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Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 1645-4464

RGPLP vol.15 no.1 Lisboa mar. 2016

 

ARTIGOS

 

Recursos hídricos e gestão de conflitos: A bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul a partir da crise hídrica de 2014-2015

 

Recursos hídricos y gestión de conflictos: El caso de la cuenca del río Paraíba do Sul a partir de la crisis hídrica de 2014 a 2015

 

Water resources and conflict management: The hydrographic basin of the Paraíba do Sul river from the water crisis of 2014-2015

 

 

Bianor Scelza Cavalcanti1; Guilherme R. Garcia Marques2

1 Ph.D em Public Administration and Policy, Virginia Polytechnic Institute and State University. Presidente do Grupo Latino-americano de Administração Pública. Diretor Internacional da Fundação Getulio Vargas, CEP 22250-900 Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: bianor.cavalcanti@fgv.br
2 Mestre em Economia Política Internacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Rede de Jovens Líderes da UNASUL. Analista Acadêmico e da Diretoria Internacional da Fundação Getulio Vargas, Rua Praia de Botafogo, 190, 1506, CEP 22250-900 Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: guilherme.marques@fgv.br

 

 


RESUMO

Este artigo foi realizado com o intuito de analisar os conflitos no âmbito da bacia hidrográfica brasileira do rio Paraíba do Sul – na divisa entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais –, a partir da eclosão da crise hídrica de 2014-2015. Para tal, trataremos da expressão política e institucional da bacia hidrográfica para, em seguida, avaliar seus respectivos mecanismos de gestão, tendo em vista as especificidades da gestão integrada e o uso compartilhado dos seus recursos. O artigo se fundamenta com base documental e bibliográfica, bem como na cobertura jornalística dos conflitos, decorrentes da proposta do governo de São Paulo de transposição do rio Paraíba do Sul como solução para a sua crise de abastecimento. A despeito de todos os mecanismos institucionais de gestão integrada e participação social, a resolução do conflito passaria pela atuação do Supremo Tribunal Federal, em conjunto com os governadores dos estados, transcendendo as ideias originais de gestão de conflitos em nível de bacia.

Palavras-chave: Recursos Hídricos; Bacia Hidrográfica; Gestão Pública; Gestão de Conflitos


RESUMEN

Este artículo fue realizado con la intención de analizar los conflictos dentro de la cuenca hidrográfica del río Paraíba do Sul – en la frontera entre los estados de Sao Paulo, Río de Janeiro y Minas Gerais –, a partir de la manifestación de la crisis del agua de 2014-2015. Con este fin, nos referiremos a la expresión política e institucional de la cuenca hidrográfica para, evaluar a continuación, sus respectivos mecanismos de gestión, teniendo en cuenta las especificidades de la gestión integrada y el uso compartido de los recursos. El artículo se fundamenta con base documental y bibliográfica, así como la cobertura periodística de los conflictos, derivados de la propuesta del gobierno de Sao Paulo de transposición del río Paraíba do Sul como una solución a su crisis de abastecimiento. A pesar de todos los mecanismos institucionales de gestión integrada y participación social, la resolución del conflicto pasaría por la actuación del Tribunal Supremo Federal, junto con los gobernadores de los estados, transcendiendo las ideas originales de la gestión de conflictos de la cuenca.

Palabras clave: Recursos Hídricos; Cuenca Hidrográfica; Gestión Pública; Gestión de Conflictos


ABSTRACT

This paper was conducted in order to analyze the conflicts within the Brazilian hydrographic basin of the Paraíba do Sul river – at the border between the states of São Paulo, Rio de Janeiro and Minas Gerais – from the outbreak of the water crisis of 2014-2015. To this end, we will approach the political and institutional expression of the hydrographic basin and its management mechanisms, taking into account the specificities of the integrated management and shared use of its resources. The paper is based on documentary and bibliographic research, as well as on the news coverage of the conflict arising from the transposing proposal of the Paraiba do Sul river by São Paulo’s government as a solution to the water crisis. Despite all the institutional mechanisms for integrated management and social participation, the conflict was resolved through the Brazilian Supreme Court and the governors of the states, transcending the original ideas of conflict management at the basin level.

Key words: Water Resources; Hydrographic Basin; Public Management; Conflict Management


 

 

Embora a análise realizada neste estudo de caso aborde especificamente a realidade e a conjuntura da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, no Brasil, as lições construídas a partir das experiências de evolução institucional e dos riscos relacionados à centralização das decisões de gestão, obstaculizando, assim, a realização de processos democráticos, descentralizados e abertos à participação social de múltiplos atores, se aplicam a uma série de outros países, cada qual com seus desafios e obstáculos em nível de gestão dos recursos hídricos.

É o caso de países-membros específicos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a exemplo de Moçambique, que, também no período 2014-2015, enfrentou uma grave crise de água potável, a partir de problemas em seu sistema de abastecimento; de Angola, cuja grande maioria da população não tem acesso à água canalizada, ainda que seja um país de enorme potencial hídrico; e de Timor-Leste, que sofre com severos períodos de seca na maior parte do ano, além das dificuldades estruturais de acesso ao recurso por parte de sua população.

Diante da importância da água como recurso estratégico e de sua imprescindibilidade econômica e biológica, faz-se surgir a imperiosa necessidade de se aprofundarem os mecanismos de gestão dos recursos hídricos em todo o mundo, de modo a garantir seu uso eficiente e sustentável. Decerto, observar experiências distintas contribuirá para o enriquecimento desta discussão.

O rio Paraíba do Sul nasce na Serra da Bocaina, divisa entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, resultado da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga. Seu curso de água percorre aproximadamente 1200 km, passando pelo estado de Minas Gerais para, por fim, desaguar no oceano Atlântico, através do município de São João da Barra, no estado do Rio de Janeiro.

Sua bacia hidrográfica, de aproximadamente 62 074 km², abrange um total de 184 municípios, dos quais 88 em Minas Gerais, 57 no Rio de Janeiro e 39 em São Paulo. Divide-se, assim, entre três estados de imensa relevância política, econômica e social – 39% no território fluminense, 37% no mineiro e 24% no paulista. Dada a sua localização, entre alguns dos maiores polos industriais e populacionais do Brasil, o Paraíba do Sul desponta como um rio de extrema importância estratégica no cenário nacional.

Nesse sentido, suas águas foram e seguem sendo extensivamente utilizadas em variadas e proeminentes atividades socioeconômicas, acompanhando as sucessivas transformações a nível de desenvolvimento urbano-industrial da Região Sudeste. Atualmente, dentre a vasta multiplicidade dos seus usos, destacam-se: geração de energia elétrica, servindo de fonte de energia para importantes reservatórios de usinas hidroelétricas da região[1]; consumo por parte de atividades econômicas, como indústria, agricultura, mineração e pesca; e abastecimento urbano, responsável pelo atendimento de cerca de 14 milhões de pessoas – sendo a principal fonte de alimentação hídrica da cidade do Rio de Janeiro.

Este uso múltiplo de suas águas, associado a eventuais períodos de escassez, irregularidades de distribuição, aumento de demandas e a própria degradação do meio ambiente, abre caminho para uma ampla série de tensões e disputas. Possivelmente, o conceito sociológico mais relevante para o entendimento desta questão seja o de «conflito».

O consumo doméstico pode, assim, ser prejudicado pelo lançamento de esgotos e afluentes industriais, bem como a construção de barragens para usinas hidroelétricas podem interferir na vazão de um rio, afetando atividades econômicas ligadas à agricultura, pesca e navegação.

Problemas de abastecimento nas cidades, por sua vez, estariam relacionados a eventuais picos de demanda, desperdício e mesmo à urbanização sem planejamento em regiões de mananciais. Na zona rural, a exploração irregular e a contínua destruição de vegetações protetoras da bacia, bem como a ampla utilização de agrotóxicos, acabam contribuindo, diretamente, para a poluição de suas águas. A concentração de moradias de baixa renda nas margens do rio Paraíba do Sul, assim como a existência de mais de 800 indústrias na bacia, somam-se à incúria ambiental resultante do indevido tratamento dos efluentes.

Nesse sentido, administrar esse recurso de modo a dele tirar seus efeitos benéficos, minimizando os desagregadores, é um desafio da mais elevada imperatividade para a engenharia social. Daí decorre a importância e a relevância das políticas e dos sistemas de gestão integrada, destinados a promover a sustentabilidade, alocação, monitoração e compatibilização dos diferentes usos dos recursos hídricos, face a objetivos sociais, econômicos e ambientais.

Não obstante o desenvolvimento de um moderno sistema de gestão integrada na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, considerado modelo-piloto pela Agência Nacional de Águas (ANA)[2] e alinhado aos mais avançados padrões internacionais vigentes, recentes disputas relacionadas aos usos e à distribuição dos recursos hídricos frente a situações de risco de escassez, envolvendo os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, puseram à prova sua capacidade em atuar e servir de base como instrumento efetivo para a resolução de conflitos.

O presente artigo busca, assim, analisar as raízes desses conflitos no âmbito da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, a partir da eclosão da crise hídrica de 2014-2015, identificando sua expressão política e institucional para, por fim, avaliar sua respectiva administração, tendo em vista às especificidades da gestão integrada e ao uso compartilhado dos seus recursos.

 

Contextualização

A implementação do Sistema Nacional de Recursos Hídricos insere-se em um contexto de amplas transformações da política nacional de gerenciamento dos recursos hídricos, expressos, sobretudo, na Lei Federal n.º 9.433, de janeiro de 1997 – também denominada Lei das Águas (ver caixa).

 

 

Os princípios, instrumentos e organização político-institucional então promovidos pela Lei n.º 9.433 resultaram em expressivas mudanças no que se refere à gestão das águas no Brasil, dentre as quais destacam-se requisitos de pragmatismo econômico, descentralização administrativa, participação política, multiplicidade setorial e especificação geográfica.

Confirma-se, assim, a escolha brasileira por um modelo de gestão praticado em quase todos os países que avançaram na questão do gerenciamento dos recursos hídricos, com a incorporação de conceitos ratificados e recomendados por destacados organismos internacionais (ONU, 1992; World Bank, 1993).

A consolidação deste novo modelo de gestão abriu caminho para que os processos decisórios migrassem da esfera exclusivamente governamental para uma instância mista, através da qual foram incorporados atores tradicionalmente excluídos, como os municípios, os usuários e as organizações civis. Instituíram-se, assim, Comitês de Bacia Hidrográfica, fóruns democráticos voltados para o debate e para a tomada de decisões concernentes às questões relativas ao uso das águas a nível de bacia.

Esta descentralização do processo de planejamento e gestão é fortalecida e ampliada a partir da criação das Agências de Bacia, instituições executivas ágeis e flexíveis, voltadas para o suporte técnico, administrativo e financeiro dos Comitês de Bacia, bem como para a implantação de um sistema de cobrança pelo uso da água[3]. Diante destas transformações, a bacia hidrográfica passa, efetivamente, a ser o «centro de gravidade» do novo sistema de gestão das águas.

 Tais fundamentos revelaram a adesão a uma estratégia normativa educacional de mudança, com suas orientações para valores, atitudes e comportamentos de interesse público, em contraponto às suas congêneres, orientadas para o exercício do poder/autoridade e da racionalidade burocrática na condução dos negócios públicos (Cavalcanti e Cavalcanti, 1998, p. 83; Cavalcanti, 1994).

A arquitetura institucional que então emergiu da Lei das Águas procurou, portanto, não apenas superar as conhecidas deficiências do modelo burocrático - em sua concepção mecânica que há muito transformou-se em elemento restritivo, senão impeditivo, à realização de anseios coletivos -, mas, também, substituí-lo por uma nova arquitetura apta a lidar com problemas cujas soluções requereriam decisões e ações concertadas entre diferentes atores públicos e privados, de forma a melhor equilibrar uma prevalência significativa do setor elétrico em contraponto aos demais setores envolvidos.

No caso específico da bacia do rio Paraíba do Sul, a operacionalização das novas práticas de gestão contaria com a atuação, de um lado, do poder público federal e estadual – através da ANA e dos órgãos estaduais gestores de recursos hídricos[4] – e, de outro, do Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP)[5], órgão de relevante papel integrador no processo de discussão referente ao planejamento e gestão da bacia do rio Paraíba do Sul, tendo em vista a melhoria da gestão e da qualidade de suas águas.

 

O CEIVAP como «parlamento»

O CEIVAP foi constituído como um parlamento, no qual ocorrem os debates e decisões descentralizadas sobre as questões relativas aos usos múltiplos das águas da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul.

Tem como missão principal promover a articulação e integração de atividades e competências na área de gestão dos recursos hídricos em diversos níveis: entre a União e os estados; entre os três estados da Bacia (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro); e entre estes e os municípios e os organismos de sub-bacia; bem como viabilizar estudos e programas de investimento necessários para a gestão, proteção e recuperação das águas e para o desenvolvimento sustentável da bacia do rio Paraíba do Sul.

Formalmente instalado em 18 de dezembro de 1997, no município de Resende, Rio de Janeiro, o CEIVAP atualmente é formado por 60 membros: 3 da União e 19 de cada estado da bacia do Paraíba do Sul, dos quais 40% são representantes dos usuários de água (companhias de abastecimento e saneamento, indústrias, hidroelétricas e setores agrícolas, pesca, turismo e lazer), 35% do poder público (união, governos estaduais e prefeituras) e 25% de organizações civis. Seus membros são eleitos em fóruns democráticos, nas diversas regiões que compõem a bacia, enquanto sua Diretoria, formada por presidente, vice-presidente e secretário, é escolhida bienalmente pelos membros.

Sua primeira reunião ocorreu em 18 de janeiro de 1998, na qual se estabeleceu a instalação de seis estações automáticas de monitoramento da qualidade da água, bem como a criação de duas Câmaras Técnicas, uma Institucional e outra de Planejamento e Investimento, compostas por dez membros cada: um representante do Governo Federal e três representantes por Estado.

Dentre as principais competências do CEIVAP, incluem-se: 1) definir as metas de qualidade (enquadramento) para as águas dos rios da bacia; 2) propor diretrizes para a outorga de direito de uso da água – permissão legal obrigatória para o uso, captação, consumo ou diluição das águas de bacia concebida pelo poder público; 3) aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia do Paraíba do Sul e acompanhar sua execução; 4) aprovar e acompanhar a execução da cobrança pelo uso da água, cujos critérios e valores a serem cobrados foram aprovados pelo plenário do CEIVAP; e 5) aplicar os recursos arrecadados, tendo em vista o desenvolvimento sustentável da bacia.

Dentre suas ações de maior impacto, destacam-se:

  • Implantação pioneira, no Brasil, da cobrança pelo uso da água, satisfazendo todas as exigências legais;
  • Aprovação do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Paraíba do Sul, contendo o Programa de Investimentos para aplicação de recursos da ordem de R$ 62 milhões, arrecadados com a cobrança pelo uso da água, de 2003 a 2010;
  • Criação da Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia do Paraíba do Sul para exercer as funções de Agência da Bacia, via contrato de gestão com a ANA;
  • Viabilização de recursos de diversas fontes para ações de recuperação ambiental e melhoria da disponibilidade de água da bacia;
  • Difusão de informações, através de cursos de capacitação em gestão de recursos hídricos e de capacitação em elaboração de projetos, realizados em diversos municípios da bacia, em parceria com a ANA;
  • Implementação de programas de educação ambiental e mobilização social, em vários municípios da bacia, viabilizados com recursos da cobrança pelo uso da água;
  • Desenvolvimento de atividades permanentes de comunicação social e institucional.

O CEIVAP também procura, dentre suas atribuições, incentivar a instalação de organismos para a gestão dos recursos hídricos, entidades representativas tidas como fundamentais no dinâmico e complexo processo de negociação no contexto da bacia hidrográfica, aptas a assumir uma gama de tarefas que a Agência da Bacia, por si só, não consegue abarcar – a exemplo de ações voltadas para a educação ambiental em suas respectivas áreas de atuação.

Os esforços hoje voltam-se para a integração destes organismos, no sentido de minimizar conflitos a partir da negociação de soluções e da convergência de energias para a gestão da bacia como um todo. O desafio passa, portanto, pelo aprimoramento dos mecanismos de interlocução entre poderes públicos, usuários e sociedade civil, visando a melhoria contínua do organismo de bacia a partir da implementação e da operacionalização de novas e cada vez mais avançadas formas de gestão dos recursos hídricos.

 

Análise da gestão de conflitos na bacia do rio Paraíba do Sul

O Brasil experimentou, entre 2014 e 2015, um período de dramático risco de escassez de recursos hídricos em algumas das suas mais importantes cidades. A ausência de chuvas que caracterizou este período, associada a fatores históricos, como o rápido crescimento populacional, a alta taxa de urbanização, a falta de planejamento, o desmatamento e a subsequente poluição dos rios, contribuiu diretamente para o esgotamento dos mananciais e para os níveis críticos de captação dos reservatórios, dificultando, assim, o acesso à água em qualidade e quantidade satisfatórias.

Diante da gravidade do quadro apresentado pelo Sistema Cantareira[6], destinado a captação e tratamento de água para a região metropolitana de São Paulo, responsável pelo abastecimento de aproximadamente 8,8 milhões de pessoas – quase a metade da população da Grande São Paulo –, a solução encontrada pelo governo paulista, visando resolver seu problema de abastecimento e aumentar sua segurança hídrica, foi a de captar água diretamente da bacia do rio Paraíba do Sul. A proposta baseou-se na construção de um túnel de 15 km, construído de modo a interligar a represa Atibainha, em Nazaré Paulista, – que compõe o Sistema Cantareira – ,e a represa Jaguari, em Igaratá, – afluente da margem esquerda do rio Paraíba do Sul.

A proposta rapidamente transformou a bacia do rio Paraíba do Sul em alvo de disputa com o governo do Rio de Janeiro[7], preocupado com a possibilidade de que potenciais interferências no rio acabassem, naturalmente, gerando impactos futuros de abastecimento no estado fluminense frente às circunstâncias sazonais de escassez decorrente de períodos de estiagem. É importante apontar que o rio Paraíba do Sul é o principal manancial de abastecimento da cidade do Rio de Janeiro e que determinados municípios do estado já sofrem com falta de água em tempos de falta de chuva.

A preocupação por parte do governo fluminense revela fundamentos importantes, expressos na evolução do armazenamento do reservatório equivalente da bacia do rio Paraíba do Sul. A análise dos dados, medidos em porcentagem do volume útil no período 1999-2015, revela que a crise hídrica de 2014-2015 também atingiu o Paraíba do Sul, gerando iminentes problemas de armazenamento em sua respectiva bacia hidrográfica (ver Gráfico I). 

Ademais, com o volume menor do rio – em decorrência da captação de suas águas para o Cantareira, em São Paulo –, a água do mar entraria no sistema, comprometendo a qualidade da água e prejudicando quem, por exemplo, depende de irrigação no baixo Paraíba do Sul. Nesse sentido, a utilização das águas do Paraíba do Sul pelo estado de São Paulo traria impactos significativos para todo o Rio de Janeiro, de acordo com a opinião de Paulo Carneiro, pesquisador da Coppe/UFRJ e coordenador do Plano Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro[8].

Sem as interferências externas, o planejamento hídrico do Rio aponta para o potencial do Paraíba do Sul de abastecer sua região metropolitana até 2030, quando se espera uma estabilização do crescimento populacional e, por consequência, do consumo hídrico. Uma eventual transposição do Paraíba do Sul, nos termos originalmente pleiteados pelo governo de São Paulo, comprometeria este potencial previsto, antecipando um eventual colapso dado a inexistência de outro manancial capaz de reforçar o abastecimento do Rio de Janeiro.

A proposta de São Paulo surpreendeu o CEIVAP, que aguardava a realização de discussões acerca de projetos divergentes por parte do governo paulista e do próprio Comitê, de acordo com Danilo Vieira Júnior, presidente do CEIVAP e secretário-adjunto do Meio Ambiente de Minas Gerais[9]. O Ministério Público Federal, por sua vez, interveio na situação e provocou uma disputa judicial ao protocolar ação contra o projeto de transposição, alegando que a proposta elaborada por São Paulo poderia causar danos ambientais, com consequências inclusive para a saúde da população atendida pelas águas do Paraíba do Sul[10].

Coube, assim, à ANA, órgão responsável por assegurar o uso múltiplo e equitativo dos recursos hídricos em bacias hidrográficas compartilhadas por dois ou mais estados, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e aos três estados da bacia, gerenciar o conflito e estabelecer um acordo comum. Participaram da audiência de mediação do conflito o ministro do STF Luiz Fux, os governadores Geraldo Alckmin (PSDB-SP) e Luiz Fernando Pezão (PMDB-RJ), o advogado-geral de Minas Gerais, Onofre Júnior, representando o governador Fernando Pimentel (PT-MG), o diretor-presidente da ANA, Vicente Andreu, e o ministro interino do Meio Ambiente, Francisco Gaetane.

Neste acordo, homologado no dia 10 de dezembro de 2015, estabeleceram-se novas regras para a gestão compartilhada do rio Paraíba do Sul, a exemplo da administração da vazão dos reservatórios por parte dos governos estaduais e da mudança na prioridade do uso das águas, que passariam agora a ser prioritariamente utilizadas para o abastecimento do consumo e não mais para a geração de energia elétrica[11]. Anteriormente, a liberação das águas dos reservatórios era definida de acordo com a produção de energia elétrica, de modo que a vazão poderia oscilar independentemente dos riscos de desabastecimento em períodos de estiagem.

Definiu-se também que o governo de São Paulo poderá realizar as obras de interligação da bacia do rio Paraíba do Sul com o Sistema Cantareira, ainda que, pelo acordo firmado, a obra deva viabilizar também canais para que a água possa ser bombeada no caminho contrário quando necessário, garantindo, assim, uma maior segurança hídrica para os estados envolvidos.

De acordo com o ministro Fux, os esforços dos governadores para se chegar a um consenso exteriorizaram «boa vontade singular», permitindo que a audiência chegasse a um acordo que agradasse a todos os estados simultaneamente. Tal sucesso foi viabilizado por estudos técnicos minuciosos, que serviram para direcionar as principais decisões referentes ao acordo firmado, estudos estes realizados sob a orientação do CEIVAP e de organismos de sub-bacia[12].

 

Conclusões

A evolução institucional decorrente da Lei n.º 9.433 pavimentou o caminho para avanços expressivos no que se refere a fatores como descentralização administrativa, participação política, multiplicidade setorial e especificação geográfica, dando origem a fóruns democráticos voltados para o debate e para a tomada de decisões a nível de bacia hidrográfica.

Deve chamar-se a atenção, contudo, ao longo tempo de tramitação no Congresso Nacional – aproximadamente cinco anos – para que a chamada Lei das Águas fosse efetivamente aprovada, alinhando-se com as características modernizantes e tendências internacionais de gestão dos recursos hídricos. Contudo, a despeito de todo o debate em torno da lei e da subsequente evolução de seus instrumentos e mecanismos de gestão descentralizada, a criação da ANA, em 2000, estruturada como uma mistura de agência reguladora com agência executiva, confirmou, na prática, a tendência oposta de centralização do setor público.

Da mesma maneira, a análise do conflito referente à crise hídrica de 2014-2015, no âmbito da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, revela que, mesmo diante de toda a estrutura institucional então promovida, coube às instâncias federais – ANA e STF –, juntamente com a atuação dos governadores dos estados envolvidos – Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro – reunirem-se de modo a chegarem a um acordo comum.

O próprio posicionamento por parte do governo de São Paulo em propor o projeto de captação das águas da bacia do rio Paraíba do Sul pelo Sistema Cantareira, sem as devidas considerações pela realização das discussões no âmbito do CEIVAP, e a judicialização do processo de resolução do conflito colocam em xeque a ideia da bacia hidrográfica como «centro de gravidade» de um novo sistema de gestão das águas.

Neste quesito, a coletividade que se esperava da emergência de instâncias democráticas e descentralizadas de gestão nem sempre se manifesta. Ao fim e ao cabo, a resolução do conflito específico referente à crise hídrica de 2014-2015 transcendeu as ideias de especificação geográfica para gestão em nível de bacia e descentralização administrativa oriundas da Lei n.º 9.433, com os órgãos a nível de bacia, tendo ficado responsáveis, exclusivamente, pela importante, mas limitada, função de assessoramento, a partir da realização de estudos técnicos.

Torna-se imprescindível, portanto, que as Agências de Bacia e os organismos de sub-bacia sejam fortalecidos, a partir da melhoria dos mecanismos de interlocução entre poderes públicos, usuários e sociedade civil, de modo a impedir que sejam preteridos por instâncias federais e/ou estaduais enquanto canais efetivos de resolução de conflitos, favorecendo, inclusive, processos tendenciais indesejáveis de excessiva judicialização da Administração Pública.

 

Referências bibliográficas

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Recebido e aceite em março de 2016.
Recibido y aceptado en marzo de 2016.
Received and accepted in March 2016.

 

 

Notas

[1] A exemplo das usinas hidroelétricas de Paraibuna, Santa Branca e Funil.

[2] Autarquia especial vinculada ao Ministério do Meio Ambiente – MMA, criada no ano 2000 através da Lei n.º 9.984. Assumiu as funções de órgão gestor dos recursos hídricos de domínio da União, anteriormente exercidas pela Secretaria de Recursos Hídricos do MMA.

[3] A cobrança pela água bruta visou levar à gestão certa lógica de mercado, complementar aos mecanismos tradicionais de comando e controle, como por exemplo, a outorga. Ademais, tais mecanismos de cobrança induzem o uso racional da água, reduzindo o desperdício e os índices de poluição.

[4] No caso, o Departamento de Águas e Energia Elétrica, de São Paulo – DAEE-SP; o Instituto Mineiro de Gestão das Águas – IGAM-MG; e a Fundação Superintendência Estadual de Rios e Lagoas, do Rio de Janeiro – SERLA-RJ.

[5] A denominação CEIVAP é um reconhecimento aos esforços empreendidos pelo Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul – CEEIVAP, órgão precedente dedicado a estudos e propostas visando o uso múltiplo e racional dos recursos hídricos, criado em 1979 e estendendo-se até meados da década de 1980, quando passou a ter uma existência praticamente simbólica (CEIVAP, 1999).

[6] Sistema administrado pela SABESP, empresa que detém a concessão dos serviços públicos de saneamento básico no estado de São Paulo.

[7] Provocando, inclusive, uma intensa discussão entre os governadores Geraldo Alckmin (PSDB-SP) e Sérgio Cabral (PMDB-RJ). Cabral, de um lado, afirmou não permitir que se retirasse a água que abastecia a população fluminense. Alckmin, por outro, rebateu dizendo que o rio Jaguari pertencia ao Vale do Paraíba e aos paulistas, assim como a baía da Guanabara pertencia aos cariocas.

[8] Ver http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-03-25/por-agua-sao-paulo-entra-em-conflito-com-rio-e-busca-integracao-com-parana.html.

[9] Ver http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-03-25/por-agua-sao-paulo-entra-em-conflito-com-rio-e-busca-integracao-com-parana.html.

[10] Ver http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1717338-sp-mg-e-rj-fecham-acordo-de-gestao-do-rio-paraiba-do-sul-para-beneficiar-cantareira.shtml.

[11] Dispositivo já estabelecido pela Lei n.º 9.433, ainda que tardiamente implementado em definitivo.

[12] Ver http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-12/estados-assinam-acordo-para-gestao-da-bacia-do-paraiba-do-sul.

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