SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número7Um Cidadão do MundoA Formação Inicial de Professores no Quadrodo Processo de Bolonha. Modelos e Desafios índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.7 Lisboa  2006

 

Perda Irreparável

Meu caro Stoer,

Não sei por que mefistofélica ou divina coincidência, eu estava no mesmo ponto da rodovia entre Uberaba e São Paulo e exactamente no mesmo sentido, em que ouvi, pela primeira vez, o maravilhoso CD que você me presenteara, quando tive a notícia do seu falecimento. Quedei-me tão transtornado que o silêncio foi tão forte que doeu em meus ouvidos.

Abriu-se-me, então, espaço para saudosas rememorações: sua elegante e esguia figura que me lembrava sempre Clint Eastwood, no melhor de suas performances cavalheirescas; sua gentileza, compartilhada com Fernanda e David, em me receber em sua casa, oferecer-me um almoço inesquecível, presentearem-me com um maravilhoso livro sobre António Nobre, levar-me até à pedra em que este gigantesco poeta lusitano teve um poema eternizado e ainda conduzir-me, em sua “carrinha”, do Porto até Braga.

Destes felizes incidentes tenho fotos. Não que fosse apagá-los do registro indelével de nossa memória, mas eu não queria que outros deixassem de usufruir o que considero, para mim, momentos de mágico privilégio.

Estimado Steve, Stephen ou Stoer – talvez, Estêvão, já que você, na sua aventurosa trajetória de vida, teve tantas (merecidas) cidadanias –, recordo-me bem do dia em que fui apresentado a você, embora o conhecesse antes, pelos brilhantes textos: aquele homem alto, com um andar de cowboy, que trazia na fisionomia um sorriso gentil, quase infantil, que destoava da possível sugestão de dureza. Não vou me esquecer da primeira impressão. Não me esquecerei tampouco da solenidade de homenagem a Luiza Cortesão, realizada em Los Angeles, quando você colocou todo seu talento a serviço da reconstituição da trajetória de uma de suas mais importantes companhias intelectuais, com a qual você trilhara tantos conceitos pedagógicos, sem cair nos encómios gratuitos, próprios das amizades incondicionais. Nem me esquecerei também, meu caro Steve, da discussão que mantivemos no Seminário Internacional promovido pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE), em São Paulo. A elegância de suas contestações a algumas das ideias que defendíamos levou-nos a rever várias delas. Afinal, a tranquilidade de suas posições não deixou de provocar minha admiração de aprendiz. Ao término da sessão de que participámos, caminhámos, com você, pelas ruas movimentadas desta megalópolis latino-americana, em direção ao hotel em que você se hospedara, sorvendo mais um pouco de sua doce sabedoria, compreendendo um pouco mais como podemos ser firmes em nossas concepções, sem jamais perder a ternura.

Sabe Steve? Como membro do Conselho Universitário da UNINOVE, tive de relatar um processo da área de saúde, cujo objecto era a doença celíaca. Somente a partir dos estudos que realizei para elaborar o parecer no processo é que pude aquilatar a dimensão de sua luta contra a ingestão de glúten, que pode estar escondido no mais prosaico molho de Ketchup. Mas, caríssimo Steve, nem você nem nós, seus amigos, podíamos suspeitar que lhe espreitava uma ameaça mais grave, que você seria, mais uma vez, surpreendido por um destino inexorável, ou, como diria Marx, pelas circunstâncias. De facto, somos sujeitos de nossos próprios projectos de vida... Contudo, sempre dentro das circunstâncias. Algumas delas, porém, por mais conscientizadas que estejam em nosso processo de decisão, são tão poderosas que não adianta construir os diques, com nossa virtù, para conter as trapaças da fortuna, como dizia Maquiavel. Como o César Bórgia do escritor florentino, você tombou diante da força gigantesca da fortuna, que agiu por meio de um instrumento avassalador. Por mais que você lutasse – e como lutou, como pude testemunhar no último encontro que tivemos, no lançamento de seu livro e de Magalhães, na Universidade do Porto – o infortúnio era mais forte que qualquer força humana. Diferentemente de quando você, Fernanda e David superaram juntos a tragédia que atingiu este último, esgotaram-se, certamente, as forças que você reuniu para que o filho de sua companheira recuperasse o sentido da vida, por mais que isto significasse abandonar um projecto de uma perspectiva de uma terceira idade tranquila.

Querido Steve – e penso que posso chamá-lo assim, já que não o teremos mais entre nós e o querer tê-lo torna-o muito querido entre nós –, onde quer que você esteja, saiba que muito me honrou prefaciar um livro seu e de seu outro parceiro intelectual, António M. Magalhães... Saiba que esta minha participação em sua obra foi uma das que mais enriqueceram meu curriculum, especialmente pelo que aprendi com a leitura cuidadosa que tive de fazer de sua obra. O debate que tivéramos, em Lisboa, sobre temas correlatos, ao lado de António Teodoro, Michel Wiewiorka e do próprio António Magalhães, convenceu-me de que, dos países de tradição imperial, nem sempre vêm os conquistadores, mas, muitas vezes, esforçados aliados da descolonização epistemológica. As matrizes analíticas que você e Magalhães me emprestaram abriram-me os olhos para os loci da enunciação, fazendo-me superar a resistência dura que eu já manifestara a Mário Soares, no mesmo palco de debates da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa.

Estimadíssimo Steve – retomo aqui o modo carinhoso com que você me tratava nos e-mails, em que combinávamos, entusiasmados, a edição brasileira de seu livro e de Magalhães –, sei que não poderemos mais contar com sua talentosa contribuição para os desafios teóricos que temos pela frente, mas tenho a certeza de que ao levantarmos a pedra” dos parágrafos densos de seus textos, encontraremos debaixo, as pistas das alternativas para nossas perplexidades.

Por tudo isso, muito obrigado.

São Paulo, 5 de janeiro de 2006.

José Eustáquio Romão