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Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa

Print version ISSN 1645-4464

Rev. Portuguesa e Brasileira de Gestão vol.11 no.2-3 Lisboa  2012

 

O sistema único de saúde brasileiro: Desafios da gestão em rede

The Brazilian health system: Challenges of the network management

El sistema brasileño de salud nacional: Desafíos de la gestión en red

por Sonia Fleury* e Assis Ouverney**

 

* Doutorada em Ciência Política. Professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro, Brasil), onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública (PEEP). E-mail:sfleury@fgv.br

** Mestre em Administração Pública e Pesquisador pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro, Brasil). Suas áreas de pesquisa incluem sistemas internacionais de saúde em perspectiva comparada e gestão de redes em Administração Pública. E-mail:assismafort@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo objetiva analisar o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) como arcabouço institucional de gestão de uma rede de política, apresentando seus principais mecanismos e instrumentos, bem como seus avanços e desafios. Concluímos que o principal desafio consiste no fortalecimento dos atores subnacionais e na horizontalização das relações de poder.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde, Gestão de Redes

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the Brazilian Health System (SUS) as an institutional framework for a network management in public policy, presenting its main mechanisms and instruments, as well as its present advances and impasses. We conclude that the main challenges are to strengthen the sub national actors and to reduce the vertical nature of power relations.

Key words: Brazilian Health System, Network Management

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar el Sistema Único de Salud Brasileño (SUS) y el marco institucional para la gestión de una política en red, con sus principales mecanismos e instrumentos, así como sus avances y desafíos. Llegamos a la conclusión de que el principal desafío radica en el fortalecimiento de los actores subnacionales y el aplanamiento de las relaciones de poder.

Palabras clave: Sistema único de Salud, Gestión de Redes

 

O processo de democratização da sociedade brasileira culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe profundas mudanças na organização estatal, como a descentralização de recursos, principalmente para a administração municipal, que ganhou autonomia e atribuições para gerir e executar as políticas sociais desenhadas pelo governo central. Este rompimento com um modelo altamente centralizado que caracterizou o período autoritário também significou uma ruptura com o padrão de política social até então vigente, cuja incorporação das demandas sociais se fez sempre de forma estratificada e excludente.

Na política de saúde, esta transformação gerou o Sistema Único de Saúde (SUS), que orientou sua construção pelo princípio do direito universal à saúde dos cidadãos e o dever do Estado de provê-los e com uma nova organização dos serviços, sob um comando único em cada esfera administrativa. Conformaram-se sistemas municipais e estaduais de saúde, contemplando novas formas de articulação entre as instâncias governamentais e novos instrumentos de participação social. Como conseqüência, ocorreu uma redefinição significativa na composição e na dinâmica das estruturas de organização e gestão das políticas públicas, na medida em que se redefiniu não só a relação entre as esferas de governo, mas também a relação do Estado com a Sociedade e o Mercado.

Mediante a descentralização dos núcleos de elaboração e implementação das políticas de saúde, o compartilhamento das instâncias de poder decisório com a Sociedade Civil e a necessidade de contratação pelo Estado de insumos e serviços de saúde junto ao mercado e sua articulação em busca de integralidade da assistência, gerou-se um novo arcabouço institucional caracterizado por uma dinâmica de gestão reticular. Este formato é composto por diversos núcleos decisórios independentes entre si, instâncias de pactuação e resolução de conflitos entre atores diversos, instrumentos de gestão compartilhada de recursos, mecanismos de formação de metas e objetivos coletivos, entre outros, capazes de promover interdependência e articulação de competências.

Mediante a descentralização dos núcleos de elaboração e implementação das políticas de saúde, o compartilhamento das instâncias de poder decisório com a Sociedade Civil e a necessidade de contratação pelo Estado de insumos e serviços de saúde junto ao mercado e sua articulação em busca de integralidade da assistência, gerou-se um novo arcabouço institucional caracterizado por uma dinâmica de gestão reticular.

Este artigo objetiva analisar o SUS como arcabouço institucional de gestão de uma rede de política, apresentando seus principais mecanismos e instrumentos, bem como seus avanços e desafios atuais.

A gestão em rede: suas características e desafios

Uma rede consiste num fenômeno organizacional que, além dos aspectos fundamentais como composição por atores autônomos, interdependência e padrões estáveis de relacionamento, desenvolve uma institucionalidade voltada especificamente para o aprofundamento da interdependência existente(Borzel, 1998; O’Toole, 1997). Esta institucionalidade se compõe em torno do planejamento deliberado da divisão do trabalho e da articulação estratégica voltada para a manipulação do ambiente em que opera a rede, ou seja, a rede se desenvolve pelo trabalho coletivo especificamente planejado (Klijn, 2002).

Assim, somente quando há convergência interinstitucional para um objetivo comum são desenvolvidos os laços necessários para articular a interdependência entre os atores de forma coordenada e se pode afirmar que se desenvolve uma estrutura em rede.

À medida que se desenvolve a percepção de que o aprofundamento da interdependência consiste no fator decisivo para a obtenção dos objetivos desejados, inicia-se um processo de coordenação deliberado e planejado no sentido de dividir e organizar coletivamente o trabalho, originando uma estrutura de governança em rede (Klijn e Koppenjan, 2000).

Os processos de definição e gestão de políticas públicas em contextos institucionais definidos por uma governança em rede apresentam desafios extremamente diferentes daqueles presentes em ambientes de coordenação unitária, tanto no que se refere à tomada de decisões e à definição de metas e diretrizes, quanto à organização das estruturas de provisão de serviços e sua gestão contínua. Assim, tornam-se necessários, tanto o desenho de mecanismos institucionais e instrumentos de gerenciamento de processos de interdependência quanto o desenvolvimento de competências de gestão especificamente voltadas para a atuação em ambientes interorganizacionais onde o poder, mais que descentralizado, é diversificado (Agranoff e Mcguire, 1999).

A constituição das redes de política pode envolver a presença de diversos atores públicos (locais, regionais e federais), privados, organizações não governamentais, cada um deles sujeito a ambientes institucionais diferentes, o que proporciona orientações diversas e objetivos distintos. A multiplicidade de atores presentes no contexto organizacional das redes ressalta a necessidade de se construir convergência a partir de pluralidade e autonomia.

Somente quando há convergência interinstitucional para um objetivo comum são desenvolvidos os laços necessários para articular a interdependência entre os atores de forma coordenada e se pode afirmar que se desenvolve uma estrutura em rede.

A presença de diversos contextos institucionais gera objetivos particulares distintos e requer o desenvolvimento de estratégias que visem a construção de convergências em torno de objetivos comuns e a coordenação na construção das metas fixadas coletivamente (Fleury, 2002).

Cada ator específico tem seus objetivos particulares, mas seria limitado imaginar que sua participação em uma rede seria conseqüência de suas carências e do mero comportamento maximizador para atingir seu objetivo pessoal ou organizacional. A construção de uma rede envolve mais do que isto, ou seja, requer a construção de um objetivo maior que passa a ser um valor compartilhado, para além dos objetivos particulares que permanecem.

A habilidade para estabelecer este mega-objetivo, que implica uma linha básica de acordo, tem a ver com o grau de compatibilidade e congruência de valores entre os membros da rede (Mandell, 1999). Para chegar a este tipo de acordo é necessário desenvolver arenas de barganha, onde as percepções, valores e interesses possam ser confrontados e negociados.

A estruturação destes espaços e processos de negociação faz parte da dimensão da estrutura da rede, que diz respeito à institucionalização dos padrões de interação. O estabelecimento de regras formais e informais é um importante instrumento para a gestão das redes (Bruijn e Heuvelhof, 1997) porque especifica a posição dos atores na rede, a distribuição de poder, as barreiras para ingresso, etc.

O processo decisório em redes requer, além da percepção efetiva da interdependência pelos atores envolvidos, uma transformação relativa aos fundamentos culturais de relacionamento entre as partes envolvidas, o desenvolvimento de estratégias e mecanismos de construção de consenso e de compartilhamento de percepções e a instituição de instâncias organizacionais de suporte e intermediação entre os atores envolvidos. Como parte essencial desse processo, apresentam-se estratégias de gestão por meio do monitoramento das relações e da construção de incentivos à formação de coalizões no interior dos clusters descentralizados de atores que possuem os recursos necessários à operacionalização das políticas em questão (Mandell, 1999).

O formato institucional dos SUS e sua dinâmica de gestão

A construção do SUS representa uma ruptura no formato de constituição do Estado, no modelo de proteção social e na forma de gestão das políticas sociais no país, tendo, portanto, redirecionado também o padrão de relacionamento do Estado com a sociedade civil e o mercado. Este processo gerou arranjos multi-organizacionais, característicos de governança em rede, onde a capacidade de desenvolver estratégias e instrumentos de promoção e sustentação de interdependências se tornou vital para o desempenho final do sistema de saúde. Isto é, envolve o planejamento e a articulação estratégica no emprego dos recursos, a negociação em torno de objetivos comuns, a pactuação de metas, a resolução mediada de conflitos, a integração por meio da articulação eficiente de bases de provisão de serviços, entre outros.

    Breve histórico

O sistema de proteção social brasileiro, a partir da construção do Estado moderno em 1930, combinou um modelo de seguro social na área previdenciária, no qual os benefícios dependem da existência de contribuições pretéritas, com um modelo assistencial para a população sem vínculos trabalhistas formais, no qual os benefícios não asseguram a existência de direitos sociais.

No período da democracia populista (1946-1964), a expansão do sistema de seguro social fez parte do jogo político de intercâmbio de benefícios por legitimação dos governantes, beneficiando de forma diferencial os grupos de trabalhadores com maior poder de barganha, fenômeno este que ficou conhecido como massificação de privilégios.

O regime burocrático-autoritário, no pós-1964, não rompeu com as características anteriormente apontadas, mantendo a convivência dos modelos de seguro e de assistência em sistemas centralizados, fragmentados, ineficientes, superpostos e submetidos a uma lógica clientelista. A inflexão que vão sofrer os sistemas e mecanismos de proteção social a partir da instauração do regime burocrático-autoritário obedeceu a quatro linhas mestras: a centralização e concentração do poder em mãos da tecnocracia, com a retirada dos trabalhadores do jogo político e da administração das políticas sociais; o aumento de cobertura incorporando grupos e benefícios anteriormente excluídos; a criação de fundos e contribuições sociais como mecanismo de autofinanciamento dos programas sociais; e a privatização dos serviços sociais (em especial a educação universitária e secundária e a atenção hospitalar).

Com a Constituição Federal de 1988 inaugura-se um novo período, no qual o modelo da seguridade social passa a estruturar a organização e formato da proteção social brasileira, em busca da universalização da cidadania.

Com a Constituição Federal de 1988 inaugura-se um novo período, no qual o modelo da seguridade social passa a estruturar a organização e formato da proteção social brasileira, em busca da universalização da cidadania. No modelo de seguridade social busca-se romper com as noções de cobertura restrita a setores inseridos no mercado formal e afrouxar os vínculos entre contribuições e benefícios. Os benefícios passam a ser concedidos a partir das necessidades, o que obriga a estender universalmente a cobertura e integrar as estruturas governamentais. A inclusão da previdência, da saúde e da assistência como partes da seguridade social introduziu na Constituição os direitos sociais com parte da condição de cidadania.

O novo padrão constitucional da política social caracteriza-se pela universalidade na cobertura, o reconhecimento dos direitos sociais, a afirmação do dever do Estado, a subordinação das práticas privadas à regulação em função da relevância pública das ações e serviços nestas áreas, uma perspectiva publicista de co-gestão Governo/Sociedade, em um arranjo organizacional descentralizado.

    Formação do SUS como um campo de gestão de redes

A Reforma Sanitária foi fruto de um amplo movimento social que se iniciou ainda nos estertores do regime autoritário e que teve como objetivo central a democratização da saúde, entendida como a universalização do acesso ao cuidado de saúde, mediante a criação de um Sistema Público Nacional de Saúde. Estas propostas foram incluídas na Constituição Federal de 1988, onde a saúde se inscreveu como um direito de cidadania e um dever do Estado, requerendo que os serviços de saúde se organizassem em um sistema único, público, universal, descentralizado e participativo de atenção à saúde. O novo desenho do sistema representou uma mudança importante no poder político e na distribuição de responsabilidades entre as distintas esferas do Governo: nacional, estadual e municipal.

Este processo de redefinição institucional do sistema de saúde originou um novo e diferente quadro de desafios de gestão, uma vez que estabeleceu tanto estruturas decisórias quanto de organização e provisão de serviços compostas por atores provenientes de diferentes jurisdições (Estado, sociedade civil e mercado). Os principais desafios podem ser divididos de acordo com cada uma dos três principais eixos de relações institucionais que compõem o SUS, os quais demandam diferentes esforços de gestão interorganizacional.

Em breves linhas, vamos tratar este desenho a partir das novas configurações das relações intergovernamentais, das relações do Estado com a sociedade e das relações do Estado com o mercado.

1. Relações Intergovernamentais – consiste num conjunto de relações geradas pelo processo de descentralização dos núcleos decisórios a partir da instituição de autoridades sanitárias em cada esfera de Governo, dotadas de autonomia política para a gestão dos serviços prestados aos cidadãos, nos níveis de atenção correspondentes. Isto implica na existência da divisão de funções entre a União, os Estados e os Municípios, sendo estes últimos designados como a esfera principal na composição do novo sistema. Implica também na criação de mecanismos de articulação que garantam a coordenação das interdependências.

A autonomia das três esferas requer a presença de mecanismos e estratégias para o desenvolvimento de esforços conjuntos e complementares, tanto no sentido de obter coerência na formulação de políticas quanto na provisão de uma atenção integral aos cidadãos usuários do sistema, cabendo à esfera central a responsabilidade pela coordenação geral das políticas nacionais de saúde. Esta o faz mediante o desenvolvimento das normas e parâmetros para a estruturação, a organização, o planejamento, o controle e a avaliação, na forma de diretrizes básicas de orientação do sistema, incentivos para a adoção de programas e políticas, bem como por meio do fornecimento de condições necessárias à promoção da descentralização do mesmo. Os grandes desafios do processo de gestão intergovernamental instituído pelo SUS relacionam-se tanto à determinação de dotar os municípios das competências suficientes para assumir suas responsabilidades, quanto à necessidade de desenvolver estratégias eficientes de integração entre os municípios, e destes com as demais esferas.

A produção de resultados coletivos a partir de esferas autônomas, em ambientes de interesses nem sempre convergentes, em se tratando de um país federal de ampla diversidade socioeconômica, política e cultural, exige a presença de mecanismos capazes de promover processos de negociação voluntária e pactuação. As principais ferramentas institucionais desenhadas para este propósito consistem nas conferências de saúde em cada esfera de governo, realizadas periodicamente, e nas comissões intergestoras e consórcios intermunicipais. As primeiras são mecanismos de formação de políticas públicas compostas a partir da esfera municipal, cujas diretrizes e metas são tomados como fundamento para a elaboração das agendas referentes à esfera estadual e finalmente à nacional. Com participação paritária do Governo e da sociedade civil, as conferências representam um momento de diálogo e formação de consenso acerca de normas e valores que orientarão as estratégias políticas.

As comissões intergestoras representam espaços permanentes de composição decisória onde se apresentam as autoridades gestoras na busca de resolução conjunta de problemas, como a alocação de recursos financeiros. As comissões intergestoras bipartites relacionam a autoridade estadual com as municipalidades, enquanto a comissão tripartite envolve ainda a presença da União no processo de pactuação e formação de consenso. No que se refere às relações horizontais entre as esferas subnacionais, o intercâmbio e a alocação de recursos assistenciais e financeiros pode ser viabilizado por meio da Programação Integrada e Pactuada (PPI) que consiste num instrumento de negociação de recursos, onde os gestores com excesso de oferta de serviço podem oferecê-la para outros gestores em troca do financiamento correspondente. O nível gerencial imediatamente acima (Estados ou União) consolida as programações e redistribui recursos financeiros de acordo com os pactos efetuados.

A produção de resultados coletivos a partir de esferas autônomas, em ambientes de interesses nem sempre convergentes, em se tratando de um país federal de ampla diversidade socioeconômica, política cultural, exige a presença de mecanismos capazes de promover processos de negociação voluntária e pactuação.

No que se refere às relações horizontais especificamente entre os gestores municipais, está prevista também na institucionalidade do SUS a possibilidade de instauração de consórcios entre municípios para a gestão de problemas locais comuns e a construção de estratégias de regionalização. No entanto, esse é um recurso institucional ainda de pouca utilização no sistema, talvez em virtude da quase ausência de incentivos ao seu desenvolvimento.

O processo de descentralização foi realizado de maneira progressiva e regulado pelas instâncias centrais passando as instalações e os recursos humanos dos níveis mais altos às municipalidades. A administração do sistema local de saúde, incluindo os recursos financeiros transferidos às municipalidades, está condicionada pelo cumprimento das normas e requisitos estabelecidos pelas instâncias centrais.

As evidências demonstram que o processo de construção de competências gerenciais nas esferas subnacionais da federação encontra-se em estágio bastante avançado, estando a quase totalidade dos estados e municípios habilitados a assumir pelo menos as funções mínimas a eles disponibilizadas, embora permaneça a questão das assimetrias e desigualdades, tanto entre os municípios quanto entre os estados.

Da mesma forma, a construção de relações horizontais entre as autoridades sanitárias nas duas esferas permanece sendo uma questão em aberto, assim como se encontra pouco definido o papel do Governo estadual no conjunto das relações verticais entre as três esferas.

Desta forma, o SUS configura um formato institucional onde nenhum dos atores do Estado detém os recursos suficientes, nem para prover atenção integral, nem para impor os rumos da política de saúde, sendo indispensável o constante exercício e aperfeiçoamento dos instrumentos e mecanismos de desenvolvimento das relações intergovernamentais no sentido de ampliar o potencial de consenso, de compartilhamento de percepções e de aprofundamento da interdependência, sem os quais torna-se deficitária ou mesmo insustentável a produção de resultados eficazes em contextos de governança em rede.

O SUS configura um formato institucional onde nenhum dos atores do Estado detém os recursos suficientes, nem para prover atenção integral, nem para impor os rumos da política de saúde, sendo indispensável o constante exercício e aperfeiçoamento dos instrumentos e mecanismos de desenvolvimento das relações intergovernamentais.

As pesquisas recentes sugerem que não há o desenvolvimento de esforços significativos no que se refere à redução das assimetrias de capacidade de gestão, o que torna difícil ampliar o potencial dos municípios de assumir com sucesso responsabilidades novas e mais complexas, assim como também diminui suas possibilidades de formar relações eficazes, verticais e horizontais, de intercâmbio de recursos e competências.

Quanto ao papel desempenhado pelo gestor estadual e as questões referentes ao desenvolvimento das relações de caráter horizontal, em 2001 foi instituída uma estratégia de regionalização da gestão e da assistência à saúde, definindo o gestor estadual como principal responsável por conduzir a articulação de municípios adjacentes na composição de clusters de provisão de serviços. O objetivo é fortalecer a interdependência municipal, ampliar a capacidade regional de prover atenção integral com maior equidade, além de racionalizar o uso de recursos por ganho de escala mediante a alocação eficiente de investimentos (Mafort-Ouverney, 2005).

Entretanto, tal estratégia, após mais de três anos de implementação, ainda não apresentou resultados efetivos e encontra dificuldades no sentido de se tornar um marco regulatório institucionalizado e legitimado pelos atores que integram o SUS. Sendo assim, a indefinição no que se refere ao papel do gestor estadual e a incapacidade de construção de estratégias de horizontalização favorecem a manutenção do papel indutor e centralizador do governo federal.

2. Relações Estado/Sociedade – constitui-se em um conjunto de estruturas composto pelas relações de intermediação de interesses entre os atores sociais e a burocracia estatal no âmbito do processo de controle social desenvolvido a partir da institucionalização das instâncias de democratização do SUS. O processo de abertura das instâncias decisórias do Estado brasileiro durante a década de 1980 permitiu a inserção de demandas diferenciadas por meio da maior participação política de grupos antes excluídos. Esta opção estava fundada em uma concepção de que o Estado deveria conter mecanismos institucionais de controle e de incorporação de interesses plurais que pudessem confrontar sua tomada por grupos particulares.

A existência de canais de inserção de demandas e interesses diversos transformou por completo todo o processo decisório, e, por conseguinte, a gestão das etapas de composição das políticas de atenção à saúde. Uma vez que o poder da burocracia gestora passou a ser compartilhado com a Sociedade Civil, sua autonomia na condução do sistema de saúde está restrita à ação da democracia deliberativa, o que corrobora a necessidade dos gestores de se orientarem na busca do interesse público.

O principal aspecto gerencial relativo ao compartilhamento do poder decisório reside no entendimento, por parte dos gestores, de que a definição tanto dos macro-objetivos, das principais diretrizes e metas da agenda das políticas públicas de saúde em cada uma das três esferas, quanto os aspectos processuais relativos à sua implantação, estão sujeitos à ação política dos diversos grupos de interesse presentes nas arenas decisórias do SUS, que são os Conselhos de Saúde.

Em cada nível do SUS existe um Conselho de Saúde, constituído 50% de representantes do Governo e 50% de representantes da sociedade civil (usuários, provedores, profissionais, etc.). Este mecanismo permite a participação e o controle social nos processos de elaboração de políticas, de ordenamento de prioridades e execução de políticas.

Assim, a atitude e as competências de gestão necessárias para a produção de resultados coletivos no campo sanitário, a partir de interesses possivelmente divergentes, envolvem a construção de processos de articulação política e de mediação de conflitos, o que exige que os gestores atuem permanentemente na construção de agendas de compartilhamento de percepções e ajustes de interesses. Este processo envolve ainda o desenvolvimento de relações de complementaridade entre burocracia e a sociedade civil organizada, visando construir suporte político para a elaboração e a implementação de políticas e programas. Da mesma forma, tais relações permitem e impulsionam a ação organizada no sentido de ampliar a capacidade de monitoramento e fiscalização de metas e resultados, o que contribui significativamente, tanto no sentido de intensificar o processo de accountability, quanto aumentar a eficiência da ação estatal.

Entretanto, embora seja evidente a institucionalização do processo de participação da sociedade organizada via conferências e conselhos de saúde na definição de prioridades, estratégias e metas da política de saúde nas três esferas da federação, permanece ainda por se consolidar a capacidade efetiva de exercício de controle social pelos conselhos. Neste sentido, diversos fatores influem neste processo como a disponibilidade de recursos para a operação dos conselhos, a cultura política de cada município, o nível de instrução da população, as relações do executivo com o legislativo, a ação de lideranças, a origem social dos membros dos próprios conselhos, entre outros. Diversas pesquisas apontam o predomínio do caráter apenas consultivo dos conselhos em detrimento de seu papel decisório, enfatizando que em algumas situações estes operam somente na legitimação de decisões previamente definidas pelo executivo.

Entretanto, cabe reiterar que tais instâncias possuem um amplo potencial de atuar não só na ampliação da eficiência da ação das políticas públicas, mas também na promoção do caráter democrático da gestão do Estado. De qualquer forma, mesmo que o caráter recente da real implementação dessas estruturas ainda não permita avaliações concretas mais positivas, deve-se considerar que existem grandes diferenças entre os conselhos, determinadas pelas prévias diferenças sociais e políticas existentes. Um maior estudo e acompanhamento deste instrumento possibilitariam mesmo o desenho de incentivos necessários à consolidação dessas instâncias, em resposta a verificação de reais deficiências existentes em cada região da federação.

Diversas pesquisas apontam o predomínio do caráter apenas consultivo dos Conselhos de Saúde em detrimento de seu papel decisório, enfatizando que em algumas situações estes operam somente na legitimação de decisões previamente definidas pelo executivo.

3. Relações Estado/mercado – Apesar da proposta de reforma sanitária inscrita no texto constitucional e que compõe as diretrizes de estruturação do SUS ter originado um sistema público, boa parte das bases econômicas de produção da oferta de insumos e serviços encontra-se alocada em unidades de mercado. Este fato é conseqüência da política de organização do modelo médico-sanitário anteriormente existente, que privilegiou a compra de serviços aos produtores privados e foi estruturado visando à reprodução ampliada de setores industriais de elevada composição tecnológica, como a indústria farmacêutica e de equipamentos médicos.

Durante as duas primeiras décadas, a Reforma Sanitária não foi capaz de transformar a realidade prévia em termos da estrutura de insumos e oferta nem das características de organização dos serviços. Uma vez que a produção de medicamentos, equipamentos hospitalares e outros insumos é fundamentalmente realizada por empresas multinacionais, o Governo tem sido incapaz de controlar tanto as condições de oferta quanto os preços destes produtos. Como os leitos hospitalares para o SUS são predominantemente ofertados pelo setor privado contratado (aproximadamente 63%), a distribuição de hospitais e recursos humanos é altamente concentrada nas regiões urbanas mais ricas do país.

Assim, a estruturação e a dinâmica de provisão de serviços de saúde no âmbito do SUS, necessariamente estão relacionadas à contratação de um conjunto de provedores inseridos num ambiente cujos princípios de condução são os do mercado, e não aqueles estabelecidos na Constituição de 1988, nos quais a saúde é considerada um bem público, independentemente do seu provedor ser público ou privado.

Como os leitos hospitalares para o SUS são predominantemente ofertados pelo setor privado contratado (aproximadamente 63%), a distribuição de hospitais e recursos humanos é altamente concentrada nas regiões urbanas mais ricas do país.

Sob a ótica da produção de serviços aos cidadãos pelo SUS, a necessidade de buscar no mercado unidades de provedores de serviços especializados e mesmo fatores de produção para tal, implica em desafios de gestão relacionados à equidade e à integralidade da assistência, principalmente em políticas setoriais envolvendo níveis mais elevados de complexidade tecnológica. Os desafios intrínsecos à equidade referem-se às disparidades regionais ocasionadas pela concentração de recursos e de infra-estrutura produtiva nas áreas de maior grau de urbanização.

Quanto à integralidade da assistência, os desafios referem-se tanto à integração dos diversos serviços contratados pelo Estado no âmbito do SUS, quanto à hierarquização destes por níveis de complexidade, uma vez que a qualidade da provisão não depende única e exclusivamente do desempenho isolado de cada unidade. A existência de diversos provedores contratados relacionados a uma política setorial específica, cada qual especializado em um aspecto da assistência, implica na insuficiência de garantia quanto à relação causal entre o desempenho individual dos provedores contratados e o resultado geral em termos de bem-estar dos cidadãos.

A baixa capacidade do aparelho estatal para desenvolver parâmetros e instrumentos regulatórios efetivos impede o cumprimento da função reitora do Estado na condução do SUS, que muitas vezes se submete aos interesses privados, mais poderosos e altamente organizados.

A efetividade dos serviços está relacionada à capacidade do Estado de organizar e estruturar de forma adequada uma rede integrada a partir dos fundamentos constitucionais do SUS. A integração e hierarquização dos serviços contratados tornam-se imprescindíveis para a efetividade das políticas de saúde, uma vez que somente uma adequada coordenação interorganizacional entre os provedores, por meio de mecanismos de referenciamento e contra-referenciamento, gestão conjunta de casos e o desenvolvimento de programas multidisciplinares, é capaz de garantir a provisão de qualidade.

As ações desenvolvidas e os instrumentos gerados para a implementação dos processos de regionalização e hierarquização da rede de serviços no âmbito do SUS constituem as estratégias voltadas para a garantia da integralidade da assistência, diante da fragmentação gerada não só pela necessidade de contratação de provedores privados, mas também pela busca do estabelecimento de uma coordenação adequada destes com os serviços alocados no interior do aparelho público para poder hierarquizá-los através dos níveis de atenção e complexidade.

O aprofundamento do processo de regionalização e hierarquização da atenção à saúde, iniciado durante a década de 1990, recebeu importante impulso por meio da edição da Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS/01) que consolidou de forma detalhada o relacionamento entre as bases de serviços especializadas dos municípios. Cada base municipal é tomada como um módulo assistencial composto por um cluster de serviços de determinada complexidade, onde os municípios que possuem núcleos capazes de realizar procedimentos de maior complexidade configuram referências para os demais módulos assistenciais. Os módulos assim referenciados se agrupam em microrregiões, que, por sua vez, formam as regiões a partir das quais se divide a assistência à saúde de cada Estado da Federação.

Da mesma relevância que a capacidade de articulação das bases privadas de provisão de serviços, a questão referente à gestão dos processos de contratação e o monitoramento dos resultados permanece sendo um aspecto indefinido na organização do SUS, o que afeta de maneira extremamente negativa a articulação estratégica no emprego dos recursos, reduzindo significativamente a racionalidade sistêmica (econômica) e a eficiência do SUS.

Considerações finais

A Tabela sintetiza os principais avanços e desafios à consolidação do SUS como campo de gestão de políticas em rede.

 

Tabela

Avanços e desafios na construção do SUS como uma rede de gestão de políticas

 

Embora se apresentem tensões presentes nos três eixos de relações institucionais definidos para a análise do SUS, percebe-se claramente que os principais desafios estão relacionados ao eixo das relações intergovernamentais.

A análise do SUS a partir dos critérios fixados como característicos de uma gestão em rede aponta para uma forte necessidade de horizontalização das relações intergovernamentais, com o fortalecimento das instâncias subnacionais. Isto implica não só ampliar a autonomia dos municípios e solidificar o papel do Estado como coordenador regional, mas também consolidar a capacidade dos conselhos no exercício do caráter deliberativo de suas atribuições. Desta forma seria possível assegurar a governança desejável em cada um dos níveis do sistema, bem como sua articulação com os demais níveis.

Os desafios apontam cada vez mais para a necessidade de fortalecimento dos atores e para a horizontalização das relações de poder. Isso demonstra que, para além dos aspectos estruturais, não se pode negligenciar a dinâmica do exercício do poder.

Somente assim é possível reduzir o papel indutor das instâncias centrais do SUS, além de, ao ampliar a autonomia e a força dos sistemas locais e regionais, possibilitar o fortalecimento da regulação e do controle sobre os provedores privados.

A análise da gestão do SUS nos leva a questionar a ênfase dada na literatura contemporânea aos processos de institucionalização de interdependências.

Ainda que o SUS tenha construído diversas instâncias de construção de regras coletivas, os desafios apontam cada vez mais para a necessidade de fortalecimento dos atores e a horizontalização das relações de poder. Isso demonstra que, para além dos aspectos estruturais, não se pode negligenciar a dinâmica do exercício do poder.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em Março de 2006 e aceite em Março de 2006.

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