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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.10 Lisboa  2007

 

Saudosismo dos anos setenta ou a arrogância da ignorância?

O projecto de Decreto-lei de Educação Especial

 

Isabel Sanches*

 

 

Circulou em meios privados e ultimamente na Internet, de livre acesso, o projecto de Decreto-lei de Educação Especial, o qual merece algumas reflexões.

 

1. Sobre a Educação Especial

A partir dos anos sessenta do século passado, inúmeras foram as mudanças introduzidas, no âmbito da educação das minorias, até aí mais ou menos ignoradas pelos sistemas educativos. No final dos anos sessenta, iniciou-se, em Portugal, com origem nos países do norte da Europa, o movimento da integração escolar que levou à escola pública as crianças e os jovens em situação de deficiência sensorial, os quais encontraram resposta na modalidade Ensino Especial. Os alunos em situação de deficiência faziam parte da classe regular e eram orientados pelo professor de ensino especial, o qual para eles construía, sempre que possível, um programa específico e com eles o desenvolvia e/ou supervisionava.

Em 2007, o projecto de diploma de Educação Especial, no artigo 1.º que define o Objecto e Âmbito do diploma, propõe-se estabelecer o «regime de educação especial a praticar na educação pré-escolar nos ensinos básicos e secundário dos sectores público, particular, cooperativo ou solidário». Em seu artigo 2.º explicita que a «educação especial visa responder a necessidades educativas especiais, resultantes de limitações significativas ao nível da actividade e da participação num ou vários domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais de carácter permanente».

A Educação Especial, como modalidade de atendimento a crianças e jovens considerados  com necessidades educativas especiais, surgiu nos anos setenta, no seguimento do famoso Warnock Report (1978). É um modelo de atendimento centrado nas dificuldades do aluno e em serviços de atendimento especialmente criados para ele. Em Portugal, só em 1991, teve expressão legislativa com o Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto.

Decorrente do mesmo relatório (Warnock Report), a categoria «necessidades educativas especiais » veio substituir a perspectiva médica, mediante a qual eram avaliadas as crianças e jovens, assente em critérios médicos e organizados em função da deficiência (deficiente visual, deficiente motor…). A perspectiva educativa, organizada à volta de critérios educativos e tendo como grande categoria as «necessidades educativas especiais», foi um passo em frente, mais em termos teóricos (talvez ), em relação ao atendimento que se preconizava para estes alunos. A avaliação educativa dos alunos era da competência e da responsabilidade dos professores/educadores que com eles trabalhavam e a eles cabia, também, a definição do seu programa educativo, programa desenvolvido e/ou supervisionado, sempre que possível, pelo professor de educação especial. Tínhamos, assim, duas educações paralelas, a educação especial e a educação regular, com os respectivos especialistas, os professores da educação regular para todos os alunos e os professores de educação especial para os alunos considerados com necessidades educativas especiais.

Em Portugal, as escolas, sobretudo a partir do Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto, foram aplicando o regime educativo especial, usando a terminologia necessidades educativas especiais, mas nunca descolando das situações de deficiência e recusando-se, em muitos casos, a alargar esta modalidade de intervenção a todos os alunos com dificuldades no seu processo de aprendizagem. Os alunos considerados com necessidades educativas especiais eram os alunos com deficiência, comprovada por atestado médico, vulgo os alunos 319, o que veio a ser agravado com os decretos 6/2001 e 7/2001, de 18 de Janeiro, ao introduzir o conceito necessidades educativas especiais de carácter permanente.

Mesmo com o decreto a seu favor , os professores de educação especial, na generalidade, e também as escolas , têm tido muita dificuldade em descolar o olhar do défice do indivíduo, caracterizando-o por esse mesmo défice, em vez de considerar a sua globalidade, tendo em conta o seu potencial e também as suas dificuldades. O termo necessidades educativas especiais entrou facilmente no discurso mas não nas práticas quer legislativas quer pedagógico-educativas. A categorização dos alunos continuou a ser feita segundo critérios médicos, repercutindo-se nos critérios para colocação dos professores. Em 12 de Maio de 1998, a Direcção Regional de Educação de Lisboa (DREL), emite o ofício circular n.º 66, cujo assunto é: «Colocação de Docentes para apoio educativo – Despacho conjunto n.º 105/97, de 01 de Julho ». Neste ofício circular «são identificadas vagas para três grandes áreas de especialização em Educação Especial – A1, A2, A3 e OUTRAS», a saber:

«A1 - que corresponde às áreas de especialização genericamente designadas por Deficiência Mental, Deficiência Motora, Problemas Intelectuais, Problemas de Comportamento e Multideficiência, Dificuldades de Aprendizagem e outras do mesmo âmbito;

A2 – que corresponde às áreas de especialização em Deficiência Auditiva e Graves Problemas de Comunicação;

A3 – que corresponde à área de especialização em Deficiência Visual;

OUTRAS – que corresponde à Formação especializada em Supervisão Educativa, Orientação Educativa, Intervenção Artística, Animação Social, etc.»

Pelo que acaba de ser dito (o espaço é curto para introduzir muitas outras razões), se verifica que a Educação Especial, uma educação centrada no aluno e nas suas dificuldades, com apoio de especialistas, nunca foi convenientemente implementada entre nós, nem em termos legislativos, nem nas práticas pedagógicas. Talvez por isso a necessidade de o fazer agora: foi a criação do quadro de educação especial (Decreto-lei 20/2006, de 31 de Janeiro) e é este projecto de decreto-lei, em 2007. O que em tempos foi desejado pelos actuais legisladores ou consultores  não é, obviamente, o que se deseja agora, na actual conjuntura sócio-educativa.

Nunca conseguimos arranjar formas de descolar da perspectiva médica e pensar adequadamente nos alunos, não como “doentes” precisados de reabilitação, mas como alunos para quem tinham de ser criadas respostas educativas para as suas necessidades educativas. Fazer uma avaliação do aluno, por professores e/ou educadores , para compreender bem as aquisições que ele já fez, nas várias áreas de desenvolvimento (situação educativa actual) e programar as etapas que se deveriam seguir foi tarefa de alguns, muito poucos, em termos operativos . A ambivalência legislativa não facilitou em nada a opção por uma determinada via nas práticas a implementar. O que se constata, em termos de práticas educativas dos professores de apoio educativo , é uma prevalência da modalidade Educação Especial, na sua intervenção junto dos alunos considerados com necessidades educativas especiais .

 

2. Sobre a Educação Inclusiva

Com a Declaração de Salamanca (1994), onde Portugal assumiu o compromisso de promover a educação para todos, incrementando as mudanças políticas necessárias para o desenvolvimento da educação inclusiva, dotando as escolas das condições e recursos necessários para educar todas as crianças, em especial as que eram consideradas com necessidades educativas especiais, o conceito de inclusão escolar deveria substituir o de integração no sistema educativo português e a Educação Especial dar lugar à Educação Inclusiva (Costa, 1996; Niza, 1996; Bairrão, 1998; Correia, 1999; Conselho Nacional de Educação, 1999; Rodrigues, 2001).

A escola da Inclusão obriga a mudanças a nível jurídico-legislativo, a nível da organização e da gestão da escola, a nível dos professores, do currículo e dos modelos de apoio aos alunos (Costa, 1996; Ainscow, Porter & Wang, 1997), donde a necessidade de as escolas serem apoiadas com uma legislação que configure os novos princípios e consequentes práticas educativas.

A mudança é sempre difícil e, por isso, deve ser bem sustentada. Sabe-se que a lei não faz a mudança, mas ajuda muito. Ao contrário de outros países, em Portugal, a lei aparece depois e não antes das «coisas» acontecerem. Começou-se a integração escolar no final dos anos sessenta e legislação de apoio não existia; a gratuitidade e obrigatoriedade escolares para os alunos considerados com necessidades educativas só surgiram em noventa, quando eles frequentavam a escola desde os anos setenta. Teremos de esperar vinte/trinta anos para que tenhamos legislação que contemple a educação inclusiva? Já lá vão treze…

Os termos escola inclusiva e educação inclusiva têm entrado a medo nos vários articulados legislativos após Salamanca (1994). Neste projecto de Decreto-lei a sua presença poderemos dizer que é omissa, uma vez que apenas no artigo 2.º se faz referência à «inclusão educativa e social», o que é um retrocesso em relação a normativos anteriores, não revogados por este projecto de decreto-lei (ex: Despacho nº 10 856/2005, de 13 Maio – republicação do Despacho nº 105/97, de 30 de Maio). A implementação das práticas tem sido ainda mais difícil, embora se possam documentar casos de sucesso, mesmo com crianças e/ou jovens em situações muito complicadas.

Centrar a intervenção educativa no grupo/turma e na escola, em vez de a centrar no défice do aluno é o caminho para a escola e a educação inclusivas, numa perspectiva de educação para todos e com todos, como preconizam os vários documentos internacionais que têm vindo a ser produzidos, como sejam a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien (1990 ) e a Conferência Mundial sobre Necessidades educativas especiais que deu origem à Declaração de Salamanca (1994). Situam os direitos das crianças e dos jovens considerados com Necessidades educativas especiais (NEE) no contexto mais lato dos direitos da criança e do homem, fazendo referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), à Convenção relativa aos Direitos da Criança (1989 ), à Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990) e às Normas das Nações Unidas sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência (1993). Destacam-se, ainda, a Carta do Luxemburgo (1996) com a proclamação europeia do princípio da não-discriminação, consagrada também no artigo 13 do Tratado de Amesterdão (1997), o Enquadramento de Acção de Dakar (2000), cujo objectivo principal é atingir a Educação para Todos até ao ano 2015, a Declaração de Madrid (2002), com o princípio de «Não discriminação mais Acção positiva fazem a Inclusão social» e a Flagship de Educação para Todos (2004) – o direito à educação para as pessoas em situação de deficiência: o caminho para a inclusão.

O projecto de Decreto-lei aqui apresentado ignora ou tenta ignorar todo um trajecto que está a ser feito em todos os países, em todo o mundo, com inúmeras dificuldades, é certo, mas o desafio é conseguir. Foi-nos possível constatar esse envolvimento mundial, em 2005, em Glasgow, no Inclusive and Supportive Education Congress «Inclusion:Celebrating Diversity?», onde estavam presentes representantes dos diferentes continentes. Mais uma vez queremos ficar na cauda da Europa, implementando práticas de que os outros países estão a tentar libertar-se?

 

3. Sobre a categorização dos alunos

Com a introdução no sistema educativo do conceito Necessidades educativas especiais, pretendia-se suprimir os efeitos estigmatizantes da categorização dos alunos, tendo, contudo, criado uma super etiqueta que distingue os que têm necessidades educativas dos outros, ou seja, os outros, os diferentes, os mais frágeis, colocando-os numa situação de dependência, pois eles têm necessidades e os outros não (Armstrong & Barton, 2003). Apesar desta vontade (aparente) de se livrar das etiquetas, os diagnósticos médicos continuam a ser o grande suporte para as decisões a tomar a nível educativo e a incorporar e a marcar o discurso dos profissionais da educação .

Uma parte importante do processo de segregação advém da decisão do tipo de dificuldades que são contempladas com medidas de apoio, por parte do sistema educativo, as quais assentes em processos de categorização dos alunos, vão produzindo e alimentando os estereótipos. O esforço para basear as práticas educativas na capacidade do indivíduo e na sua maneira de funcionar está longe de ser uma realidade.

Indiferentes aos efeitos que o «rótulo» produz no indivíduo rotulado, os sistemas continuam apostados em responsabilizar unicamente o indivíduo pela sua situação de desvantagem, sem se questionarem a eles próprios, como diz Poizat (2004: 44):

A partir do momento em que as nomenclaturas sublinham a importância da situação na qual se encontra o indivíduo, insistem no papel central do contexto como factor determinante da existência de deficiência e se se afastam de uma concepção de deficiência ligada ao indivíduo, em si mesmo, a necessidade de categorização para os sistemas de informação é posta em causa.

Poizat continua:

A noção de deficiência em situação faz referência a uma abordagem dinâmica e social, abandonando uma concepção estática e unicamente médica da deficiência que aparece, a partir daí, como a expressão de um equilíbrio interno entre três elementos interactivos: individual, situacional e contextual (p.45).

É, pois, para os contextos que se voltam hoje os olhares, sendo eles decisivos na qualidade de vida dos seus utentes. E os contextos educativos têm uma importância acrescida pelo papel que desempenham no desenvolvimento do indivíduo. Constata-se que as pessoas em situação de deficiência fazem grandes progressos quando os contextos lhes são favoráveis. Encontram-se hoje pessoas em situação de deficiência em todos os sectores da vida social, académica ou desportiva, o que vem questionar a decisão de seleccionar antes ou após o nascimento. O natural é que as crianças cresçam na sua família, na sua comunidade, com a ajuda dos seus amigos. Porquê escolas diferentes, organizadas em função de parcelas do indivíduo, desprezando a sua globalidade? Porquê «esconder» o que nos incomoda? Em vez de aprender a viver com todos, a «moral e os bons costumes» estabelecem os que são «bons» e os que são «maus, perigosos, inconvenientes, incapazes…» e, assim, surgem as prisões, os asilos, as casas da terceira idade e os ghettos, enfim, a «repartição dos indivíduos no espaço» (Foucault, 1975:166), e, com este projecto de decreto-lei, as «Escolas de Referência » e as «Unidades de Ensino Estruturado  … e Unidades de Apoio Especializado… ». 

É o «melhor para eles», como se ouve dizer com frequência, ou é o melhor para nós que, assim, não nos vimos confrontados com o «espelho partido» que podia ser o nosso ou o medo de nos confrontarmos com a nossa própria imagem, distorcida? Em nome das boas intenções, se fizeram grandes atrocidades. A sociedade actual tudo divide e agrupa (os indivíduos, os saberes), mas a vida e o indivíduo não é uma fatia biológica, teológica, sociológica, mas um todo global de todos esses saberes em interacção contínua, exigindo o equilíbrio e a cooperação de todos. Será mesmo necessário categorizar para resolver ou é somente o modelo de agir que conhecemos, com uma longa tradição, e com muita dificuldade em o mudar? Por vezes o diagnóstico, qualquer que ele seja, não tem a função de indicar o caminho a seguir, mas encaixar o indivíduo, para justificar a «impossibilidade» de intervenção.

Embora a categorização tenha sido uma actividade importante para o conhecimento, ela é muitas vezes um obstáculo ao reconhecimento do indivíduo como pessoa (Gardou, 2005). Não é preciso categorizar para intervir, é preciso permitir que o desenvolvimento se processe à sua medida ou, por vezes, somente manter a sua humanidade. O ponto de partida para a intervenção, em termos educativos, ou para a afectação de recursos, não pode ser o défice, mas a funcionalidade existente e esperada. É passar «da visão dos pontos fracos á valorização dos pontos fortes» (Gardou, 2003: 59), é ter como ponto de partida e de chegada a pessoa em toda a sua globalidade, é mudar a perspectiva da intervenção: do grupo homogéneo passar ao grupo heterogéneo, de um pequeno grupo que faz as regras passar a uma organização em que todos são co-responsáveis pelas decisões e pelo seu cumprimento.

Mas a não categorização também pode trazer alguns riscos, se ela própria se transformar em «assimilação normalizadora, disfarçada em prática inclusiva» (Gardou, 2003: 55), o que nos transporta para o processo de normalização, tão defendido, na época da integração escolar. É o primado do normocentrismo e a anulação do direito à diferença.

 

4. Sobre as Escolas de Referência e as Unidades de Ensino Estruturado e as Unidades de Apoio Especializado

Depois de trinta anos de luta para que cada aluno considerado com necessidades educativas especiais pudesse ser educado no meio menos restritivo possível, na escola do seu bairro, da sua comunidade de pertença, surge neste projecto de diploma a ideia inovadora de referenciar escolas para onde vai determinado tipo de alunos, oriundos «de um ou mais concelhos, em função da sua localização e rede de transportes existentes» (ponto 1, art.º25.º). Em vez de melhorar o sistema existente, dotando-o de meios e de condições para que cada um possa usufruir do convívio saudável dos seus familiares e amigos próximos, regredir é a palavra de ordem… Toda a gente conheceu bons institutos para cegos onde se ensinava, eficazmente, em certos casos, esta faixa de alunos. Toda a gente conhece, mas convém lembrar o que a ghetização desencadeia no espírito de quem é ghetizado. As várias formas de diferenciação positiva ou negativa têm vindo a ser abandonadas porque elas produzem resultados positivos só para quem as desencadeia, sempre à custa do dinheiro do contribuinte, numa avaliação dentro do próprio sistema que as implementa para as justificar.

O aprender a lidar com o outro, na sua diversidade, para que não se estimule o fosso entre os mais e os menos capazes, os mais ricos e os mais pobres, os que pensam e agem de forma diferente, é o grande desafio do nosso século, o século da globalização, com tudo o que a mesma tem de bom e de mau. É a cooperação, é um outro olhar sobre o outro, é a alteridade o desafio da nossa maneira de ver e encarar o futuro que se está e revelar e que não podemos ignorar.

A opção tem de estar do lado da criação de escolas onde todos possam aprender juntos, criando as condições de resposta adequada a cada situação, ou seja, personalizar sem individualizar o ensino que desencadeia aprendizagens significativas para cada um. Na medida em que o são para cada um, sê-lo-ão para todos. Diferenciar, mesmo positivamente, separando, não vai ensinar cada um a aprender a lidar com o outro que é diferente de si porque nunca se tem a possibilidade de ouvir uma outra forma de expressão, uma outra forma de estar, de fazer e de sentir. Aprender a lidar com o outro na sua diversidade é estar com ele, aprender com ele, trocar experiências e saberes, nos contextos que são de todos. De que me servem grandes aquisições académicas se não me dão hipóteses:

- de as demonstrar, uma vez que à partida estou excluído?

- de desenvolver adequadamente competências sociais?

-de as partilhar com os meus pares, mais ou menos capazes do que eu?

- de aprender com os mais capazes?

- de ensinar os que têm mais dificuldades do que eu?

Há muitos saudosismos para alguns daqueles que passaram e viveram o 25 de Abril de 1974. Só assim se explica que agora, passados trinta anos, se proclame como grande inovação a existência de «Unidades de Ensino Estruturado… e Unidades de Apoio Especializado…», nas escolas regulares. Já nos esquecemos das classes especiais extintas após o 25 de Abril, de 1974, pela discriminação de que eram alvo os alunos que as frequentavam? Estavam na mesma escola, mas tinham os intervalos em momentos diferentes para não se cruzarem uns alunos com os outros.

 

Para concluir

Em termos legislativos, o conceito necessidades educativas especiais  e o regime educativo especial foram objecto de legislação em 1991, com o Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto, passados treze anos sobre o Warnock Report, embora tivéssemos aderido ao processo de integração no final dos anos sessenta. Já nessa altura se prefigurava uma outra perspectiva em relação à educação de alunos com dificuldades no seu percurso educativo, a escola inclusiva. Agora em 2007, voltamos quase quarenta anos atrás, para implementar nas escolas de ensino regular, a modalidade Educação Especial?

Foi criado, em 2006, o grupo de docência da Educação Especial, sendo definidos critérios de acesso que remetem aos anos sessenta (deficiência motora, deficiência mental, deficiência visual, deficiência auditiva…) porque, segundo alguns era uma velha reivindicação dos professores de educação especial. De tão velha perde por inoportuna.

Continuamos a apostar na categorização dos alunos (a categorização só serve quem a define), tendo por referência critérios da saúde expressos na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial de Saúde (art.º4.º), no momento em que a nível mundial se tenta descategorizar e olhar para a pessoa no seu todo, rejeitando olhares parcelares que despersonalizam a pessoa.

Será que temos de esperar quarenta anos para aceder a legislação que tenha como princípio orientador a Educação Inclusiva? O que será que nessa altura se perspectivará em termos educativos?

Verifica-se que o projecto de decreto-lei não é mais que o antigo Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto, em que a substância é a mesma, agravada com alguma das «inovações» que introduz: as escolas de referência, as unidades de ensino estruturado e de apoio estruturado e o retrocesso de trinta anos em relação à educação de minorias no espaço escolar público.

 A globalização está aí, com vantagens e inconvenientes (é natural) para uns e/ou para outros, mas a perspectiva em termos legislativos não é abrir para todos, é antes continuar a pensar em termos de grupos muitos definidos, apresentando sempre as vantagens imediatas desses grupos, os quais aderem de imediato.

Nós continuamos a acreditar que a discriminação, seja ela positiva ou negativa, acaba, a curto ou a médio prazo, por discriminar negativamente os contemplados. Lutar contra a discriminação é também atravessar Portugal em cadeira de rodas, como o fez, recentemente, um jovem em situação de deficiência!... Que sentimentos despertam estas notícias nos decisores políticos ou em cada um de nós?

Uma investigação aprofundada deveria estar na origem da tomada de decisões de política educativa tão questionáveis. Que interesses económicos ou de poder estarão na base dessa tomada de decisões?

 

 

Notas

1 Quando se fala em «alunos com necessidades educativas especiais» estamos a marcar o indivíduo com um rótulo que parece ser característica principal desse indivíduo, tem um carácter permanente; quando usamos a expressão «alunos considerados com necessidades educativas especiais» estamos a dizer, e bem, que o rótulo é o resultado da necessidade que a sociedade tem de rotular os seus indivíduos, para os fins ou objectivos que são seus e não do indivíduo.

2 Tradução de Special education needs.

3 Decorrente da experiência do terreno, podemos afirmar que as escolas nunca deixaram de exigir obrigatoriamente os relatórios médicos para aplicar o regime educativo especial (Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto).

4 Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto.

5 Salvaguardem-se as minorias esclarecidas que conseguem romper as normas do sistema e levar por diante aquilo que, no momento, parece ser o mais adequado em termos da Europa ocidental: passar da categorização médica para a grande categoria necessidades educativas especiais, naquilo que ela contém em termos de substância e o que a mesma implica, em termos educativos.

6 Note-se que este despacho introduzia, em alguns artigos, a perspectiva da escola inclusiva.

7 Argumenta-se que a criação do quadro de educação especial foi uma forte reivindicação sindical dos professores de educação especial. Teria sido ajustado no momento próprio, não desfasada no tempo e quando outras perspectivas invadem o sector.

8 Não se excluem, nas avaliações, os contributos de outros técnicos, eles são muito importantes, mas as questões educativas têm de ser da responsabilidade primeira dos agentes da educação, em termos de avaliação e de construção de respostas.

9 É certo que era obrigatório um Plano Educativo Individual e um Programa Educativo para «as situações mais complexas»! (Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto).

10 Investigação realizada no ano 2003/2004, na Direcção Regional de Educação de Lisboa. É neste âmbito a afirmação que se segue.

11 Ver Sanches, I. (2007). À la recherche des indicateurs d’éducation inclusive. Ce que disent de leurs pratiques les enseignants de soutien éducatif au Portugal. Thèse de Doctorat. Université Lumière Lyon2.

12 «A educação básica deve ser oferecida a todas as crianças e as crianças com necessidades educativas especiais devem fazer parte integrante do sistema educativo».

13  Artigo 23º «As crianças com deficiência têm direito à participação na comunidade e a sua educação deve conduzir à plena integração e desenvolvimento pessoal possível».

14 Em Portugal, o Despacho 1438/2005, de 4 de Janeiro, vem responsabilizar o professor do 1.º ciclo do ensino básico e o conselho de turma dos outros ciclos de ensino, pela análise da situação específica do aluno e a definição das medidas de apoio educativo a adoptar. Esta medida já fazia parte do Decreto-lei 319/91, de 23 Agosto, mas nunca tinha sido adoptada, em pleno.

15 Art.º 25.º

16 Art.º 26.º

17 Art.º 27.º

18 Artigos 25.º, 26.º e 27.º.

19 Afirmação decorrente da constatação da autora, nos anos setenta, em escolas do distrito de Lisboa.

20 Em 1986, foi introduzido o conceito necessidades educativas específicas, pela Lei de Bases de Sistema Educativo.

 

 

Referências bibliográficas

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* Professora da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, co-directora do Mestrado em Educação Especial – Domínio Cognitivo e Motor.