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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.5 Lisboa  2005

 

(In)disciplina na aula

Uma revisão bibliográfica de autores portugueses

 

Estrela, M. T. (1992). Relação Pedagógica, Disciplina e Indisciplina na Sala de Aula. Porto: Porto Editora.

Carita, A. & Fernandes, G. (1997). Indisciplina na sala de aula. Lisboa: Editorial Presença.

Amado, J. & Freire, I. (2002). Indisciplina e Violência na Escola – Compreender para prevenir. Porto: Edições ASA.

 

Não se pode, falar em disciplina ou em indisciplina independentemente do contexto sócio-histórico em que ocorre.

Teresa Estrela (1992)

 

Nos últimos anos, a problemática da indisciplina tem representado uma preocupação cada vez mais generalizada no quadro dos diferentes sistemas educativos.

O fenómeno é por si só tão complexo e nele intervêm tantas variáveis de diversa natureza que não nos parece possível oferecer ou apontar soluções de sucesso garantido.

Com efeito, a extensão da escolaridade obrigatória, a permanência na escola de um número elevado de alunos cujas motivações, expectativas e competências não se coadunam com as exigências da vida escolar e as mutações sociais e culturais (heterogeneidade da população dos alunos) mudaram pois os comportamentos na escola, surgindo novas atitudes/valores e falhando as respostas institucionais.

A escola em interacção com o meio não fica imune às tensões e desequilíbrios da sociedade envolvente (desigualdades económicas e sociais, crise de valores, conflito de gerações), sendo a indisciplina um reflexo da sociedade em geral.

É procurando um equilíbrio interpretativo dos factores internos e externos que a investigação sobre a problemática da indisciplina na aula ganha sentido e pode ser frutífera em termos do futuro.

Com esta recensão procuro fazer uma abordagem de três livros de autores portugueses considerados como uma referência no âmbito desta temática, numa tentativa de clarificar os factores que estão na base desta problemática fazendo uma abordagem multirreferencial.

Parece-me que se torna urgente a elaboração de sínteses realizadas no quadro de diferentes orientações paradigmáticas que permitam definir e encarar o problema sob diferentes ângulos.

O primeiro aspecto a ter em linha de conta nesta síntese é a discussão à volta dos conceitos que pretendem traduzir os fenómenos de indisciplina. Nesta perspectiva, é apresentada ainda uma análise crítica dos livros que inclui os seus aspectos principais. De seguida, há uma tentativa de articular a informação produzida tendo como eixo orientador o aluno, a turma e o professor.

Os três livros objecto desta recensão que têm como finalidade apresentar uma reflexão sobre a problemática da indisciplina na aula em relação à sua premência, intensidade e complexidade.

***

 

A problemática disciplinar no âmbito da sala de aula e nos mais diversos aspectos da relação pedagógica aparece na bibliografia portuguesa no primeiro exemplar de Estrela (1986).

De acordo com a autora, a terceira edição do livro Relação Pedagógica, Disciplina e Indisciplina na Aula deve ser entendida como uma chamada de atenção para o problema da disciplina na aula ser fundamentalmente um problema de prevenção. Estrela coloca ainda à disposição do leitor um conjunto de informações sobre a natureza complexa dos fenómenos de disciplina / indisciplina, sua etiologia, seus fins / funções e suas implicações numa gestão de sala de aula. Para a autora, “o conceito de indisciplina relaciona-se intimamente com o de disciplina e tende normalmente a ser definido pela sua negação ou privação ou pela desordem proveniente da quebra das regras” (p. 17).

Numa rápida incursão pelas principais correntes pedagógicas contemporâneas ressalta a evolução do conceito de disciplina, de uma disciplina inicialmente imposta para uma disciplina consentida e para a autodisciplina.

Ao longo dos capítulos é assumida uma perspectiva analítica de relação pedagógica que nos aparece como uma relação assimétrica e potencialmente conflitual.

Relação conflitual em que as relações de poder e autoridade se associam a vivências nem sempre positivas e em que o poder e a normatividade do professor se manifestam sobretudo no lugar predominante por ele ocupado no sistema de comunicação e na regulação da aula.

A nota dominante deste livro refere que o problema central da indisciplina poderá ser consideravelmente reduzido se ajudarmos os professores a tornarem-se organizadores mais eficazes da aula (“by helping teachers do become move effective classroom managers”)1.

Nas últimas décadas quase todos os países ocidentais se têm preocupado com a formação dos docentes, mas há que reconhecer que essa formação tem subalternizado os aspectos relacionais do ensino em favor dos conteúdos, dos programas e da didáctica.

A trave mestra é a competência relacional e esta é susceptível de aquisição e treino. A aquisição de uma atitude científica que leva a interrogar e a problematizar o real e a si próprio enquanto elemento desse real é a base das competências hoje requeridas a todos os docentes.

Estrela apresenta ainda no final do livro um posfácio que incide em dois pontos relevantes: “a importância do sistema normativo / disciplinar nos primeiros dias de aulas e a normatividade e valores” (p. 123). É assim enfatizada a importância da coerência e consistência do sistema normativo, e a existência de um código deontológico aceite pela turma para a manutenção de um bom clima disciplinar e relacional.

Este livro dá ainda ênfase às condutas docentes mais relacionadas com o clima disciplinar de aula, o que permite desenvolver a capacidade de consciência crítica e é um instrumento de revalorização da imagem da profissão docente.

***

 

O segundo livro, Indisciplina na sala de aula, de Ana Carita e Graça Fernandes, apresenta-se como um bom exemplo da união entre a teoria e a prática, oferecendo pistas de reflexão e de actuação a todos os professores: Como prevenir? Como remediar?

O livro visa proporcionar uma informação com bases teóricas sólidas que permitem sustentar intervenções mais ajustadas em sala de aula com vista a uma acção educativa mais eficaz e satisfatória.

A primeira parte do livro remete-nos para a prevenção da indisciplina: o autoconhecimento do professor, o conhecimento do aluno e do grupo-turma.

Na segunda parte é feita uma análise dos conflitos e os modos de gestão de situações disruptivas.

A sua leitura permite o acesso a uma informação que está mais próxima do leitor, o que torna mais fácil a sua apropriação. As autoras começam por afirmar que não existem soluções “prontas a servir” para esta problemática, ou seja, que “nenhum quadro teórico por si só permite compreender e resolver os problemas que ocorrem na relação professor/aluno” (p.20). Para Hargreaves, “a indisciplina deve ser vista antes de mais como um processo de categorização...”2 e que todos os contributos teóricos ou recomendações são benéficas para a elevação da imagem da profissão e qualidade do trabalho.

Numa perspectiva de gestão preventiva da indisciplina, é sublinhada a necessidade de o professor desenvolver activamente o seu autoconceito no que respeita à dimensão profissional e à necessidade de fortalecimento da sua auto-imagem. É ainda salientado que o aprofundamento do conhecimento do aluno pelo professor gera uma maior proximidade, uma melhor compreensão das necessidades e problemas dos alunos. Desta forma, tal procedimento capacita o professor com respostas mais adequadas que irão permitir também o desenvolvimento do autoconhecimento do aluno e a auto-regulação dos seus próprios comportamentos.

As autoras procuram ainda reforçar a necessidade de o professor estar atento à dinâmica da turma, à sua cultura e à sua estrutura, proporcionando o seu desenvolvimento positivo.

O que faz a diferença dos professores mais eficazes é “o ênfase colocado na prevenção dos problemas e na associação entre a prevenção e uma boa gestão da sala de aula” (p.96).

Numa perspectiva de gestão remediativa da indisciplina conclui-se que o castigo pode controlar um comportamento perturbador, mas, por si só, não ensina o comportamento desejável nem sequer a reduzir o desejo de se portar mal novamente. O castigo não é em si mesmo uma solução e no caso de ser considerado justo, o castigo só deverá ser aplicável ao acto praticado e não a quem o praticou.

Em relação à intervenção no conflito é-nos apresentada “uma clara vantagem em relação ao método cooperativo de resolução de conflitos” (p.138). Para melhor se compreender esta afirmação basta (r)estabelecer os canais de comunicação; encarar o conflito professor / aluno como um problema mútuo a resolver procurando em conjunto uma solução que satisfaça ambos; desenvolver atitudes, conhecimentos e comportamentos adequados à estratégia cooperativa e intervir de uma forma estrutural e de longo prazo.

***

 

O terceiro livro, Indisciplina e violência na escola, de João da Silva Amado e Isabel Pimenta Freire, está organizado em duas partes: uma de natureza teórico-prática em que os autores partem da distinção de três níveis de indisciplina; a outra parte é de natureza mais prática e tem como objectivo oferecer ao leitor sugestões e orientações para a sua actuação individual e/ou colectiva, sobretudo ao nível da sala de aula.

João Amado e Isabel Freire partem da distinção de “três níveis de indisciplina”, analisando em primeiro lugar o que designam por “desvio às regras de trabalho na aula” e caracterizando os seus factores e as suas funções (p.9).

Num primeiro nível, a indisciplina assume uma função psicossocial e pedagógica, sendo, em grande medida, uma forma de comunicação e de expressão ou então de evitamento e obstrução (segundo a classificação de Estrela, 1986).

Com a leitura do livro é possível considerar que os comportamentos que põem em causa o clima de trabalho é um indicador de que algo vai mal (na aula e na escola) do ponto de vista pedagógico, psicológico e sociológico.

Poder-se-á ainda dizer que “a indisciplina é uma manifestação do contra poder” do aluno, de modo a pressionar o professor a criar situações mais favoráveis; aulas onde se aprenda mas mais divertidas” (p.48).

É assim sublinhado que os principais factores deste tipo de indisciplina estão neste livro muito relacionados não só com as características pessoais do professor e o modo como planifica e conduz as actividades, mas também com as dinâmicas interaccionais que se desenvolvem na turma.

A um segundo nível, a indisciplina é referida como sendo perturbadora das relações entre pares e é dada uma especial atenção ao fenómeno dos maus tratos entre iguais.

No estudo de duas escolas-caso, Freire de acordo com os resultados da sua investigação revela a importância do factor clima para uma acção mais preventiva e uma intervenção mais eficaz em geral e à agressão entre pares em particular.

O ponto de partida destacado no livro para a construção de uma atitude preventiva face aos problemas de vida de qualquer escola é “o pensar e o repensar colectivo da vida na escola” (p.66).

Como afirma Ghiggi, “na medida em que as pessoas, formadoras de pessoas, têm qualidades nas relações que oferecem e estabelecem, constituem-se autoridade sem se valerem de procedimentos autoritários ...”3 .

Também no interior do grupo-turma e das suas vivências informais diversos incidentes são no livro assinalados como formas de defesa do território pessoal e do grupo que funcionam como estratégias de pressão por parte de um grupo ou de um aluno sobre o outro.

Para a compreensão de um fenómeno tão complexo, para além dos factores de âmbito escolar e cultural, é importante ter em conta os factores de natureza pessoal que se combinam de algum modo com os restantes factores.

O terceiro nível de indisciplina apresentado consiste numa reflexão sobre os problemas da relação professor-aluno e incide uma vez mais sobre os factores e as funções de determinados comportamentos.

Como é afirmado no livro, os comportamentos que afectam a relação professor-aluno são aqueles que, para além de porem em causa as condições de trabalho, põem em causa a dignidade do professor como pessoa e como profissional.

Alguns dos problemas tidos como indisciplina e como violência sobre os professores têm como motivação fundamental um desejo de retaliação e uma necessidade de reequilibrar a imagem perante o grupo de colegas. Tal como mencionou Dubet, “estes alunos partilham uma história escolar, a do insucesso e da exclusão, e as suas atitudes derivam mais de factores escolares do que das suas origens sociais”4.

Os autores em relação às suas turmas-caso verificaram que para compreender o significado e a função pedagógica destes comportamentos ou problemas da relação professor-aluno há que ter em conta o aluno, como uma forte necessidade de chamar a atenção sobre si e o professor que demonstra falta de assertividade.

Na segunda parte do livro, Amado e Freire procuram dar ao texto um carácter mais prático contendo metodologias e instrumentos de prevenção e compreensão da (in)disciplina.

Como os resultados da investigação sobre a indisciplina apontam para a importância da prevenção e a fraca eficácia dos processos correctivos, os autores identificam três tipos de acção para a prevenção desta problemática: a prevenção primária; a prevenção secundária (intervenção precoce) e a prevenção terciária (intervenção face aos casos persistentes).

Baseando-se na investigação realizada, os autores apontam um conjunto de razões que fundamentam a abordagem ao problema: contrariar a perspectiva de que os maus tratos entre iguais (bullying) é inevitável na escola; abandonar a perspectiva de gestão da crise; alargar a discussão a todos os níveis; envolver mais pessoas na identificação/condenação do problema dos maus tratos entre iguais; equacionar um conjunto de procedimentos consistentes em caso de bullying; criar um clima de segurança e quebrar códigos de secretismo e proporcionar um ambiente seguro a todos os alunos.

Neste contexto, e no sentido de intervir o mais precocemente possível (de acordo com o grau de gravidade ou de reincidência) o professor deve possuir um conjunto de competências: estar atento aos sinais precoces de angústia e mal-estar dos alunos; saber distinguir maus tratos entre iguais de jogo rude; ouvir atentamente as vítimas/agressores e registar todos os incidentes; dar apoio imediato ao aluno-vítima e tornar bem claro ao aluno-agressor e aos seus pais que o comportamento agressivo não será tolerado.

Sobre a acção preventiva muito haveria a acrescentar, mas os autores salientam que tudo será inútil se quem estiver envolvido nestes problemas não se apresentar suficientemente aberto e disponível para os resolver, reconhecendo a sua quota-parte de responsabilidade. Como afirma Paulo Freire, “um alto nível de responsabilidade ética de que a nossa capacitação científica e pedagógica faz parte”5.

Na última parte do livro são apresentados quatro incidentes críticos e os respectivos tópicos de reflexão; instrumentos de auto-observação pelo professor centrados no modo como gerem as aulas e é ainda oferecido ao leitor instrumentos de auto-observação para os alunos e um conjunto de “sinais de alerta” tendo em conta as situações de indisciplina.

***

 

Com os textos analisados procurou-se articular os diversos contributos para o conhecimento e compreensão acerca do fenómeno da indisciplina em si.

A perspectiva da investigação apresentada seguiu as pistas e as orientações epistemológicas e metodológicas gerais da obra pioneira em Portugal de Maria Teresa Estrela (1986) intitulada Une étude sur l’indiscipline en classe.

Verifica-se que grande parte destes estudos sobre esta problemática tem sido focada na sala de aula, mas torna-se pertinente e necessário que novos estudos incidam sobre as conexões que se estabelecem por exemplo entre o que se passa na sala de aula e a escola.

 

Amélia Neves Pereira

 

 

Notas

1Kounin, J. (1977). Discipline and Group Management. New York: Robert E. Krieger Publishing co.

2 Hargreaves, D. (1978). Las relaciones interpersonales en la educacion. Madrid: Narcea

3 Ghiggi, G. (2002). A pedagogia da autoridade a serviço da liberdade: Diálogos com Paulo Freire e professores em formação. Pelotas: Publicações Seiva.

4 Dubet, F. (1991). Les lycéens. Paris: Editions du Seuil.

5 Freire, P. (1997). Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. S. Paulo: Editora Paz e Terra.