SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número36Angola in the African Peace and Security Architecture: The Strategic Role of the Angolan Armed Forces. índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.36 Lisboa dez. 2018

 

RECENSÃO

 

Judith Carney. Arroz Negro. As Origens Africanas do Cultivo do Arroz nas Américas. Bissau: Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas. 2018. 356 pp.[1]

 

A circulação das plantas através do mundo, operação levada a cabo pelas forças da natureza, pelos animais e sobretudo pelos homens, de forma pensada e continuada, constitui um fenómeno histórico milenar que contribuiu naturalmente para assegurar as mais variadas mudanças – ecológicas, agrícolas, técnicas, económicas, sociais – vividas pela humanidade.

O início do processo de globalização do mundo, cujo momento fundador é marcado pela expansão marítima europeia do século XV, permitiu uma notável aceleração da transferência de plantas à escala mundial, que continua nos dias de hoje, assistindo-se igualmente à transformação genética das espécies, possível graças ao desenvolvimento científico, e que cria novas plantas, novos circuitos, novas técnicas, novas culturas.

Após o século XV e durante centenas de anos, as mais diversas populações do mundo levaram a cabo essa tarefa que, de uma forma geral, permitia assegurar a subsistência dos homens, onde estes se instalassem. Africanos, americanos, asiáticos, europeus foram os agentes desta circulação e difusão de plantas, introduzindo-as juntamente com as práticas agrícolas, as técnicas de cultura e as formas sociais e religiosas associadas.

Ao longo de várias décadas do século passado, inúmeros estudiosos sobretudo europeus e americanos – das áreas da geografia, da botânica, da agronomia, mas também da linguística, da genética, da antropologia, da história – procuraram esclarecer esse movimento, que ao longo de muitos séculos produziu uma revolução ecológica à escala mundial, ligada às transformações económicas e sociais que marcaram a emergência e a consolidação do mundo moderno.

Vários estudos puseram em evidência o papel ativo dos europeus neste processo de transferência de plantas e das consequências económicas e sociais, revelando os aspetos históricos positivos e negativos para as diferentes populações envolvidas nestas operações. Mas se desde o século XV os europeus procederam ao transporte de plantas no quadro das suas navegações, levando-as de e para os diversos continentes, a sua adaptação, cultura e consumo revelaram a adesão das mais diferentes populações a essas “novidades” recém-chegadas.

Em África, por exemplo, as populações adotaram as plantas vindas do continente americano e procederam à sua africanização, quer utilizando as suas próprias técnicas agrícolas, quer integrando-as na sua vida social e religiosa através de mecanismos de natureza mágico-sagrada. Esta última dimensão, que marcava de uma forma geral a existência dos africanos, não podia ser esquecida no caso da introdução de plantas novas, que só assim podiam integrar plenamente os diferentes espaços da comunidade.

Já os estudos relativos às operações de circulação de plantas levadas a cabo pelas populações africanas nas suas migrações para fora do seu continente, no quadro do moderno tráfico de escravos africanos e da sua escravatura nas Américas, são mais recentes e integram-se na problemática desse fenómeno histórico violento, organizado pelos europeus durante vários séculos, que marcou a construção do mundo novo atlântico. A necessidade de pôr em evidência a contribuição fundadora e fundamental dos africanos escravizados na criação das Américas, durante muito tempo esquecida e silenciada, tem vindo a estimular a produção de estudos e de reflexões sobre a questão, ocupando hoje um espaço legítimo e indispensável no conhecimento histórico mundial.

É neste contexto que emerge o Arroz Negro de Judith A. Carney, professora de Geografia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, editado na sua versão original em inglês, com o título Black Rice. The African Origins of Rice Cultivation in the Americas, e publicado em Bissau em 2018, numa tradução portuguesa dirigida por José Filipe Fonseca e com prefácio de Leopoldo Amado.

Trata-se de uma obra inovadora e fundamental não só para o estudo do seu tema mais imediato, as origens africanas e as práticas do cultivo do arroz no continente americano, mas também para o conhecimento do papel fundamental dos africanos na história das Américas e a sua participação na construção civilizacional do mundo. Regista-se ainda um importante aparelho de notas explicativas das interpretações da autora, bem como a apresentação de uma bibliografia extensa e organizada, permitindo melhor compreender a lógica de construção da obra.

No seu prefácio à edição inglesa, Judith Carney define de maneira límpida e precisa o seu objeto de estudo e a perspetiva que orienta a sua análise:

A investigação que aqui se apresenta conta uma história, nunca antes contada, sobre a presença e o legado africanos nas Américas. O arroz não é apenas uma planta importante, ele é também a base de todo um sistema cultural que foi transportado no quadro da escravatura por cultivadores e descascadores africanos através da ‘Passagem do Meio’. Esses homens e mulheres, escravizados nas Américas, viram o resultado da sua agricultura tradicional emergir como o primeiro produto alimentar comercializado em grande escala através dos oceanos por capitalistas que mais tarde atribuíram a si próprios o mérito da inovação. A incrível história destes orizicultores africanos e dos seus descendentes ao longo de toda a bacia do Atlântico é o objeto deste livro (p. 22).

Mas Judith Carney vai mais longe, pois procura explicar os caminhos do seu trabalho de investigação,

chamando a atenção para o sistema de conhecimentos subjacente à cultura do arroz nas Américas e na África Ocidental… [investigando] não apenas a alimentação e a identidade cultural, mas também questões de conhecimentos autóctones e de epistemologia, actuação humana e estrutura social, transferência de sementes e difusão de sistemas de cultura, inovação agrícola e as relações de poder que modularam as práticas agrárias (p. 31).

Carney põe em evidência a contribuição dos escravos africanos na construção agrária do mundo americano, sobretudo na Carolina do Sul e na Geórgia, na América do Norte, e na Amazónia brasileira.

A complexidade desta problemática não podia deixar de obrigar a autora a refletir sobre as dimensões histórica, antropológica, ecológica e linguística desta operação que leva homens, ideias, sistemas agrícolas, técnicas e sementes africanas para o Novo Mundo. Não esquecendo as tradições e os rituais culturais que acompanham as plantas, nem tão-pouco as relações entre a cultura e o ambiente. Esta abordagem interdisciplinar que utiliza sabiamente os muitos documentos históricos existentes, de natureza e origem diversas, caracteriza e organiza o estudo de Judith Carney, estruturado em seis capítulos – “Encontros”, “Origens do arroz e conhecimentos autóctones”, “Fora de África: cultura do arroz e continuidades africanas”, “Isto era ‘trabalho de mulher’”, “Arroz africano e o mundo atlântico”, “Legados” – , onde a autora expõe as suas preocupações teóricas e analíticas decorrentes da sua pesquisa, desenvolve raciocínios claros e multiplica interpretações fundamentadas em múltiplas fontes escritas, iconográficas, orais e linguísticas.

O cultivo do arroz africano (Oriza glaberrima), a recusa ideológica europeia do seu reconhecimento e as evidências históricas organizam os dois primeiros capítulos, intitulados “Encontros” e “Origens do arroz e conhecimentos autóctones”, que revelam as matrizes genéticas, culturais e sociais da orizicultura africana da África Ocidental. A autora procede ao necessário enquadramento histórico que se inicia no século XV com a expansão sobretudo portuguesa e que se estende até ao século XIX, não esquecendo a importância da presença árabe anterior na difusão de plantas, técnicas e saberes. Judith Carney procura desmontar interpretações europeias que se foram construindo até ao século XX para mostrar a inexistência de um centro independente de domesticação africana do arroz, ao mesmo tempo que privilegiam a introdução externa da variedade asiática (Oriza sativa) e das técnicas de cultivo nas Américas, assim como consideram a origem europeia dos sistemas orizícolas existentes em África, cuja sofisticação não podia ser africana, levando os europeus “a denegrir as realizações africanas na agricultura e na tecnologia” (p. 58).

Numa era em que predominava o racismo científico e o colonialismo, a negação das realizações africanas em matéria de sistemas orizícolas fornece um exemplo estonteante do modo como as relações de poder influenciam a produção da história. Como resultado os investigadores ignoraram a história do arroz africano até ao século XX […] colocando assim os agricultores africanos a um nível menos evoluído dentro da hierarquia da agricultura, civilização e progresso (p. 80).

Para recuperar a verdade histórica, Carney procede ao estudo de diferentes questões centradas na existência hoje provada do arroz africano, recorrendo a fontes históricas europeias e árabes, a documentos linguísticos existentes e a estudos pluridisciplinares sobretudo desenvolvidos em meados do século XX, para pôr em evidência a africanidade de uma variedade de arroz, o Oriza glaberrima, e dos sofisticados e variados sistemas africanos de cultivo e produção, muito antes da chegada dos portugueses e mesmo antes da expansão árabe do século X (p. 66), que permitiram “a adopção das variedades asiáticas […] [que foi possível graças] à existência de uma população que já dominava as técnicas e as práticas da cultura do arroz” (p. 67).

Ao longo destes dois primeiros capítulos, Carney, que recorre também a documentos iconográficos e cartográficos, analisa a organização e o trabalho das populações africanas da África Ocidental (vasta região da Guiné à Serra Leoa) em torno da complexidade e diversidade dos sistemas de cultivo do arroz – junto à costa, nas planícies inundadas pelas marés, nos estuários dos rios, em terrenos de mangal, em planícies interiores alagadas pelas chuvas, nos planaltos, construindo diques, canais e reservatórios diversos –, pondo em evidência as práticas agrícolas africanas, as técnicas usadas e adaptadas a cada contexto ecológico, e um complexo trabalho orizícola levado a cabo pelas mulheres, que desempenhavam um papel central em todo o processo de produção, de preparação, de venda, de transformação e de consumo do arroz. Sublinha igualmente as dinâmicas femininas no espaço social africano: o comércio do arroz ao longo da costa africana, particularmente procurado pelos navegadores europeus que “dependiam cada vez mais dos excedentes de cereais para as suas viagens” e eram “negociados por mulheres comerciantes” (p. 42).

Compreender a gama de técnicas, práticas e selecção de sementes utilizadas pelos orizicultores africanos durante séculos é uma via para resgatar o arroz na sua própria localização histórica e geográfica, como uma planta importante no seio de um sofisticado sistema agrícola africano que já existia no início do comércio atlântico de escravos (p. 81).

Carney aponta assim o caminho seguinte do seu estudo que a vai levar às relações esclavagistas impostas pelos europeus no espaço africano, chamando a atenção para a profunda perturbação imposta pelo secular comércio de escravos nos sistemas agrícolas autóctones africanos.

A participação dos escravos africanos no desenvolvimento da orizicultura americana constitui o tema geral dos três capítulos seguintes, “Fora de África: cultura do arroz e continuidades africanas”, “Isto era ‘trabalho de mulher’”, “O arroz africano e o mundo atlântico”. Judith Carney analisa o processo de transferência do arroz e dos sistemas orizícolas africanos para as Américas, a sua implantação seguindo a via do comércio atlântico de escravos e pondo em evidência a contribuição fundamental dos africanos escravizados para a construção das civilizações americanas modernas.

 

 

Embora estes capítulos tenham como objetivo central pôr em evidência a cultura do arroz africano “fora de África” e sobretudo nas Américas, começam por debruçar-se de forma consistente sobre problemas africanos ligados à produção africana do arroz – integrado num conjunto mais vasto de cereais e plantas –, visando explicar, por um lado, o arroz, a sua cultura e as suas preparações alimentares na afirmação da identidade africana, e por outro, a existência de uma produção excedentária das sociedades africanas destinada a responder quer à procura europeia, quer ao consumo africano. Esta situação, que se desenvolveu amplamente a partir do século XVI, permite à autora uma reflexão importante sobre a reorganização da agricultura africana, em particular a orizicultura, para assegurar a produção de excedentes. Os navios europeus que aportavam à costa ocidental africana, destinados sobretudo ao transporte de escravos, necessitavam de se abastecer de alimentos antes de rumarem às Américas. Também as guerras internas africanas, que mobilizavam exércitos numerosos para assegurar a escravização de africanos destinados ao comércio negreiro europeu, através de razias sobre as populações mais frágeis ou escravizando prisioneiros de guerra e suas famílias, consumiam elevados níveis de mantimentos, onde o arroz se destacava, levando assim a uma procura africana de excedentes, produzidos em plantações de arroz africanas, cultivadas por escravos, com estatuto diferenciado do escravo-mercadoria “produzido” pelos europeus.

O comércio negreiro atlântico provocou uma enorme procura de cereais […] [durante] os 350 anos que durou o tráfico, mais de 12 milhões de pessoas deslocadas de África como escravos […] É difícil abarcar toda a magnitude da produção agrícola necessária para satisfazer a procura alimentar do tráfico negreiro […] [o que levou] as sociedades africanas a adoptar as plantas provindas do Novo Mundo, especialmente o milho e a mandioca, bem como algumas variedades de arroz que foram introduzidas nos sistemas de irrigação ao longo da costa” [da África Ocidental] (p. 109).

A circulação do arroz – documentada em numerosos estudos pluridisciplinares e plurinacionais – atingiu toda a bacia do Atlântico, sendo particularmente visível nas ilhas do Atlântico africano, como foi o caso do arquipélago de Cabo Verde, estendendo-se para as ilhas americanas – Jamaica, Cuba – e chegando e atravessando depois o continente americano – Brasil, Peru, México, Equador, Colômbia, terras baixas do Pacífico, Nicarágua –, seguindo, a partir do século XVI, o percurso dos escravos transportados para as Américas, oriundos das regiões orizícolas entre o Senegal e a Serra Leoa. A introdução do arroz está assim plenamente associada ao tráfico negreiro: levado nos navios negreiros para servir de mantimento dos escravos, o arroz africano era trabalhado nos convés dos navios pelas mulheres escravas, que, procedendo aí à preparação do arroz, escondiam nos cabelos grãos que não descascavam para servir de sementeira para cultura nos territórios americanos para onde eram transportadas. Acrescente-se que estes homens e mulheres não só transportavam o arroz, mas dispunham de “conhecimentos e competências para iniciar o caminho para a produção do seu alimento básico” (p. 113). Este cenário, centrado no movimento das culturas africanas, dos navios negreiros para as parcelas de culturas alimentares dos escravos, é relatado em histórias orais diversas recolhidas nomeadamente na América do Sul, junto de descendentes de escravos fugidos das plantações americanas, como os quilombolas brasileiros (p. 245).

Mas se as competências dos escravos lhes permitiram uma sobrevivência “confortável” – sobretudo no que respeita aos escravos fugidos para o interior dos espaços americanos –, também foram utilizadas pelos seus proprietários americanos, que escolhiam aqueles que provinham das regiões orizícolas africanas, para desenvolver uma orizicultura rendível, questão que merece uma pormenorizada reflexão de Judith Carney apoiada em inúmeros estudos contemporâneos (pp. 195-209). A implantação do arroz e o seu cultivo nas diferentes dimensões que caracterizam a orizicultura, bem como a utilização dos conhecimentos e das competências dos escravos africanos, marcaram com particular incidência várias regiões dos EUA, como a Carolina do Sul e a Geórgia, levando a autora a estudar os diferentes sistemas orizícolas aí desenvolvidos, bem como as suas origens e as suas consequências. No final do século XVII, o arroz era já uma cultura de plantação e de exportação e, em meados do século XVIII, o arroz tornara-se o “primeiro cereal a ser comercializado mundialmente” (p. 116), a indústria do arroz vindo a crescer no século XIX, utilizando “exclusivamente o trabalho escravo para a plantação, colheita e descasque do arroz destinado aos mercados internacionais” (p. 117).

O estudo da autora é particularmente significativo e elucidativo no que respeita à colonização da Carolina do Sul e à introdução dos escravos africanos e da orizicultura, recorrendo a diferentes estudos especializados, contrapondo por vezes opiniões e interpretações opostas, mas que coincidem numa questão central: o protagonismo africano na difusão do arroz através do Atlântico, utilizando:

uma perspectiva geográfica focalizada na cultura, na tecnologia e no ambiente para apoiar o argumento de que a origem da cultura do arroz na Carolina do Sul é de facto africana. Os escravos da região do arroz na África Ocidental, não só asseguraram a difusão agrícola, a transferência tecnológica, mas também ensinaram os proprietários das plantações a cultivar arroz, [impondo por vezes novas formas de organização do trabalho como os sistemas de trabalho por tarefas, situações e práticas que lhes] forneceram […] uma alavanca para negociar e alterar algumas condições da sua servidão” (pp. 119-120 e 140-144).

Se a transferência do arroz e de tecnologias associadas oriundas da África Ocidental para a Carolina do Sul mostra a dependência americana em relação:

aos grupos étnicos africanos específicos que estavam familiarizados com a cultura do arroz […] Para os escravos, o conhecimento da orizicultura foi uma oportunidade rara para negociar os termos da escravidão para uma forma diferente semelhante à servidão nativa que conheciam em África (p. 150).

A difusão do arroz africano nas Américas e o seu cultivo emerge igualmente na história dos escravos fugitivos, revelando o lugar central da planta:

na identidade cultural… captado em lendas contadas pelos seus descendentes, que afirmam que os seus antepassados introduziram a cultura a partir de África. Na região de Cayenne [Suriname] […] os escravos fugitivos dyukas afirmam que o arroz veio de África, trazido por escravas que escondiam os grãos no cabelo e os contrabandeavam a partir dos navios negreiros que as transportavam para o Novo Mundo (p. 207).

A mesma prática feminina de esconder e transportar o arroz nos cabelos é referida a propósito de escravas do Suriname que “fugiam das plantações de açúcar para a liberdade” (p. 207), difundindo assim, nos vários territórios que iam ocupando, a planta e a sua cultura, situação que não se limita à América do Sul, mas se estende igualmente às regiões do norte do continente americano.

[Estes] relatos fornecem uma contra-narrativa do relato dominante que atribui a história do arroz nos territórios americanos à acção europeia. As lendas dos escravos fugitivos confirmam o papel africano na introdução e manutenção do arroz […] e o papel das mulheres na cultura do arroz em toda a diáspora africana (pp. 207-208),

pondo igualmente em evidência não só o cultivo do cereal pelos escravos nos seus campos de subsistência cedidos pelos regimes de plantação, mas também o seu papel relevante na adaptação, manutenção e experimentação de plantas alimentares africanas, que contribuíram para a preservação da identidade cultural africana nas Américas.

Também o papel das mulheres africanas na orizicultura americana, situação herdada da própria realidade africana, onde as mulheres estavam profundamente envolvidas, possuindo conhecimentos específicos quanto à fertilidade dos solos, à seleção das sementes, às técnicas da sementeira, colheita e processamento do arroz, é amplamente analisado por Judith Carney (pp. 151-192). A autora põe em evidência o facto de os principais aspetos da cultura do arroz integrarem sistemas de conhecimento especializados, que pertenciam às mulheres escravas africanas, e que diziam respeito à produção, mas também ao processamento do cereal. É o caso do uso da enxada (pp. 152-154), principal ferramenta agrícola em toda a região do arroz na África Ocidental e das práticas complexas de descasque do arroz africano, Oriza glaberrima, que se baseavam, exclusivamente até à revolução americana e ao surgimento da maquinaria, num único método: o almofariz e o pilão africanos manuseados igualmente no feminino africano (p. 123). Só em meados do século XVIII, quando os aparelhos mecânicos destinados ao descasque, que partiam o grão do arroz africano, “entraram em uso […], as vantagens do Oriza sativa sobre o Oriza glaberrima tornaram-se evidentes para a selecção das sementes” (p. 195).

[Se] durante as gerações pioneiras da escravatura na Carolina do Sul, o sistema de conhecimentos africanos baseados no género produziu uma forma mitigada de trabalho [que permitiu] à competência negra […] adquirir um pequeno espaço de negociação quando a economia do arroz era ainda incipiente […], à medida que o comércio do arroz se globalizava […] os ganhos da experiência negra desapareceram com o peso do trabalho imposto pelo descasque. […] Em meados do século XVIII, as plantações de arroz tornaram-se cada vez mais semelhantes às do açúcar, impondo exigências brutais à mão de obra [….]. As palavras “arroz preto” descrevem adequadamente a sua luta de resistência à escravidão a par da enormidade do trabalho que eram obrigados a enfrentar como acto de sobrevivência (p. 192).

Conhecimento e contribuição africana para a construção das Américas constituem os temas centrais do último capítulo, intitulado “Legados”, que a autora organiza, associado a um posfácio, como uma conclusão do seu estudo, e cujos conteúdos se desenvolvem em torno de três questões essenciais:

O avanço do conhecimento, nos séculos XX e XXI, relativo à origem do arroz africano nas Américas, à transferência da planta a partir da África Ocidental através da bacia do Atlântico no quadro do comércio negreiro e utilizando os cabelos das mulheres escravas como “celeiro”. Esse conhecimento atual resulta de debates e de estudos que se foram multiplicando e alargando aos mais diversos sectores disciplinares – da botânica e da geografia à história, antropologia, linguística, arqueologia, literatura, genética, arte –, que permitiram a incorporação, de modo inovador, de metodologias diferenciadas e do recurso sistemático a documentos de natureza diversa, como as obras de arte, os vestígios arqueológicos e da paisagem, as fontes orais, iconográficas e arquivísticas, a cultura material.

Os contributos africanos essenciais à construção das Américas, em torno do arroz africano, da sua difusão nos espaços americanos, reconhecendo as realizações dos escravos, homens e sobretudo mulheres, na introdução, adaptação, tecnologias, sistemas de conhecimentos e de trabalho, que permitiram o desenvolvimento das culturas de plantação americanas, o sucesso do arroz como cultura de exportação, tornando-se a primeira mercadoria alimentar negociada a nível mundial. Mas esse contributo é mais vasto, estende-se a outras plantas e às suas técnicas de cultivo e de preparação, bem como à dimensão linguística, pois não tendo palavras nas suas próprias línguas para designar plantas e culinárias atribuídas aos escravos, as sociedades de plantação utilizaram e fixaram os nomes usados por quem as produzia.

O regresso a África dos escravos libertados após a abolição da escravatura, visando objetivos comerciais e religiosos, põe em evidência um fenómeno de retorno que acompanhou os afro-americanos no seu percurso atlântico de volta às origens, desde os anos 20 do século XIX: o arroz africano, Oriza glaberrima – sementes e ferramentas –, faz então uma viagem de regresso às suas terras originárias, para aí permitir que:

os negros libertos da diáspora africana [possam] contribuir para um objectivo abolicionista: a criação de comunidades agrícolas na Serra Leoa [como também na Libéria] orientadas para a exportação. Os abolicionistas acreditavam que as colónias agrícolas, por eles patrocinadas, acabariam por enfraquecer a instituição da escravatura americana (p. 228).

Fechava-se assim o ciclo do arroz na bacia do Atlântico com a transferência do arroz africano, agora americano, para a África Ocidental, através dos escravos africanos libertos e dos missionários cristãos que os acompanhavam para a propagação do cristianismo numa África em vias de sofrer a colonização e o colonialismo europeus do século XX.

 

 

Isabel Castro Henriques

Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina (CESA), isabelc.henriques@sapo.pt

 

 

Nota

[1]  Edição original: Black Rice. The African Origins of Rice Cultivation in the Americas. Cambridge, MA, & Londres: Harvard University Press, 2001.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons