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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.9 Lisboa  2007

 

Escola Francisco de Arruda (1956-1974): Espólio documental de Manuel Maria Calvet de Magalhães

 

 

Pouco se tem investigado e reflectido sobre a gestão e organização das escolas durante o período do Estado Novo, particularmente entre a Reforma de Carneiro Pacheco, em 1936, e as alterações introduzidas no sistema de ensino pelo 25 de Abril de 1974. O modelo de gestão e organização das escolas, tanto das técnicas elementares e técnicas industriais como das comerciais e liceus, até à revolução de Abril, envolvia a nomeação, pelo Ministro da Educação, de directores e reitores.

Com base numa investigação realizada entre 1985 e 1991, Licínio C. Lima, em A Escola como organização e a participação na organização escolar. Um estudo da escola secundária em Portugal (1974 – 1988), afirma:

A reforma do ensino técnico, longamente preparada por uma comissão nomeada em 1941, no Ministério de Mário de Figueiredo, estabelece por meio do respectivo Estatuto (Decreto-Lei nº 37 029, de 25 de Agosto de 1948) uma nova e complexa organização curricular, mas nada de substancial vem alterar (n)o modelo organizacional e administrativo global, designadamente em termos de direcção e de controlo. […] A direcção dos estabelecimentos de ensino é composta por um director (nomeado pelo ministro), um subdirector, um professor-secretário e por professores delegados (Arts. 11º a 51º do supracitado Decreto-Lei de 1948) […] A figura do reitor (e do director) constituía um dos principais elos de ligação entre as dimensões política e administrativa central, por um lado, e o governo, administração e gestão concretas, no quotidiano de cada escola. Tratando-se de representantes políticos e administrativos do Estado, de delegados do ministério junto de cada escola, designados por nomeação do respectivo ministro na base de critérios onde predominava a confiança política, compreende-se o especial cuidado que era posto na sua escolha, dadas as repercussões a nível escolar mas também dada a expressão social e a influência local que assumiam. Embora formalmente não gozassem de autonomia, em tudo estando subordinados à administração central, a simples consecução dos objectivos e a realização em conformidade dos papéis que lhe estavam atribuídos, faziam de reitores e directores figuras poderosas a nível escolar, concedendo-lhes efectivos poderes junto de docentes e respectivo pessoal.” (Lima, 1992, p.209 e p.211)

A nomeação, pelo Ministro da Educação, dos reitores e directores poderá ter induzido a ideia de que havia um modelo único, nas escolas técnicas e liceus. Manuel Maria Calvet de Magalhães, num artigo publicado no Diário de Lisboa a 23 de Junho de 1972, intitulado “Tudo isto é triste”, reconhecia:

Não há duas escolas iguais. O que pode ser útil para um liceu ou escola pode não ser para outra.1

Num outro artigo, saído igualmente no Diário de Lisboa, de 8 de Setembro de 1972, sob o título “Gestão dos estabelecimentos escolares”, afirmava:

Na verdade não se sabe muito disto e bastas vezes foi depreciado o trabalho de administração escolar como sistema nervoso de um estabelecimento de ensino, como a sua rede de comunicação, como organização cujas regras de funcionamento são definidas do exterior; conhecimento das forças instituintes que operam no próprio estabelecimento de ensino, relações socio-educativas, forças internas de mudança e de renovação, etc., esquecendo-se que as responsabilidades tanto de ordem social como jurídica, financeira, técnica e sobretudo pedagógica, imprimem actualmente novo estilo a cada director ou reitor devido às diferentes estruturas e métodos pedagógicos em evolução.2

Hoje, a escola como organização tornou-se objecto de estudo em muitos países e, em Portugal, deu-se também uma viragem nos trabalhos que começaram a ser publicados, especialmente no final dos anos 90.

João Barroso, em “A história das instituições escolares: a escola como objecto de estudo” (2007), afirma,

De um modo geral pode-se dizer que a escola sempre esteve presente (com maior ou menor visibilidade) na diversidade de estudos realizados no âmbito das ciências da educação, fossem eles sobre o currículo, os professores, os alunos ou sobre o sistema educativo em geral e as suas relações com outros sistemas sociais. Contudo, nestes estudos, a escola não constituía um objecto de investigação, em si mesma. Ela era vista, quando muito, como um lugar de aplicação ou reprodução, relativamente neutro, de determinantes macro-políticas, económicas ou sociais, ou então, como um contexto físico e administrativo de micro-interacções que decorriam na sala de aula, ou nas relações bipolares professor-aluno ou alunos entre si.

Aquilo que faz, actualmente, a especificidade dos “estudos sobre a escola” (na sociologia, na história, na administração) é, portanto, o facto de ser individualmente considerada como objecto social, com a sua identidade, cuja estrutura, funções, processos e resultados não se limitam a serem deduzidos do sistema social mais amplo em que se integram, nem a serem vistos como um mero somatório de acções individuais e grupais que se desenrolam no interior das suas fronteiras físicas. (p.156)

O perfil de um director ou reitor de estabelecimento escolar foi igualmente alvo da atenção de Manuel Maria Calvet de Magalhães. No Diário de Lisboa, de 19 de Fevereiro de 1972, com o título “A coragem de dirigir”, salientava, com alguma ironia:

No campo da tipologia a primeira qualidade para um dirigente escolar, profissão que não é, nem mais, nem menos difícil que somente ensinar, é possuir uma boa saúde (capaz de resistir à carência material, falta de edifícios, aos professores, aos pais, às ordens ilógicas, à uniformidade de execução, etc.); a segunda qualidade é ter carácter (saber dizer não, capacidade de decisão, de insistir, de aborrecer por vezes, etc.) e a terceira qualidade é a de possuir qualidade humana, de medida, de guardar o sentido de humor (não de se considerar Moisés “poderoso e solitário”, julgando ter recebido o poder do Divino Espírito Santo, não tomar-se demasiado a sério, não deixar-se submergir pelos pormenores de modo que as árvores ocultem a floresta, ter bom-senso, considerar que dirigir é ser delegado daqueles a quem dirige, etc.).3

A leitura comparativa das normas internas das várias escolas do país, em vigor durante este período (1936-1974), poderá conduzir à comprovação das afirmações acima referidas.

Esta é a primeira razão da publicação em CDRom dos documentos fac-similados da Escola Técnica Elementar e, mais tarde, Escola Preparatória Francisco de Arruda: facultar a leitura dos textos originais, em pdf e Word, para que investigadores da área das Ciências da Educação possam, com estes e/ou em confronto com outros de outras escolas, dispor de materiais empíricos para a realização dos seus trabalhos de investigação.

Uma segunda razão relaciona-se com o desejo de, no ano lectivo de 2006/07, quando se comemora o 50.º aniversário da Escola Francisco de Arruda, cumprir a vontade expressa, por escrito, por Manuel Maria Calvet de Magalhães, que deixou em sua casa, antes de falecer, em Agosto de 1974, um dossier com parte do material hoje publicado no CDRom, ao qual prendera, com um clipe, um papel de agenda onde se lia: “Para a história da Francisco de Arruda”.

O conhecimento da história desta escola, entre 1956 e 1974, dificilmente se completaria sem a leitura da vastíssima obra que o seu então director deixou na imprensa. A colectânea destes textos será em breve publicada, como resultado de um projecto de investigação, coordenado por Áurea Adão, “A educação na imprensa portuguesa, 1945-1974”, e realizado no âmbito da UI&D Observatório de Políticas de Educação e de Contextos Educativos, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia e da Fundação Calouste Gulbenkian.

É precisamente em alguns destes artigos que encontramos a base conceptual que orientou a elaboração, por Manuel Maria Calvet de Magalhães, do modelo que adoptaria na gestão e organização da Escola Francisco de Arruda. Assim, no supracitado artigo “A coragem de dirigir”, afirma:

Correspondendo a vários pedidos para escrever sobre “direcção de escolas” e até solicitações sobre alguma bibliografia relativa a “funções administrativas” e “gestão escolar”, começo por declarar que não tenho nem sistema nem princípios pré-estabelecidos, considerando fundamental, sim, evitar certo número de erros. Isto mesmo ouvi num curso de Janine Pio, no Instituto Nacional de Pedagogia, Rua de Ulm, Paris, sobre ‘Que é administrar?’4

E no artigo também já antes referido, “Tudo isto é triste”, salientou:

Na verdade, não é no primeiro dia de Outubro, através das lições de pessoal docente recém-chegado, que os alunos saberão as leis em que vivem, apesar de imediatamente a seguir às primeiras aulas entrarem em acção numa sociedade escolar. De facto, é a partir das matrículas que deve começar a integração dos alunos. Numa observação mais profunda deve salientar-se a incapacidade natural das organizações escolares de tipo burocrático ou weberiano para se adaptarem às exigências das realidades da administração escolar que o tempo exige, a não ser por meio de crises (Maio de 1968) que provocam a rotura dos chamados equilíbrios institucionalizados das organizações (carência da acção de dirigir - guiada e não pilotada - de gerir, de administrar e da escolha dos objectivos). Somente as forças organizadoras podem considerar a Administração como o agente responsável (lúcido) pela ordem das actividades e das organizações, o que leva a considerar a Administração do Estado como uma forma de pedagogia. Isto levar-nos-ia mais longe, apesar de desprezadas entre nós as interpretações pré weberianas de Hegel e Karl Marx, às disposições burocráticas de Parkinson, Marton, Michel Crozier (a falsa representação do espaço e do tempo, as tendências para a uniformidade, a estratificação, a conformidade, o formalismo e a utilização, etc.), à patologia, burocratização, de J. Minot, etc., e que envolvem necessariamente a elaboração de cautelosas preparações e lentas maturações para ordenar e coordenar as actividades no espaço e no tempo.5

Os regulamentos, normas e informações destinadas à comunidade educativa, que divulgamos no CDRom, revelam uma preocupação pela divulgação das disposições oficiais numa linguagem facilmente compreensível pelo público-alvo, em especial pelos alunos e encarregados de educação dos bairros de Alcântara e Restelo até Cascais.

A ordem em que os documentos se sucedem no CDRom respeita o seguinte critério: primeiro, os que se referem à Escola Técnica Elementar, Docs. 1 a 15; depois, os que estão associados à Escola de Preparatória, designação que tomou após a publicação do Decreto-Lei n.º 48 572, de 8 de Setembro, Docs. 16 a 18.

De 1 a 15, nem todos os documentos se encontram datados, pelo que a ordem não é, intencionalmente, cronológica mas, antes, temática: documentos de interesse para alunos e encarregados de educação, Docs. 1 a 8; do interesse exclusivo dos encarregados de educação, Docs. 9 e 10; e normas relativas ao pessoal docente, Doc 11. Seguem-se os documentos de interesse geral como os que se referem à biblioteca, Doc. 12, sessões culturais, Doc. 13, secção de papelaria, Doc. 14, e Mocidade Portuguesa, Doc. 15, a fechar esta primeira parte.

Sem pretendermos analisar o conteúdo dos documentos, não podemos deixar de realçar alguns dos aspectos que neles sobressaem pelo seu significado ou implicação:

- preocupação com o saber agendar e organizar o seu dia a dia, Docs. 1, 2, 3 e 9;

- conselhos relativos à aquisição de material medíocre e sua relação com o progresso do aluno, Doc. 4;

- descentralização das tarefas, com a criação de diversos cargos a desempenhar pelos alunos, Doc. 5;

- papel de responsabilidade, dentro e fora da escola, atribuído ao delegado de turma, Doc. 5;

- compromisso entre escola, aluno e encarregado de educação, Doc. 6;

- conselhos a serem considerados antes da tomada de uma decisão que possa atingir terceiros, Doc. 8;

- recomendações de como os encarregados de educação devem falar da escola, Doc. 9;

- consciência de que muitos dos alunos especialmente os oriundos de famílias pobres do bairro de Alcântara, não podiam fazer a higiene diária, Doc. 9;

- recomendações sobre os trabalhos de casa - chama-se a atenção para o último parágrafo, a negrito, Doc. 9;

- excursões com objectivos educativos, não em tempo de aulas, gratuitas e suportadas pelo Centro da Mocidade Portuguesa, Doc. 9;

- papel dos contínuos, Doc. 9;

- ajuda à planificação das despesas escolares, Doc. 10;

- nas Normas para o Pessoal Docente, Doc. 11, entre muitos outros aspectos, refere-se como indispensável a leitura do artigo “Da organização dos centros de interesse”, no Boletim das Escolas Técnicas nº 20, da autoria de Manuel Maria Calvet de Magalhães, e no qual se aborda um dos pontos fortes do modelo pedagógico seguido na escola; a forma de classificar e corrigir exercícios; o apelo à colaboração entre professores e mestres e a recomendação da leitura de Diário de Sebastião da Gama; o convívio escolar; directores de turma; fumar; fundo de apoio social; jornais das turmas; registo do sumário e serviços escolares;

- pedido de apoio de mecenato, Doc. 13;

- definição do ex-libris da escola, Doc. 15;

- normas sobre a Mocidade Portuguesa, Doc. 15, muito sucintas em comparação com outras, tendo em conta o papel que o Governo lhe atribuía;

- preocupações com o bem estar da comunidade envolvente, Doc. 17, pontos 17 e 40;

- alerta para os perigos fora da escola, Doc. 17, ponto 50.

A identificação das datas em que estes documentos foram publicados é difícil, porque muitos não as referem. Salvo alguns deles. É o caso dos Docs. 10 e 13, publicados no ano de abertura da escola, 1956/57; dos Docs. 6 e 7, publicados em 1961; do Doc. 8, impresso nos anos 60; do Doc. 11, divulgado depois de 1959, pois refere a consulta do Boletim das Escolas Técnicas nº 24, editado nesse ano; e finalmente do Doc. 16, que menciona explicitamente a criação do Ciclo Preparatório do Ensino Secundário, bem como dos Docs. 17 e 18 que estão datados, o primeiro pelo novo nome da escola e o segundo pela data de emissão da ordem de serviço.

As normas, pelas quais se regia a escola, estavam sujeitas a críticas anuais por parte de todos os elementos da comunidade educativa, mas muito em particular por parte dos professores estagiários que tinham obrigatoriamente de apresentar as suas opiniões. Por isso, em muitos relatórios de estágio, que são hoje parte do espólio da escola, se criticam as normas que não eram cumpridas, as que não faziam sentido ou as que se revelavam demasiado pesadas e se elogiam as que aqueles docentes consideravam de grande utilidade para a sua formação profissional.

Manuel Maria Calvet de Magalhães defendia, deste modo, a “Necessidade de Autonomia” e “Novos Métodos de Gestão”, no artigo já referido “A coragem de dirigir”:

Não tenhamos dúvidas: o futuro da sociedade leva a conceder ao ensino o papel primordial que é o seu, e a medir toda a necessidade de renovação profunda até mesmo de “revolução permanente”. Se numa nação as comunidades escolares estão mal geridas, o declínio educativo é inevitável (Juliane Pironet, “L’enseignement secondaire de l’État”) […] A autonomia aumenta consideravelmente o campo das possibilidades de gestão da escola. O pôr em prática constitui, assim, a garantia duma inserção dinâmica do sistema escolar no esquema social global, principalmente pela supressão de disfunções burocráticas, com vista a um melhor rendimento dos recursos humanos e materiais que lhe são atribuídos ao serviço da comunidade e do respeito intransigente do primado das suas finalidades pedagógicas.6

Reiteramos a utilidade da consulta dos documentos contidos no CDRom, em anexo, Escola Francisco de Arruda (1956-1974): Espólio documental de Manuel Maria Calvet de Magalhães, como contributo para a história da educação em geral e para o estudo da gestão e organização escolar durante o Estado Novo, em particular.

 

Maria Manuel Calvet Ricardo

 

 

Notas

1 Diário de Lisboa, 23 Junho 1972, p. 4.

2 Diário de Lisboa, 8 Setembro 1972, p. 5.

3 Diário de Lisboa, 19 Fevereiro 1972, p. 2.

4 Diário de Lisboa, 19 Fevreiro 1972, p. 2.

5 Diário de Lisboa, 23 Junho 1972, p. 4.

6 Diário de Lisboa, 19 Fevreiro 1972, p. 2.

 

 

Referências bibliográficas:

Barroso, J. (2007). A história das instituições escolares: a escola como objecto de estudo. In J. Pintassilgo (org.). A História da Educação em Portugal. Balanço e perspectivas. Porto: Edições ASA.

Lima, L. (1992). A Escola como organização e a participação na organização escolar. Um estudo da escola secundária em Portugal (1974 – 1988). Braga: Universidade do Minho.