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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.14 Lisboa  2009

 

O acolhimento familiar numa perspectiva ecológico-social

Paulo Delgado*

O modelo ecológico-social de Bronfenbrenner permite compreender o desenvolvimento humano, as interacções e interdependências que o caracterizam, e o restruturam, bem como identificar os factores que condicionam ou facilitam as transições ecológicas. No caso específico do Acolhimento Familiar, esta perspectiva possibilita a compreensão das transições que ocorrem na vida da criança acolhida, a separação dos pais e o desenraizamento do seu contexto, a que se sucede a colocação num mundo novo e desconhecido, e orienta a intervenção na prática, de modo a prevenir os riscos e a promover a integração e o desenvolvimento das crianças.

Palavras-chave: Acolhimento Familiar; protecção infantil; perspectiva ecológica.

 

The foster care in an ecological perspective

Bronfenbrenner’s eco-social approach allows us to understand human development as well as to identify factors influencing ecological transitions. This perspective is particularly well suited to study the transitions occurring in the lives of children in foster care: separation from parents and the challenges of an unknown environment. This approach is also valuable in orienting intervention in practice, preventing risks and promoting children’s integration and development.

Keywords: Foster Care; Child Care; Ecological Perspective.

 

A obra de Bronfenbrenner descreve a relação entre o ambiente e o desenvolvimento humano, sublinhando o modo como o espaço ecológico-social em que o indivíduo está inserido influencia o seu percurso, condicionando-o ou potenciando-o, por intermédio das interacções que se estabelecem e restabelecem entre pessoas (como por exemplo alimentar e acarinhar um bebé, brincar com uma criança, as actividades ou brincadeiras entre crianças), entre estas e os símbolos e objectos que caracterizam o seu ambiente externo (como por exemplo ler, brincar sozinha, resolver problemas, praticar desporto, ou adquirir novos conhecimentos) e entre sistemas (nomeadamente entre a escola e a família, ou entre o ensino superior e o mercado empresarial). Ao longo da vida, os indivíduos adaptam-se ao meio envolvente mas também podem, de modo recíproco, adaptá-lo ou modificá-lo, influenciando-se mutuamente (Thomas & Pierson, 1995; Caballo, Candia, Caride & Meira, 1996). Na perspectiva ecológica, ecosocial ou ecosistémica “os sujeitos, longe de serem um produto passivo do ambiente, são agentes dinâmicos do mesmo, edificando realidades” (Caride & Meira, 1995, p.146), através da interacção com os elementos demográficos, físico-naturais, sociais e culturais de uma comunidade (Meira, 1999).

O espaço ecológico “é concebido como uma série de estruturas encaixadas, uma dentro da outra, como um conjunto de bonecas russas” (Bronfenbrenner, 1996, p.5), mas que não estão hermeticamente fechadas, umas em relação às outras, das mais pequenas à maior. Ancorada na teoria sistémica, a perspectiva ecológica reconhece a interdependência e a interrelação entre os diferentes níveis ambientais e os componentes que os compõem, produzindo, no seu conjunto, um meio que é globalmente distinto (pode ser mais ou pode ser menos) da mera soma de cada uma das suas parcelas (Relvas, 1996; Alarcão, 2000). Um sistema ecológico caracteriza-se ainda pela reciprocidade entre as suas partes, pelo facto da mudança numa delas afectar o todo, por ser uma estrutura flexível e adaptativa que tende para o equilíbrio e se prolonga no tempo, gerindo a abertura (ou fecho) das suas fronteiras face aos restantes sistemas ou sub-sistemas (Thomas & Pierson, 1995; Ander-Egg, 1997). Em síntese, as suas propriedades são, segundo a enumeração de Payne (2005), o estado formado (steady state), a homéostase ou equilíbrio, a diferenciação, não ser sumativo e a reciprocidade. Estabelece papéis e funções, segundo determinadas regras, e a “clara delimitação destes limites interaccionais permite a cada um, em cada momento e em cada espaço, saber o que pode esperar de si próprio, o que podem os outros esperar dele e o que pode ele esperar dos restantes” (Alarcão, 2000, p.43). Todavia, apesar de partirem do mesmo tronco comum, são distintas as acepções conceptuais e metodológicas da perspectiva sistémica e ecológica, “sendo este último o que recolhe as aportações do primeiro” (García & Melían, 1993, p.80).

Anderson, Carter e Lowe, citados por Payne (2005, p.142), atribuem à perspectiva sistémica um “continuum atomístico-holístico”, uma vez que se centram na situação pessoal e social de uma pessoa ao mesmo tempo que estudam a interacção da sua actuação com o todo. Parte da organização político-social não para a rejeitar, mas para, aceitando-a e analisando-a, propor o seu aperfeiçoamento e ajustamento a cada contexto específico. Numa apreciação crítica à perspectiva sistémica e ecológica, Payne (idem, p.157) reconhece-lhe as seguintes vantagens: enfatiza as mudanças ambientais em detrimento das abordagens psicológicas; concentra-se nos efeitos de uma pessoa sobre a outra mais do que nos pensamentos ou sentimentos internos; alerta para a possibilidade de alcançar a mesma finalidade seguindo caminhos alternativos; é unitária, integrada e holística; e evita explicações lineares ou determinísticas (tipo causa-efeito) do comportamento ou dos fenómenos sociais.

São quatro os círculos que, segundo Bonfrenbrenner (1996), rodeiam ou integram a pessoa no seu núcleo. O microsistema é o primeiro, o mais íntimo e imediato, ou mais conhecido, que envolve o indivíduo desde os primeiros anos de vida, e as interacções que desenvolve em territórios como a casa / família, com os pais e os irmãos, a sala de aula ou o parque infantil. Bronfenbrenner denominou mesosistema às relações ou interconexões que cada um destes micro espaços estabelece entre si (relação escola/família, ou família/ amigos da vizinhança), sublinhando a importância que têm no desenvolvimento, a par dos acontecimentos que ocorrem num desses espaços, uma vez que a capacidade de aprendizagem de uma criança “pode depender tanto do como ela é ensinada quanto da existência e natureza de laços entre a escola e a família” (idem, p.5). Em suma, o mesosistema é um sistema composto por microsistemas e será tanto mais poderoso e rico para o desenvolvimento da criança quanto mais diversos e fortes são os vínculos entre os meios, com particular destaque para o que liga a família à escola (Garbarino & Eckenrode, 1999).

O exosistema constitui o terceiro nível ecológico e refere-se à comunidade envolvente em que as famílias se inserem e ao mundo do trabalho (Alberto, 2004). São ambientes mais afastados, nos quais o indivíduo pode nem estar presente, mas cujos acontecimentos influenciam o seu desenvolvimento, como por exemplo o desemprego ou as condições de trabalho dos pais, a sua rede de amigos, a sala de aula de um irmão mais velho, os Serviços Sociais locais ou serviços autárquicos de planificação urbanística. Pormenorizando, são as conexões ou processos entre dois ou mais sistemas, “um dos quais, pelo menos, não integra normalmente a pessoa em desenvolvimento, mas no qual ocorrem eventos que influenciam os processos dentro do sistema que contém aquela pessoa” (idem, p.80). Isto é, são eventos que, segundo Garbarino e Eckenrode (1999) acarretam um duplo risco quando afectam os pais e adultos, o que por sua vez, empobrece o microsistema (por exemplo um horário de trabalho muito longo ou a necessidade de viajar muitas horas para chegar ao local de trabalho) ou se são decisões que afectam de forma adversa a criança (por exemplo, a escola decide suspender as actividades de enriquecimento curricular).

O último nível socioambiental remete para a cultura social, para os valores, as crenças e os modos de agir de uma determinada sociedade, para a forma como ela se organiza, desde o espaço mais privado (microsistema) à esfera nacional. Que existam ou que poderão existir, abrangendo “possíveis planificações para o futuro de acordo com a visão dos líderes políticos, dos planificadores sociais, dos filósofos e cientistas sociais de uma sociedade empenhados na análise critica e alteração experimental dos sistemas sociais prevalecentes” (Brofenbrenner, 1996, p.22). Por outras palavras, são os padrões organizacionais e ideológicos das instituições sociais numa cultura (ou subcultura) particular. As casas, as escolas, os bairros, os ambientes de trabalho, os cafés e as relações entre eles, para referir alguns exemplos citados por Bronfenbrenner (idem), são diferentes entre dois países, e também não são as mesmas para as famílias abastadas e para as famílias pobres que vivam num desses países, ou que pertençam a grupos étnicos ou religiosos distintos. A violência intrafamiliar enraíza-se na cultura e nos costumes que toleram os castigos corporais (Azevedo & Maia, 2006), e o autoritarismo no poder do adulto sobre a criança incompetente (Alberto, 2004).

Apesar de ser composto por padrões consistentes de organização e de comportamento, o macrosistema, a maior e última «das bonecas», pode sofrer modificações, o que significa que “a estrutura dos ambientes numa sociedade pode ser nitidamente alterada e produzir mudanças correspondentes no comportamento e desenvolvimento” (Brofenbrenner, 1996, p.6), como sucede em situações de crise económica ou política. O espaço nacional está igualmente inserido noutros sistemas, comunitários ou internacionais, e o conjunto dos acontecimentos económicos, culturais, políticos e sociais influenciam o seu desenvolvimento. Como se afirma a propósito do seu estudo, em Economia «não há ilhas», mas um feixe multiplicador de variáveis e de interdependências, com diferentes níveis e dimensões, que geram o crescimento ou a recessão. No campo do trabalho social, seguindo o mesmo raciocínio, García e Melián (1993) declaram que não há indivíduos isolados, porque fazem parte de sistemas, ou «tudo depende», na expressão de Garbarino e Eckenrode (1999), dos níveis mais próximos e afastados, dos “mundos maiores e menores” (p.37).

Assim sucede também com o desenvolvimento humano, como Bronfenbrenner evidenciou, com as suas causas e relativamente às suas consequências, que para as crianças podem ser particularmente lesivas. Trata-se, no fundo, de perceber que os comportamentos de um indivíduo se devem compreender não apenas pelo que ele é ou pelo seu desenvolvimento ontogénico, na expressão de Belsky (1980), que representa a história e a herança pessoal, mas ponderando as inúmeras relações que ele estabelece, numa troca contínua, com os diferentes ambientes ou níveis ecológicos em que está inserido, que condicionam (reduzindo ou aumentando) o grau de concretização do seu potencial genético (Bronfenbrenner, n.d.; Howe, et al., 1999). Ou, de uma forma sintética, da complementaridade entre o sistema biopsicológico que caracteriza o ser humano e o sistema socioeconómico-político (Brofenbrenner, 2005).

O desenvolvimento humano resulta da correlação que se estabeleça entre a hereditariedade e o ambiente ecológico e define-se como “o fenómeno de continuidade e mudança nas características biopsicológicas dos seres humanos como indivíduos e como grupos” (idem, p.3). Correlação porque entre o individuo e o ambiente desenvolve-se uma interacção recíproca, isto é, por um lado o meio ambiente exerce a sua influência, por outro o indivíduo penetra no meio em que reside e restrutura-o, originando um processo de acomodação mútua (Brofenbrenner, 1996), que não pode ser compreendido à margem das circunstâncias quotidianas e dos contextos em que tem lugar (Caride & Meira, 1995), porque a criança não cresce no «vácuo» (Daniel, Wassell & Gilligan, 1999). A integração ou a inadaptação não existem fora dos contextos sociais e remetem, necessariamente, para ambientes concretos (Garbarino & Barry, 1999), que a perspectiva ecológica ajuda a compreender.

O modelo ecológico-social de Bronfrenbrenner pode ser utilizado na análise da situação de maus tratos que vitima uma criança (Belsky, 1980; Garbarino, 1982; Paúl & Arruabarrena, 1996; Rodrigo & Palacios, 1998), com causas multifactoriais, ao descrever o ambiente ecológico concreto em que a sua família se integra, as suas disfunções, e o modo como a família se relaciona com os meios exteriores, ao nível do meso e do exosistema. Problemas graves têm múltiplas fontes e causas, que requerem, para plano de intervenção, um modelo capaz de abarcar a complexidade e que refute as respostas simples e imediatas (Daniel et al., 1999).

Mas também pode ser utilizado, uma vez decidida a retirada, para caracterizar e compreender a situação de Acolhimento Familiar em que a criança passa a viver, as interacções e conexões entre os diferentes níveis ecológicos que o novo contexto de vida determina, o que as pessoas nele envolvidos “sentem, o que sabem, como conhecem, quais são as suas crenças, percepções, modos de ver e entender” (Caride & Meira, 1995, p.140). As reflexões que se seguem representam uma tentativa de aplicação do modelo ecológico-social ao Acolhimento Familiar, distinto do descrito por Panchón (1998), porque distante da temporalidade e da voluntariedade nele assumidas, mas partilhando os critérios de economia e de proximidade que propõem. O Acolhimento Familiar é, para este efeito, a unidade familiar dependente de outras pessoas e organizações sociais, que proporciona estadias de curta ou longa duração (o que exclui as situações de emergência em que o bebé ou a criança não passam mais do que uns dias na companhia dos acolhedores). Parte-se igualmente do pressuposto anteriormente referido que a criança “não é um receptáculo passivo da experiência do acolhimento” (Gilligan, 1998, p.83) mas que influencia o ambiente que a rodeia, particularmente as respostas que os seus acolhedores lhe dão.

Ser acolhido representa desde logo, ao nível do microsistema, e do ponto de vista da criança, a entrada numa nova casa e a integração num novo espaço familiar, que deve ser, simultaneamente, um ambiente terapêutico para a criança, que promove a mudança para padrões seguros de attachment (Cairns, 2002). O nível ecológico de maior proximidade e permanência passa a ser composto pela família dos acolhedores, pela interacção que a criança acolhida estabelece e desenvolve com cada um dos membros da família de acolhimento. Nas situações em que a criança é obrigada a mudar de localidade para ser acolhida, pode ser necessária a transferência da creche, do jardim infantil ou da escola. O acolhimento implica a exploração de novos espaços, como a rua, o bairro, as instalações desportivas ou o parque, outros símbolos e novos objectos, implica estabelecer novos amigos, no espaço escolar, na vizinhança e na rede de contactos de que os acolhedores dispõem, diminuindo significativamente ou cessando os contactos com amigos e vizinhos que possuía no contexto de vida anterior.

Neste nível primário poderão permanecer, ou não, os pais, os irmãos e outros familiares, de acordo com o contacto que for possível estabelecer no decurso do acolhimento (David, 2000; Hill, 1998). Surgem (ou mantêm-se) os técnicos ou assistentes sociais da Equipa de Acolhimento que acompanha o desenrolar da estadia e que contactam, de forma mais ou menos frequente, com a criança acolhida.

No mesosistema, destaque para a relação que a família de acolhimento passa a desenvolver com a Equipa de Acolhimento e com a família biológica (ou com os anteriores detentores da guarda da criança), bem como destas entre si, compondo este triângulo relacional (mais ou menos cooperativo) a essência interaccional da colocação, com a criança no centro. A perspectiva ecológica propõe um relacionamento inclusivo, em que os protagonistas trabalham em rede para maximizar o apoio social disponível para a criança protegida (Wade, 1999). Neste nível cabem ainda as relações que acolhedores estabeleçam com a escola, de enorme importância face às dificuldades de integração e de aprendizagem que frequentemente caracterizam as crianças acolhidas, bem com as relações família / vizinhança ou família/ grupos de actividades desportivas, culturais ou de outro tipo no domínio do lazer e da ocupação do tempo livre, que podem desempenhar um papel de relevo na construção da resiliência (Gilligan, 2000)

O desenvolvimento da criança acolhida depende do padrão de vida e das transformações que vão alterando a configuração da família de acolhimento. Acontecimentos no âmbito laboral, na família alargada ou no grupo de amigos dos acolhedores podem influenciar o percurso da criança acolhida, tal como os acontecimentos que ocorrem no contexto escolar dos filhos dos acolhedores. No exosistema da criança acolhida integram-se ainda todos os acontecimentos relevantes que afectam a família biológica e a sua condição social, económica e cultural, pois apesar da criança não participar directa ou activamente nestas esferas, a possibilidade de regresso a casa pode ser condicionada ou facilitada pelo decurso desses acontecimentos, deles dependendo eventualmente também, ainda que de um modo indirecto, as suas possibilidades de desenvolvimento. A própria intervenção da Equipa de Acolhimento, a qualidade do acompanhamento e da tomada de decisão está relacionada com as opções que, a nível local, forem tomadas pela entidade de enquadramento. O mesmo se pode afirmar relativamente à família biológica e à existência de programas específicos de apoio e reintegração familiar.

Por fim, ao nível do macrosistema, sublinhem-se os padrões culturais e ideológicos predominantes que representam os valores e as crenças sobre a família e sobre o Acolhimento Familiar. A representação social da responsabilidade pelas crianças referida por González e Triana (1998) é disso exemplo, podendo essa responsabilidade ser atribuída predominantemente à família biológica, que se pensa insubstituível, ou ser partilhada pelos membros da comunidade. Garbarino e Eckenrode (1999) sublinham o risco dos fenómenos sociais que reduzam “a capacidade e disposição dos adultos para cuidar dos filhos, e dos filhos para aprender com os adultos” (p.42). O esquema de organização do Acolhimento familiar, ou a sua «planta», estão fortemente condicionados por esse modo de pensar, que se traduz num quadro institucional e legal que determina, por sua vez, um modo de agir. A atribuição de prioridade ao Acolhimento familiar no âmbito das políticas sociais de protecção das crianças em perigo, face às outras medidas de colocação, é um sintoma dos princípios jurídicos e filosóficos vigentes.

Obviamente esta representação não é estática. A qualquer momento podem ocorrer mudanças no ambiente ecológico, em resultado da dinâmica familiar (e aqui inclui-se a família de acolhimento e a família biológica), ou da própria natureza da medida, que pode ser sujeita a modificações (nomeadamente no esquema de contacto com a família biológica, ou na passagem de um acolhimento de curta duração para um acolhimento prolongado) ou até cessar (pelo regresso da criança a casa ou pela passagem para outra medida, como o Acolhimento Residencial). Por outro lado, e à medida que o tempo passa, permanecendo a criança acolhida, experimentará um conjunto de transições no meio ambiente, como a entrada na escola, o desempenho de uma nova actividade desportiva ou cultural ou a mudança dos técnicos da Equipa de Acolhimento que se ocupam do seu processo.

O próprio macrosistema está sujeito a uma contínua restruturação, podendo suceder, por exemplo, que a política de intervenção socioeducativa passe a privilegiar a colocação familiar das crianças e jovens, em detrimento da sua institucionalização, como sucedeu nas últimas décadas em diversos países europeus. As atitudes e comportamentos que envolvem o indivíduo, a família e a comunidade vão evoluindo e adaptam-se a novas ideias e processos, como o modo de educar os filhos, as novas formas de família, o estatuto da criança enquanto sujeito de direitos e deveres, a percepção social da violência, o acesso aos meios de assistência e de protecção, entre outros factores.

O modelo ecológico possibilita não apenas a compreensão do ecosistema que rodeia a criança acolhida, das interacções e das interdependências que o caracterizam, mas também orienta a intervenção no sentido de proporcionar à criança as condições adequadas ao seu desenvolvimento, e a questioná-las cuidadosamente. Como observa Garbarino (2000), “a primeira lei da ecologia é que «nunca se pode fazer apenas uma coisa»” (p.35), e deve-se ter particular atenção com as soluções óbvias, porque a interacção entre sistemas pode produzir consequências inesperadas. Por exemplo, se for detectada no mesosistema uma dificuldade na relação entre a família de acolhimento e a escola, as acções a implementar para ultrapassar este obstáculo, que pode ser particularmente gravoso para o percurso educativo da criança, têm de se ajustar ao contexto em que decorrem, aos padrões sociais e culturais dos acolhedores, às suas expectativas, crenças e valores, e aos recursos disponíveis na escola (podendo ser recomendável uma visita domiciliária fora do horário laboral em detrimento da mera convocatória para uma reunião de pais na escola).

O desenvolvimento da criança na dimensão intelectual, emocional, social e moral requer “a participação em actividades progressivamente mais complexas, numa base regular durante um extenso período de tempo da vida de uma criança, com uma ou mais pessoas com quem a criança desenvolve uma forte e mútua vinculação, e que estão empenhadas no desenvolvimento e no bem-estar da criança, de preferência para a vida” (Brofenbrenner, 2005, p.9), e de preferência com a presença e a participação de pelo menos uma terceira pessoa, como um cônjuge, um parente, um amigo ou um vizinho, compondo uma estrutura interpessoal mais ampla. Este sistema de interacção depende, por sua vez, dos restantes níveis ecológicos, e da forma como estes proporcionam os lugares, os tempos e os reforços positivos, no âmbito das estruturas e políticas sociais, aos seus participantes. Vai mudando ao longo da vida, à medida que vão ocorrendo as transições ecológicas, que são mudanças de papel ou ambiente, como a entrada na escola, a mudança de emprego ou de casa, a doença, o casamento e o divórcio, ter um filho ou um irmão. A cada um destes novos papéis associa-se a expectativa do desempenho de um conjunto de comportamentos, que alteram “a maneira pela qual a pessoa é tratada, como ela age, o que ela faz, e inclusive o que ela pensa e sente” (Brofenbrenner, 1996, p.7). As transições produzem uma boa adaptação quando o novo ambiente assegura a satisfação das necessidades e o bem-estar do individuo, sucedendo o contrário quando geram “tensões e antagonismos, criando um relacionamento entre a pessoa e o ambiente caracterizado pelo conflito, perda e stress” (Thomas & Pierson, 1995, p.125).

São momentos chave, porque revelam o desenvolvimento obtido nos ambientes anteriores. Na verdade, “enquanto a pessoa permanece no mesmo ambiente primário, não podemos saber com certeza se aquele ambiente está tendo uma influência benéfica ou nociva sobre o crescimento psicológico da pessoa; o comportamento observado pode ser meramente adaptativo e não reflectir nenhuma mudança desenvolvimental genuína” (Brofenbrenner, 1996, p.218). A colocação em Acolhimento Familiar constitui um momento de transição, de uma enorme extensão e significado, pelas alterações que acarreta e pelos novos papéis que atribui aos seus protagonistas. Constitui também um momento traumático, pelos maus tratos sofridos e que conduziram à colocação e pela retirada, pelo «desenraizamento» que provoca e que revela, amiúde, atrasos no desenvolvimento cognitivo, intelectual, emocional e social. Num território desconhecido, a criança vê-se confrontada com novos espaços de identificação, com outros lugares de encontro e de acção (Caballo et al., 1996).

As transições ecológicas podem ocorrer em qualquer um dos quatro níveis do meio ambiente: “o aparecimento de um irmão mais jovem é um fenómeno de microsistema, a entrada na escola transforma o exo num mesosistema, e emigrar para um outro país (ou talvez só visitar a casa de um amigo de um background socioeconómico ou cultural diferente) envolve atravessar fronteiras de macrosistema” (Brofenbrenner, 1996, p.22). No caso específico da transição inicial para um mesosistema, o seu potencial de desenvolvimento aumenta se a entrada no novo ambiente se der “na companhia de uma ou mais pessoas com as quais participou de ambientes anteriores (por exemplo, a mãe acompanha a criança à escola) ” (idem, p.163) e se as ligações entre os ambientes assentam na confiança mútua, no consenso de objectivos e na facilidade e extensão da comunicação. Pelo contrário, se no primeiro dia a criança vai sozinha à escola, “isto significa que entre a casa e a escola há um só nexo: a participação da criança em ambos” (Garbarino & Eckenrode, 1999, p.39).

O tipo de comunicação entre os meios também interfere no potencial de desenvolvimento que proporcionam, destacando-se a comunicação face a face e a carta ou nota pessoal. O mesmo se afirma em relação às informações, conselhos e experiências de que o indivíduo dispõe antes de entrar no novo ambiente. Uma vez no novo meio, “o desenvolvimento da pessoa é aumentado na extensão em que informações, conselhos e experiências válidas relevantes num ambiente são tornadas disponíveis, numa base continuada, para o outro” (Brofenbrenner, 1996, p.168).

Palavras que se aplicam na perfeição ao Acolhimento Familiar e que alertam para a importância da preparação da colocação e da fase inicial da estadia, da presença de um assistente social que funcione como uma pessoa de referência e de continuidade ao longo da transição, e que informe de modo adequado sobre o processo e o novo destino, da capacidade comunicativa e do relacionamento cooperante entre a acolhedores e família biológica, de que resultam inúmeras vantagens para o bem-estar da criança, bem como do respeito pela identidade e pelo património cultural e social da criança, que lhe possibilite falar aberta e livremente dos «seus dois mundos».

O desenvolvimento é igualmente intensificado se a criança ou jovem participa, ao longo dos anos, numa diversidade de ambientes estruturalmente diferentes, como sucede regra geral no Acolhimento Familiar, que requerem a adaptação a pessoas, tarefas e situações que estimula, por sua vez, o aperfeiçoamento das competências cognitivas e das habilidades sociais. Este pressuposto leva Bronfenbrenner a concluir que “os efeitos desenvolvimentais positivos da participação em múltiplos ambientes são aumentados quando os ambientes ocorrem em contextos culturais ou subculturais que são diferentes entre si, em termos de etnicidade, classe social, religião, faixa etária ou outros factores de background” (idem, p.164).

No que diz respeito ao mesosistema, mas também ao exosistema, o potencial de desenvolvimento dos seus participantes também varia de acordo com a existência de vínculos directos ou indirectos com os ambientes de poder, tanto na comunidade local como mais além, e na correspondente capacidade para influenciar a distribuição de recursos e a tomada de decisões.

Payne (2005, p.158) elenca diversas críticas que têm sido dirigidas à abordagem ecológica, nomeadamente, ser mais descritiva do que explicativa, não ser prescritiva, dificultar a mudança radical do sistema quando ela é necessária, em detrimento da sua manutenção, e usar uma linguagem técnica e complexa. Uma parte destas observações já terá encontrado resposta, ao longo da reflexão aqui exposta.

Parece essencial realçar que a abordagem ecosistémica se foca no interpessoal, que caracteriza a essência do Acolhimento Familiar. Com efeito, para a área onde nos situamos, proporciona um modelo descritivo e compreensivo que permite a identificação das múltiplas variáveis e factores no contexto do Acolhimento familiar, que evidencia os parâmetros que o definem, os processos que o caracterizam e os potenciais efeitos que pode produzir na integração social e no desenvolvimento das crianças. Nas palavras da Caride e Meira (1995), a perspectiva ecológica permite conhecer e intervir de múltiplas formas e com diversas finalidades, “seja como mera interpretação; como conteúdo para uma mudança de discursos; como suporte metodológico para aprender de acordo com renovados critérios de cientificidade; ou como oportunidade para situar-se nos postulados éticos que se reclamam para preservar o meio ambiente em condições de qualidade” (p.163). O enfoque ambiental ou comunitário abarca, pelo exposto, tanto “os modelos para analisar e interpretar os problemas sociais que afectam o menor como as estratégias de intervenção social (educativa, legal, urbanística, sanitária, psicoterapêutica…) que se articulam para prevenir a sua aparição ou para atenuar os seus efeitos” (Meira, 1999, p.71). À definição prática do fenómeno, segue-se a procura de explicações e a predição do resultado da intervenção, cientificamente fundamentadas (Howe, 1999; Triseliotis, Sellick & Short, 1995). Uma vez diagnosticada e analisada a má adaptação da criança ao meio, há que intervir nos diversos factores que geram a situação problema, procurando assegurar o seu desenvolvimento pessoal e a sua integração social. O Acolhimento Familiar é um dos processos que podem servir para esse fim.

 

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* Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto. jpfdelgado@iol.pt