determinada forma de gestão dos assuntos que afectam a colectividade” (Beltran Llavador, 2003: 88). Para tal é necessária a comunicação que faz política na medida em que permite exprimir o conflito mas também frequentemente gerá-lo. Neste sentido, a escola como lugar de vários sentidos e de relações inscritas em práticas, que são também discursivas, exige a comunicação que, por sua vez, produz a escola porque recria o vínculo entre quem a integra.

Na análise da escola como organização deliberativa e comunicativa, e não obstante a força colonizadora do sistema através dos seus imperativos do Poder e da Economia, servindo propósitos sobretudo instrumentais e hierárquicos, há que relegitimar outras formas de comunicação, mais sintonizadas com os mundos de vida societais (que dizem respeito às relações sociais, identidades, interesses, valores); há que ter presente as acções que se coordenam através das interacções comunicativas estabelecidas entre os seus membros, que obedecem à racionalidade comunicativa e emancipatória da acção educativa, com componentes éticos, que permite a reconstrução crítica de situações sociais e a construção de uma civilidade escolar cidadã.

Se não é possível compreender o significado das acções escolares sem o recurso à relação estabelecida pelos seus membros entre os eixos do sistema e do mundo de vida, também é analiticamente relevante especificar as racionalidades mobilizadas na acção concreta e que se exprimem no polimorfismo regulatório da acção escolar. Ou seja, na medida em que é possível afirmar a existência de vários referenciais ou princípios reguladores da acção social (burocráticos, modernizadores, neoliberais, cidadãos e críticos), do mesmo modo é possível afirmar que a escola, como organização, é atravessada por vários princípios reguladores ou várias racionalidades, cuja dominância não é sempre constante.

É neste sentido que tenho vindo a defender a metaforização da escola como “um lugar de vários mundos” (cívico, doméstico, mercantil, empresarial, mundial...), isto é, como estruturalmente constituída por várias racionalidades, por várias lógicas, por várias justiças (Estêvão, 2004), que se articulam prudentemente, reconhecendo embora que a natureza dos contextos políticos condiciona a hegemonia de uma determinada ordem de regulação escolar face às restantes.

Uma das implicações deste enquadramento é que as potencialidades emancipatórias da escola se confrontam com fortes obstáculos mesmo no seu interior, tornando-se difícil a prevalência da racionalidade comunicativa, de uma cultura democrática favorecedora de fórmulas mais densas e expressivas de justiça e dos direitos. Mas quando a racionalidade comunicativa e emancipatória domina outros tipos de racionalidade, a justiça e os direitos abrem-se ou universalizam-se, permitindo à escola preparar os cidadãos para uma atitude dialógica, reconhecendo os Outros como interlocutores válidos, com direito a expressarem os seus interesses e a defendê-los com argumentos; a desenvolverem a capacidade de participação num colectivo plural; a desenvolverem uma consciência crítica e tolerante; a praticarem a reciprocidade nem sempre simétrica; a perseguirem metas conjuntas; a procurarem uma decisão final que expresse interesses universalizáveis dialecticamente construídos pela assunção das diferenças ou, noutra linguagem, pela realização da universalidade na conciliação das diferenças (ver Cortina, 1999).

Estamos, pois, perante uma verdadeira “dialectologia da justiça e dos direitos” na “ordem escolar”, pela coexistência de várias racionalidades, embora aquela nem sempre seja muito visível devido à hegemonia e dominação da justiça oficial, ancorada, como sublinha Dubet (2004: 6), na figura cardinal da “igualdade meritocrática de oportunidades”, típica das sociedades democráticas liberais. Mas, simultaneamente, estamos perante um jogo complexo de injustiças que podem estar mais ou menos ocultas na forma oficial da justiça escolar.

Em síntese, a escola como organização deliberativa e comunicativa não pode ficar indiferente à “poliarquia dos princípios da justiça”, à dialogicidade interna que mobiliza diferentes vozes e argumentações assim como à dialecticidade que a confronta com a universalidade da justiça, da igualdade e dos direitos face ao paradigma da diferença e da pluralidade de subjectividades. Penso, então, que, assim concebida, a escola poderá dar um contributo significativo para a prática consciente e fundamentada de uma democracia em construção cujos contornos (ainda ideais) coincidem com os direitos humanos.

A perspectiva crítica da educação para os direitos humanos (EDH)

Tendo presente os pontos anteriores, nomeadamente a defesa do modelo de democracia como direitos humanos, torna-se pertinente ponderar o contributo que a educação pode dar para uma maior consciencialização no que respeita aos direitos humanos, não no sentido de contribuir para uma maior ilustração, mas sentido do aprofundamento crítico e da militância consciente a favor dos direitos e da emancipação.

Embora em Portugal o tema da EDH não tenha merecido grande atenção nem haja pesquisas aprofundadas neste domínio, contrariamente ao que vem acontecendo noutros quadrantes (por exemplo, na América Latina), considero (ver Estêvão, 2009) que a EDH se enquadra num dos pressupostos da Declaração Universal de 1948, que destaca que cada povo e cada nação “se esforce através do ensino e da educação, por promover o respeito por esses direitos e liberdades e pela adopção de medidas progressivas de carácter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efectiva”.

Além disso, e tal como eu a entendo, a EDH terá de constituir-se como um processo multidimensional, articulador de dimensões relacionadas: com a afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem uma cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; com a formação de uma consciência cidadã; com o desenvolvimento de pedagogias e metodologias participativas.

Não obstante a escassez de modelos, quero realçar, até pelo seu pioneirismo, o de Tibbittz (2002), que sugere três modelos para a compreensão da prática contemporânea da EDH, a partir da pirâmide da aprendizagem:

1. Valores e consciencialização. Tem como foco a transmissão de conhecimento básico de questões de direitos humanos e o incentivo à sua integração em valores públicos. A estratégia pedagógica fundamental é o compromisso.

2. Responsabilidade ou prestação de contas. Aqui encontram-se as formas em que as responsabilidades profissionais envolvem directamente a monitorização das violações de direitos humanos e a sua defesa perante as autoridades competentes ou a assunção de cuidados especiais para proteger os direitos das pessoas.

3. Transformação. Este modelo capacita para reconhecer abusos de direitos humanos e comprometer-se com a sua prevenção. O programa pode incluir desenvolvimento de lideranças, treino e resolução de conflitos, treino vocacional…

Uma outra proposta de modelo de EDH, mais abrangente e teoricamente mais profunda, inspira-se na teoria e pedagogias críticas. Tendo presente a síntese que faz McLaren (1997: 268) dos axiomas da pedagogia crítica, uma EDH crítica não pode descurar os contextos sociais, culturais e políticos em que os direitos necessariamente nascem, se desenvolvem e se transformam, reconhecendo, ainda, como seu ambiente natural, a democracia como direitos humanos. Depois, EDH deve assumir a dimensão política, rompendo deste modo com a concepção de direitos como uma esfera separada e prévia à acção política democrática, e deve recuperar a dimensão social que reconhece e entende os direitos como processos e práticas sociais de luta pela dignidade humana, aspecto este que decorre também da nossa proposta de democracia como direitos humanos.

Torna-se claro, então, que os direitos humanos devem ser o fundamento ético de um novo paradigma educacional de uma educação libertadora e transformadora, dando, segundo Magendzo (2006: 61), atenção à forma como o poder da educação e do currículo funcionam e interactuam, “determinando como as pessoas se formam e se empoderam para ser sujeitos de direitos”. Isto significa que os direitos humanos têm em si mesmos um potencial educativo enorme, dando centralidade ao Outro. É por isso que este autor se detém numa pedagogia da alteridade, entendendo-a como uma componente fundante da educação em direitos humanos, destacando ainda a sua vinculação a uma ética de cuidado, do afecto, da solicitude, em relação ao Outro.

Ao nível da aprendizagem, esta perspectiva da EDH encara-a como uma forma que visa proporcionar aos estudantes poder e controlo sobre a própria aprendizagem, favorecendo várias fórmulas dessa mesma aprendizagem, ao mesmo tempo que a pensa como uma forma também de solidariedade social. A EDH crítica deve, por isso, desmontar o modo como a estrutura educativa e o currículo têm efeito na moldagem do sujeito de direitos, proporcionando aos estudantes os métodos mais apropriados para analisar a própria realidade educativa e social.

E aqui ganha relevo o currículo oculto que diz respeito a conhecimentos, atitudes e valores, adquiridos mediante a participação nos vários processos e interacções que ocorrem nas organizações educativas, fazendo, por isso, parte da cultura escolar. Esta, quando entendida como promotora de convivência escolar e assumindo referentes da educação em direitos humanos, apresentar-se-á como “aquela que combina duas racionalidades complementares: a racionalidade da acção regulada por normas e a racionalidade da acção comunicativa” (Magendzo, 2006: 53), esta última dizendo respeito à interacção entre dois ou mais sujeitos capazes de entender-se, com argumentos racionais, sobre uma situação para melhor coordenarem os seus planos de acção e as suas acções. Obviamente que a racionalidade mais conforme com a perspectiva crítica da EDH será a comunicativa, possibilitando dar mais visibilidade à problemática dos processos e práticas sociais distorcidos pela injustiça e por formas dominantes de racionalidade ocultas, ao mesmo tempo que anuncia possibilidades de emancipação.

A abordagem crítica da EDH tem ainda implicações a outros níveis, para além dos relacionados com a pedagogia de aprendizagem e dos currículos: desde logo, ao nível da concepção de escola, reconfigurando-a como uma organização democrática, com potencialidades cidadãs; ao nível de uma concepção emancipadora do próprio conhecimento; ao nível da investigação que deve ter presente a articulação entre educação, ideologia, produção e poder, interrogando-se sobre o modo como a reprodução social se produz na reprodução cultural, mediante a imposição e ocultação, produção e consumo de recursos simbólicos.

Com uma agenda a prosseguir, cabe à EDH, enquanto educação crítica e política: ajudar a construir uma ciência da sociedade baseada numa consciência justa; em segundo lugar, investir numa concepção de democracia mais radical, entendida como direitos humanos, construída sobretudo a partir da importância estratégica do espaço público e da sociedade civil; em terceiro lugar, construir redes contra-hegemónicas que lutem contra a dominação e a opressão; em quarto lugar, a mobilização da justiça na sua tridimensionalidade (redistribuição e reconhecimento e participação); em quinto lugar, a compreensão da interdependência e solidariedade mundiais, assim como a compreensão das contradições que impedem a cooperação internacional e o desenvolvimento da paz; finalmente, a recuperação ético-política da educação, contra o autoritarismo e a tecnocracia, a eficácia sem deliberação, a instrumentalidade gerencialista (ver Andrade, 2006).

Por tudo o que foi dito, a EDH tal como aqui é proposta é essencialmente uma política de vida e uma ética global, ao serviço de uma democracia como direitos humanos, em que todos, mas principalmente os educadores/formadores e os educandos/formandos, devem estar comprometidos, reconhecendo que se trata de uma possibilidade que têm de ajustar o mundo ao que, em cada momento, se entende por dignidade humana. E termino com palavras de Freire (2001: 99):

educação para os direitos humanos na perspectiva da justiça, é certamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da ‘briga’, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder.

 

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