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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.13 Lisboa  2009

 

Educação e transformação social hoje: alguns desafios político-pedagógicos

 

Danilo R. Streck*

 

O artigo discute as possibilidades e os limites de uma pedagogia transformadora hoje. A reflexão inicia com uma tentativa de identificar algumas características da educação de nosso tempo. São destacados dois fatos como possíveis norteadores de um exercício de síntese: a chamada crise das utopias e a reconfiguração dos tempos e dos lugares de ensinar e aprender, colocando em xeque principalmente o papel clássico da escola. Dentre os desafios, que ao mesmo tempo se colocam como horizonte, são destacados: a) a necessidade de ouvir as muitas vozes de dissenso, entre elas aquelas silenciadas; b) o empenho por transformar os espaços educativos, novos e antigos, em ethos de humanização; c) assumir a pluralidade de tempos como uma oportunidade de alargar a visão e fazer espaço em nossos mundos de vida para a diversidade de experiências.

Palavras-chave Transformação social; pós-modernidade; utopia; dissenso.

 

Education and Social Transformation Today: Some Political-Pedagogical Challenges

The article discusses possibilities and limits of a transforming pedagogy today. The reflection begins with an attempt to identify some characteristics of present day education. There are pointed out two facts that may be of particular importance for an exercise of synthesis: the so called crisis of utopias and the reconfiguration of spaces and temporalities of teaching and learning. Among the challenges, which at the same time can be considered the horizon, there are identified the following ones: The necessity to listen to the many voices of dissent, among them the silenced ones; b) the effort to transform the educational spaces, the new ones as well as the older ones, in a humanizing ethos; c) to assume the plurality of times as an opportunity the enlarge the vision and to make room in our life world for the diversity of experience.

Keywords: Social transformation; post-modernity, utopia; dissent

 

Tenho certeza de que em toda a história sempre existem pequenos lugares onde as coisas estão começando a se desenvolver, mas não acho que possamos chegar a elas intelectualmente ou fazendo levantamentos, pesquisas de opinião ou outras coisas deste tipo. (Myles Horton)1.

Pensar é servir. (José Martí).2

Sobre educação e transformação social

Antes de entrar em discussões sobre o papel da educação no atual contexto social e político, conforme sugerido pelo tema, convém colocar-nos algumas questões que ajudem a situar melhor a relação entre educação e transformação social3. Haveria uma ligação intrínseca entre ambos os conceitos? O que causa espanto ou dificuldade, hoje, nesta relação?

A idéia de mudança está na raiz do conceito que usamos para referir-nos a uma prática social constitutiva no mundo ocidental e cada vez mais em todas as partes o globo terrestre. Tanto a etimologia de educação quanto de pedagogia compreendem a idéia de movimento: educação – ex ducere: tirar, conduzir ou levar para fora; pedagogia – meninos (paídes), conduzir (ágo). Causa-nos surpresa ouvir que há culturas nas quais não existe termo equivalente àquilo que denominamos de educação (Hameline, 1985). Talvez seja difícil saber se por isso os povos são mais ou menos felizes, mas é um fato que coloca o desafio de localizar a perspectiva eurocêntrica que naturalizamos como universal e única.

A educação, na sua compreensão moderna, está associada com a concepção de perfectibilidade do ser humano (Rousseau, 1995) e do processo histórico como devir, como passagem de um passado para um futuro e, nos últimos séculos, como progresso. A educação passou a ser vista como fator chave para o avanço da ciência, para a eliminação dos problemas sociais e para o funcionamento das instituições democráticas.

Constatamos hoje que a própria noção de transformação social sofreu deslocamentos semânticos. É comum ver partidos e segmentos sociais identificados com políticas conservadoras assumirem a bandeira de mudanças, enquanto que setores historicamente progressistas são considerados reacionários diante das não poucas vezes agressivas políticas neoliberais que atropelam direitos duramente conquistados ao longo de décadas de lutas, em especial pelos trabalhadores. Cabe, então, a tarefa de repensar o significado da transformação social – ou, como diz Marco Raúl Mejía (1996) de reconstruir a transformação social e, por conseguinte, a pedagogia transformadora - a partir dos parâmetros sociais e culturais que orientam a atual sociedade.

A reflexão neste artigo inicia com uma tentativa de identificar algumas características da educação de nosso tempo. São destacados dois fatos como possíveis norteadores de um exercício de síntese: a chamada crise das utopias e a reconfiguração dos tempos e dos lugares de ensinar e aprender, colocando em xeque principalmente o papel clássico da escola. Dentre os desafios, que ao mesmo tempo se colocam como horizonte, são destacados: a) a necessidade de ouvir as muitas vozes de dissenso, entre elas aquelas silenciadas; b) o empenho por transformar os espaços educativos, novos e antigos, em ethos de humanização; c) assumir a pluralidade de tempos como uma oportunidade de alargar a visão e fazer espaço em nossos mundos de vida para a diversidade de experiências.

A educação de nosso tempo

No ano de 1883, José Martí (Martí, 2007, p. 81)4 no contexto da argumentação a favor de escolas de eletricidade, escrevia que “é criminoso o divórcio entre a educação que se recebe em uma época e a época”. Segundo ele, “educar é depositar em cada homem toda a obra humana que lhe antecedeu: é fazer de cada homem o resumo do mundo vivente, até o dia em que ele vive: é pô-lo em nível de seu tempo para que flutue sobre ele e não deixá-lo debaixo de seu tempo, com o que não poderá sair a flutuar; é preparar o homem para a vida”. Tratava-se, para Martí, de garantir o acesso à educação científica a todas as crianças e jovens, em contraposição à educação meramente livresca destinada apenas a uma classe privilegiada.

Um século depois (1984), Paulo Freire, ao ser perguntado sobre o papel da televisão, respondeu com palavras muito semelhantes: “Tenho a impressão de que o melhor que posso dizer, no começo da minha reflexão em torno desse problema, é: uma das coisas mais lastimáveis para um ser humano é ele não pertencer a seu tempo. É se sentir, assim, um exilado de seu tempo” ( p. 14). O contexto, aqui, era o acesso aos meios de comunicação modernos e sua influência na prática pedagógica. Logo adiante, no entanto, Freire ressalva que não se tratava de uma discussão de caráter tecnológico, mas político.

O tema proposto situa-se no âmbito do problema sobre o tempo em que vivemos. Mais especificamente, coloca-nos diante do desafio de compreender a possibilidade de uma educação emancipatória hoje. A polêmica sobre a identificação de nosso tempo como pós-modernidade (Connor, 1989)5 ou como modernidade posterior ou segunda modernidade parece, em si mesma, pouco produtiva. De fato vivemos, como em todos os tempos, a tensão entre rupturas e continuidades, e sabemos que em toda ruptura há continuidades e em toda a continuidade há também rupturas. As diferentes visões e versões têm a ver com o lugar onde nos posicionamos para mirar esta mesma realidade. Prefiro ficar com a idéia de Boaventura de Sousa Santos (1996, 2000) de que nos encontramos em um período de conflito e transição paradigmática.6

Nessa busca por situar-nos sobressai a sensação de que em nossa época convivem tempos diferentes. Vejamos esta observação de Freire (1995), falando do Brasil:

Minha terra é a coexistência dramática de tempos díspares, confundindo-se no mesmo espaço geográfico – atraso, miséria, pobreza, fome, tradicionalismo, consciência mágica, autoritarismo, democracia, modernidade e pós-modernidade. O professor que na universidade discute a educação e a pós-modernidade é o mesmo que convive com a dura realidade de dezenas de milhões de homens e de mulheres que morrem de fome (Freire, 1995, p.26).

Esta é a realidade com a qual estamos confrontados e que exige, a meu ver, uma pedagogia do encontro de tempos (Streck, 2001), que respeite esta diversidade de temporalidades que existem lado a lado e que resistem a enquadramentos. Paulo Freire é um pensador paradigmático para lidar com esta situação porque, mantendo-se fiel aos princípios de uma educação libertadora, ele soube reinventar-se nos tempos e nos espaços em que viveu. Ou seria por acaso que no fim da década de 60, no período das ditaduras na América Latina, ele escrevesse a Pedagogia do oprimido? Ou que no início da década de 90 ele propusesse uma Pedagogia da Esperança? Que seu último livro Pedagogia da Autonomia recolocasse a questão do sujeito a partir da prática docente?

A crise das utopias pedagógicas: O século XX foi fértil em grandes utopias pedagógicas, com viés ideológico e filosófico distintos, muitas vezes abertamente c ontraditórios. Um caso clássico é o debate entre a pedagogia não-diretiva inspirada em Carl Rogers (1969), e a educação behaviorista, de B.F. Skinner (1962,1972). Os dois partiam de pontos de vista diametralmente distintos acerca do papel dos fatores internos e externos na aprendizagem e na ação humana, mas para ambos a proposta pedagógica estava embutida numa visão ampla de sociedade e de ser humano. No caso de Rogers, tratava-se do ideal de auto-realização do indivíduo e da sociedade a partir de predisposições orgânicas. Para Skinner a utopia era a sociedade racional e cientificamente planejada, onde as próprias noções de dignidade e liberdade soariam obsoletas.

Surgiram em muitos lugares práticas pedagógicas que se orientavam por princípios dissonantes, fundados no sonho de um outro mundo. No Canadá surgiu um forte movimento de educação de adultos liderado por James Coady (1939). Os círculos de estudo, vinculados à formação de cooperativas, se espalharam rapidamente em boa parte do país. Nos Estados Unidos, o Centro Highlander, criado por Myles Horton (Freire e Horton, 2003), irradiou práticas educativas e sociais que tiveram papel decisivo na luta pelos direitos civis, especialmente o fim do racismo. A lista poderia ser continuada com nomes conhecidos como Summerhill (Inglaterra), Barbiana (Itália), entre dezenas de outros.

Ivan Illich, por seu turno, radicalizou a crítica à escola e defendeu uma sociedade sem escolas. A utopia de Ivan Illich (1972) completa o círculo de séculos de esforço por universalizar a escola como a instituição responsável pela formação das novas gerações. Segundo Illich, esta mesma escola se tornou a maior responsável pelos problemas da sociedade. A solução, portanto, não estaria em reformá-la, mas em aboli-la e buscar alternativas pedagógicas.

A América Latina não esteve fora deste movimento pedagógico que tinha em comum a não adaptação ao mundo vivido e busca de alternativas a partir das práticas educativas. Viu-se aqui, na segunda metade do século passado, a consolidação de uma prática educativa que tinha a transformação da sociedade desigual como um de seus princípios básicos. Era uma pedagogia do Outro (excluído, oprimido, marginalizado ou vítima), cuja situação clamava por mudanças radicais da sociedade.

Paulo Freire passou a representar uma referência para os movimentos que se identificavam com uma proposta educacional emancipatória, na América Latina e também em outros continentes. Para ele, a utopia como inédito viável ou como sonho possível tinha pelo menos três ingredientes: primeiro, a compreensão da história como possibilidade e não como determinação; segundo, a ação humana como ação histórica, portanto condicionada pelas circunstâncias concretas da vida; terceiro, a incompletude do ser humano como base para a sua permanente busca pelo ser mais.

Experimenta-se hoje o pensamento utópico em doses muito mais reduzidas. A Escola da Ponte, criada por José Pacheco na Vila das Aves, em Portugal, com certeza é uma escola diferente, onde alunos e professores fazem do ato de ensinar e aprender uma experiência prazerosa e relevante para as suas vidas. A Universidade Popular Comunitária, de Cuiabá, envolve os artisentis (em vez de professores) e coartisentis (em vez de alunos) em relações de ensinar-aprender bastante diferentes daquelas de uma sala de aula comum (Góes e Passos, 2006). Semelhantes a estas há inúmeras experiências utópicas espalhadas pelo país e pelo mundo, mas dificilmente alguma delas ousaria colocar-se como paradigma geral.

Corre-se hoje o risco de o cotidiano, com suas necessidades imediatas, sufocar a busca de alternativas. Na ausência de utopias diz Marco Raúl Mejía (1996, p. 33), “um pragmatismo do contratual começa a resolver as angústias das necessidades imediatas em termos de quem pode provê-las, mais que em função de um sistema global que as avalize”. Por outro lado, percebe-se uma nova constelação do pensamento utópico em forma de redes ou de fóruns. As “centrais únicas” deram lugar a espaços diferenciados que se interconectam de modo mais ou menos permanente de acordo com necessidades, interesses e circunstâncias. O melhor exemplo disso possivelmente seja o Fórum Social Mundial, o qual não pretende ser um meta-organismo internacional, mas um espaço de encontro para pessoas, grupos e entidades com um mesmo objetivo definido no slogan “Um outro mundo é possível” (Streck, 2004; Gadotti, 2007).

A reconfiguração dos lugares e dos tempos do aprender-ensinar: Os tempos e lugares da prática educativa são criações históricas e, neste momento de crise e transição paradigmática, estão envoltos em um sem número de dificuldades que se manifestam em sintomas como o mal-estar docente e a aparentemente incontrolável evasão dos alunos. Parece ser uma evidência de que nem professores nem alunos se sentem à vontade neste lugar criado para que, segundo Comenius (1957), todos aprendessem tudo de todas as formas. Há em sua Didática Magna, escrita entre 1627 e 1657, uma preocupação em definir os então novos tempos e espaços pedagógicos tornados possíveis com a impressão de livros. O entusiasmo era tanto que Comenius chega a comparar a própria escola a uma tipografia, onde se poderia imprimir nas crianças todos os conhecimentos disponíveis. Esta mesma preocupação também está presente na Ratio Studiorum da Companhia de Jesus.

Hoje, sentem-se descompassos de várias ordens. Uma vez, é a dificuldade de a escola “fazer” caber dentro de si todas as culturas de um lugar. Nesse sentido, Freire já alertava para o fato de que a evasão é mais propriamente uma expulsão das crianças, especialmente os meninos das classes pobres. Em recente visita a um centro de atendimento de crianças e jovens da periferia de São Leopoldo (RS), as educadoras relatavam como as crianças que participavam dos projetos resistiam à sua reinserção nas escolas. Precisam por isso ser inventadas bolsas e outros mecanismos para manter as crianças num lugar supostamente bom de estar porque ali seriam aprendidas as coisas importantes para a vida.

Outro descompasso está relacionado com o acesso às novas tecnologias de informação e comunicação e o modo como estas afetam a relação com o conhecimento. Um período de quatro horas com um professor, numa sala de aula com quadro e alguns livros, no tempo em que se transcreviam para o caderno informações sobre o nome de capitais e rios, tinha um sentido muito diferente de hoje, quando estas mesmas informações podem ser acessadas de qualquer lugar onde haja um computador conectado à rede. Há uma outra temporalidade, as funções do professor são diferentes e os alunos têm muito mais consciência da diversidade de informações disponíveis.

A escola convive com estas ambigüidades. Ela ainda se coloca como um lugar indispensável por legitimar os saberes que dão acesso ao mundo do trabalho. As classes populares sabem muito bem disso e, com todos os problemas vividos no interior da escola, ela é uma reivindicação permanente. Por exemplo, nas deliberações do Orçamento Participativo a educação, quase sempre entendida como escola, consta entre as primeiras prioridades definidas pelas comunidades. Por outro lado, há uma diversidade de “ofertas” educacionais que tornam a escola cada vez mais um entre outros lugares e tempos de aprendizagem. Os pais sabem disso e quem pode compra serviços educacionais que garantam competências necessárias para a inclusão na sociedade em posições de vantagem, desde cursos de informática e línguas estrangeiras a cursos pré-vestibulares.

No campo da pedagogia emancipatória, a educação popular foi entendida como intervenção pedagógica em espaços e processos sociais tão diferentes como sindicatos, comunidades eclesiais e grupos étnicos. Há um acúmulo de experiências que permitem repensar o conjunto dos lugares e tempos de ensinar e aprender, bem como cada um deles individualmente. Existem inúmeros exemplos de escolas cuja cara foi mudada porque decidiram ter a realidade da comunidade como ponto de partida e como ponto de chegada de sua ação educativa e nesse processo encontraram os outros lugares e os outros tempos onde crianças e jovens aprendem e ensinam. Como ponto de partida no sentido de buscar conhecê-la e como ponto de chegada no sentido de contribuir para a sua transformação.

Alguns horizontes de desafios

1. Escutar as vozes do dissenso: No ano de 19897 um economista designou de “consenso de Washington” aquelas que seriam diretrizes para o desenvolvimento da América Latina na linha de pensamento neoliberal. O nome não tem a ver com a decisão formal de algum órgão representativo e também não com uma orquestração maquiavélica de políticos e economistas. O consenso indica simplesmente uma suposta unanimidade quanto aos rumos da política, sem necessidade de justificativas.8 Conforme Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 330), à medida que a canibalização da emancipação social pela regulação social se converteu no mega-senso comum do fim do século XX, a regulação social não tem de ser efetiva para florescer: ela floresce simplesmente porque a subjetividade é incapaz de conhecer e de desejar saber como conhecer e desejar para além da regulação.” Certas escolhas se revelavam apenas como naturais dentro da conjuntura da economia capitalista globalizada.

Na educação este consenso penetrou na forma de padrões e medidas do desempenho educacional que avaliam desde a capacidade das crianças nos primeiros anos de escola até a produção científica. As reformas educacionais em todos os continentes tiveram alguns ingredientes comuns, que simplesmente se impunham como óbvios para os gestores dos sistemas educacionais. A entrada do conceito de gestão no vocabulário educacional é um exemplo deste consenso. Dizem Poel e Poel (2007, p. 63): “A escola é reduzida a uma empresa, inclusive com a introdução de uma nova linguagem. Não há mais diretores, mas agora são gestores que recebem cursos de liderança empresarial”.

Em Paulo Freire encontramos a constante recusa em aceitar que as coisas são assim, como por acaso ou por força de um destino. A História, para ele, é possibilidade e não determinação. “O mundo não é. O mundo está sendo” (Freire, 1996, p. 85). Daí que o estar no mundo implica necessariamente fazer opções, tomar decisões e intervir na realidade.

Um dos desafios para a educação, hoje, significa ouvir as vozes do dissenso (Medeiros, 2007) que se manifestam como resistência, como insurgência (Moretti, 2007) ou simplesmente como estratégias de sobrevivência. São estratégias pedagógicas geralmente clandestinas (Streck, 2006) e que, dada a sua invisibilização, são fragmentadas e dificilmente encontram espaço em nível de teorização.

2. Transformar o espaço educacional em um ethos humanizador: No início da Pedagogia do Oprimido (1981, p. 30) Paulo Freire anunciava a humanização como tarefa permanente que naquele momento histórico assumia uma urgência ineludível. A humanização, assim como seu oposto, a desumanização, são tanto viabilidades ontológicas quanto realidades históricas fundadas na incompletude humana. “Ambas, na raiz de sua inconclusão, que os inscreve num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e consciente de sua inconclusão.” No entanto, ele ressalta a seguir, só a primeira corresponde à vocação do ser mais.

Seria difícil dizer se hoje esta tarefa é mais ou menos urgente do que nos anos 60 do século passado, mas não faltam dados de nossa realidade cotidiana e do mundo à volta para continuar colocando a desumanização como preocupação de nossa atenção no campo pedagógico. Também a pergunta pelo que significa ser humano passa hoje por novas questões (Streck, 2006a). Por exemplo, os avanços nas pesquisas na área da biologia e da informática põem em xeque o que se considerava natureza humana. Sofisticados instrumentos e próteses funcionam como prolongamentos do organismo e com ele se confundem. De igual modo, a consciência da diversidade cultural não mais permite que se naturalizem determinadas atitudes e práticas tidas como inscritas de alguma forma na natureza humana.

Um desafio, então, é recolocar a pergunta pelo que significa ser humano neste encontro de tempos, pelo tamanho que concedemos ao ser humano. É uma questão que sempre esteve na pauta da reflexão pedagógica e que já foi muito bem posta por Rousseau (1995, p.45): “Que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem.”

A pergunta acima não requer apenas uma resposta teórica. Do desafio de ter presente esta pergunta na prática educativa decorre outro, qual seja, o de transformar cada espaço educativo num ethos promotor de humanização (Streck, 2006b), ou, se quisermos, do ser mais de que falava Freire.

A construção deste ethos9 (Adams,2007) se assemelha à construção de uma casa. A construção da casa não começa com a compra de tijolos ou a contratação de um pedreiro. Ela começa com o ato de sonhar a casa que se deseja construir. Queremos um jardim? Haverá um canto para os chás, os temperos e aquele pé de primavera que lembra o aniversário da mãe porque florescia naquela época? A cozinha será apenas funcional ou ela será também um lugar de encontro, mesmo que não tenha mais o velho fogão a lenha? Acredito que grande parte de nossos problemas em educação têm a ver com o fato de que perdemos a capacidade de sonhar as nossas escolas, as nossas universidades e as nossas cidades. O medo e a insegurança, um dos pilares para a manutenção do império, se infiltraram em todos os cantos e aos poucos vão inibindo a própria condição de sonhar.

Só depois de sonhada a casa, entra o arquiteto com as fórmulas, cálculos, planilhas e desenhos. Este conhecimento técnico é tão imprescindível para a construção da casa quanto o é para a construção de um ethos para a educação. Há que se conhecer o chão sobre o qual se faz a construção, ou seja, a realidade econômica, social e cultural na qual se realiza a prática educativa. Precisa-se de um amplo conhecimento dos materiais, isto é, dos recursos disponíveis (pessoas, instituições, laboratórios, etc.) na própria realidade e em outros lugares para dar conta do que foi sonhado e projetado. Para Freire, o sonho não é apenas sonho, mas é o sonho possível ou o inédito viável porque ele está tencionado com o mundo de vida concreto das pessoas.

Depois de concluída a construção, é necessário que casa seja cuidada. Aliás, o cuidado é a condição que perpassa a construção desde o início e se prolonga no tempo. Cuidado, segundo Leonardo Boff (1999), como uma maneira de se estar no mundo. Em termos freireanos, podemos traduzir esta condição como amorosidade, uma condição que se expande para além da relação entre mulheres e homens: “Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo” (Freire, 2000, p. 67).

3. Assumir a convivência de temporalidades: A educação de nosso tempo é, como dito antes, uma educação no encontro de tempos. Talvez sejamos tradicionais porque nossas culturas têm raízes e porque gostamos de procissões religiosas e procuramos as benzedeiras para curar nossas doenças. Somos modernos porque queremos usar o computador, o avião e outros bens que a ciência e tecnologia moderna produziu. Somos pós-modernos porque compartilhamos a consciência dos limites desta mesma modernidade e seu ideal de progresso que aprofunda desigualdades e coloca em risco a continuação da vida ou porque temos condições de fabricar identidades no second life.

Boaventura de Sousa Santos (2004, 2006) ) critica o caráter reducionista da racionalidade moderna e defende uma sociologia das ausências que permite a multiplicação e diversificação através da ecologia dos saberes, dos tempos, das diferenças, das escalas e das produções. Trata-se de reconhecer que existem diferentes formas de compreender a relação entre o passado o presente e o futuro, o modo de conceber o curto e o longo prazo, os ritmos de vida e a própria relação com o tempo.10

Paulo Freire (1992, p. 81) reconhece esta pluralidade ao afirmar que hoje devemos ser progressistas de forma pós-moderna.11 Ou seja, dado que a realidade é dinâmica, a intervenção nela exige outras formas. É neste mesmo sentido que Enrique Dussel (1993) propõe o conceito de transmodernidade. Nem modernos, porque somos o outro lado da modernidade triunfante que promoveu o encobrimento do outro. Também não pós-modernos porque paradoxalmente esta modernidade desenvolveu um princípio emancipatório que foi e continua sendo importante para a nossa realidade. A transmodernidade é a possibilidade de pensar além de uma e de outra.

Conclusão: reconstruir a transformação social

Uma educação que queira, hoje, ser uma educação de seu tempo precisa colocar-se de forma radical a pergunta pelo que significa a transformação social nesses tempos de mudanças em tantos segmentos da vida humana. É preciso entender que assim com a realidade é dinâmica e muda, também a idéia que se faz da transformação social sofre mudanças.

Isso significa redescobrir a leitura do mundo com uma tarefa primeira e fundamental. Uma das grandes contribuições de Paulo Freire foi não dissociar a leitura da palavra de seu contexto e para isso inventou as palavras geradoras, os temas geradores, as codificações da realidade em imagens, as fichas de descoberta, entre outros instrumentos que permitissem o trânsito entre as duas leituras. As novas tecnologias de informação e comunicação, hoje, permitem novas aproximações à realidade e permitem novas formas de codificação.

A educação tem um papel fundamental no ensaio desta leitura. Um simples “por quê?” pode fazer uma diferença muito grande na vida de um educando. Por que as escolas são tão diferentes para os ricos e os pobres? Por que tantos meninos não agüentam a sala de aula e buscam alternativas em outros espaços. Onde a comunidade se movimenta para buscar alternativas?

Impõe-se hoje repensar a transformação no próprio movimento de transformação. Se não se pode prescindir de projetos, estes também não podem ser mais entendidos como verdades derradeiras porque apoiadas em alguma autoridade política, intelectual ou outra. Nesse sentido, um dos desafios da educação é inspirar o interesse pela busca. Entender a utopia como algo aberto, dinâmico, em construção.

A pedagogia, se deseja ser transformadora, precisa assumir-se como um saber que assume a sua dimensão projetiva (Peresson, 2006), ou seja, de não se satisfazer em descrever as práticas educativas e apontar as falhas para um melhor funcionamento. Uma pedagogia transformadora é uma pedagogia que combina a forte inserção na realidade com a capacidade de imaginar novos cenários.

 

Notas

1 Em diálogo com Paulo Freire, O Caminho se faz caminhando, p. 109.

2 Originalmente publicado em “Nuestra América”. La América, Nova York, novembro de 1884.

3 Este texto foi apresentado no painel do Ato Público de XXXVII Congresso Internacional de Fé e Alegria, sob o tema geral Educação e Transformação Social, coordenado por Luiz Fernando Klein e com a participação de Fernando Haddad, Jorge Cela e Moacir Gadotti. (São Paulo, 3 de novembro de 2007). O projeto do qual o artigo se origina conta com apoio do CNPq.

4 Do artigo “Escolas de Eletricidade”, publicado originalmente em La América, Nova York, nov. de 1883.

5 Há perspectives de pós-modernidade onde a própria idéia de transformação social é praticamente inviabilizada. Isso acontece tanto no discurso do fim das metanarrativas (Lyotard) quanto na compreensão do mundo como simulacro, onde os signos não teriam mais contato verificável com as realidades que supostamente representam. (Baudrillard). (Connor, 1989).

6 “Como todas as transições são simultaneamente semicegas e semi-invisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão lhe tem sido dado o nome de pós-modernidade. Mas, à falta de melhor é um nome autêntico na sua inadequação.” (Santos, 1996, p. 77)

7 O conceito Consenso de Washington é atribuído ao economista inglês John Williamson do Institute for International Economics, de Washington DC, que o utilizou num artigo, em 1989, para resumir alguns pontos pareciam consensuais para promover o desenvolvimento da América Latina. Dentre estes se destacam a disciplina da política fiscal, o redirecionamento do gastos públicos para serviços básicos, como educação básica, saúde básica e investimentos em infraestrutura, a ampliação da base de taxação e a adoção de taxas moderadas, taxas de intercâmbio comercial competitivas, liberalização do comércio, privatização de propriedade estatal, liberalização do comércio de restrições para importação e segurança legal para direitos de propriedade.

8 Conforme Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 330), à medida que a canibalização da emancipação social pela regulação social se converteu no mega-senso comum do fim do século XX, a regulação social não tem de ser efetiva para florescer: ela floresce simplesmente porque a subjetividade é incapaz de conhecer e de desejar saber como conhecer e desejar para além da regulação.”

9 Para a conceituação de ethos veja T. Adams, Educação e economia (popular) solidária.

10 Veja-se também A gramática do tempo: Para uma nova cultura política (Santos, 2006).

11“Numa tal perspective, indiscutivelmente progressista, muito mais pós-moderna, como entendo a pós-modernidade, que moderna, e nada ‘modernizante’, ensinar não é simples transmissão do conhecimento em torno do objeto ou do conteúdo” (Freire, 1992, p. 81).

 

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* Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, Brasil.

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