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Revista Lusófona de Educação

Print version ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.14 Lisboa  2009

 

Estilos de liderança e escola democrática

Leonor Lima Torres* & José A. Palhares*

O sistema educativo português tem assistido, nas últimas duas décadas, ao aparecimento de medidas de política educativa cuja agenda reformista tem dado importância crescente às dimensões da gestão e da liderança escolares. Ao longo deste percurso marcado por ensaios e reajustamentos morfológicos nos órgãos de gestão, denota-se uma valorização crescente do papel das lideranças no desenvolvimento da autonomia das escolas. Percepcionada politicamente como uma solução óptima para a resolução dos problemas da indisciplina, do abandono e do insucesso, a liderança emerge paulatinamente como uma variável de controlo da excelência escolar, ao arrepio de uma cultura de gestão colegial historicamente enraizada nas escolas portuguesas. Apesar de serem claras as influências de inspiração neoliberal na forma como se reduz a realidade educativa a indicadores de natureza gerencialista, é interessante, mesmo assim, problematizar a natureza da relação entre os estilos de liderança e gestão e os resultados escolares e o seu impacto no desenvolvimento democrático da escola. Partindo da análise crítica aos Relatórios de Avaliação Externa das Escolas, elegemos como objectivo central deste texto a discussão dos significados conferidos a uma “boa liderança”, a uma “boa organização e administração escolar” e à sua eventual relação com os resultados escolares, de modo a compreendermos quais as tensões que este processo avaliativo comporta no plano das configurações e das práticas organizacionais das diferentes escolas-objecto. Interrogamo-nos se este processo não constituirá uma espécie de “missionarismo gestionário”, que subverte as lógicas de decisão autónoma e democrática das escolas.

Palavras-chave: Liderança escolar; democracia e participação; cultura de escola; avaliação externa das escolas.

 

Leadership styles and democratic school

The Portuguese education system has witnessed, in the last two decades, the emergence of educational policy measures whose reformist agenda has attached growing importance to school management and leadership dimensions. Along this path, marked by trials and morphological adaptations of management bodies, one notes greater acknowledgement of the role leadership plays in the development of school autonomy. Perceived as a politically sound response to the plagues of rising school indiscipline, underachievement and dropout, the leadership theme has been gradually emerging as a fundamental variable in the quest for school excellence, strongly opposed to the historically rooted collegial management culture so widespread in Portuguese schools. Despite the clear the influence of neoliberal thinking in this attempt to reduce school life to the mere expression of indicators of manageralist nature, it is interesting, nevertheless, to study/examine the nature of the relationship between leadership and management styles and school outcomes and the impact this relationship has on the democratic development of the school. In this sense, based on the critical analysis of the external evaluation reports of secondary schools, the central aim of this paper is to discuss the meanings generally attributed to “good leadership”, “good school organization and administration” to observe if it is possible to establish some form of link with school outcomes, to understand how the tensions unleashed by this evaluation process influence the organizational settings and practices of different school-objects. One question if this process may not, in fact, represent a “managerialist mission” whose “secret” agenda is to subvert and rewire the logic of autonomous and democratic decision making of schools?

Keywords: school leadership; democracy and participation, leadership, school culture; external evaluation of schools.

 

1. Ponto de partida: agenda política e sociológica

A escola pública tem sido submetida nos últimos anos a uma multiplicidade de medidas e programas reformadores com implicações visíveis aos níveis da sua organização e administração, das relações laborais e das identidades profissionais dos professores, do clima de trabalho e das metodologias pedagógicas, da reconfiguração das relações de poder e dos perfis de liderança, entre outras dimensões pertinentes. De entre os diversos patamares da administração e da organização escolar, o campo da gestão e da liderança destacou-se como um dos mais dilemáticos e controversos no actual contexto das políticas educativas, justamente por representar o espaço onde se disputam e entrecruzam, por um lado, os valores da cidadania e da participação democrática e, por outro lado, os valores do gerencialismo e da eficácia técnica.

A agenda política e governativa portuguesa inscreveu, na actualidade, a liderança (unipessoal) enquanto variável determinante para o funcionamento eficaz dos estabelecimentos escolares. Por sua vez, no plano teórico-conceptual as investigações recentes têm vindo a reavivar velhas tipologias de liderança inscritas no património estruturante da Teoria Organizacional, para explicar (e mesmo suportar) as actuais mudanças nas escolas. Proliferam estudos sobre os processos de liderança escolar, diversificam-se as perspectivas teóricas de análise, accionam-se diferentes metodologias de investigação. Não obstante, na intersecção destas diversidades é possível identificar como elemento agregador a assunção de uma ideologia de tipo gestionário, herdeira do movimento das escolas eficazes, que coloca a tónica na relação linear entre liderança, resultados e eficácia organizacional.

O presente texto procura debater criticamente os sentidos da relação entre os processos de liderança, os modos de organização e gestão e os resultados escolares, partindo de um enfoque cultural e simbólico. Os espaços-tempos de desenvolvimento da gestão e da liderança são perspectivados enquanto loci de produção e reprodução de cultura e, nesta óptica, relevam-se como instâncias de regulação cultural e simbólica. Tentaremos explorar esta problemática a partir da análise dos Relatórios de Avaliação Externa das Escolas, relativos aos anos de 2006, 2007 e 2008, fazendo convergir a nossa reflexão para a discussão das seguintes questões orientadoras:

i)Haverá alguma relação entre a liderança, a gestão e os resultados escolares?

ii)Qual a matriz dominante de “boa liderança” e de “boa organização e gestão escolar” na óptica dos avaliadores?

iii)Que tipo de tensões poderá comportar a avaliação externa no plano das configurações e das práticas organizacionais das diferentes escolas-objecto?

iv)Que repercussões poderão resultar do processo de avaliação externa das escolas ao nível do seu desenvolvimento democrático?

Numa altura em que se assiste à generalização do processo de avaliação externa das escolas e, simultaneamente, está em curso a implementação do modelo de gestão que substitui os Conselhos Executivos pela figura do Director, propomo-nos fazer emergir, nas linhas subsequentes, as imagens dominantes de escola veiculadas pelo Grupo de Avaliação, assim como debater as suas implicações ao nível do funcionamento democrático da instituição pública de educação. E é num quadro de inspiração sociológica que nos ocorre perguntar se a actual intensificação de uma cultura de avaliação das escolas não se estará a impôr como uma nova forma de regulação, cujos efeitos se poderão traduzir no nivelamento e no enfraquecimento da autonomia das organizações escolares?

2. Sentidos dominantes de governo das escolas: a cultura e a liderança como técnicas de gestão escolar

A instituição escolar surge nos primeiros anos do século XXI vergada ao peso de uma dupla responsabilidade social, que paulatinamente vem gerando certezas sob o impulso da ideologia política dominante: a escola terá falhado na sua missão de suprimento de mão-de-obra suficientemente qualificada, adaptável e flexível face às necessidades reais do mercado de trabalho; por conseguinte, e porque sobre ela recaem os desafios de preservação das estruturas e das relações sociais do mercado capitalista, será necessário assumir-se a reorganização das instituições educativas à luz das necessidades de uma sociedade cada vez mais global e competitiva. E deste modo, “[...] a educação converte-se num produto, tal como o pão ou os carros, e a única cultura que vale a pena abordar é a ‘cultura empresarial’ e as destrezas flexíveis, conhecimentos, disposições e valores, necessários para a competição económica” (Apple, 1999: 47; aspas no original).

Para alguns autores, assiste-se ao surgimento de um “novo paradigma de governo educacional”, a um “novo consenso” baseado “[...] numa concepção única de políticas para a competitividade económica, ou seja, o crescente abandono ou marginalização (não no que se refere à retórica) dos propósitos sociais da educação” (Ball, 2001: 100). Se bem que a hegemonia deste novo paradigma – que no relatório da OCDE (1995: 8), Governance in Transition: Public Management Reforms in OECD Countries, se apresentava sob a designação de “novo paradigma da gestão pública” – não afecte de forma determinista e homogénea todos as realidades sociais e educacionais, não deixa de constituir uma moldura político-ideológica omnipresente com fortes implicações ao nível das políticas e práticas educacionais. Desde logo, ao analisar as implicações deste “novo paradigma” no campo educativo, S. Ball enuncia os três elementos-chave responsáveis pelas recentes mutações nesse campo: a forma do mercado, a gestão e a perfomatividade. A tranversalidade destes três imperativos às várias reformas educativas em curso em vários países, apesar das suas manifestações mais ou menos híbridas, multifacetadas e aditivas, denuncia processos multicomplexos de viragem e de transformação do domínio educativo.

Vários estudos desenvolvidos sobre as políticas educativas no advento e apogeu das ideologias neoliberais e no quadro dos processos de globalização (cf., entre outros, Apple, 1999; Ball, 2001; Teodoro, 2001, 2003, 2005; Lima 1994; Afonso, 1998; Estêvão, 1998, 2002; Lima & Afonso, 2002) sublinharam que uma das tendências mais generalizadas ao nível dos sistemas educativos se prende, em larga medida, com a sua progressiva mercadorização, associada às políticas de livre escolha, à privatização dos seus serviços, ao apelo da excelência escolar como valor supremo; mas em sentido contrário, regista-se igualmente uma tendência para a recentralização da educação (Lima, 1995, 2005), cujos indicadores mais expressivos a reter são: a expansão dos currículos nacionais, a imposição de exames nacionais e a implementação de esquemas de avaliação interna e externa das escolas. Estas tendências ao constituirem “partes de uma mesma equação (contraditória) que procura resolver a exigência simultânea de mais e menos Estado” (Afonso, 1998: 120), oriundas da convivência não pacífica entre ideologias neoconservadoras e ideologias de feição neoliberal, encontram como principal força motriz o pressuposto de que “organize-se a escola e tudo o resto se ordenará por arrastamento” (Apple, 1999: 36).

O libelo político-ideológico que impende e se avoluma quotidianamente sobre a esfera educativa, no que aos mais variados problemas económicos e sociais diz respeito, transformou particularmente a instituição escolar num terreno favorável à eclosão de reformas várias, em última instância, geradoras das mudanças desejadas. Das escolas espera-se não só o cumprimento das novas orientações centrais como também a sua responsabilização pela procura das soluções mais eficazes para o seu desempenho. Ao deslocar-se (subtilmente) o cerne das políticas educativas para preocupações mais centradas nos resultados, não custa admitir que os valores emergentes (como eficácia, a competitividade, a perfomatividade, entre outros) introduzam alguma conflitualidade e erosão nos valores democráticos e participativos consagrados na organização escolar.

Esta crescente e redobrada pressão exercida sobre a escola, compelindo-a a adoptar modelos de administração e gestão tipicamente empresariais, arrastou consigo todo um movimento investigativo que passa a colocar no centro das suas prioridades o estudo das dimensões culturais da escola, fundamentalmente numa perspectiva gestionária e instrumental. Se bem que as dimensões culturais da escola tenham constituido um objecto de estudo privilegiado na década de oitenta do século XX, o certo é que o quadro político-axiológico emergente encetou o deslocamento dos interesses investigativos para as dimensões mais instrumentais, tecnicistas e pragmáticas da administração da educação.

Ao imputar-se ao sistema educativo a responsabilidade exclusiva pela fabricação de competências úteis, adaptáveis e mobilizáveis no mercado de trabalho, e ao sujeitá-lo a mecanismos de avaliação da sua eficácia, nomeadamente através dos exames nacionais e de esquemas centralizados de avaliação das escolas (com ou sem publicação de resultados), criaram-se as condições para infiltrar no mundo escolar as mesmas lógicas e valores que enformam o mundo económico. A produtividade de sucessos escolares pré-formatados a partir de perfis centralmente adoptados e globalmente definidos, traduzidos essencialmente por competências para competir (Lima, 2007), passa a constituir o mais importante indicador do grau de eficácia e de excelência escolar que se deseja alcançar. Ao assemelhar-se a uma espécie de barómetro, esta medida personificará a qualidade do estabelecimento de ensino, a sua capacidade competitiva e funcional face aos ditames de uma economia de mercado globalizada.

Neste seguimento, a cultura da escola vista numa óptica de integração, de partilha, de comunhão dos objectivos e valores da organização assume uma relevância significativa, na medida em que passa a ser vista como um mecanismo de estabilização social, fundamental para o alcance das metas desejadas. À semelhança do que se vai passando nos contextos empresariais, multiplicam-se nos contextos escolares estudos sobre a cultura organizacional que visam ensaiar fórmulas de gestão da cultura.

No que concerne à realidade portuguesa, assiste-se, entretanto, a um movimento algo peculiar: enquanto no domínio científico as abordagens sobre a cultura organizacional escolar tendem a adoptar um enfoque predominantemente crítico e reflexivo, no campo da política educativa proclama-se a sua importância como uma técnica de gestão da eficácia escolar. Quer no plano operacional das medidas legislativas, quer ao nível dos discursos legitimadores das opções políticas, depreende-se uma concepção essencialista de cultura organizacional escolar, assente numa crença de tipo monocultural, que apenas considera como cultura aquilo que é efectivamente partilhado pelos actores. A cultura, neste sentido meramente integrador, representa tão-somente os padrões simbólicos efectivamente partilhados pelos actores escolares. Culturas escolares fortes e integradoras, expressas por um elevado sentido de pertença e de identidade organizacional, são percepcionadas como promotoras do sucesso escolar e da eficácia organizacional. Neste sentido, uma liderança unipessoal, centrada na figura do Director, representará a “cola” ou o “cimento” que irá solidificar a cultura da escola.

Esta imagem dominante de cultura e liderança escolar, mesmo que contrariada por inúmeros trabalhos de investigação que evidenciam a presença de múltiplas manifestações culturais, remete-nos para uma visão mecanicista de escola, herdeira dos modelos racionalistas da organização. Para além de nato, o líder deverá, em termos de ideal-tipo, ser treinado (e.g. pós-graduado em administração educacional) e ajustável aos múltiplos contextos em que está inserido. Mas enquanto rosto da autoridade e “actor-cimeiro” da vida da escola (Deal, 1992: 4), o líder assumirá também funções de gestão e manipulação da cultura, no sentido de garantir a mobilização colectiva convergente com a missão e visão instituída centralmente para a escola.

Em contraciclo com esta ideologia, o processo de construção da cultura nas organizações escolares e as suas múltiplas manifestações têm merecido particular atenção em diferentes estudos. Longe de reflectirem apenas a imagem do líder, as culturas desenvolvem-se e sedimentam-se no tempo, através das distintas apropriações e modelações do quotidiano organizacional levadas a cabo pelos actores. Destas reacções (colectivas ou sectoriais) aos constrangimentos estruturais (internos e/ou externos) nascem e instalam-se progressivamente os costumes, os hábitos, as rotinas, os rituais, simbolicamente enraizados e difundidos no todo organizacional. Apesar de aparentemente invisíveis ao olhar do gestor escolar, este tipo de camadas sedimentares transforma-se, na long durée, em regularidades culturais, naquilo a que se convencionou designar de ethos organizacional – uma espécie de matriz simbólica que dá espessura identitária ao quotidiano dos actores (Torres, 1997, 2004). Por outro lado, é possível encontrar no seio das organizações escolares pelo menos três tipos de cultura, consoante o grau e a especificidade das suas manifestações: a cultura integradora, quando o grau de partilha e de identificação colectiva com os objectivos e valores da organização escolar é elevado; a cultura diferenciadora, quando o grau de partilha cultural apenas se restringe ao grupo de referência, sendo provável a coexistência de distintas subculturas no mesmo contexto organizacional; por fim, a cultura fragmentadora, quando se constata o grau mínimo de partilha cultural, frequentemente adstrita à mera esfera individual (cf. Meyerson & Martin, 1987; Martin & Meyerson, 1988; Frost, Moore, Louis, Lundberg & Martin, eds., 1991; Martin, 1992, 2002).

A questão nuclear não será a de saber se a escola tem ou não uma cultura, no sentido integrador, mas, sobretudo, conseguir identificar diferentes manifestações culturais num determinado contexto, compreender os múltiplos processos que presidem à sua construção e conhecer o seu real impacto ao nível dos processos de gestão e liderança. Nesta óptica, a coexistência numa determinada escola de diferentes formas culturais rompe claramente com a imagem monocultural dominante, a partir da qual se edificaria um perfil ideal de liderança. Ao contrário, admitir-se que as organizações escolares se caracterizam pela diferenciação e fragmentação cultural, pressupõe que não se ignore a historicidade dos múltiplos processos de gestão e liderança, estes mesmos ancorados significativamente em mecanismos colegiais e participativos, de construção de consensos e de superação de conflitos, a fortiori estruturantes do processo de democratização da educação. Mas, submetida à pressão de várias tutelas – europeia, nacional e local –, sobredeterminadas pelas agendas de elites europeias e de interesses económicos supranacionais, a instituição educativa tende a transformar-se mais num “laboratório” de amestramento dos actores do que num espaço de construção e desenvolvimento da cidadania democrática.

3. Desenho da investigação

Produzidos entre os anos de 2006 e 2008, os Relatórios da Avaliação Externa das Escolas representam os pilares sustentadores de um programa político centrado no controlo, na medição e na aferição dos resultados dos estabelecimentos de ensino básico e secundário. Na sequência de uma série de acções e medidas legislativas promovidas pelo XVII Governo Constitucional, o programa de avaliação externa inicia experimentalmente a sua fase piloto em 2006 com a avaliação de 24 “unidades de gestão” (leia-se escolas e agrupamentos de escolas), a cargo de um Grupo de Trabalho constituído por Despacho conjunto do Ministro de Estado e das Finanças e da Ministra da Educação (Despacho conjunto n.º 370/2006, de 5 de Abril), prosseguindo nos anos seguintes com as 2ª e 3ª fases, agora já sob a responsabilidade da Inspecção-Geral da Educação.

De um total de 400 “unidades de gestão” avaliadas e de que resultaram igual número de relatórios, seleccionamos para este estudo o universo das 165 escolas não agrupadas, distribuídas pelas diferentes regiões do país (cf. colunas sombreadas da tabela1), deixando para uma segunda fase da nossa pesquisa a análise dos relatórios concernentes aos agrupamentos de escolas e dos respectivos contraditórios, no caso de estes terem sido produzidos. As razões desta selecção prendem-se, grosso modo, com as especificidades organizacionais inerentes a estes dois tipos de unidades de análise (escolas e agrupamentos de escolas) e suas implicações ao nível da avaliação dos domínios-chave. Do referido universo dos 165 Relatórios de Avaliação Externa eliminámos quatro, por configurarem realidades organizacionais muito específicas e distintas das configurações típicas das escolas secundárias com ou sem 3.º ciclo do ensino básico, ou escolas do 3.º ciclo com ensino secundário. Apesar de termos efectuado uma leitura global de todos os relatórios, seleccionamos para análise mais aprofundada os domínios dos “resultados”, da “organização e gestão escolar” e da “liderança”.

Tabela 1
Constituição da amostra: escolas não agrupadas (ES, ES3, EBS) por Direcção Regional

Após a introdução informática (em SPSS) de um conjunto de variáveis construídas a partir das informações disponibilizadas pelos relatórios (tais como direcção regional, antiguidade, origem, dimensão) e das respectivas classificações atribuídas a cada domínio específico, a nossa incursão analítica privilegiou a caracterização global das escolas ao nível dos resultados da avaliação e das suas correlações com algumas dimensões sociais, regionais e organizacionais. Num momento posterior impôs-se uma abordagem de índole interpretativa aos relatórios de avaliação, tendo-se recorrido, mais especificamente, à análise de conteúdo das dimensões estruturantes dos três domínios referidos.

Saliente-se, por fim, que a leitura dos diversos relatórios apelou a um exercício de vigilância crítica e metodológica. Apesar de as equipas de avaliação adoptarem os mesmos referenciais de base, nem sempre é possível encontrar nos vários textos produzidos os elementos essenciais a uma boa caracterização das escolas. Além disso, são notórios distintos registos de análise da realidade escolar em avaliação, o que se traduziu, para nós, em limitações à reflexão sociológica encetada a partir deste prisma de observação.

 

4. Perfil social e organizacional das escolas avaliadas

Integraram o corpus empírico deste trabalho 161 relatórios de avaliação de escolas distribuídas por diferentes regiões do país, com prevalência para as regiões do Norte e de Lisboa e Vale do Tejo (cf. gráfico1), congregando as respectivas Direcções Regionais (DREN e DREL) mais de dois terços das escolas selecionadas. Em termos de ano de referência, o gráfico 2 mostra-nos que mais de 60% das escolas foram avaliadas em 2007-08 (3ª fase).

A grande maioria das escolas apresenta a configuração de escola secundária com 3.º ciclo ou de escola básica do 3.º ciclo com secundário, sendo que apenas 30% das mesmas restringe a sua oferta escolar ao ensino secundário. Quanto à identidade fundacional da instituição, constatamos umarealidade escolar diversificada, com a presença de escolas recentes, construídas no pós-25 de Abril e vocacionadas para o ensino básico e secundário (43,5%), mas também escolas mais antigas, herdeiras do ensino liceal (15,5%) e do ensino técnico, industrial e comercial (21,1%) (cf. tabela 2). Em cerca de 20% dos relatórios não foi possível identificar a origem da escola. No que se refere à dimensão das escolas, a amostra recobre uma variedade de situações, muito embora prevaleçam as escolas de média e grande dimensão, em número de alunos, professores e funcionários.

Apesar de alguns relatórios serem omissos no fornecimento de indicadores relativos aos principais actores escolares, foi possível, mesmo assim, calcular os rácios alunos/professores e alunos/funcionários. Como se pode observar nos gráficos 3 e 4, 90 escolas (aproximadamente 60 %) apresentam um rácio aluno/professor maior ou igual a 8 alunos, enquanto que em 79 escolas (cerca de 52%) existem 23 alunos ou mais por cada funcionário. A aludida variedade na dimensão das escolas reflecte-se, por exemplo, no facto de o valor mínimo e o valor máximo do rácio alunos/professores se situar, respectivamente, nos 4 e nos 13 alunos; no caso da razão alunos/funcionários o intervalo alarga-se, encontrando-se entre os 11 e os 50 alunos.

Tabela 2

Caracterização das escolas seleccionadas (n= 161)

Relativamente à caracterização sócio-cultural dos agregados familiares dos alunos, as escolas avaliadas reflectem a heterogeneidade e complexidade da sociedade portuguesa, desde casos em que a escola se encontra implantada em meios sociais e económicos desfavorecidos, com taxas elevadas de desemprego e de analfabetismo, até à sua implantação em zonas económica e culturalmente favorecidas, com níveis elevados de escolarização e de inserção profissional das famílias.

 

5. Tendências globais da avaliação externa das escolas: sentidos em confronto

Os dados observados no gráfico 5 expressam uma classificação bastante positiva das escolas em todos os domínios avaliados. À semelhança do que se fez no Relatório Nacional de 2006-2007, da autoria da Inspecção-Geral da Educação, se conjugarmos as classificações de Muito Bom e de Bom para os cinco domínios, também aqui a “liderança” (90,7%) e a “organização e gestão escolar” (91,9%) aparecem destacados. Não obstante as semelhanças na disposição global das classificações, estas assumem no nosso estudo valores ainda mais positivos, o que se explica, não só pelo maior número de escolas avaliadas na 3ª fase (2007-2008) como também pela elevada frequência das classificações de Bom e Muito Bom na generalidade dos domínios.

Sendo cada vez mais insistentes as críticas ao modo de funcionamento das escolas básicas e secundárias e numa altura em que está em curso a implementação de um novo modelo de gestão escolar, interrogamo-nos, por conseguinte, sobre os fundamentos deste movimento político-social-económico, já que, afinal de contas, o cenário traçado pelos avaliadores não parece ser problemático para estruturas de liderança e gestão escolares. Pelo contrário, se após o crivo dos avaliadores transparece um diagnóstico globalmente positivo sobre o funcionamento das escolas, então a nossa perplexidade sociológica só poderá encontrar respostas, numa démarche futura, ou no debate sobre as estratégias metodológicas e os instrumentos de pesquisa empírica por aqueles adoptados, ou na compreensão dos sentidos inerentes às transformações desejadas para a instituição escolar.

Gráfico 5

 

Por razões que se prendem com a necessidade de circunscrever o debate, optamos por tentar compreender apenas o significado de Muito Bom atribuído aos vários domínios, não só porque corresponde ao patamar cimeiro da classificação utilizada mas igualmente porque veicula uma concepção ideal-típica de escola, supostamente com níveis de desempenho consistentes e referenciáveis, com “um carácter sustentado e sustentável no tempo” (Azevedo & Ventura, coord., 2007: 13). De entre um vasto conjunto de cruzamentos estatísticos efectuados, na procura de tendências e relações inerentes a este nível de classificação, destacamos a seguinte síntese no que respeita aos domínios “resultados” e “organização e gestão escolar” (cf. gráfico 06): as escolas avaliadas com Muito Bom estão localizadas na sua grande maioria na região Norte e área metropolitana de Lisboa e Vale do Tejo, são organizações mais antigas, de grande dimensão, com rácios mais elevados (alunos/professores e alunos/funcionários) e aonde predomina a oferta de ensino básico e de secundário.

Gráfico 6

 

Do ponto de vista da “liderança” voltamos a encontrar os mesmos factores condicionadores da classificação Muito Bom, com a excepção da antiguidade da escola, que agora aparece numa ordem inversa: as escolas mais recentes tendem, na óptica dos avaliadores, a desenvolver uma melhor liderança (cf. gráfico 7). O sentido desta constatação não deixa de ser pertinente, sobretudo se tivermos em consideração as tendências observadas em diversos estudos internacionais e que apontam numa direcção oposta: as escolas mais antigas e de pequena dimensão são aquelas que melhores condições sócio-organizacionais apresentam para desenvolver uma gestão e liderança escolar mais sustentável (Hargreaves & Fink, 2007) e de tipo comunitário (Sergiovanni, 2004), associada à produção de bons resultados escolares.

Gráfico 7

 

As relações que se estabelecem entre as avaliações de Muito Bom nos domínios da “organização e gestão escolar”, da “liderança” e dos “resultados” são-nos dadas a observar no (triplo) gráfico 8. Se numa primeira leitura transparece o domínio da “liderança” como aquele cuja avaliação de Muito Bom mais parece explicar as classificações equivalentes aos demais domínios, porém, um olhar mais incisivo sobre os dados revela-nos também que aquele domínio foi o que mais classificações de Muito Bom obteve, o que não se traduziu, consequentemente, em mais avaliações deste nível nos outros dois domínios em análise. Por exemplo, se bem que a quase totalidade das escolas com Muito Bom no domínio dos “resultados” (13 escolas) ocorre em estabelecimentos de ensino com a mesma nota no domínio da “liderança”, por outro, os dados mostram-nos igualmente que escolas com “lideranças” Muito Boas apenas conseguiram classificações de Suficiente (6) e de Bom (50) no domínio dos “resultados”. Por sua vez, os testes de correlação efectuados às classificações atribuidas aos vários domínios mostram-nos correlações significativas (Spearman’s rho, p<0,01, 2-tailed), embora baixas e moderadas: os coeficientes entre “resultados” e “organização e gestão escolar” (0,395) e “liderança” (0,475) são inferiores ao registado entre “resultados” e “prestação do serviço educativo” (0,565); o domínio da “organização e gestão escolar” tem um coeficiente de correlação fraco com os “resultados” (0,395), mas com alguma relevância com o domínio da “liderança” (0,566); finalmente, este último domínio apresenta uma correlação de 0,475 para os “resultados” e de 0,586 no que concerne à “prestação do serviço educativo”. Em suma, os dados sugerem-nos a existência de relações entre os domínios da avaliação, não obstante a necessidade se buscar outros sentidos para a compreensão da realidade escolar. O facto de os “resultados” não encontrarem correlações privilegiadas quer com “a organização e gestão escolar” quer com a “liderança” relança o enfoque sociológico para outras dimensões de análise, porventura, externas ao contexto educativo da escola.

Gráfico 8

 

Se as relações entre os vários domínios não se revelaram suficientemente esclarecedoras, já o nível sócio-cultural dos pais e encarregados de educação parece evidenciar um potencial explicativo no que concerne ao domínio “resultados”. A tabela 3 procura ilustrar a expressividade de alguns indicadores sociais presentes em todas as escolas avaliadas com a classificação de Muito Bom. De uma forma geral, estas 15 escolas apresentam uma população discente proveniente de estratos sociais, económicos e culturais elevados, cujos indicadores mais relevantes são: acção social e escolar diminuta, nível de escolaridade dos progenitores elevado, estatuto sócio-profissinal dos pais médio-alto, condições favoráveis de apoio ao estudo, como é o caso da elevada percentagem de alunos possuidores de computador pessoal e de ligação à internet.

Tabela 3

Escolas com avaliação Muito Bom nos Resultados

 

6. Matriz dominante de “boa liderança” e de “boa organização e gestão escolar” na óptica dos avaliadores

A partir da análise de conteúdo efectuada aos três domínios seleccionados que obtiveram a classificação de Muito Bom, procuramos apreender, para além dos referenciais de avaliação enunciados nos Relatórios, os significados dominantes de bons resultados, de escola bem organizada e bem gerida e de boa liderança. A tabela 4 sintetiza as principais dimensões apontadas pelos avaliadores para fundamentar a classificação de Muito Bom ao domínio “resultados”. Para conseguir obter a classificação máxima a este domínio, as escolas tiveram de apresentar resultados académicos acima da média nacional e elevadas taxas de ingresso dos alunos no ensino superior. Em articulação com esta dimensão, valorizou-se o desenvolvimento de uma cultura de sucesso, rigor e exigência, assente em práticas de reflexão sobre os resultados e em estratégias de comparação com outras realidades escolares. Simultaneamente, foi valorizada a diversificação da oferta educativa e a sua estreita conexão com as estratégias de desenvolvimento local e regional, numa clara tentativa de aproximação da escola à comunidade. Os valores da disciplina, da ordem e do respeito pela autoridade constituiram uma importante matriz de referência, associada igualmente a um clima escolar pautado pelo bom relacionamento entre professores, alunos e funcionários. A existência de uma cultura escolar distintiva, expressa por um forte sentido de pertença e orgulho em relação à escola foi repetidamente referida como uma dimensão importante. Por fim, a abertura da escola à comunidade, aferida mais pelo grau (e não tanto pela natureza) da participação das famílias e dos alunos constituiu também um critério valorizado.

Tabela 4

Dimensões mais significativas de resultados Muito Bom (N=15)

Da análise efectuada, ressalta claramente uma sobredeterminação das dimensões centradas no produto (resultados académicos e na diversificação da oferta educativa) sobre as dimensões relacionadas com o processo (aspectos simbólico-culturais da organização escolar). A título ilustrativo, uma escola que se destaque pelas vertentes culturais mas que ao nível da avaliação e da oferta não apresente resultados acima da média nacional, dificilmente obterá a classificação máxima no domínio “resultados”. Por sua vez, o contrário teria implicações imediatas na classificação Muito Bom.

Tabela 5

Dimensões mais significativas de organização e gestão escolarMuito Bom (N=43)

A imagem dominante de escola bem organizada e bem gerida presente na tabela 05 remete-nos novamente para as dimensões mensuráveis da educação, inspiradas nos valores típicos da “cultura do novo capitalismo”, sugestivamente enunciados por Sennett (2006): a eficácia, a eficiência, a racionalização, a flexibilidade, a rotatividade. Todavia, a hegemonia destes valores, expressos nos relatórios numa linguagem economicista (“indicadores de medida”, “optimização de resultados”, “gestão rigorosa dos recursos humanos”), confronta-se com a apologia de outros princípios de natureza distinta: equidade, justiça e participação. Mas se analisarmos os significados atribuídos a estes princípios em função do contexto em que são mobilizados, depressa confirmamos a sua aproximação à ideologia de tipo gestionário. A participação dos actores na vida escolar é valorizada enquanto instrumento indutor de consensos, de comunhão e convergência de objectivos e interesses, enfim, de garantia de um clima e de uma cultura propícios à concretização eficaz dos objectivos educacionais. Se, por vezes, em alguns relatórios, parece desenhar-se uma conciliação entre os valores mais instrumentais da gestão empresarial e os princípios mais substantivos de natureza político-educativa, na maioria dos documentos analisados sobressai uma imagem de escola de feição tecno-burocrática, que subordina os valores da participação democrática aos imperativos do controlo e da medição de resultados.

Tabela 6

Dimensões mais significativas de liderança Muito Bom (N=69)

O paradigma dominante de organização e gestão escolar anuncia e antecipa um certo perfil de liderança que se articula com as lógicas da prestação de contas e de racionalização dos recursos. Com efeito, a centralidade que a liderança tem assumido nos discursos e nas medidas recentes de política educativa adquire, doravante, um significado mais expressivo: centrada na regulação dos resultados, a escola precisa de um “líder forte”, de um “rosto” que se responsabilize pela implementação eficiente de um projecto educativo que se pretende partilhado. Mas o significado de partilha é perspectivado mais como uma técnica de gestão de afectos do que de um processo resultante da participação democrática dos actores nas suas esferas significativas de acção. O que efectivamente é valorizado pelo Grupo de Avaliação é o perfil de desempenho da escola ao nível dos resultados, dependendo estes da eficiência com que os actores operacionalizem, nas periferias escolares, uma tecno-estrutura imposta por instâncias supra-organizacionais. Neste contexto, as organizações escolares, situadas abaixo e fora dos centros de decisão, são conceptualizadas como “escolas-reflexo” (Lima, 2008: 85) das orientações emanadas do aparelho central, cuja missão primordial é maximizar a produção de resultados.

A focalização na figura do Presidente do Conselho Executivo como referência para avaliar a liderança da escola subentende claramente uma imagem de liderança individual, contrariando a tradição das práticas de colegialidade culturalmente instituidas nas organizações escolares. Valoriza-se primordialmente o domínio de ferramentas de gestão que permitam a concretização das metas nas esferas do mercado (angariação de verbas, projectos e parcerias; inovação tecnológica; oferta educativa; indicadores de procura), do estado (eficiência dos processos e eficácia dos resultados, com monotorização e avaliação; qualidade e excelência) e da escola (cultura organizacional da escola). Transparece um perfil de liderança de tipo gestionário, reverencial e receptivo, orientado mais por uma lógica de prestação de contas (ao estado e ao mercado) do que por princípios de desenvolvimento da cidadania democrática. Nesta lógica as dimensões culturais da escola assumem-se como técnicas de gestão facilitadoras da concretização dos resultados, reforçando-se a crença culturalista de que o empenhamento, o comprometimento, as tradições culturais promovem a eficácia e a excelência escolar. Alguns registos retirados dos Relatórios ilustram bem a importância conferida às culturas integradoras e sua relação com a excelência:

Evidencia-se uma cultura muito própria, alicerçada num corpo docente de grande estabilidade e num empenho sistemático de manutenção das tradições culturais que definem o perfil e a identidade da escola (Relatório nº 24, p. 10).

A autoridade assenta na experiência e no culto da memória da escola, bem como na pressão de uma imagem externa e interna muito positiva, que coloca a Escola no topo das instituições escolares do concelho (Relatório nº 29, p. 11).

Os diversos agentes da comunidade escolar revelam-se bastante motivados e empenhados, devido a um clima de bem-estar e identificação com a escola, enraízado na cultura da instituição (Relatório nº 109, p. 11).

O processo de individualização da liderança, marcado por um perfil simultaneamente “forte” e “democrático”, parece, numa primeira leitura, sugerir uma conciliação entre os valores da competitividade e eficácia, que exigem uma gestão de tipo “cerebral e sinóptica” e os valores da cidadania democrática mais voltados para uma gestão “cultural e retroactiva” (Levacic, Glover, Bennett e Crawford, 1999). Todavia, os significados atribuídos pelos avaliadores à participação dos actores e à articulação desejável entre os vários órgãos da escola denuncia uma visão de participação convergente e formal, enquadrada mais numa lógica de desconcentração de poderes do que assente na negociação política dos processos educativos. Presente em vários relatórios, a seguinte citação ilustra o sentido das nossas asserções:

liderança forte, mas democrática, do Conselho Executivo, que impulsiona a articulação entre os vários órgãos, numa cultura de complementaridade, de acordo com a área de acção de cada um deles (Relatório nº 155, p. 10).

Intérprete-chave das exigências do estado e do mercado, o líder da escola tende a assumir funções instrumentais e mecanicistas, cada vez mais distantes de uma liderança como objecto da acção pedagógica, ou nas palavras de Sergiovanni (2004), liderança como pedagogia.

 

7. A liderança escolar como processo de regulação cultural e simbólica

Situada numa espécie de centro de confluência cultural, a organização escolar é, sem dúvida, um contexto propício ao desenvolvimento de complexas metamorfoses culturais construídas e sedimentadas no tempo e inscritas na memória colectiva da instituição. A imagem de escola como entreposto cultural, um espaço de cruzamento de culturas de proveniências diversas, permite desenvolver um olhar holístico sobre os processos de liderança, perspectivados simultaneamente como extensões e reflexos da cultura organizacional da escola e como relevantes factores de regulação cultural e simbólica.

Numa altura em que as políticas neoliberais tendem a instalar-se nas mais diversas esferas da vida social, o papel dos gestores escolares passa a assumir novos contornos ao serviço de diferentes objectivos e valores educacionais. Pressionados politicamente para o alcance de resultados, submetidos a múltiplos mecanismos de controlo, inspecção e avaliação, os actuais gestores e líderes escolares encontram-se no centro de uma verdadeira encruzilhada: por um lado, cabe-lhes preservar os princípios democratizadores inerentes à sua condição de gestores democraticamente eleitos; por outro lado, são coagidos externamente a incorporar um perfil de gestão progressivamente mais tecnocrático ao serviço dos valores da competitividade, da performance, dos resultados. A conciliação entre estas duas lógicas de sentido oposto, que confronta os valores da democracia e da participação com os valores da eficácia e da produtividade, tem vindo a fragilizar os processos de liderança escolar, ou nas palavras de Sergiovanni (2004: 13), a “colonizar o mundo-da-vida na vida moral das várias escolas locais”, tornando-as reféns das orientações externas. Entre a adopção de um perfil de liderança mais democrático e emancipatório e o recurso a um perfil de natureza mais tecnocrática e gestionária, interpõe-se o património cultural e identitário da escola, funcionando como uma matriz simbólica reguladora dos processos de gestão e liderança.

Embora culturalmente constrangidos e politicamente cerceados, os órgãos de governação da escola auferem de um estatuto central no aprofundamento dos valores democráticos, cabendo-lhes a difícil missão de reinventarem fórmulas de mobilização local dos actores e de reposição quodidiana do sentido cívico e democrático inerente à escola pública. A construção de uma “escola como oficina de cidadania democrática” (Sanches, 2007: 151) exigirá, entre outros aspectos, a interiorização da ideia de que qualquer processo de organização e administração educacional comporta inevitavelmente uma pedagogia implícita (Lima, 2000), que exprime determinados valores e princípios ético-políticos e, nesta óptica, mais do que se desenvolver como uma “especialidade técnica”, a governação das escolas “deve emergir como uma prática social, incorporando uma dimensão ética e crítica, e instituir-se como uma ‘especialidade educacional’” (Estêvão, 2001: 87).

 

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Documentos referenciados

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Oliveira, P. G.; Clímaco, M. C.; Carravilla, M. A.; Sarrico, C.; Azevedo, J. M. & Oliveira, J. F. (2006). Relatório Final da Actividade do grupo de Trabalho para a Avaliação das Escolas. Lisboa: Ministério da Educação.

Relatórios de Avaliação Externa das Escolas (2006, 2007, 2008).

 

* Docentes e Investigadores do Instituto de Educação, Universidade do Minho

leonort@iep.uminho.pt