SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número11Construir a Europa através de um Espaço Europeu de Educação índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.11 Lisboa  2008

 

Editorial

 

 

1. O Estado Novo desenvolveu, de forma sistemática, um processo de desprofissionalização da actividade docente, retomando um discurso e uma concepção de professor anterior à laicização e estatização do sistema de ensino. A par de um apertado controlo da profissão docente nos campos ideológico e político, mas também no plano privado da moral e dos costumes, verifica-se durante os longos quarenta e oito anos de ditadura um acentuar da concepção missionária do professor. No período de implantação do Estado Novo, a proibição de todas as formas associativas e sindicais dos professores do ensino público, o encerramento das escolas normais e a posterior diminuição da duração e dos níveis de exigência de acesso, o recrutamento massiço de regentes escolares para fazer face à expansão da escolarização primária, ou a desqualificação salarial dos professores comparativamente a outros trabalhadores da administração pública, ficam como exemplos dessa política de desprofissionalização da actividade docente. No pós-guerra, essa política manteve-se e alargou-se aos níveis de ensino pós-primário, ao permitir que a natural expansão do ensino secundário verificada nos anos 1950 e 1960 assentasse no que então eram designados de professores eventuais e provisórios, um exército de mão-de-obra barata, sem qualificações pedagógicas e com condições de trabalho e de salário indescritíveis. No ano lectivo de 1972-1973, na véspera da Revolução, apenas 13% dos professores do então ensino preparatório do ensino secundário (5.º e 6.º anos) eram efectivos, ou seja, pertenciam a um quadro de escola, enquanto que nos ensinos liceal e técnico-profissional essa percentagem, ligeiramente superior, situava-se de qualquer modo nos 33,8% e 17,8%, respectivamente.

A Revolução de Abril de 1974 significou um momento de ruptura, com profundas repercussões na situação profissional dos professores.

A primeira e imediata consequência da Revolução foi a conquista de condições de liberdade que permitiram a livre organização de associações sindicais de professores, o que, num contexto de grande participação e intervenção cívica, conduziu a importantes e rápidas melhorias no campo salarial e no estatuto profissional. Nunca, em tão curto período de tempo, se verificaram tantas e tão profundas mudanças na condição docente em Portugal.

A segunda consequência resultou da iniciativa tomada nos primeiros dias da Revolução por parte da maioria esmagadora dos professores (e também dos estudantes, no ensino superior) de afastar as antigas administrações das escolas e liceus nomeadas pela ditadura, substituindo-as por comissões eleitas, num processo de inequívoco recorte autogestionário. Apesar de todas as medidas legislativas tomadas posteriormente, o actual modelo de gestão das escolas básicas e secundárias em Portugal tem as suas raízes nesse processo único em que a iniciativa da periferia se antecipou a qualquer decisão legislativa e impôs práticas de participação e de representação democráticas singularíssimas no contexto europeu.

A terceira consequência decorreu da prevalência de uma política educativa centrada no objectivo da democratização do ensino, onde o princípio da igualdade de oportunidades, de acesso mas igualmente de sucesso, se tornou o elemento polarizador das políticas públicas. Num plano mais próximo, sublinhe-se a criação do ensino secundário unificado, resultante da fusão entre os correspondentes ciclos dos ensinos liceal e técnico-profissional, apresentado como uma forma de romper a dualidade entre uma via nobre, frequentada com o fito do ensino superior pelos jovens oriundos dos grupos sociais dominantes, e uma via destinada a uma inserção precoce no mercado de trabalho, frequentada esmagadoramente por jovens oriundos dos meios populares.

A forma como, em 1974, foi conquistado o direito de cidadania e se iniciou o processo de profissionalização da actividade docente marca ainda hoje, indelevelmente, a cultura profissional dos professores e a forma como estes se relacionam com a administração da educação e os parceiros educativos. As profundas alterações que o Ministério da Educação de Maria de Lurdes Rodrigues pretende(u) impor em áreas como o Estatuto da Carreira Docente e a Gestão das Escolas Básicas e Secundárias visam, em última instância, romper com essa tradição ancorada no processo democrático que se seguiu à Revolução de Abril. Tomando como justificação um discurso de racionalização e defesa da eficácia, as medidas aprovadas vão todas elas no sentido do que o sociólogo inglês Stephen Ball designa de performatividade competitiva, e que visam ampliar o individualismo nos professores e destruir solidariedades baseadas numa identidade profissional comum, onde a filiação sindical e a participação associativa são elementos constituintes.

A resposta dada massivamente pelos professores neste início de 2008 (em especial na imponente Marcha da Indignação de 8 de Março) a estes propósitos ministeriais mostra que, apesar do ar do tempo – este neoliberalismo que atinge todos os sectores sociais –, se vislumbram condições para equacionar uma outra política educativa, que não seja a mera adequação das agendas das agências transnacionais globalizadoras (em particular da OCDE) e de uma Comissão Europeia demasiado seduzida pelas soluções neoliberais, mesmo quando elas começam a mostrar claros sinais de esgotamento. Era bom que alguns sectores da esquerda institucional (e de governo) não se esquecessem que a alternativa ao neoliberalismo passa, necessariamente, pelo reforço dos movimentos sociais e a criação de um espaço público onde os cidadãos se possam conceber, a todo o momento, “como os autores do direito ao qual estão submetidos enquanto destinatários” (J. Habermas, Droit et démocratie, Gallimard, Paris, 1997, p. 479). Esta construção de uma alternativa é, como nos lembra I. Wallerstein, um exercício a realizar, simultaneamente, nos campos da ciência, da política e da moral. Aqui estamos, no nosso campo, a dar esse contributo.

 

2. O número que agora se apresenta é particularmente rico na análise crítica e na criação de bases para a construção de uma alternativa radicalmente democrática no campo das políticas públicas de educação.

No primeiro artigo, Construir a Europa através do Espaço Europeu de Educação, o sociólogo britânico Roger Dale faz uma incisiva (e actualizada) análise da relação entre a construção de um espaço europeu de educação e a construção da “Europa” como entidade, defendendo que esse processo é particularmente importante pelos efeitos que produz nas políticas educativas dos Estados membros. No seu desenvolvimento, o artigo sugere que é possível identificar três fases na construção das políticas educativas europeias: (i) o estabelecimento da “qualidade”, (ii) a afirmação da “soft governance” (o Método Aberto de Coordenação) e (iii) a agenda da Aprendizagem ao Longo da Vida, formatadas por mudanças nos contextos globais e nas respectivas interpretações a nível europeu. Um artigo de leitura obrigatória para a compreensão dos processos em curso no espaço europeu, cada vez mais uma “normative area, pioneering a system of transnational law” (Therborn, 2002: 15).

O segundo artigo, A Reestruturação do Modelo Nórdico de Educação, de Ari Antikainen, discute o chamado modelo Nórdico ou o modelo de Estado-Providência e a educação. Este artigo mostra como os processos de reestruturação estão acontecendo a nível político e a nível institucional e, ainda, como é que as estruturas básicas do modelo e exemplo nórdico, especialmente os princípios subjacentes às comprehensive schools e às escolas locais, estão a ser abandonados. Antikainen realça que as mudanças na política e nas formas de organização ocorrem de forma muito mais rápida do que nos contextos sócio-culturais, apontando exemplos de histórias de sucesso, como a reforma dinamarquesa do mercado laboral e o crescimento do cluster finlandês do conhecimento intensivo em TIC, como os principais responsáveis por essa transformação. Por último, debate a possibilidade de uma estratégia de Estado-Providência e de uma estratégia de Estado Competitivo poderem coexistir.

No terceiro artigo, Mercado, Performance, Accountability. Duas décadas de retórica reaccionária na educação, o investigador francês Romuald Normand reconstitui o percurso que, a partir dos EUA e do Reino Unido, tem sido seguido nos últimos vinte anos de crítica à escola compreensiva e ao aparecimento do modelo da escola eficaz (school effectiveness). Depois de uma análise detalhada dos argumentos da direita conservadora americana, centrados na tese do declínio da escola pública e condensados no documento da Presidência de George W. Bush, No Child Left Behind, Romuald Normand suscita a reflexão sobre o papel dos sociólogos da educação na compreensão da interacção dos vários agentes educativos a uma escala globalizada e das implicações do novo espírito do capitalismo (Boltanski & Chiapello, 1999) nas políticas educativas. Uma leitura obrigatória para todos quantos necessitam de fazer uma arqueologia dos conceitos da moda, adoptados pelo discurso político dominante sobre a educação, algumas vezes sem qualquer sentido crítico ou tomado como uma fatalidade a que não se pode resistir.

No quarto artigo, Progressão continuada: por que a revisão dos ciclos?, Maria Lúcia Vasconcelos discute uma das questões centrais nas políticas públicas do ensino fundamental no Brasil (ensino básico em Portugal): a organização por ciclos de aprendizagem (fases, na designação adoptada em Portugal). A autora, que, durante cerca de um ano ocupou o cargo de Secretária de Educação do Estado de S. Paulo, justifica a razão porque encurtou a duração dos ciclos de 4 para 2 anos. Sendo uma das medidas mais polémicas na educação brasileira (e não só!), o contributo vivido de Maria Lúcia Vasconcelos é um bom contributo para um debate que tem e deve ser feito, pois, como afirma, “a progressão continuada, em que pese seus pontos positivos(...), não pode ser tomada como sinônimo de não avaliação e, pior, de não aprendizagem”.

O quinto artigo, Conselhos Escolares: análise de sistema municipal de ensino no Brasil, de Flávia Werle e Alénis de Andrade, discute o perfil dos representantes dos segmentos da comunidade escolar num município do sul do Brasil, analisando as implicações decorrentes de sua diferenciação para a dinâmica de funcionamento dos Conselhos Escolares. Com base no trabalho empírico realizado, os autores registam que os indivíduos que já tiveram vivência em Sindicatos, Entidades Comunitárias ou Partido Político respondem mais ativamente a espaços de participação dentro da escola. Sublinhando essa participação heterogénea, Werle e Andrade concluem que os Conselhos Escolares são espaços de construção comunitária, de aprendizagem, de elaboração e de acompanhamento da proposta da escola pública.

O sexto artigo, Do colo à construção da cidadania: por uma escola acolhedora, de Óscar C. Sousa, apela aos educadores para adoptarem uma atitude terapêutica expressa pelo acolhimento quando estão face a crianças com comportamentos desviantes. O autor lembra que o desvio pode ser, eventualmente, manifestação de um desequilíbrio de natureza afectivo-social que só pode ser restabelecido por uma experiência positiva de segurança, de confiança e de partilha de direitos e de deveres, para defender, em consequência, “uma escola com missão terapêutica, capaz de reconstruir as identidades danificadas, porque uma escola cidadãos para cidadãos”, uma escola que assegure “um clima de estado de direito” e garanta a todos um “caloroso acolhimento”.

No sétimo artigo, Estudos de caso em Educação. Investigação em profundidade com recursos reduzidos e outro modo de generalização, José B. Duarte retoma uma problemática que lhe é muito cara, defendendo o estudo de caso como alternativa a estudos mais exigentes em recursos humanos e materiais, que pode ser seguida por (jovens) investigadores com parcos recursos e, muitas vezes, trabalhando sózinhos. Apoiando-se em Robert Stake e Robert Yin, o autor procura delinear os procedimentos a seguir na adopção do estudo de caso em problemas educacionais, e inclui, em complemento, as ideias-chave de alguns estudos de caso tal como são inventariados por Yin. Trata-se de um excelente contributo metodológico, sobretudo para os nossos jovens investigadores em processo de formação, nomeadamente a nível de mestrado.

No oitavo artigo, As “intermitências da Morte”: debate acerca do direito à literatura lusófona no processo de alfabetização de jovens e adultos, Nilce da Silva discute o direito à literatura lusófona, tomando Saramago como exemplo, na formação de professores e na alfabetização de jovens e adultos por meio de pesquisa-formação na cidade de São Paulo. Fruto de uma concepção de universidade assente em três pilares básicos – “o pesquisar, o ensinar e a possibilidade de devolver à sociedade o conhecimento produzido nesta instância social” –, a autora rebela-se contra o uso constante e inadequado de material infantil nos cursos com jovens e adultos, afirmando a terminar o seu artigo: “ensinar com Saramago é uma forma de valorização dos nossos alunos, pois ao invés de lerem textos infantis, escritos para crianças entre seis e dez anos, estaremos alfabetizando com um texto de um autor notório, valorizando a qualidade da língua portuguesa, com temática apropriada, ou seja, que reflete o mundo subjetivo dos adultos, e estaremos dizendo: vocês são capazes de ler e compreender um Prêmio Nobel”.

O nono artigo, Vidas reconhecidas: o projecto de Educação e Formação de Adultos na Câmara Municipal de Lisboa, de Alexandra Aníbal, Helder Touças, Luísa Dornellas, Paula Morgadinho, Mafalda Seoane e Vanessa Veríssimo, descreve o modo como, no município de Lisboa, se concretizou o Processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, processo em que são valorizadas as competências adquiridas pelos adultos através da sua experiência de vida e de trabalho, permitindo-lhes obter uma certificação equivalente aos diplomas escolares oficiais. Sublinhando que as implicações se manifestam sobretudo a nível individual, com a elevação da auto-estima e o conhecimento de si próprios, os autores defendem que o Projecto constitui uma “janela de oportunidade” para adultos há muito afastados do sistema de ensino formal.

A secção Diálogos inclui uma interessante entrevista com o matemático Ubiratan D’Ambrósio, Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e, actualmente, Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de S. Paulo. Na entrevista conduzida por Nuno Vieira, D’Ambrósio lembra que há muitos modos de “comparar, classificar, quantificar, medir, organizar e de inferir”, construídos nos contextos culturais e de trabalho pelos seres humanos. A Etnomatemática, movimento de que foi fundador no Brasil, busca associar essa diversidade de contextos culturais, onde estão o idioma, a música, a culinária, os costumes, à Didáctica da Matemática. Uma entrevista a ler e debater por todos aqueles que procuram encontrar estratégias que combatam o insucesso e o desinteresse dos jovens pela Matemática e que defendem a criação das bases de uma Educação Multicultural.

Na habitual secção Recensão, incluem-se duas leituras críticas de obras muito diferentes. Na primeira, Adriana Tenreiro apresenta (e descobre) o livro de Immanuel Kant, Observations sur le sentiment du beau et du sublime, originalmente publicado em 1764. Na segunda, Maria João Couto apresenta ao público leitor de Português o livro de metodologia recentemente publicado na Alemanha, Generalization in Qualitative Psychology (Verlag, 2007). Ambas as recensões têm uma característica comum que a RLE tem incentivado desde primeiro número: são apresentadas por estudantes de pós-graduação (mestrado e doutoramento); neste caso, a primeira, é da Universidade Lusófona e, a segunda, da Universidade de Vigo.

O número termina com três das suas habituais secções. Em Sítios Digitais, Vasco B. Graça apresenta, desta vez, os blogs mais populares (em Portugal) no âmbito da Educação. Em Notícias dá-se uma pequena ideia da multifacetada actividade científica da UI&D Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos, o centro de investigação onde nasce a Revista. Por último, os resumos das Dissertações de Mestrado em Ciências da Educação realizadas em 2007 na Universidade Lusófona.

Fazer (e afirmar) uma revista científica só é possível com muitas cumplicidades, a começar pela confiança dos autores que submetem os seus artigos para publicação. Aos nossos leitores habituais deixamos um desafio nesta teia de cumplicidades: dêem-nos a conhecer a sua leitura crítica do número que agora se torna público.

 

Aroeira, Abril de 2008

António Teodoro

 

 

Referências

Boltanski, L. & Chiapello, E. (1999). Le nouvel esprit du capitalisme. Paris : Gallimard.

Therborn, G. (2002). Foreward. Space and Learning. In A. Nóvoa & M. Lawn (Eds.). Fabricating Europe. The Formation of an Education Space (pp. 15-17). Dordrecht: Kluwer Academic.