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Revista Lusófona de Educação

Print version ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.13 Lisboa  2009

 

Nem tudo o que conta em educação é mensurável ou comparável. Crítica à accountability baseada em testes estandardizados e rankings escolares

 

Almerindo Janela Afonso*

 

O conceito de accountability é, em geral, polissémico e denso. Contudo, eu pretendo, neste texto, mencionar apenas alguns dos aspectos da sua contextualização ampla em termos teórico-conceptuais. Associo o conceito de accountability a três dimensões articuláveis: avaliação, prestação de contas e responsabilização. Depois, analiso algumas das relações entre avaliação e accountability tendo como pretexto os testes estandardizados, os exames nacionais e os rankings. Finalmente, concluo que a accountability baseada apenas nestes procedimentos é uma forma parcelar, incompleta e redutora face à complexidade e pluralidade dos objectivos, missões e funções da educação escolar.

Palavras-chave:Políticas educativas; accountability; testes estandardizados; exames nacionais; rankings.

 

Not everything that counts in education can be measured or compared. A critique to accountability based upon standardized tests and school rankings

Generally, the concept of accountability is polysemic and complex. However, I only intend to mention, in this paper, some aspects of a wider theoretical and conceptual contextualization. Here, at first, the concept of accountability is associated to three interrelated dimensions: evaluation, to give account and ‘responsabilization’. Secondly, some relationships between assessment and accountability are analysed having as pretext standardized tests, national exams, and rankings. Finally, I conclude that accountability, based only in standardized tests and rankings of the schools, is an incomplete and reductive form of accountability, considering the complexity and plurality of the objectives, mandates and functions of school education.

Keywords: educational policies; accountability; standardized tests, national examinations, rankings.

 

O conceito de accountability é, em geral, polissémico e denso, como facilmente se pode constatar numa rápida revisão da literatura especializada (cf., por exemplo, Schedler, 1999; Mulgan, 2000). Porém, neste artigo, não pretendo fazer senão uma breve contextualização teórico-conceptual que permita, num primeiro momento, dar sentido à perspectiva que aqui adopto: ou seja, associar o conceito a três dimensões essenciais autónomas, mas fortemente articuladas (ou articuláveis): a avaliação, a prestação de contas e a responsabilização. Num segundo momento, partindo da experiência dos Estados Unidos da América e da importância que voltou a ser atribuída aos testes estandardizados na última reforma conservadora de G. W. Bush, analiso sucintamente a centralidade que têm estes instrumentos de avaliação na estruturação da principal forma de accountability no âmbito do sistema educativo neste país. Finalmente, tendo em mente quatro formas de accountability em construção no contexto português (decorrentes da avaliação do desempenho docente; da avaliação institucional das escolas; dos exames nacionais e da publicitação dos rankings), a argumentação desenvolvida situa-se apenas nestas duas últimas. Procurarei, mais precisamente, chamar a atenção para a crescente centralidade dos exames e testes estandardizados (nacionais e internacionais) na configuração das políticas educativas contemporâneas, apelando também a uma reflexão mais aprofundada e crítica em torno da descomplexificação, despolitização e tecnicização das formas tendencialmente dominantes de accountability, porque nem tudo o que conta em educação pode ser medido ou comparado1.

Avaliação, prestação de contas e responsabilização

A avaliação pode ser utilizada, entre muitos outros objectivos e funções, como condição sine qua non para o desenvolvimento de processos de prestação de contas e de responsabilização (accountability). Ou seja, a prestação de contas, como acto de justificação e explicação do que é feito, como é feito e porquê é feito, implica, em muitos casos, que se desenvolva alguma forma ou processo de avaliação ou auto-avaliação (mesmo que implícita). Neste sentido, quando a prestação de contas exigir a avaliação, esta deverá desenvolver-se de forma fundamentada e o mais possível objectiva, de modo a procurar garantir a transparência e o direito à informação em relação à prossecução de políticas, orientações, processos e práticas. E se, por alguma razão, não for esperada nem ajustada a assunção voluntária de eventuais responsabilidades pessoais, políticas ou institucionais2, ou se, em decorrência da prestação de contas, houver lugar a prémios ou sanções, ou outras formas de responsabilização de instituições, organizações ou pessoas, isso deve ser também consequência (pelo menos em determinadas situações) de uma avaliação rigorosa e prudente sob o ponto de vista técnico-metodológico (tendo por referência, entre outros, critérios, objectivos e padrões previamente definidos), e tendo em conta igualmente o enquadramento cultural, ético e jurídico que preveja procedimentos democráticos e salvaguarde direitos fundamentais.

A avaliação precede (ou pode preceder) a prestação de contas (cf. Kogan, 1986; Dimmock & Hattie, 1990), sendo que, na sequência da prestação de contas, também pode haver lugar a uma avaliação que considere as informações disponibilizadas sobre as políticas, acções e desempenhos em causa. Por isso, é necessário atender não apenas à questão da avaliabilidade, mas também à congruência mais ampla entre os modelos de avaliação e os modelos de accountability. Sem haver garantia de avaliabilidade (ou seja, sem a presença de condições que possibilitem desenvolver processos baseados em metodologias credíveis, válidas e fidedignas, e que permitam emitir e fundamentar juízos valorativos sobre práticas, instituições, contextos e políticas), ficam prejudicadas as formas de prestação de contas e de responsabilização, ou seja, uma parte fundamental dos processos de accountability (cf. Afonso, 2001). Do mesmo modo, sem congruência de pressupostos, valores e metodologias entre avaliação, prestação de contas e responsabilização torna-se mais difícil haver uma procura de objectividade e transparência relativamente a decisões e práticas políticas, sociais e educacionais, podendo estar em causa a concretização do direito democrático à informação e, em decorrência disso, a possibilidade de afastamento e alheamento dos cidadãos face ao que acontece nas instituições e organizações públicas ou de interesse público. É, no entanto, necessário ter em conta, como lembra Stewart Ranson, que um modelo de accountability pode ser sentido como um “anátema para a comunidade de profissionais”. Isto ocorrerá quando esse mesmo modelo é associado redutoramente a uma “imagem potencialmente punitiva” (Ranson, 2003, p. 460) que advém, por vezes, do facto de a responsabilização e a eventual imposição de sanções (enforcement) serem componentes subjacentes.

Como um sistema de accountabilty implica frequentemente uma teia complexa de relações, interdependências e reciprocidades, bem como possibilidades diferenciadas de justificação e fundamentação, no caso dos professores, por exemplo, a dimensão da responsabilização é particularmente delicada uma vez que estes profissionais têm que prestar contas a várias instâncias hierárquicas (do ministério aos directores de escola), incluindo também outros elementos da comunidade educativa (entre os quais, os pais e os próprios estudantes). Neste sentido, se esperarmos que os professores prestem contas aos pais sobre o progresso escolar dos seus filhos, esses mesmos professores também terão expectativas legítimas para esperar que os pais reforcem os cuidados com os processos de aprendizagem. Ou seja, expectativas e responsabilidades são recíprocas, não deixando, apesar disso, de poder estar em confronto perspectivas diferentes (e eventualmente conflituais) sobre o que é ou não é importante para as aprendizagens. Neste sentido, a construção de consensos, a comunicação e o diálogo são dimensões fundamentais de “uma prática discursiva de accountability”, mas ”o potencial positivo desta forma inteligível e reflexiva de accountability tem sido negligenciado em muitas das teorizações contemporâneas” (Ranson, 2003, pp. 460-461).

Avaliação, prestação de contas e responsabilização nem sempre constituem elementos que se potenciem mutuamente, e nem sempre se integram em orientações e relações guiadas por uma intencionalidade democrática e de empowerment dos cidadãos. Com efeito, todas as eventuais combinações destas variáveis são teoricamente possíveis e, neste sentido, todas podem ser (ou poderão ter sido) praticadas de algum modo e, por vezes, com consequências ambivalentes (e até perversas), sobretudo se considerarmos conjunturas políticas e realidades sociais e educacionais não democráticas, ou contextos com predominância de uma democracia ritualística ou de baixa intensidade. De todas as combinações possíveis, a situação mais problemática é, sem dúvida, a que diz respeito à responsabilização sem avaliação e sem prestação de contas.

É, todavia, frequente (e justificável) o exercício autónomo da avaliação sem que ele esteja enquadrado num sistema de accountability institucionalizado ou formal, mas já parece ser mais difícil defender o contrário, isto é, um sistema de accountability que prescinda da avaliação em qualquer situação. Considerando o facto de que há diferentes modelos de accountability e que nem todos os modelos conhecidos se inscrevem em lógicas progressistas, parece-me que, numa concepção mais complexa e potencialmente democrática, não terá muito fundamento que a prestação de contas não seja, com alguma frequência, antecedida (e sucedida) por processos claros e rigorosos de auto-avaliação e/ou avaliação (interna e/ou externa), incluindo ainda, em fase posterior, processos congruentes de responsabilização (não necessariamente com consequências negativas). Neste sentido, um sistema de accountability democraticamente avançado inclui a avaliação, a prestação de contas e a responsabilização, mas dentro de articulações congruentes que se referenciem ou sustentem em valores essenciais como a justiça, a transparência, o direito à informação, a participação, a cidadania – lembrando, a este propósito, o facto de muitos destes valores estarem a ser repensados no âmbito de novas reflexões (críticas e criativas) sobre outras concepções possíveis e desejáveis de democracia no tempo actual. Defende-se aqui, portanto, uma linha de reflexão e pesquisa que assente numa concepção de accountability mais ampla, fundamentada e complexa do ponto de vista teórico-metodológico, político, axiológico e epistemológico. Neste sentido, um sistema de accountability assim alicerçado não pode ser reduzido a uma prestação de contas ritualística ou simbólica, nem ser associado a perspectivas instrumentais, hierárquico-burocráticas, gestionárias ou de mero controlo, para as quais parecem remeter, muitas vezes, os discursos e práticas vulgares.

Aliás, a referência sistemática à prestação de contas está na moda, valendo a pena perceber, por exemplo, as razões pelas quais os mecanismos de accountability têm sido referenciados tanto por orientações neoliberais e neoconservadoras, quanto por orientações de matizes ideológicas distintas (da social-democracia, do trabalhismo, da terceira via, entre outras). A este propósito, Gert Biesta refere que “a ideia de accountability pode ser relativamente imune à ideologia política”, como mostram, por exemplo, no caso da Inglaterra, tanto os governos do New Labour como os governos do Partido Conservador, os quais lhe deram grande ênfase (Biesta, 2004, p. 234). Não admira, aliás, que isto ocorra dado que, como escrevi anteriormente, esta “relativa indiferença às diferenças político-ideológicas” tem estado igualmente presente no que diz respeito às políticas de avaliação (cf., por exemplo, Afonso, 2001, 2007, 2008). Neste sentido, face às tendências hegemónicas decorrentes de uma agenda global mais ampla, onde é central o papel das organizações internacionais e supranacionais (OCDE, UE; BM, OMC…), o facto é que, nas últimas décadas, pelo menos nos países capitalistas ocidentais, as políticas de avaliação, de prestação de contas e de responsabilização (accountability) foram ganhando uma certa imunidade às concepções político-ideológicas dos governos, disseminando e homogeneizando muitos dos seus efeitos, como se essas mesmas políticas ganhassem o seu verdadeiro sentido situando-se acima das realidades culturais, políticas, económicas e educacionais nacionais. Esta tendência, entre outras consequências, tem aumentado a eficácia legitimadora destas políticas, tornando mais difícil desocultar os interesses, demandas e funções que lhe subjazem.

Há certamente alguns factos sociais que podem explicar esta aparente consensualidade e transversalidade dos discursos de accountability. Entre outros, podem referir-se sucintamente os seguintes: i) Quando a crise da escola começou, em alguns países, a ser atribuída a certos métodos pedagógicos e ao suposto mau uso da autonomia profissional dos professores, e foi agravada pelas repercussões sociais dos estudos internacionais comparativos relativos aos resultados escolares (rankings internacionais), a pressão para reforçar medidas de avaliação e de accountability não tardou a fazer-se sentir3; ii) quando a emergência neoliberal e neoconservadora se traduziu na criação de mercados e quase-mercados em educação e na valorização da liberdade de escolha educacional das famílias, cresceram as demandas pela publicitação de resultados educacionais mensuráveis e, portanto, também por processos de avaliação e de accountability; iii) quando o Estado se tornou mais forte, não apenas para (paradoxalmente) impor a sua própria redução no campo económico, mas também para assumir mais explicitamente o exercício do controlo social, nomeadamente através da definição mais apertada de objectivos educacionais, os mecanismos de avaliação e accountability foram accionados como instrumento de controlo centralizado dos sistemas educativos; iv) quando a retracção (real ou ideologicamente construída) dos Estados-providência levou à racionalização de custos e investimentos públicos e permitiu a indução de lógicas de co-responsabilização da sociedade civil, a avaliação e a accountability foram exigidas como consequência de processos de autonomia e de descentralização; v) quando o direito dos cidadãos à informação sobre o que ocorre na res publica (aliás, muito arreigado em certas tradições e em certos países como os EUA) anda associado à ideia de democracia e de responsabilidade, é esperada a valorização de processos de avaliação e accountability; vi) e quando as formas de accountability se sustentam fundamentalmente na aplicação de instrumentos validados científica e tecnicamente, como é o caso dos testes estandardizados, percebe-se melhor a eficácia da “técnica e ciência como ideologia” e, portanto, a dominância destes instrumentos de avaliação em muitos sistemas educativos, a nível nacional e internacional4.

Accountability baseada em instrumentos de avaliação estandardizados

No quotidiano das instituições e organizações, como as escolas, há sempre modos informais de accountability, mas são os sistemas formais que têm vindo a ganhar importância. Um sistema formal de accountability consiste em mensurar e codificar padrões de resultados e prever determinadas consequência quando se atingem ou não esses resultados. Por isso, a informação é crescentemente quantitativa e os métodos de mensuração são estandardizados (cf. Hoffer, 2000). Aliás, esta maior formalização tem relações evidentes com a emergência do chamado Estado-avaliador e com a disseminação de uma nova gestão pública (new public management) onde a definição prévia de objectivos e a sua mensuração e quantificação são aspectos centrais. Não é, portanto, por acaso que algumas formas de accountability em educação têm sido estruturadas tendo como fundamento, exclusivo ou predominante, os resultados dos testes estandardizados no âmbito de avaliações externas.

Apesar disto, nenhum sistema de avaliação, prestação de contas e responsabilização (accountability) bem fundamentado em termos políticos, culturais, éticos, técnico-científicos e educacionais, pode esgotar-se na mera recolha e publicitação de informações baseadas em testes, mesmo que estandardizados. Esta situação é ainda mais questionável quando os resultados académicos dos alunos acabam por ser também um critério fundamental para a avaliação das escolas e para a avaliação dos próprios professores. Mas é precisamente esta a tendência que tem vindo a verificar-se há anos, e em diferentes sistemas educativos – e que tem sido muito discutida, por distintas razões, quer por defensores, quer por críticos contundentes dos testes estandardizados. A organização FairTest, por exemplo, tem analisado a experiência de utilização de testes estandardizados em contexto americano, nomeadamente a que foi desenvolvida no âmbito da reforma educativa de George W. Bush, conhecida como No Child Left Behind Act. Neste âmbito, a accountability baseia-se nos resultados dos testes estandardizados e inclui sanções, recompensas ou intervenções, dirigidas tanto a distritos escolares como a estabelecimentos de ensino, professores e estudantes5. Para aquela organização, o modelo de accountability em causa “não apenas mostrou grandes insuficiências como criou efeitos secundários indesejáveis (cf. FairTest, 2007). Um outro aspecto também relacionado com a reforma No Child Left Behind, diz respeito à avaliação conhecida como high-stakes testing, ou seja, a realização de testes que têm importantes implicações para os avaliados, nomeadamente pela possibilidade de acesso a certificados e graus académicos e pela atribuição de recompensas ou sanções em função da prossecução ou não de objectivos precisos em matéria de sucesso escolar, podendo ir, neste último caso, até ao encerramento das escolas que não atinjam determinados níveis. O uso de high-stakes testing significa, em última instância, que os resultados dos testes estandardizados constituem o único factor para a tomada de decisões cruciais sobre as escolas, os professores e estudantes. Por estas razões, e também pelo facto de a sua aplicação poder dar origem a efeitos não desejáveis, os testes com estas características têm sido fortemente criticados por diversos sectores sociais e da educação, e por prestigiadas associações científicas6.

Se é verdade que os testes estandardizados não são uma novidade no sistema educativo norte-americano (Koretz, 2002), também é verdade que houve algo de novo na última reforma conservadora de George W. Bush, nomeadamente um maior “intervencionismo federal num sistema largamente descentralizado e a extensão do regime de sanções contra as escolas públicas” (Normand, 2008, p. 53). Porém, os conceitos de accountability e de high-stakes testing começaram a ser referenciados e implementados de forma crescente na fase posterior à publicação do relatório A Nation at Risk. Com efeito, antes da década de 1980, o termo accountability não era muito ouvido nos debates sobre educação, nem considerado como meio decisivo para melhorar o desempenho das escolas e dos sistemas educativos (cf., por exemplo, Dubnick, 2006)7. Por esta razão, os referentes mais próximos das políticas a que acabamos de aludir devem ser localizados nos anos oitenta do século XX, nos governos da nova direita, quer nos EUA, quer na Inglaterra (para este último caso, ver, por exemplo, Epstein, 1993).

Estes governos, pela sua natureza híbrida, articulando conjunturalmente as ideologias neoconservadora e neoliberal, constituem exemplos paradigmáticos de viragem nos modos de governação dos sistemas educativos, nomeadamente pela utilização das avaliações externas, baseadas em testes estandardizados, como estratégia de indução de medidas de privatização e/ou lógicas de quase-mercado em educação, mas também de aumento do controlo central do Estado – e, em decorrência disso, de indução de formas ou modelos de accountability em educação compatíveis com esses instrumentos de avaliação. Como concluí noutros trabalhos a este propósito, a avaliação estandardizada criterial com publicitação de resultados, isto é, a avaliação que visa o controlo de objectivos previamente definidos (enquanto produtos ou resultados educacionais), é que foi sendo gradualmente apontada como um dos traços distintivos das mudanças nas políticas avaliativas. Isto aconteceu porque a introdução da avaliação estandardizada criterial é congruente com o exercício do controlo por parte do Estado e, simultaneamente, porque a publicação dos resultados dessa mesma avaliação induz a expansão do mercado (e do quase-mercado) em educação. Assim, a avaliação estandardizada criterial com publicitação de resultados tornou-se inicialmente um instrumento importante para a implementação da agenda educacional da nova direita, e continuou a sê-lo para governos de outras orientações político-ideológicas. Não surpreende, portanto, que a avaliação tivesse, de forma congruente, sido accionada como suporte de processos de prestação de contas e de responsabilização relacionados com os resultados educacionais e académicos. Se é verdade, como acima referi, que emergiu o Estado-avaliador, também é verdade que as mudanças nas políticas avaliativas foram igualmente marcadas pela introdução de mecanismos de mercado. É isto que explica que o controlo sobre os resultados escolares não tenha sido subordinado, nem se tenha restringido, a uma mera lógica burocrática — o que tornou a actuação do Estado neste campo claramente distinta das estratégias adoptadas em outras épocas e em outros contextos históricos (cf. Afonso, 1998, 1999, 2005, 2007). Em termos de accountability, estaríamos, neste último caso, perante um modelo distinto do modelo hierárquico-burocrático tout court em que a prestação de contas é essencialmente interna ao sistema educativo. Em vez disso, o modelo subjacente às políticas atrás sinalizadas tem um carácter híbrido ou misto porque a accountability envolve, por um lado, a sociedade civil e o mercado e, por outro, o próprio Estado. Não deixa de haver, todavia, nuances importantes, consoante os contextos nacionais uma vez que os modelos de accountability são constructos sociais (cf. McCormick & James, 1983), apresentando variações importantes consoante as relações de poder dominantes, e as tradições culturais, ideológicas e institucionais. Apesar disso, um ponto de convergência encontrado em tradições nacionais muito diferentes (como é o caso da França e da Inglaterra) pôde ser traduzido pela preocupação de ambas em “assegurarem o exercício do controlo através da linguagem da accountability” (Broadfoot, 2000, p. 45).

Exames nacionais estandardizados e rankings das escolas em Portugal

Voltemo-nos agora um pouco para a realidade portuguesa. Durante o regime político autoritário, que durou sensivelmente entre 1926 e os primeiros meses de 1974, havia exames nacionais obrigatórios e a progressão e certificação dos estudantes estavam muito dependentes desta avaliação externa. Com a revolução democrática de Abril de 1974, estes exames (tradicionais) foram abolidos, tendo prevalecido, nas duas décadas seguintes, uma avaliação das aprendizagens “essencialmente interna e baseada na escola” (Fernandes, 2007, p. 589). Em 1996, os exames nacionais foram novamente introduzidos no final do ensino secundário e, em 2005, no final da escolaridade obrigatória. Trata-se agora de provas sumativas externas estandardizadas, mas que estão longe de ter as mesmas consequências ou visar objectivos idênticos aos que têm os high-stakes testing nos EUA. Com efeito, em Portugal, apesar da reintrodução dos exames nacionais estandardizados e da realização de provas aferidas, a avaliação interna realizada pelos professores nas suas respectivas escolas e turmas continua a ter, ainda hoje, um peso muito maior e mais decisivo em termos de progressão e certificação dos estudantes. São, todavia, os resultados destes exames externos estandardizados que constituem a base para a organização de rankings das escolas, os quais, desde 2001, passaram a ser divulgados para a opinião pública, dando azo a muitos debates divergentes na sociedade portuguesa relativamente aos seus verdadeiros objectivos, à pertinência ou não pertinência das metodologias utilizadas na sua elaboração e aos efeitos sociais e educacionais da sua utilização. Estes rankings, por exemplo, depois de divulgados na comunicação social, têm sido interpretados por professores no âmbito das escolas e, em muitos casos, são considerados uma boa razão para a adopção de medidas pedagógicas e formas organizativas congruentes com estratégias de manutenção ou de melhoria em relação aos lugares atribuídos nessas listas ordenadas. Entre muitos outros efeitos, a preocupação das escolas pelo seu lugar nos rankings pressiona e reconfigura as funções quotidianas dos professores, não sendo por acaso que a avaliação de desempenho destes últimos também tende a ser associada aos resultados e performances dos estudantes. Um estudo sociológico recente confirma que os docentes do ensino secundário inquiridos passaram a levar em consideração os resultados dos rankings publicados nos mass media, encetando, a partir daí, processos de reflexão tendo como preocupações centrais “a imagem que é projectada sobre a instituição de ensino e, também, a sua própria imagem enquanto docentes” (Melo, 2007a, p. 87)8. Porém, acrescenta esta mesma autora em outro trabalho, “mais do que os rankings escolares é a existência dos exames nacionais que parece justificar o modo como os professores desenvolvem a sua acção quotidiana”. Esta diferença de opiniões e atitudes relativamente aos rankings e aos exames, foi relacionada, no referido estudo, com o processo de recepção das mensagens mediáticas, sobretudo com a “falta de credibilidade e confiança que os docentes atribuem aos critérios que presidem à elaboração das listas ordenadas das escolas” e também devido “ao facto de ideologicamente defenderem a realização de uma avaliação multidimensional […]” (Melo, 2008, p. 11). Apesar das fortes pressões a que estão actualmente submetidos, os professores não constituem um monolítico em termos de opiniões e práticas. Também por isso, este e outros estudos sobre a problemática dos rankings em contexto português têm sido fundamentais para perceber alguns vectores, fragmentações e tensões subjacentes às orientações de política educativa nos últimos anos.

Sabemos também que os rankings induzem efeitos de mercado (quando está em causa a comparação e a eventual procura diferenciada entre escolas públicas e privadas), e efeitos de quase-mercado (quando a comparação e a procura diferenciada se efectuam entre escolas públicas). No entanto, segundo alguns autores, o debate sobre os rankings em Portugal, ao contrário do que ocorreu noutros países, terá sido induzido mais por “uma reivindicação em nome da necessidade de prestação de contas e da transparência” do que por uma “opção inequívoca por uma orientação das políticas educativas para o mercado” (Neto-Mendes; Costa & Ventura, 2003, p. 1). Com efeito, há alguma evidência empírica que sustenta a afirmação dos autores, sobretudo se atendermos à existência de um “neoliberalismo educacional mitigado” (Afonso, 1997) em que, muitas vezes, as lógicas de mercado têm sido mais retóricas do que constitutivas de decisões concretas em termos de demanda e de investimento na educação escolar não estatal. E tudo isso num contexto em que a escola pública continua a ser, apesar da crise que atravessa, uma instituição prestigiada no sistema educativo português, a par da existência de uma escassa tradição e oferta do ensino privado, a que se soma, no momento actual, a retracção do mercado e o abrandamento de iniciativas da sociedade civil (sobretudo da classe média) devido à crise económica e financeira que, por sua vez, tem levado o Estado a reassumir de forma mais efectiva o seu papel de provedor e regulador dos bens colectivos, como a educação. Mas se é verdade o que acabei de afirmar, também, por outro lado, não deixa de ser facilmente demonstrável, em diferentes esferas da vida social, a presença da ideologia de mercado (e a sua materialização) num conjunto heterogéneo de medidas e decisões que se inscrevem numa orientação neoliberal voltada para a privatização de alguns organismos do Estado ou de alguns serviços imprescindíveis ao funcionamento de instituições e organizações públicas (serviços de segurança, limpeza, alimentação, manutenção…), verificando-se igualmente, através de lógicas de quase-mercado, a privatização da gestão de alguns hospitais e de outras organizações públicas, a concorrência e competição entre instituições públicas, como as escolas, e, dentro destas, por exemplo, a adopção de certos procedimentos de feitura de turmas e de distribuição do serviço docente, ou a valorização de modelos e instrumentos de gestão que, directa ou indirectamente, induzem o individualismo competitivo e a sobrevivência neodarwinista dos supostamente mais aptos (estudantes, professores ou funcionários).

Em síntese, para além de outras formas parcelares de accountability, actualmente em desenvolvimento em Portugal, nomeadamente a que poderá decorrer da avaliação de desempenho dos professores e a que poderá advir da avaliação institucional das escolas públicas, estamos a assistir, simultaneamente, à emergência de outras duas que têm como único fundamento os resultados académicos dos estudantes. Mais concretamente, temos, neste último caso, uma forma de accountability sustentada em exames nacionais estandardizados e provas aferidas, que se constitui, de forma idêntica a outros países, essencialmente como exercício de controlo centralizado por parte do Estado; e temos ainda uma outra, centrada nos rankings das escolas, que se pode considerar como sendo uma forma de accountability por iniciativa da sociedade civil e do mercado, impulsionada, de forma decisiva no caso português, por alguns importantes media (privados) de comunicação social. Embora fazendo parte do mesmo sistema educativo, todas estas formas (mais ou menos elementares, lineares e relacionáveis) de accountability estão muito desarticuladas entre si, não constituindo, também por isso, um modelo ou sistema integrado e congruente. Assim, podemos dizer que não existe ainda um sistema de accountability na educação em Portugal, havendo, no entanto, orientações políticas, normativos legais, expectativas sociais e práticas em curso que poderão vir a evoluir, a curto ou médio prazos, para algo mais próximo disso. Apesar das dúvidas decorrentes das ambiguidades e instabilidades que se observam em algumas medidas e processos, seria desejável que daí resultasse uma estrutura mais duradoura de avaliação, prestação de contas e responsabilização – que fosse leve, criativa, dinâmica e aberta, mas também avançada em termos culturais, democráticos e epistemológicos. Essa estrutura, eventualmente com conexões e interfaces mais complexas, mas bem sustentadas e legitimadas, ter-se-ia de confrontar com especificidades de diferentes âmbitos (micro-profissional; meso-organizacional ou institucional; macro-estatal; e mega-internacional ou supranacional), uma vez que, relativamente à avaliação, prestação de contas e responsabilização, há tradições, representações, desconfianças, expectativas, disponibilidades e etapas diferenciadas de desenvolvimento (social, cultural, político, moral) que não podem deixar de ser tidas em conta.

No contexto português, a explicação da relativa ausência ou de um certo atraso no debate em torno das questões agora levantadas, não pode deixar de ter em conta que a pressão social que se tem exercido nos últimos anos sobre as escolas e os professores tem essencialmente motivações de ordem ideológica, ainda que a retórica comum remeta para questões de transparência, direito à informação e responsabilização, deixando, no entanto, na penumbra, ou perturbando, uma discussão aberta e amplamente participada que, com tempo de maturação e aperfeiçoamento, pudesse dar legitimidade social a uma configuração adequada de accountability na educação9. Naturalmente que, se queremos uma sociedade democrática que concretize e pratique certos princípios e valores fundamentais, não podemos deixar de defender a necessidade de essa mesma sociedade estar bem informada e conhecer com o máximo de objectividade possível o que ocorre nas suas instituições, nomeadamente nas escolas. Mas não é com a utilização de exames nacionais ou outras formas similares de avaliação externa estandardizada, transformadas em instrumentos de controlo social, redutores e fortemente centralizados no Estado, que se promove a avaliação, prestação de contas e responsabilização adequadas à pluralidade de objectivos, missões, estruturas e actores que constituem o sistema educativo. Certamente que os exames nacionais poderão cumprir alguns objectivos importantes, mas não estes. Também não se promove accountability pública em educação com a indução de lógicas de mercado, muitas vezes conseguidas através de formas de comparação e competição espúrias (alheias, por exemplo, às consequências mais nefastas dos rankings), ou pela introdução de mecanismos de privatização e de mercantilização da educação que desvalorizam a escola pública enquanto escola publicamente comprometida com os princípios da igualdade real de oportunidades para todos, da pluralidade de excelências, da justiça educacional e da cidadania democrática. Certamente que, como refere K. Ryan (2004), há aspectos positivos nestas comparações sobretudo quando elas, desagregando determinados dados relativos a classe, género, raça, entre outros, servem para revelar e denunciar importantes desigualdades educacionais entre escolas. Todavia, na minha perspectiva, os usos que normalmente são feitos das comparações baseadas em resultados de exames e testes estandardizados (nacionais e internacionais) não parecem ter como central a preocupação com políticas que promovam o combate às desigualdades subjacentes a essas mesmas estatísticas, tendendo assim, perante a diversidade e a heterogeneidade dos estudantes e dos seus percursos, biografias, origens sociais, aprendizagens reais e condições escolares, a “silenciar a polissemia e a invisibilizar os sujeitos” (Esteban, 2008). Sabemos entretanto que algumas dessas preocupações têm sido por vezes sinalizadas, mas nem sempre são consideradas nas suas consequências, quer nos estudos que são efectuados, quer no patamar da tomada de decisão política. Por esta razão, o desafio maior é “como desenvolver uma accountability em educação com um carácter mais democrático” (Ryan, 2004, p. 456). Um sistema de accountability democrático deve ser construído democraticamente e visar objectivos democráticos, o que significa que não se pode criar nenhum sistema tecnicamente asséptico ou politicamente neutro.

A questão que se coloca no âmbito nacional sobre a predominância de formas de accountability baseadas em exames nacionais ou em testes estandardizados, também se coloca, com as devidas especificidades, no contexto internacional. Com efeito, estamos a viver uma época de “comparativismo globalizador” (cf. Cussó & D’Amico, 2005)10 caracterizada pela centralidade do papel dos peritos e pela produção de indicadores voltados para mensurar resultados dos sistemas educativos de diferentes países (com particular incidência nos resultados académicos dos estudantes), indicadores esses que se constituem em si mesmos como um pretexto para justificar decisões políticas e influenciar as agendas para a educação. Neste sentido, alguns autores têm vindo a chamar a atenção para as consequências da construção de projectos estatísticos e respectivos indicadores como uma estratégia de viabilização e ampliação de uma “agenda globalmente estruturada para a educação”11, sendo disso exemplo o trabalho desenvolvido de forma sistemática, sobretudo desde finais dos anos 1980, início dos anos 1990, por agências internacionais como a OCDE, com os conhecidos relatórios Education at a Glance (cf. Teodoro, 2003, 2005, 2008) 12, bem como com programas como o PISA (Programme for International Student Assessment), mais especificamente voltados para a avaliação e comparação de conhecimentos e competência dos estudantes de vários países. Neste último caso, apesar de essencialmente centrados nos estudantes, estes estudos pretendem, todavia, dar informações credíveis sobre os níveis de desempenho dos próprios sistemas educativos, sendo por isso utilizados também pelos governos nacionais para tomar (e legitimar) decisões relativamente à política educacional13. Mais ainda: são assumidos muitas vezes de forma acrítica, como se fossem técnica, cultural e politicamente neutros e, em qualquer circunstância, comparáveis com outras realidades organizativas, culturais e educacionais independentemente das condições e especificidades de cada país14.

Reflexões finais

Na esteira de alguma literatura especializada, reconhecemos a polissemia e multidimensionalidade do conceito de accountability, e optámos por não traduzir o termo para podermos reforçar a ideia de que ele deve significar algo mais do que a simples prestação de contas. Com efeito, defendemos o ponto de vista de que a accountability pode ser conceptualizada como um sistema denso do ponto de vista político, axiológico e epistemológico, bem como um sistema complexo em termos de procedimentos, dimensões e práticas, em que a avaliação, a prestação de contas e a responsabilização devem, sempre que possível, estar integradas ou ser integráveis. Talvez se possa mesmo argumentar, como fez Darling-Hammond (2004), que os testes são uma fonte de informação para um sistema de accountability, mas não são em si mesmos esse sistema. Foram, no entanto, certas formas de accountability, com escassa complexidade e densidade, que surgiram associadas à implementação de exames nacionais e testes estandardizados, apesar de estes serem instrumentos cada vez mais centrais na recolha de dados, nacionais e internacionais, para apoiar a decisão política em educação. Do meu ponto de vista, estas formas parcelares de accountability sustentam-se ainda numa visão despolitizada e tecnicizada da educação. Não se trata, no entanto, de defender uma leitura intransigente ou adversa relativamente a qualquer forma de avaliação comparada, a nível nacional ou internacional. Uma posição ponderada, sem deixar de ser crítica, é aquela que quer levar a sério as agendas que estão a tomar-se hegemónicas através do “governo por números” 15. Com efeito, tal como lembra Gert Biesta, o problema que resulta da abundância de informação sobre os resultados educacionais dá a impressão de que as decisões e orientações sobre as política e práticas educativas podem basear-se somente em informação factual. Por essa razão, perante a tendência actual de focalizar as questões educacionais quase exclusivamente na mensuração e comparação dos resultados educacionais, há necessidade de retomar a discussão sobre os fins e propósitos da Educação. Neste sentido, segundo este autor, um dos problemas é a ausência de um pensamento comprometido com valores com o qual seja decisivo discutir o que é educativamente desejável (cf. Biesta, 2009).

Em síntese, tão ou mais importante do que as questões teóricas e metodológicas referidas, torna-se necessário assumir, desde logo, que a construção de modelos democráticos e transparentes de avaliação, prestação de contas e de responsabilização (accountability) implica igualmente a valorização social, cultural e política dos processos de participação, negociação e justificação, e a adopção de modelos explícitos de justiça e equidade (social, educacional e avaliativa). Accountability não é, portanto, uma mera questão simbólica ou retórica – que alguns discursos tendem a naturalizar porque, implícita ou explicitamente, a associam a uma concepção restrita e ritualística de democracia formal, enquanto regime baseado apenas na consagração legal ou jurídica de direitos e deveres –, mas, antes, uma questão ampla de cultura política e de acção moral e ética que tem a ver com a qualidade e profundidade das práticas democráticas, ou seja, com uma democracia substantiva, participativa e crítica. Ao contrário do que afirma Melvin Dubnick (2006), não nos parece que soframos de uma obsessão com o conceito de accountability. Pelo contrário, pelo menos nas nossas sociedades ibero-americanas temos muito caminho para andar no sentido de implementar modelos verdadeiramente democráticos de accountability em educação. Convergindo com Daniel Koretz (2002), o que é necessário é um activo programa de pesquisa que se direccione para o desenvolvimento de modelos de accountability alternativos àqueles que são actualmente dominantes.

 

Notas

1 Trata-se, em certos aspectos, de uma análise que se inscreve na crítica ao que Licínio Lima tem designado educação contábil. Para este autor, a “educação que conta” é “aquela que é orientada segundo objectivos precisos e que dessa forma se torna contável através da ação de instâncias de contadoria e dos respectivos agentes e processos contadores”. Esta “educação contábil tende a centrar-se no cálculo e na mensuração de resultados (desvalorizando os processos e resultados mais difíceis de contabilizar)[…].Enquanto orientação política, a educação contábil evidencia uma alta capacidade de discriminação da educação que conta e da educação que não conta, ou conta menos” (Lima, 1997, p. 55).

2 Para uma interessante discussão sobre a possibilidade actual do exercício da responsabilidade no contexto da pós-modernidade, ver Zygmund Bauman (1997). Ver também a reflexão de Gert Biesta (2004) a propósito da accountability, convocando precisamente o pensamento de Bauman sobre a questão da responsabilidade.

3 Como se explica neste texto, há uma coincidência entre a reforma A Nation at Risk do início dos anos 1980 nos EUA e a nova vaga de accountability baseada em testes estandardizados. Mas também na Inglaterra, o famoso caso da escola William Tyndale, que Roger Dale analisa num dos seus trabalhos, ficou para a história como um caso paradigmático de ataque à autonomia dos professores e aos métodos pedagógicos mais inovadores. Foi esse, aliás, um dos temas do não menos famoso discurso do ministro Trabalhista James Callaghan pronunciado no Ruskin College em 1976 no “grande debate” da educação (Dale, 1986). Como refere a este mesmo propósito S. Ranson, “[…]it inaugurated an era of accountability and restructuring of the government of education. The curriculum would no longer be the ‘secret garden’ of an autonomous professional accountability” (Ranson, 2003, p. 459).

4 Do meu ponto de vista, o predomínio dos testes estandardizados também pode, por exemplo, ser pensado no quadro de uma perspectiva Habermasiana. Para uma reflexão sobre os fundamentos teóricos necessários a um eventual exercício de transposição, ver, por exemplo, Habermas (1987).

5 Como referia Daniel Koretz em 2002, “Currently, 20 states have implemented or plan to implement systems in which schools or educators receive rewards, sanctions, or both on the basis of students’ test scores” (Koretz, 2002, p. 752). A administração do novo presidente norte-americano, Barack Obama, introduzirá certamente algumas alterações e rupturas importantes nas orientações de política educativa. Mantendo a ênfase na accountability, uma dessas mudanças parece ir no sentido de retirar importância às sanções negativas que pesam sobre as escolas que apresentem piores resultados e, ao contrário, aumentar o apoio para que elas possam melhorar. No site da Casa Branca podem ler-se, a este propósito, algumas das intenções do Presidente Obama e do Vice-Presidente Biden: “Their vision for a 21st century education begins with demanding more reform and accountability, coupled with the resources needed to carry out that reform; asking parents to take responsibility for their children’s success; and recruiting, retaining, and rewarding an army of new teachers to fill new successful schools that prepare our children for success in college and the workforce. […] Obama and Biden will reform NCLB, which starts by funding the law. Obama and Biden believe teachers should not be forced to spend the academic year preparing students to fill in bubbles on standardized tests. They will improve the assessments used to track student progress to measure readiness for college and the workplace and improve student learning in a timely, individualized manner. Obama and Biden will also improve NCLB’s accountability system so that we are supporting schools that need improvement, rather than punishing them”. (cf. http://www.whitehouse.gov/agenda/education/, consultado em 20 de Fevereiro de 2009).

6 A este propósito, a Associação Americana de Avaliação escreve: “Although used for more than two decades, state mandated high stakes testing has not improved the quality of schools; nor diminished disparities in academic achievement along gender, race or class lines; nor moved the country forward in moral, social, or economic terms. The American Evaluation Association (AEA) is a staunch supporter of accountability, but not test driven accountability. AEA joins many other professional associations in opposing the inappropriate use of tests to make high stakes decisions” (cf. http://www.eval.org/hst3.htm, consultado em 20 de Fevereiro de 2009).

7 Agradeço ao professor Melvin J. Dubnick a autorização que me deu para citar o seu texto. Sobre o meu assunto, é também bastante pertinente a síntese de Koretz. “Monitoring the performance of educational systems and holding educators accountable were among the motivations for early use of standardized tests. Nonetheless, for the first several decades after World War II, tests were used primarily to assess individual students and, to a lesser degree, to evaluate curricula, and their use for monitoring and accountability was limited. […] The use of achievement tests have changed dramatically over the past three decades, however. Tests have become increasingly important as a tool – arguably, now the central tool – for holding educators and system accountable” (Koretz. 2002, p. 753).

8 Mas, como chama a atenção Maria Benedita Melo, os “efeitos reflexivos dos rankings são mais compósitos e pontuais do que lineares e gerais”. Com efeito, “O tema da avaliação do ensino público, sob a forma de rankings das escolas, suscita a produção e difusão de representações sociais e profissionais diametralmente opostas. A profusão de objectivos e funções com os quais a escola e os professores são actualmente confrontados revela-se nos discursos. À retórica da igualdade de oportunidades, da democratização da escola e da educação para a cidadania contrapõe-se a que valoriza a qualidade da escola e do ensino, a meritocracia, o individualismo e o direito à escolha da escola pelos encarregados de educação” (Melo, 2007b, p. 2 e p. 165). Para uma outra análise sobre os rankings em Portugal, ver, por exemplo, Sá & Antunes (2007).

9 Quando essa legitimidade não existe ou entra em erosão é mais difícil chegar a uma forma adequada de accountability, como acontecimentos recentes demonstram. Alguma precipitação na decisão política, o diálogo e concertação insuficientes e a falta de ampla participação dos sujeitos interessados foram, entre outras, algumas das razões apontadas, por exemplo, para a existência de défices na definição do modelo de avaliação do desempenho docente aprovado pelo governo sustentado pelo Partido Socialista português – o que deu origem a grandes manifestações públicas de professores, durante o ano de 2008, com a participação das principais federações sindicais (FENPROF e FNE).

10 “By globalization comparativism we mean that organizations define and use statistical comparison not only to implement tighter monitoring of education reform but also to support the modification of the way international political decisions are taken, i.e. more power is currently given to experts and technicians when defining the mission of international statistical programmes than to an intergovernmental assembly. This is partly explained by the fact that production of international figures is deemed a technical activity essentially concerned with definition of quality standards” (Cussó & D’Amico, 2005, p. 201).

11 Para uma interpretação mais desenvolvida do que se entende por “agenda globalmente estruturada para a educação”, ver Roger Dale (2004).

12 Como refere António Teodoro, “Hoje, os programas já não são tanto de assistência bilateral, mas são programas que se pautam fundamentalmente mais por construir uma agenda. O que tenho defendido como hipótese é que essa agenda é feita fundamentalmente pelos grandes inquéritos conduzidos pelas organizações internacionais, particularmente pelo Center for Educational Research and Innovation (CERI) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), onde está o centro pensante (think thank) actual das políticas educativas, pelo menos para os países mais desenvolvidos e para aqueles que andam na sua órbita mais direta. E é o CERI-OCDE, com grandes inquéritos de sua iniciativa, ou pela sistematização dos estudos que outros realizam, por exemplo da EURYDICE para a Europa, ou da própria UNESCO, que pauta a agenda mundial da educação, isto pelo menos desde 1991-1992. Se formos precisar mais, é o relatório Education at a Glance – que significa olhares sobre a educação – que, anualmente, tem vindo a marcar os temas que são considerados legítimos no debate educacional” (Teodoro, 2005, p. 224).

13 Como refere Teresa Esteban, “apesar das diferenças e desigualdades existentes, os resultados dos vários exames internacionais são aceitos como informações fidedignas sobre a qualidade da educação em cada um dos países que deles participam e como legítimos para orientar as estratégias educacionais a se colocar em prática” (Esteban, 2008, p.9).

14 Como a este propósito afirma Licínio Lima, “subordinada a escrutínios constantes e a operações contabilísticas sistemáticas (incluindo as mais grosseiras e simplistas, de que resultaram por exemplo os rankings de escolas), a educação contábil instalou uma verdadeira obsessão avaliativa […]. Mas não será muita pretensão querer avaliar a ‘educação dos portugueses’, drasticamente reduzida às matérias constantes dos exames escolares e a uma concepção ‘bancária’ (como diria Paulo Freire), através de testes estandardizados de âmbito internacional? E, mais ainda, admitir que os caminhos percorridos até hoje já justificariam a démarche e legitimariam melhores expectativas?” (Lima, 2002, p.33).

15 A expressão é de Sotiria Grek e Jenny Ozga (2008) num interessante texto intitulado “Governing by numbers? Shaping education through data”. CES Briefing, Centre for Educational Sociology, University of Edinburgh [Disponível em http://www.ces.ed.ac.uk/PDF%20Files/Brief044.pdf].

 

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*Sociólogo, Doutor em Sociologia da Educação, Docente Universitário e Pesquisador do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho (Portugal), ajafonso@iep.uminho.pt