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Revista Lusófona de Educação

versión impresa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.7 Lisboa  2006

 

A Comemoração do Dia Internacional da Mulher: Reconstituindo o Passado, Analisando o Presente e Idealizando o Futuro

Maria José Remédios*

 

Castro, Zília Osório & Esteves, João (dirs.) (2005). Dicionário no Feminino (SéculosXIX-XX). Lisboa: Livros Horizonte.

Gonçalves,Yasmina (2005). Mutilação Genital Feminina. Lisboa: Associação de Planea-mento Familiar.

Rede de Estudos das Mulheres (2005). As Mulheres na União Europeia. História,Trabalho e Emprego. Lisboa: Ela por Ela.

 

Apesar de estar perante três obras de natureza diferente, há razões que me levam a privilegiar uma reflexão de conjunto sobre as mesmas. O facto de se tratar de discursividades sobre o feminino constitui um dos indícios justificativos da minha opção, a qual se torna mais consistente, se atender que foi certamente esse um dos motivos que presidiu à escolha das datas para o seu lançamento. A primeira delas foi dada a conhecer na Assembleia da República, na véspera do Dia Internacional da Mulher a segunda citada foi lançada na sede da Associação para o Planeamento da Família (APF), no dia 10 de Março, e, finalmente, a última foi apresenta-da ao público no próprio dia 8 de Março no Museu da Resistência e da República. Assim, as três obras em causa foram divulgadas no âmbito das Comemorações do Dia Internacional da Mulher.

Contrariamente a algumas mulheres e a alguns homens, que referem que a existência desta efeméride apenas serve para reforçar a diferenciação entre homens e mulheres, como reconhece Maria Amélia Paiva, presidente da Comissão para a Igualdade dos Direitos das Mulheres (CIDM), ao reiterar a sua convicção na actualidade desta efeméride, “perante esta discriminação subtil que ‘obriga’ a justificar a continuação bração deste dia, mas não de tantos outros que enchem os calendários”1, há, além de razões históricas para o fazer, um conjun-to de situações actuais de “discriminação inaceitável” que reforçam a pertinência do Dia Internacional da Mulher. Afirma ainda a mesma, no Editorial do Boletim da CIDM que a igualdade entre mulheres e homens é “uma questão de direitos humanos e uma condição de justiça social, sendo igualmente um requisito necessário e fundamental para a igualdade, o desenvolvimento e a paz”, pelo que o “desenvolvimento sustentável, centrado nas pessoas, implica uma nova relação de parceria entre mulheres e homens”2 .

É a evocação de todas aquelas que nos precederam e que com o seu agir, de modos tão diversificados, lutaram, explicitamente ou não, pelo direito à participação das mulheres na vida pública que está subjacente à obra dirigida por Zília Osório de Castro e João Esteves, investigadores dos Women’s Studies. Como nos dá conta, em o Dicionário no Feminino (Séculos XIX-XX), Zília Osório de Castro, uma das fundadoras de uma das mais importantes revistas portuguesas dos estudos sobre as mulheres - Faces da Eva. Estudos sobre a Mulher3 – esta obra constituiu o primeiro projecto de um grupo formado por investigadores e investigadoras, integrado no Instituto Pluridisciplinar de História das Ideias4, da Universidade Nova. Para aquela investigadora, que subscreve que um dicionário “cria uma referência”5, esta obra permite compreender a sociedade, evidenciando o lugar que as mulheres aí ocuparam e ocupam. Tal compreensão sustenta uma possível interpretação do efectivo desenvolvimento da experiência histórica do ser Mulher e ser Homem em termos do exercício da vida individual e cívica, da privada e da pública. Assim, no seu entender, o dicionário em epígrafe “ultrapassando os limites de mero instrumento de trabalho, apresenta-se, ele próprio, como expressão de um modo de ser e estar, que vai tomando consciência de que a humanidade é constituída por seres humanos dotados de direitos, qualquer que seja a concepção de feminino e de masculino”6 .

Constituindo-se este dicionário como importante instrumento metodológico para o desenvolvimento de uma área do saber – os Women’s Studies –, de recente afirmação (no caso português ainda é mais premente tal aspecto), reveste-se ainda de um carácter epistemológico, a não desprezar, ao promover o desenvolvimento das questões de género, na abordagem, quer histórica, quer no âmbito de outras ciências humanas e sociais. E, fá-lo, ao oferecer cerca de três mil entradas, nem todas de natureza biográfica, mas muitas delas de índole temática ou contemplando a imprensa periódica de teor feminino e/ou criada por mulheres, assim como as congregações femininas existentes (no período abrangido) no território nacional ou o associativismo feminino de natureza política, caritativa, feminista ou pacifista, entre outras.

Enquanto trabalho plural e, sobretudo, pela natureza do material em foco, não se pode esperar que a homogeneidade deste dicionário seja avaliada em termos de dimensão/ aprofundamento das entradas apresentadas. É de louvar que, a par de abordagens de grande extensão e de elevado desenvolvimento, se contemplem, igualmente, outras, que urgia revelar, porque ignoradas até então, mas cujos materiais acerca das mesmas rareiam ou não foi possível localizar. Assim como julgo muito pertinente o facto de se ter valorizado ‘dar visibilidade’ a um conjunto de figuras femininas completamente desconhecidas dos estudiosos e do público em geral. Ao lado de grandes figuras femininas que marcaram os sécs. XIX e XX, ousou-se revelar mulheres que tiveram uma participação pública, que, apesar de não ter tido eco no seu tempo ou ainda hoje, contribiu, individual ou colectivamente, para mudanças sociais na pequena localidade onde nasceram e/ou viveram ou proporciou a outras mulheres e/ou homens desenvolverem-se e serem, em parte, aquilo que hoje são. A história da humanidade não foi realizada apenas com as grandes figuras, pelo que só um estudo aprofundado, porque alargado e plural, da intervenção pública feminina pode promover a análise da vida institucional, dos processos educacionais, das mudanças políticas ou do desenvolvimento das artes e das ciências, numa expressão da construção da cultura no seu devir histórico.

Por outro lado, tenho de realçar que tratando-se de um dicionário no feminino, a ele estejam ligados homens, e de dois modos diferentes. Se foram muitos os colaboradores homens, começando por um dos investigadores que assumiu a direcção (João Esteves), algumas entradas reportam-se a homens que se empenharam para que as mulheres não fossem silenciadas pela história. São os casos de Arnaldo Brazão, Fazenda Júnior, e outros, que integraram em determinadas situações lutas em defesa da emancipação da mulher, ou do padre Júlio Marinho, que está intimamente associado ao desenvolvimento de uma das mais importantes obras de apoio e integração social às jovens migrantes, a Obra de Protecção às Raparigas.

A este dicionário têm sido apontadas algumas lacunas, como, optando por uma pesquisa biográfica que contemplasse apenas figuras desaparecidas, incluir, pelo menos, duas entradas respeitantes a mulheres que, além de terem dado muito à construção de uma sociedade democrática e, enquanto tal, mais paritária, continuam a fazê-lo intervindo em manifestações, publicando textos. Do meu conhecimento são os casos de Maria Ângela Montenegro Miguel7 e Maria Lucília Estanco Louro8; se outros há, não consegui identificá-los. Igualmente, se a omissão de um conjunto de mulheres que integraram a resistência ao salazarismo pode ser vista como uma falha, não considero que a responsabilidade da mesma se possa atribuir aos autores do projecto. Em primeiro lugar, este está em aberto, preparando-se a publicação de um segundo volume, e por essa mesma razão não houve a pretensão de esgotar o tema. Como refere explicitamente João Esteves, ao ser concebido como “uma obra aberta”, o Dicionário “continua aberto à colaboração de todos/as que queiram corrigir ou acrescentar dados, discordem de interpretações propostas ou queiram cooperar com outras entradas e novos conteúdos”9. Parece-me que é talvez o momento de aqueles que detêm as fontes que permitem abordar essa mesma intervenção feminina, nomeadamente a da resistência integrada no movimento do PCP, contribuírem para que, além de ser reconhecido o valor social dessas mulheres (reconhecimento que têm direito), a nossa memória colectiva fique enriquecida ao não banir nomes femininos que ousaram lutar, pondo em causa a sua vida, por uma sociedade que se afigurava mais justa. Por último, penso que o facto de a entrada se fazer pelo nome próprio e não pelo apelido, novidade que tem sido criticada em certos meios académicos portugueses, foi uma opção, e como todas elas com vantagens e desvantagens. Todavia, ao ser dado conhecimento ao leitor da escolha feita, assegura-se o cumprimento de um dos preceitos metodológicos a respeitar, assim como se oferece uma justificação plausível – “tentou-se recuperar a identidade feminina, não a fazendo depender do apelido, como sucedeu durante demasiado tempo”10 – ainda se disponibilizam entradas remissivas, as quais podem colmatar dificuldades encontradas na pesquisa pelo primeiro nome.

Da leitura das biografias de um conjunto assinalável de mulheres portuguesas, que viveram entre os sécs. XIX e XX, transparece que só a tenacidade na afirmação das intenções, a convicção na possibilidade de atingir objectivos desejados e propósitos definidos e a capacidade reivindicativa do direito ao diferente do usual conseguem superar obstáculos de resistência social à mudança.

Julgo, então, que se é levado a verificar que aquilo que é cultural nem sempre tem de se perpetuar, e que os traços constitutivos das realidades culturais, porque históricos e criados pelo homem para responder a necessidades específicas, são susceptíveis de se alterar, e essa mesma possibilidade, enquanto inerente à sua natureza cultural, reforça as culturas em vez de as anular. Isto serve para reconhecer a legitimidade da luta contra o fenómeno abordado na obra também em análise, a Mutilação Genital Feminina. O estudo apresentado, da autoria de Yasmina Gonçalves inscreve-se num projecto desenvolvido pela APF, em “estreita articulação com o Fundo das Nações Unidas, outras agências das Nações Unidas, institutos europeus de investigação e ONG’s de a vários países”11, para a erradicação da Mutilação Genital Feminina (MGF) em Portugal, considerado este como um “país de risco” pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo dados revelados pela Stop FGM!12 , 2 milhões de meninas e de mulheres jovens são sujeitas a esta prática, a qual se estende, também, aos países industrializados, dados os fluxos migratórios das zonas de África e da Ásia para a Europa, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Acerca deste problema social, em Portugal, foi produzido um assinalável trabalho pela jornalista do jornal Público13 Sofia Branco (uma das 2 mulheres distinguidas com o Prémio de Jornalismo 2003) dando voz a algumas mulheres guineenses, residentes no nosso país, vítimas de Mutilação Genital Feminina. Também a Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, em 2 de Dezembro de 2003, num debate promovido no Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres, alertava para o facto de Portugal ser um país de risco para a execução de tal prática, ao receber comunidades migrantes do continente africano, onde a MGF tem uma prevalência muito forte.

Clarificado o conceito de Mutilação Genital Feminina, demarcando-o de outros termos utilizados e classificando os tipos das mutilações genitais (segundo a OMS, 1997), a autora contextualiza esta prática no âmbito dos rituais de iniciação, salientando que a idade, a tradição, a coesão social, a religião, o aumento da possibilidade de casamento, o estatuto socioeconómico e a estética e higiene constituem-se como princípios que sustentam a sua realização entre aqueles que a praticam. Penso ser esta abordagem insuficiente, diria mesmo que, apesar de no “Preâmbulo” a presidente da APF referir que a MGF de que o estudo fala “é um dos crimes com base no género”14, este fenómeno social não é problematizado como uma questão de género na obra em epígrafe. Também a presidente da CIDM na apresentação, que assina, fundamenta o combate e a erradicação da MGF em Portugal, a partir de dois pressupostos, um da ordem dos direitos humanos, a incompatibilidade “com a dignidade e o valor da pessoa humana”, e o outro dos princípios e garantias fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, ao consagrar-se que a “promoção da igualdade de oportunidades entre as mulheres e os homens” é “uma questão fundamental da própria democracia”15 .

Ainda que estando perante um estudo exploratório – conhecer o posicionamento dos profissionais de saúde perante a MGF, tomados como importantes agentes de actuação na erradicação de tal prática –, o qual é precedido de uma introdução teórica, a análise sociológica devia mostrar-se mais aprofundada. Se em termos de abordagem de natureza fisiológica da questão (não só os tipos de MGF, como as consequências em termos de saúde sexual e reprodutiva) estamos perante uma teorização cuidada e aprofundada, o mesmo não se pode dizer quando está em causa uma fundamentação socio histórica de um fenómeno, que por natureza é social.

Ao compreender o conceito de MGF, toda a prática correspondente à ablação parcial ou total dos órgãos genitais externos da mulher, está sempre em jogo um controlo e uma manipulação pelo masculino da sexualidade feminina. Trata-se de aquele que domina, o homem, não reconhecer o direito da existência ao outro como diferente, a mulher, ditando-lhe e impondo-lhe ele, assim, o modo de ser diferente, recriando-a segundo as suas expectativas e ideias. Em contraposição, com a existência de um espaço estruturado a partir das diferenças individuais e colectivas, assiste-se à imposição de um cenário predominantemente androcêntrico16 , no qual a mulher é um “segundo” ser. Porque estamos perante uma questão que recria a natureza humana, inscrevendo-se na ordem do cultural, não se pode abordar a MGF sem se reequacionar o sentido e a validação do que é cultural. Não pode nenhuma tradição cultural, diga-se, para aqueles que a seguem, fundamentada em princípios de cariz religioso, e como tal perspectivados como verdadeiros, opor-se aos princípios que por nós são subscritos, de uma forma consensual, como garantes de uma vida individual e colectiva digna do homem e da mulher. Assim, a legitimidade da tradição cultural não podia deixar de ser aflorada, numa obra desta natureza, assim como não podia deixar de ser pensada a relação entre as próprias mulheres no interior de uma mesma sociedade. Sabemos que se criam mecanismos de socialização (educação na família, na escola, ...), assim como de controlo e incriminação daquela(e)s que se atrevem à rebeldia. A MGF é um dos mecanismos patriarcais de controlo do feminino, assim como a lapidação é uma forma de condenar mulheres consideradas insubmissas. Esses mecanismos reforçam uma cultura na qual a mulher é um ser designado pelo homem. Na medida em que o “desapego de si” e o “desamor de si” a estruturam, domina uma aceitação da selecção pelo masculino e, consequentemente, uma visão da outra, igual a si, como uma rival. Assim se deve compreender a participação e o controlo das próprias mulheres na perpetuação do fenómeno em análise.

A autora apresenta a metodologia seguida e as actividades organizadas, a fim de se aperceber do desenvolvimento do projecto, concebido de um modo faseado, ao qual presidiu um conjunto de sete objectivos, que se podiam agrupar em três núcleos, em ordem à erradicação da MGF no território nacional17. Focalizados os objectivos numa actuação direccionada para grupos diversificados – com trabalho articulado a esta problemática (ONGs, Departamentos Oficiais e Parlamentais), profissionais de saúde, sensibilizando-os para a importância da sua intervenção junto das comunidades com que trabalham, comunidades envolvidas e a sociedade em geral –, a metodologia adoptada passou pela identificação de pessoas “chave” para a criação de um grupo de trabalho na área da erradicação da MGF, em Portugal, para se aceder aos conhecimentos, atitudes e comportamentos dos profissionais de saúde, a trabalhar com populações em risco (nesta matéria) e promovendo um seminário sobre a problemática em questão18 .

Assim, os dados recolhidos através de questionário (analisados minuciosamente)19 revestem-se da maior importância, pois qualquer intervenção formativa junto dos profissionais de saúde, sem um conhecimento dos mesmos, ficaria comprometida. Afigurando-se necessário identificar os seus conhecimentos, expectativas e valorizações ficamos a saber que, apesar de a maioria deles ter conhecimento do fenómeno em causa (94 por cento) e não concordar com a sua existência (92 por cento), só uma minoria dos inquiridos teve “formação específica na área da mutilação” (11 por cento), se confrontou com “situações de MGF” (17 por cento), “tem conhecimento da prática em Portugal” (15 por cento) e “observou sequelas e foi solicitado para a realização da prática” (1 por cento).

A obra dada à estampa torna-se, assim, pertinente na medida em que não só oferece uma definição clara da MGF, caracterizando as formas que a mesma pode assumir, como, ao apresentar o posicionamento de um conjunto importante de profissionais da saúde, potencializa uma intervenção junto dos mesmos em ordem a co-implicá-los na erradicação deste grave fenómeno social, atentatório da integridade física, psicológica e social de milhões de mulheres no mundo, isto é, da sua saúde, na concepção holística do termo, vinculada pela OMS.

Deste modo, a fim de constituir um contributo positivo para a erradicação da MGF, considero que a obra de Yasmina Gonçalves necessita de ser complementada com uma outra, versando uma reflexão teórica com enfoque na abordagem sociocultural da problemática da MGF. Não se pode dissociar a questão da mutilação genital feminina de uma outra, a de a estrutura da vida social ser patriarcal, apesar da variação, sincrónica e diacrónica, dos modelos dominantes de sociedade. A MGF é uma das maneiras de a sociedade patriarcal actuar, a par de outras. Contudo, as formas de estruturação do patriarcado podem ser mais ou menos explícitas, mais ou menos coercivas, parecendo-me que a prática da MGF é uma das formas mais marcadas da sua actuação.

Ele marca a sua presença estruturante, mesmo nas sociedades ocidentais e ditas democráticas, apesar dos direitos alcançados pelas mulheres, na medida em que a paridade social não é um facto. A realidade das mulheres europeias, nomeadamente as que vivem na União Europeia, é objecto da terceira obra – As mulheres na União Europeia. História,Trabalho e Emprego. O livro em questão é produzido pela Rede de Estudos das Mulheres, a qual se organizou a partir do ano lectivo de 1991-92, no âmbito do Programa Comunitário Erasmus20 . Definindo como finalidade “promover e desenvolver os Estudos das Mulheres na Europa”21, toma como objectivo “poder oferecer aos alunos de licenciaturas e pós-graduação das universidades implicadas a possibilidade de desenvolver conhecimentos sobre o estatuto legal, social, cultural, laboral, etc., das mulheres da União Europeia, comparando a diversidade de tradições e desenvolvimentos, sobretudo entre o Norte europeu e a Europa mediterrânica”22. Por esta razão, elegeu-se um conjunto de temas a privilegiar, entre os quais se destacam “mulheres europeias e a sua história”, “mulheres e políticas públicas de formação, educação e actividade laboral”, ou ainda, “modelos de família e relações de parentesco nos países europeus”, sem se ignorar a relação entre mulheres e espaços, territórios e migrações23 .

A obra estrutura-se a partir de dois grandes capítulos – “As mulheres na história da Europa”24 e “Trabalho e Emprego das Mulheres na Europa”25. Oferece-se no primeiro deles uma reflexão sobre "as condições de vida e trabalho das mulheres europeias ao longo da história”, reconhecendo-se que tais condições, de natureza variada e ligadas a processos culturais e políticos diversos, estão contudo “marcadas pelas relações patriarcais”26. Admitindo que a história das mulheres seja história social, não perfilham que o entendimento da história da sociedade seja determinado pela estrutura de classe, razão pela qual não a reduzem a esta, subscrevendo os princípios, vinculados por uma das maiores teóricas da histórias das mulheres, Joan Scott, a qual reconhece que, se a nova história das mulheres exige uma análise da relação entre a experiência masculina e a feminina no passado, ela tem de estabelecer, também, uma conexão entre a história passada e a prática actual27.Tomando-se, na obra em análise, como ponto de partida de reflexão, as condições de vida e de trabalho das mulheres europeias ao longo dos tempos, a par de privilegiarem as actividades realizadas no lar, perspectivam a análise da incorporação no mundo do trabalho e na educação, no mundo contemporâneo, considerando-as como “factores que permitem e lançam as bases do movimento organizado das mulheres europeias que se reivindicaram como cidadãs”28. Movimento esse que reconhecem ser “responsável pelas profundas mudanças ocorridas na Europa do séc. XX na ordem política, social, cultural e económica, que estão a gerar uma nova configuração dos modelos de género”29 .

Na sua abordagem, as autoras sustentam que é da aprendizagem do “ler a escrever“ que “as mulheres tomam a palavra”30 e ao tomá-la, organizam-se, tomando posições políticas e exigem direitos para si31. Se analisarmos o trajecto de vida de muitas das mulheres contempladas no Dicionário no feminino ..., verificamos que o acesso à leitura e a possibilidade de escreverem foram factores que não só possibilitaram uma tomada de consciência de que a mudança social era possível como lhes permitiu intervir no tecido social a partir das suas convicções e aspirações. Em oposição, há que reconhecer que a ignorância, conforme escreveu a feminista portuguesa Ana de Castro Osório, é o maior entrave ao progresso civilizacional, reclamando a perpetuação da tradição32. Nas regiões da África subsariana ou em partes da Península arábica, casos do Iémene e de Omão, ou até de certas zonas do Extremo Oriente, onde a prática da MGF (problema central da segunda obra) é usual, a frequência escolar feminina é quase nula ou muito reduzida e as taxas de abandono escolar elevadíssimas, a par de a maioria dos processos educativos ocorrer num quadro “confessional”, que sustenta essa mesma prática.

As autoras de As Mulheres na União Europeia... identificam, assim, o movimento feminista, sobretudo desde os anos 90 do séc. XIX, com “o movimento político e reivindicativo das mulheres”33 , o qual será analisado em termos do seu desenvolvimento. Concebido como uma realidade plural, assumem que as diferenças no interior deste movimento não se anularam, mas antes, o próprio reconhecimento das mesmas, a par da moderação de algumas posturas mais radicais e da crescente presença das mulheres, sobretudo mulheres que se reconhecem como feministas, no seio dos partidos políticos, “transformou o panorama político, que talvez não seja tão deslumbrante nas suas manifestações, mas é um amplo movimento que penetrou na vida das mulheres e dos homens e que tornou possíveis mudanças irreversíveis, a nível legislativo e de mentalidades”34 .

Partindo do pressuposto de que para se desenvolver uma análise comparada da actividade das mulheres europeias há que ter em conta vários níveis de realidade, estando co-implicados nestes uma série de actores sociais, económicos e políticos35, Nicky Le Feuvre reconhece que o papel do Estado na vida quotidiana dos cidadãos, assim como os sistemas de protecção social, reveste-se de um sentido fundamental, sem desprezar a dimensão histórica dos movimentos sociais, nomeadamente o operário e o feminista. Parte-se de uma breve, todavia muito fundamentada, sistematização das perspectivas teóricas de análise dos papéis sociais de sexo/de género, ao reconhecer-se a importância das respectivas categorias, dada a temática analítica em foco. Demarcando sexo de género36, usados não raras vezes, até entre investigadores de forma indistinta/ analógica, pressupõe-se que o modelo que impera no pensamento ocidental é o da diferença dos sexos, “modelo segundo o qual o sexo determina o género”37, baseado “na ideia de uma bicategorização fundamental, chamada ‘natural’, entre os sexos em qualquer sociedade humana”38. Esta visão dicotómica marcará a própria intervenção do Estado, quando da introdução dos sistemas de protecção social na Europa, ocupando a questão da legitimidade da presença feminina na esfera pública o centro das políticas sociais, ao desenrolar-se o processo de industrialização dos países europeus. É oferecida uma importante análise do papel do Estado ao desencadear uma série de intervenções, directas ou indirectas, que “vão reforçando pouco a pouco a divisão sexual do trabalho, que dimana de uma especialização dos homens no trabalho produtivo e remunerado e uma especialização das mulheres no trabalho doméstico de reprodução não remunerado”39, sedimentando-se ao longo dos tempos, o modelo, denominado, de “homem provedor principal de recursos”, com o concurso relevante das políticas familiares, fiscais e de protecção social. Mostrar-se-á, assim, que atendendo ao domínio de tal modelo, sustentado pelo Estado, se as “modalidades concretas da actividade profissional das mulheres são relativamente diversificadas no seio da União Europeia”, esta ocorre, contudo, a par da existência de “características comuns ao conjunto das mulheres europeias”40 . O crescimento da taxa de ocupação feminina, a associação do trabalho feminino a certas actividades laborais ou a dificuldade no acesso a cargos de chefia e o desemprego e precariedade do trabalho femininos são alguns dos traços estruturantes e constitutivos das diferentes sociedades europeias, os quais são objecto de um saturado trabalho analítico. Para a compreensão de tais realidades torna-se relevante, a distinção estabelecida entre os conceitos de “trabalho” e “emprego”41 .

Ao focalizar-se a atenção nas “características da actividade feminina na Europa”, perspectiva-se esta a partir das “taxas de actividade feminina”, "modalidades da actividade feminina (carreiras contínuas/descontínuas)”, “taxas de actividade das mulheres segundo o nível de estudos e a situação familiar”, o “trabalho a tempo parcial”, o “desemprego entre as mulheres” e as “disparidades de salário homens/mulheres”42. Assim como se pensa a “segregação por sexo no mercado laboral” a partir do estudo da “concentração dos empregos femininos em alguns sectores de actividade” ou, ainda, da “concentração das mulheres nos empregos de baixo nível”43 . Para análise da “divisão sexual do trabalho doméstico” converge o conhecimento da “atribuição prioritária das responsabilidades domésticas às mulheres”, da “fraca participação dos homens no trabalho doméstico”44. Por último, reequaciona-se a “importância da articulação produção/ reprodução”45, reconhecendo que a “bicategorização [em função do sexo biológico] serve de cimento à construção de duas esferas de competências: para os homens a atribuição prioritária da actividade laboral remunerada e para elas a atribuição prioritária do trabalho doméstico não remunerado”46. Deste modo, sob a égide da “bicategorização”, quando certas mulheres ocupam cargos reservados até então aos homens pede-se-lhes que continuem a valorizar o âmbito que lhes está reservado, e daí uma maior dedicação. Por outro lado, as entidades laborais tenderão a adaptar a utilização da mão-de-obra feminina, quando a requerem, segundo tal padrão, privilegiando os membros do grupo sexual mais susceptível de assegurar o cumprimento das suas expectativas. O modelo de “bicategorização” tende a reforçar-se na medida em que as mulheres ao estagnarem nas suas carreiras transferem as suas aspirações de realização pessoal para a esfera privada – a vida familiar –, e os homens, aumentando a sua disponibilidade perante o empregador, enquanto libertos das tarefas domésticas, confirmam o sucesso dos seus investimentos na carreira (promoções e remunerações).

Como procurei realçar, no âmbito das Comemorações do Dia Internacional da Mulher, em 2005, foram dadas à estampa três importantes obras que se articulam entre si na medida em que contribuem para a Construção de uma Nova Europa, a dois níveis. Num plano interno, a necessidade de consolidação da vida democrática nos países comunitários, a qual não ocorre, depois de conquistada a igualdade de direitos cívicos entre as mulheres e homens, sem a efectiva paridade entre eles no que diz respeito ao trabalho, ao emprego e a outras aspirações vivenciais. No campo da afirmatividade da Europa num mundo global, o seu envolvimento na prática de uma cidadania global é imprescindível, e esta começa por se incrementar entre os povos imigrantes acolhidos nos países europeus. Há que, não só assegurar-lhes o gozo de direitos cívicos, como não permitir que o cumprimento dos mais elementares direitos humanos seja comprometido em abono de tradições rejeitadas pela cultura ocidental, enquanto discriminam a igualdade de direitos entre homens e mulheres e põem em causa a integridade física e psicológica destas. O conhecimento da História das Mulheres na Europa, para o qual contribui o Dicionário no Feminino ... permite compreender o presente, especificamente abordado em As Mulheres na União Europeia. História, Trabalho e Emprego, mas ensina-nos, também, que as práticas culturais são passíveis de alteração, o fenómeno social aflorado em A Mutilação Genital Feminina, apesar dos processos de mudança serem lentos.

Em síntese, ainda que perpetuando-se o modelo patriarcal nas sociedades humanas, que alguns consideram uma categoria de análise social demodé, o dia 8 de Março deve ainda constituir um momento de lembrar as mulheres que foram vítimas da discriminação sexual, de encetar medidas contra a perpetuação desta, ainda que ténue/escondida, e dar visibilidade a práticas que contribuam para a alteração de uma organização familiar e profissional que não assente no modelo do “homem provedor principal de recursos”, o qual se reforça com a ideia de espírito feminino sacrificial em prol dos outros.

A análise destas obras mostra que urge sedimentar o conceito de reengenharia do tempo47, o qual começa a ganhar cada vez mais importância e já conduz à atribuição de prémios a empresas na comunidade europeia48 . Também ele se articula com uma outra ideia, a de prazer perante a vida, e sem a qual não se modificam as representações sociais de homem e mulher, e que constituem uma das reivindicações do feminismo na actualidade.

 

Notas

* Doutoranda da Universidade de Évora. Investigadora da UID Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos, Univ. Lusófona.

1 Paiva, Maria Amélia (2005). Notícias da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, n.º 73, Lisboa, p. 1.

2 Idem,p.2

3 A publicação desta revista surge em 1999, e não mais cessou, como um projecto integrado no Instituto Pluridisciplinar da História das Ideias, sendo assumida pelo “Faces de Eva. Centro de Estudos sobre a Mulher”, quando da sua constituição.

4 Posteriormente constituir-se-á um centro de investigação autónomo - Faces de Eva. Centro de Estudos sobre a Mulher, o qual assume o projecto de elaboração do Dicionário no Feminino

5 Dic. no Feminino ..., p.7.

6 Idem, p.8.

7 Idem, p.584

8 Idem,p.722.

9 Idem,p.11.

10 Idem, p. 10.

11 Idem, p. 40.

12 International Campaign to Eradicate the Practice of Female Genital Mutilation (2002) STOP FGM! Female Genital Mutilation/Mutilations Génitales Féminines, s.i., EU e Open Society Institute.

13 Em 4/Agosto/2002.

14 Idem, p. 3.

15 Idem, p. 5.

16 Alborch, Carmen (2002). Mulheres contra Mulheres. Rivalidades e cumplicidades. Lisboa: Editorial Presença,p.33.

17 Idem, pp.40-41.

18 Idem, p. 41.

19 Idem, pp. 47-71.

20 O primeiro Programa Erasmo (1991-1992) vai ser coordenado pelo Instituto de Estudos das Mulheres da Universidade de Granada, através da historiadora (na área da História da Educação e História das Mulheres) Pilar Ballarín e conta com a participação da Equipa Simone da Universidade de Toulouse-Le Mirail , inicialmente através de Jacqueline Martin e depois de Nicky Le Feuvre, e do Departamento de Estudos Sociais Aplicados da Universidade de Bradford, com Jalna Hamer. Posteriormente, em 1994-1995, juntar-se-á o Instituto Cristina da Universidade de Helsínquia, colaborando Pia Purra e Eeva Raevaara, e em 1995-1996 a equipa vê integrar-se o Instituto de Sociologia da Universidade de Bergen, através de Laila Eilertsem e Hildur Ve.

21 Op. cit., p. 8

22 Idem.

23 Idem.

24 Da responsabilidade das historiadoras da Universidade de Granada Pílar Billarín, Margarita Birriel, Cándida Martinez e Teresa Ortíz., com trabalhos desenvolvidos no âmbito da História das Mulheres

25 Da autoria da socióloga e investigadora da área dos Estudos sobre as Mulheres da Universidade de Toulouse-Le Mirail.

26 Idem, p. 9

27 Scott, J. (1990). “El género: una categoria útil para el analisis historico”. In James Amelang & Mary Nash (orgs.). Historia y genero: Las Mujeres en la Europa Moderna y Contemporanea. Valência: ed. Alfons el Magnánim, p. 27.

28 Op. cit., p. 14.

29 Idem.

30 Idem, p.39.

31 Não podemos deixar de reconhecer que é desta forma que concebemos o movimento feminista português, de início do séc. XX, nomeadamente quando afirmamos que figuras como Ana de Castro Osório (Veja-se Remédios, Maria José,“Ana de Castro osório e a Construção da Grande Aliança entre os povos: dois manuais da escritora portuguesa adoptados no Brasil”, Faces da Eva. Estudos sobre a Mulher, n.º 12, 2004, p. 40-41 100) ou Adelaide Cabete (Adão, Áurea & Remédios, Maria José, “Adelaide Cabete e a educação da mulher portuguesa”, História, n.º 74, 2005,") inscrevem a sua intervenção discursiva ou a sua prática laboral na trilogia “educação – trabalho – independência”.

32 Osório, Ana de Castro (1909). Uma Lição de História: livro approvado para leituras e prémios escolares pelo Conselho Superior de Instrução Pública do Estado de Minas Geraes. Setúbal: Livraria Editora ‘Para as Crianças’, pp. 17-19.

33 Idem, p. 48.

34 Idem,p.64.

35 Idem,p.73.

36 Entende-se que: “O primeiro – o sexo – remete em princípio para particularidades anatómicas e fisiológica e o segundo termo – o género – para a dimensão cultural das diferenças de sexo definidas através das diferenças de comportamento, de práticas, de valores, etc.” (Op. cit., p. 74)

37 Op. cit., p. 76.

38 Idem, p. 77.

39 Idem, p.79.

40 Idem, pp. 87-88.

41 Consultem-se pp. 88-95, do Op. cit.

42 Idem, pp. 95-138.

43 Idem, pp. 138-149.

44 Idem, pp.149-156

45 Idem, pp. 157-163

46 Idem, pp. 161-162.

47 Oliveira, Rosiska Darcy (2003). Reengenharia do Tempo. Rio de Janeiro: Rocco.

48 Vejam-se:Alves,Laurinda, “Boas Práticas” e “Empresas mais responsáveis”, Xis. Ideias para pensar, n.º 306, 2005, p. 1 e pp. 9-11.