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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.15 Lisboa  2010

 

Manuais escolares: estatuto e funções

 

Ana Bela Pereira

anabelapdagge@gmail.com

 

Gérard, F. & Roegiers, X. (1998).Conceber e avaliar manuais escolares. Porto: Porto Editora.

Morgado, J. C. (2004).Manuais escolares. Contributos para uma análise. Porto: Porto Editora

Cabral, M. (2005). Como analisar manuais escolares. Lisboa:Texto Editora.

 

Assistimos, nos últimos anos, a um elevado aumento da população estudantil que transformou o universo educativo actual num mundo culturalmente mais complexo e rico. Um dos contributos viáveis para dar resposta a esta realidade multicultural poderá ser encontrado no recurso a materiais didácticos que contemplem a heterogeneidade e respeitem as diversidades culturais, no contexto de sala de aula, fazendo uso de um discurso híbrido que a todos considere. Sabemos que os professores são transmissores de um currículo oficial espelhado nos livros didácticos, que obedecem, ou deveriam obedecer, às directrizes do currículo nacional estabelecido para cada disciplina. Constata-se que no acto, complexo, de ensinar e aprender, professores e alunos procuram alguma segurança, refugiando-se no manual escolar, eleito como instrumento prioritário de transmissão de conhecimentos, fazendo deste o recurso prevalente. No processo educativo, parte-se dos textos do manual para transmitir conhecimento e, alunos e professores, raramente se questionam sobre a escolha dos mesmos, sobre os princípios por eles veiculados, tomando-os como verdades absolutas. Deste modo, a escola contribui para manter as desigualdades sociais e culturais ao transmitir valores, atitudes e hábitos da cultura dominante, tomada como a cultura legítima.

Na actualidade do contexto educativo, o manual escolar, enquanto recurso fundamental e estratégia primordial no processo educativo, deverá assumir o papel de precursor de uma disseminação cultural que a todos contemple e não de transmissor de um currículo monocultural com vista à homogeneização do universo educativo. É no contexto desta controvérsia que surge esta recensão visando abordar, essencialmente, dois aspectos de entre as múltiplas questões ligadas ao papel do manual escolar no processo de ensino-aprendizagem: o seu estatuto e as suas funções. Os três livros supracitados foram seleccionados por reflectirem visões diversificadas e de algum modo complementares sobre a temática enunciada.

O livro Conceber e avaliar manuais escola- res, composto por três capítulos, expõe no ponto cinco do primeiro capítulo o que os autores consideram ser as diversas funções do manual escolar, mas, quanto ao seu es- tatuto, os autores não lhe dedicam nenhum capítulo específico nem abordam claramente o assunto.

No que às funções diz respeito, estas são apresentadas a partir de duas perspectivas diferentes: a do aluno e a do professor. Assim, relativamente ao aluno, são atribuídas aos manuais escolares múltiplas e diversas funções que se prendem, essencialmente, com i) a aprendizagem e o progresso das competências dos alunos (os alunos deverão adquirir saberes, que aplicarão posteriormente a situações específicas e ainda desenvolver métodos e hábitos de estudo que permitam a sua progressão), ii) a solidificação, avaliação e integração das aprendizagens (aplicação dos saberes adquiridos em situações diversas e avaliação formativa, certificativa ou auto-avaliação dos alunos, papel que não deverá ser desempenhado apenas pelo manual. A este caberia apenas a aplicação da avaliação formativa, integração dos conhecimentos de forma vertical, ou seja, aplicá-los no contexto de uma mesma disciplina, e horizontal, o que significa a utilização de competências que tenham sido adquiridas nas várias disciplinas), iii) a utili- zação e apresentação (o manual deve for- necer informação rigorosa que permita uma fácil utilização pelo aluno, expor os conte- údos, por exemplo, através de uma suces- são de textos, e de informações (gráficos, quadros...) ordenados alfabeticamente e integrarem uma série de questionários que possibilite a oportunidade de pesquisar e preparar a informação, o que contribuirá para o desenvolvimento das suas competências) e iv) a educação social e cultural dos alunos (o manual deverá ajudar os seus utilizadores a auto-conhecerem-se e na sua integração social).

Resumindo, na perspectiva exposta nesta obra, o manual tem como função essencial transmitir aprendizagens que permitam ao aluno relacionar-se com o seu quotidiano e o seu meio envolvente.

Na perspectiva do professor, o livro referenciado atribui ao manual o papel: de formador porque possibilita ao docente um desenvolvimento mais eficaz das suas funções no processo de ensino-aprendizagem e renovação pedagógica dos seus métodos de ensino; de difusor de conhecimento científico; de coadjutor na formação contínua dos docentes ao fornecer-lhes novos caminhos e estratégias que lhes permitem reformar e incrementar a sua experiência pedagógica; de instrumento auxiliador na consecução de tarefas e preparação de aulas, assim como processos de avaliação formativa e de estratégias de remediação.

Importa referir que o livro Conceber e avaliar manuais escolares é uma referência relevante para todos os estudiosos e investigadores que pretendam fazer uma incursão sobre as mais diversas controvérsias relacionadas com o problemático mundo dos manuais escolares, mas que não foram aqui expostas por serem alheias à temática desta recensão.

O livro Manuais escolares. Contributos para uma análise, começa por apresentar, ao lon- go da introdução e dos dois primeiros ca- pítulos, algumas ideias sobre o estatuto do manual escolar. Segundo o seu autor, os manuais assumem-se como materiais curricu- lares imprescindíveis no processo do ensino e da aprendizagem dos alunos, sendo praticamente a única estratégia visada na aula para elaboração e realização da prática docente, funcionando como agente e aferidor do trabalho do professor. São ainda apontadas quatro especificidades que dão ao manual um estatuto singular: “é um produto de consumo, suporte de conhecimentos esco- lares, veículo transmissor de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura e, por último, um instrumento pedagógico” (p. 37).

Dada a mudança cultural da escola e a heterogeneidade dos alunos, torna-se imperativo repensar as práticas curriculares. O modelo curricular nacionalista, centralizado, em que a educação de todos depen- de das directrizes do Estado e o currículo não passa de uma amálgama de objectivos e conteúdos previamente determinados para um ensino de massas deu lugar a um novo paradigma em que o currículo é “um con- junto de aprendizagens valorizadas social- mente e como uma construção inacabada” (p. 18) desempenhando um papel “integrador e dialéctico, sensível à diferenciação, não ig- norando a existência de uma realidade que se constrói na diversidade” (p. 18). Neste contexto, os manuais escolares assumem relevância, principalmente, na configuração dos métodos de ensino-aprendizagem, uma vez que se relacionam de muito perto com as práticas pedagógicas e intervêm no modo como os docentes leccionam e no mode-lo de conhecimento que difundem estabelecendo vínculos sociais que determinam o processo de ensino. Além de estruturarem os conteúdos leccionados, são ainda ferramentas curriculares que interferem significativamente na organização dos modernos sistemas educativos como disseminadores de uma “cultura científica” (p.26) e de uma “identidade nacional” (p. 26). O manual, ao adoptar uma certa concepção da realidade e um “modelo de homem e de sociedade a construir” (p. 27), não consegue distanciar-se das vertentes ideológicas e políticas que lhe estão subjacentes, o que enfatiza a essência ética e política da educação. Os manuais são os difusores da selecção cultural dos pro-gramas disciplinares, desempenhando, assim, o papel de transmissores dos conhecimentos essenciais que os alunos devem aprender, colaborando para o progresso pessoal e social do aluno e veiculando as ideologias e políticas dominantes em prejuízo de outras que são, do mesmo modo, relevantes e válidas. É crucial que nos questionemos sobre os valores e as mensagens que transmitem e as funções que exercem no processo de educar.

Para além da função de controlar o ensino, o currículo e o trabalho docente, de auxiliar no processo de ensino-aprendizagem, ins- trumento e estratégia privilegiada no quoti- diano da actividade escolar (que já focámos aquando da exposição das funções preconi- zadas pelo primeiro livro), o autor atribui- lhe também as funções de “estimular pulsões positivas e negativas, leva a amar, odiar e respeita, (...) propõe modelos identificatórios; contribuindo para a construção da identi- dade, ele visa fazer aceitar ideias guiando e reforçando o amor-próprio” (Henri Mo- niot, apud Morgado, p. 38); de ferramentas políticas que ajudam na disseminação do saber escolar e que difundem concepções ideológicas e conjecturas sobre a realidade,“alguns manuais escolares veiculam valores e atitudes aceites por determinados grupos sociais dominantes, apresentando-os como naturais, não prestando a devida atenção a certas culturas marginalizadas e mais des- favorecidas que, para além de não figura- rem no padrão cultural que normalmente as escolas exibem, são tidos como fazendo parte de uma realidade que não pode ser transformada” (Morgado, p. 39). O manual é depositário de certos princípios ideológicos sobre a existência humana que contribuem para uma concepção hegemónica quer da sociedade, quer da história e da cultura.

Cabe aos professores exercerem uma posição crítica, fora e dentro da sala de aula, sobre as concepções sociais do mundo e da realidade representadas nos manuais e repensar os conteúdos por eles e pela es-cola disseminados, os quais deverão ser analisados para uma melhor compreensão destes aspectos segundo dois ângulos diferentes: os conteúdos expressos, difundidos conscientemente e com determinada intencionalidade e aqueles que são transmitidos indirectamente, que são parte integrante do currículo oculto, que, podendo estar despojados de um propósito específico, não deixam de desempenhar um papel importante na formação dos alunos. A escola não pode, nem deve aceitar a “imposição” de um manual único, para todos os alunos à semelhança do que acontece com os programas curriculares de cada disciplina e, sim, considerar e partir dos conhecimentos/experiências de vida reais de que os alunos são detentores, bem como instituir um ensino que privilegie a contemporaneidade e apele à observação dos problemas e das situações que povoam a realidade circundante dos mesmos.

Como analisar manuais escolares foi o terceiro livro escolhido. Sendo um estudo de caso, é no enquadramento teórico da sua investigação que a autora aborda minuciosa- mente diversas questões sobre os manuais escolares, entre elas o seu estatuto e as suas funções. A autora reitera a ideia, já preconi- zada nas duas obras aqui focadas, de que o manual tem um papel primordial, ocupando o primeiro lugar “na educação formal en- quanto mediador dos conteúdos educativos” (Cabral, p.40) e “ continua a ser o senhor do “ensino” e a sua não utilização projecta-se no limiar da utopia” (Tormenta, 1996 apud Cabral, 2005, p. 40). A autora refere, ainda, que o manual é alvo de críticas ferozes por parte de alguns estudiosos das Ciências da Educação, que o vêem como uma ferramen- ta dogmática ao serviço do ensino.

Apesar de todas as controvérsias, o manual escolar é considerado o “ponto de intercepção entre a educação, a cultura e o comércio” (Venezky, 1992, apud Cabral, 2005, p.40. Esta realidade prende-se com o facto de ele ser dirigido a um público jovem permeável às ideais por ele transmitidas, de ocultar uma certa postura ideológica, assim como a circunstância em que é produzido que, devido às suas enormes tiragens, o faz chegar a um público vastíssimo, conquistando professores, encarregados de educação e alunos.

Para Cabral, referindo diversos autores, é um facto incontornável que o manual escolar é o detentor de autoridade em áreas tão importantes como a educação, a cultura e a sociedade, desempenhando o seguinte estatuto: veiculador de um determinado currículo; responsável pelo cumprimento de um programa; ferramenta pedagógica difusora de determinados métodos; precursor de determinadas ideologias e valores (directa ou indirectamente), influindo na formação moral e intelectual dos seus leitores e, socialmente considerado, reflecte a imagem do grupo dominante, detentor de uma determinada visão social do mundo. Conjuntamente, o manual escolar é visto como sendo o transmissor de saberes descontextualizados e incontestáveis, mostrando apenas uma única solução para os problemas apresentados, enunciando uma ideia ultrapassada, irreal, imperfeita e enganadora quer do conhecimento, quer do mundo circundante e promotor da passividade do aluno, assim como não tendo em consideração os diferentes tempos de aprendizagem dos alunos, nem os seus conhecimentos e práticas adquiridos.

A sua relevância reside, entre outros aspectos, na capacidade de transmitir claramente os objectivos do ensino, de organizar os saberes, de enunciar experiências de vida comuns, de exercer uma fiscalização mais efectiva do currículo e de permitir um ensino mais económico à disposição de uma es-cola massificada. Na óptica do aluno, o manual assume o papel de auxiliar na aquisição de conhecimentos, de estimulador do trabalho autónomo e de incentivador da leitura.

As funções do manual são apresentadas por Cabral, referenciando múltiplos autores, cuja síntese é apresentada num quadro, na página 46 do seu livro, e que comporta três vertentes: o aluno, o professor e a organização curricular. De entre elas, poder-se-á destacar o manual enquanto depositário de documentos e conteúdos, visando os docentes e os alunos e receptáculo de princípios pedagógicos enquanto recurso ao dispor do professor. Refere a autora que os “conteúdos de ordem atitudinal (normas, valores e atitudes), são mais difícil de discernir à primeira vista, uma vez que fazem parte de um código implícito, secundário, subjacente a qualquer interpretação do currículo. Geralmente consistem em significados e valores (afectivos, estéticos intelectuais e espirituais) oriundos da classe dominante” (Cabral, p. 48) representante de determinadas aspi- rações e hábitos sociais que determinam as suas figurações e os seus objectivos rela- tivamente à escola e que “fazem parte do chamado currículo oculto ou latente (Gimeno 1988; Machado et al. 1991), estando geralmente veiculados a textos, imagens, actividades ou enquadramentos discursivos” (Cabral, p. 48). De relembrar que a omissão de certas verdades/realidades sociais poderá constituir, também, uma outra forma de transmissão de um currículo oculto.

Em jeito de conclusão, poder-se-á dizer que, das três obras recenseadas, a primeira dá mais relevância às funções exercidas pelos manuais escolares em detrimento do seu estatuto, enquanto Manuais Escolares. Contri- butos para uma análise, faz precisamente o inverso. Relativamente à obra Como analisar manuais escolares, ambos os aspectos atraem a atenção da autora, dos quais faz uma abordagem exaustiva.

As obras apresentadas não se esgotam na temática desta recensão, constituindo fontes de informação pertinente para os interessados nas problemáticas respeitantes aos manuais escolares, nas suas mais diversas vertentes: concepção, avaliação, edição e utilização. Dentro destas temáticas gerais são abordadas as várias etapas de elaboração dos manuais, bem como as etapas metodológicas da aprendizagem por eles sugeridas. Os estudiosos destas questões poderão, ainda, aceder às diversas grelhas de análise e avaliação de manuais escolares divulgadas pelos autores.