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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.7 Lisboa  2006

 

Luiza Cortesão, 2000

Ser Professor: Um Ofício em vias de Extinção. Reflexões sobre Práticas Educativas face, à Diversidade, no Limiar do Século XXI

Porto: Edições Afrontamento, 84 pp. (edição brasileira: São Paulo, Cortez Editora)

 

O presente trabalho de Luiza Cortesão, desenvolvido a partir da lição destinada à prestação de provas de agregação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, pretende “analisar o papel e o significado da actuação dos professores”. Trata-se de “analisar questões de produção e reprodução do saber nos papeis desempenhados pelos professores e pelos investigadores”, face ao actual contexto socioeconómico e cultural. Nesse contexto, caracterizado pela complexidade, coexistem, a par dos acelerados processos de globalização, múltiplas diversidades culturais que se afirmam a um ritmo crescente. Pretende-se pois, analisar os papéis e actuações possíveis dos professores face a esta dicotomia globalização/diversidade. No que se refere à educação, este contexto tem conduzido a uma diversidade de “apelos desencontrados”, vindos de diversos sectores da sociedade, levando necessariamente a analisar e a interpretar o papel do professor, de modos muito diversos, de acordo com os diversos quadros teóricos, desde os que ministram uma “educação bancária” (Paulo Freire), aos professores “tradutores” (Bernstein), aos professores “treinadores de atletas de alta competição” (Bourdieu), ou até aqueles que prevêem mesmo a “morte do professor” (Lyotard). Esta última questão merece um particular enfoque da autora, uma vez que se torna de grande pertinência, face aos actuais desafios da escola de hoje.

Partindo do quadro teórico de que a escola tem também uma responsabilidade em situações de marginalização e de exclusão social de minorias e que, por esse motivo, é cada vez menos possível permanecer «indiferente à diferença»1 (expressão utilizada por Boaventura de Sousa Santos), ou seja, é necessário abandonar o «daltonismo cultural» em que os professores são normalmente socializados e na base do qual desenvolvem, frequentemente, as suas práticas, a autora aponta para a necessidade de questionar posições pseudoneutrais, adoptando, nesse sentido, atitudes de vigilância crítica face a processos educativos e a trabalhos de investigação, assim como privilegiando uma investigação que se relacione com a intervenção. A complexidade que caracteriza as questões relativas à diversidade cultural no quadro da educação, as mudanças constantes ligadas a diferentes enquadramentos históricos e ideológicos e os significados ocultos que, com frequência, estão por detrás das práticas olhadas como óbvias e indiscutíveis pelo senso comum levam-na a adoptar essa constante “atitude de vigilância crítica”.

Face à diversidade de públicos que frequentam a escola, considera-se que os professores se devem questionar e reflectir sobre três questões essenciais: o “arbitrário cultural” a que constantemente recorrem tanto na imposição de normas, escolha de conteúdos como nas formas de avaliação; o “etnocentrismo”; e a adopção de modalidades de investigação-acção nas suas práticas quotidianas.

O problema de partida da autora é o mal-estar crescente que actualmente se vive na educação, nos vários níveis do sistema, muitas vezes empolado e sublinhado por alguns meios de comunicação social e por algumas entidades responsáveis pelas políticas educativas. Considerando que este mal-estar é apenas a ponta visível de um iceberg e no sentido de contribuir para uma compreensão mais ampla e profunda do problema, Luiza Cortesão começa por fazer uma reflexão enquadrando-o nas condições históricas e socioeconómicas, remetendo para o advento da escola de massas que acompanhou a modernização e que permitiu o acesso à escola a uma grande heterogeneidade de públicos. Socializados e formados para atender a um público homogéneo, os professores vêem-se agora cada vez mais confrontados com populações escolares caracterizadas pela grande diversidade cultural, criando-se um fosso crescente entre aquilo que os professores e instituição escolar oferecem e exigem, por um lado, e as características, interesses e saberes dos alunos, por outro. Na verdade, estamos perante um modelo escolar que foi criado e se desenvolveu para um público ideal, homogéneo. Foi nesse modelo que os professores se formaram e desenvolveram e, por isso, o reproduzem nas suas práticas quotidianas, práticas essas que não respondem às necessidades sentidas pelos alunos, daí o mal-estar sentido tanto por parte de alunos como por parte de professores. Neste contexto, a educação apresenta-se como um campo conflitual, onde coexistem os referidos “apelos desencontrados” que se situam, ora entre o modelo tradicional, selectivo, apelando à homogeneização e a uma escola meritocrática, orientada por valores economicistas tão defendida pelas correntes neoliberais, ora entre um modelo de educação intermulticultural, apelando para uma escola onde não se pode estar «indiferente à diferença», uma escola que valorize a diferença, uma escola democrática.

Estamos perante dois modelos distintos de professor, que a autora designa, no primeiro caso, por professor monocultural ou por professor daltónico e, no segundo, por professor intermulticultural (não-daltónico), a que correspondem dois modelos distintos de formação de professores, que apresenta em quadros-sínteses. Neles, convém destacar alguns aspectos particularmente importantes. A formação do professor monocultural tem por base um quadro teórico que defende a neutralidade do acto educativo, apontando para o professor “tradutor“, tendo como prioridade a transmissão de uma cultura erudita e nacional, visando contribuir para o aumento de competências que permitam fazer face ao mercado de trabalho. Estamos perante um professor que tem como papel reproduzir o sistema. Não ignorando a diferença, olha-a como um obstáculo ao desenvolvimento da prática educativa.

Contrariamente, o professor intermulticultural é um actor interveniente e um criador no processo educativo e social, privilegiando uma atitude reflexiva e crítica, face à sua actuação e às orientações educativas vigentes. Assim, a formação deste tipo de professor estrutura-se numa escola que se responsabiliza também pelos problemas educativos, olhando a diferença como um recurso a explorar.

Pondo em confronto estes dois tipos ideais de professor, a autora faz uma abordagem de como pode o professor sobreviver no actual contexto, socorrendo-se de um quadro de análise, instrumento através do qual se propõe analisar formas de acção do professor na sua prática educativa. O que propõe nesse quadro é analisar o «quê», o «como» (recorrendo à terminologia de Bernstein) e o «onde», a que correspondem, respectivamente, o tipo de conhecimento e o modo como tem acesso a esse tipo de conhecimento (que regista no eixo da reprodução/produção), as diferentes estratégias utilizadas (registadas no eixo da domesticação/emancipação) e o contexto e nível de ensino onde o professor está a trabalhar. Dentro de cada um destes itens considera diferentes possibilidades que, cruzando-se entre si, permitem identificar nove situações possíveis de actuação (umas mais ligadas ao ensino básico e secundário, outras ao ensino superior), que vão desde situações que remetem para o professor monocultural que actua no âmbito de uma escola reprodutora, recorrendo predominantemente a uma pedagogia transmissiva pela utilização de pedagogias visíveis, até às situações em que se tenta atender às diferenças, recorrendo predominantemente a pedagogias invisíveis, com preocupações mais emancipatórias, adequadas aos públicos com quem trabalha, procurando responder, de forma diferenciada a problemas de diversa natureza que vão surgindo, privilegiando a investigação-acção, possibilitando que os alunos possam construir o seu próprio saber, que participem no seu desenvolvimento global e fortaleçam a sua cidadania. Privilegiando-se estas últimas propostas como formas de trabalho a seguir, talvez se possa contribuir para diluir o referido mal-estar educativo, dificultando-se, simultaneamente, que aconteça a morte do professor, pois a sua presença torna-se imprescindível no processo educativo. É certo que Luiza Cortesão considera ser ainda uma proposta muito ousada, com um “forte sabor a utopia”, mas, mesmo assim, uma resposta possível e pertinente face ao actual contexto.

Filomena Lopes

Notas

1 Luiza Cortesão salienta e precisa, quase no final do livro, que essa diferença não se confina a questões de natureza étnica, apresentando-se, cada vez mais, como um conceito mais alargado, que se encontra ligado a diversidades sociais várias, que podem ser económicas, socioculturais, religiosas, de género, ocupacionais.