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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.36 Lisboa dez. 2018

 

DOSSIÊ

 

Introdução

 

 

João Feijó

Observatório do Meio Rural Rua Faustino Vanombe, 81, 1º andar, Maputo, Moçambique, joaofeijo@hotmail.com

 

Ao longo da última década vem florescendo um conjunto de literatura sobre os designados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, a que mais tarde se juntou a África do Sul), as cinco economias emergentes que se destacam pela rápida industrialização e pela crescente influência a nível regional e internacional. Representando aproximadamente 40% da população mundial e 20% do produto bruto mundial, os BRICS têm sido alvo de um amplo leque de reflexões e análises. Na sua relação com o continente africano em geral ou com Moçambique em particular, o discurso sobre os BRICS vem-se estruturando em torno de dois polos tendencialmente opostos: por um lado, como uma forma de cooperação Sul-Sul, como uma alternativa a formas neocolonialistas de exploração ou como um modelo alternativo de desenvolvimento para o continente africano; por outro, diversas organizações da sociedade civil têm alimentado um conjunto de preocupações sobre o impacto dos investimentos económicos, quer ao nível ambiental, da segurança no trabalho ou do reassentamento de populações, assim como do secretismo das relações com países africanos, realizando-se críticas a aspetos relacionados com a governação ou a defesa dos direitos humanos.

Em Moçambique, a relação histórica com os chamados países emergentes tem sido distinta. Ainda que remonte ao período colonial, a presença indiana ganhou destaque no sector extrativo e energético, com grandes investimentos em curso nas províncias do centro e norte do país. De uma relação assente na cooperação política, militar e socioeconómica, as relações com a China evoluíram para um carácter predominantemente comercial, assumindo-se o país asiático como um importante parceiro, com forte presença nos sectores da construção e florestal, frequentemente caracterizado por relações laborais conflituais. Na última década, a China assumiu-se como um importante parceiro de financiamento para Moçambique, possibilitando a construção de diversas infraestruturas públicas. Da mesma forma, se até à década de 1980 as relações económicas e políticas com a União Soviética conheceram uma importante vitalidade, as relações arrefeceram com a liberalização da economia moçambicana e com o desmantelamento do bloco de Leste. A comunicação social reporta, contudo, o interesse de delegações económicas e diplomáticas russas no investimento em sectores como o energético, extrativo ou das pescas. As relações diplomáticas do Brasil com Moçambique adquiriram vitalidade ao longo deste milénio, sendo acompanhada por um aumento do investimento brasileiro em sectores como a mineração, a construção, a educação, aumentando o interesse pelo agronegócio.

Grande parte da literatura disponível é particularmente ecoada por uma comunicação social sensacionalista ou por uma sociedade civil moçambicana frequentemente financiada por agências de desenvolvimento ocidentais. Nestas análises, os empregadores e agentes estrangeiros aparecem frequentemente silenciados, carecendo a realização de estudos que reflitam sobre os respetivos modelos de atuação em Moçambique, assim como perspetivas e representações sociais.

Neste número dos Cadernos de Estudos Africanos reúnem-se seis artigos que abordam a problemática do relacionamento de Moçambique com os BRICS, ao nível do sector financeiro, da saúde, da educação e militar, demonstrando que as formas de relacionamento destes países com Moçambique são não só diferentes das de outros doadores “tradicionais”, mas também são bastante heterogéneas entre si.

No primeiro artigo, Sérgio Chichava e Fernanda Massarongo refletem sobre a estrutura, impacto e significado da dívida moçambicana para com os BRICS ao longo da última década. Os autores apontam como a China se assumiu como o grande credor de Moçambique entre os BRICS. Os autores demonstram que, da dívida aos BRICS, mais de 50% constituíram empréstimos não concessionais, portanto com maturidade mais reduzida e/ou taxas de juro próximas das comerciais, traduzindo-se, a curto e médio prazo, num serviço de dívida elevado. Os autores constatam uma relação entre o financiamento e a necessidade de exportação de serviços dos BRICS para Moçambique, limitando o efeito multiplicador da dívida sobre a economia do país, uma vez que grande parte do financiamento retorna ao país de origem através do fluxo de transferências para o estrangeiro. Os autores sustentam que estas dinâmicas apresentam o risco de, a médio e longo prazo, limitarem a capacidade de o país cumprir com o serviço da dívida.

No segundo artigo, Tom de Bruyn analisa a influência das economias emergentes ao nível da cooperação no sector da saúde com Moçambique, considerado um dos mais importantes parceiros da cooperação internacional. O estudo demonstra que, apesar da atenção conferida em alguns círculos políticos e académicos internacionais ao crescente papel dos BRICS ao nível da assistência à saúde, a presença da cooperação chinesa, indiana e sul-africana ainda é, em Moçambique, relativamente limitada. Mesmo a cooperação brasileira, que assume um carácter crescente e substancial, não é comparável à do apoio material dos doadores tradicionais. O estudo revela a existência de diferentes práticas e abordagens entre os BRICS sobre a saúde, com o Brasil a promover uma cooperação estrutural, combinando recursos humanos, assistência para o desenvolvimento de capacidades organizacionais e institucionais e desenvolvimento da produção farmacêutica. Já a abordagem chinesa é centrada no apoio em infraestruturas e equipamentos, juntamente com apoio clínico através do desenvolvimento de recursos humanos. Por sua vez, a cooperação indiana está mais envolvida no sector privado, destacando-se a importação de medicamentos genéricos. O autor destaca o défice de comunicação entre os doadores tradicionais e emergentes, sugerindo uma maior coordenação, cooperação e partilha de informações entre doadores tradicionais, potências emergentes e os restantes atores do desenvolvimento, governamentais e não governamentais.

No terceiro artigo, Edorta Camino-Esturo analisa a mobilidade internacional de estudantes em Moçambique e nos BRICS. A autora demonstra que Moçambique se apresenta como um país com um saldo de mobilidade tradicionalmente exportador de estudantes, ainda que registe um aumento do número de estudantes estrangeiros recebidos. Os estudantes moçambicanos mantêm a tendência de escolha de universidades em países de língua oficial portuguesa, sobretudo em Portugal e no Brasil, embora a África do Sul constitua um destino regular, em virtude da proximidade geográfica. A autora demonstra que o Brasil e a Índia expandem a sua atratividade.

Usando uma abordagem qualitativa, assente em entrevistas e observação no terreno, no quarto artigo Sara Morais debruça-se sobre a cooperação Brasil-Moçambique na área da educação, e respetivo impacto no processo de diferenciação social em Moçambique. As oportunidades oferecidas a estudantes moçambicanos de obtenção de diplomas e de experiências culturais no Brasil (um país que, por intermédio das telenovelas da Globo transmite para os PALOP imagens de modernidade) são posteriormente convertidas em oportunidades de trabalho e de emprego em Moçambique. As experiências de ensino no Brasil constituem em Moçambique uma fonte de prestígio, possibilitando a formação e consolidação de elites moçambicanas e reproduzindo estruturas hierárquicas e práticas sociais, em continuidade com o modelo colonial.

No quinto artigo, Luca Bussotti e Ernesto Macamo analisam a cooperação bilateral Brasil-Moçambique, conferindo um enfoque especial à área da defesa. Depois de contextualizar as dificuldades da diplomacia brasileira com Moçambique ao longo do último quartel do século XX, os autores analisam o processo de abertura concretizado durante o governo de Lula da Silva, acompanhado pelo interesse do capital brasileiro ao nível de recursos energéticos, agronegócio e construção de obras públicas. Os autores analisam o processo de cooperação ao nível da defesa, num período de crescimento da tensão político-militar em Moçambique, assim como de instabilidade social, demonstrando que a cooperação se concentrou, essencialmente, na formação de quadros, mas também no fornecimento de algum equipamento militar.

No sexto artigo, João Feijó concentra-se nas estratégias de gestão de empresas chinesas na diáspora, frequentemente representadas, em Moçambique, de forma enigmática. A partir da leitura de um conjunto de análises culturalistas, cruzada com diversos dados recolhidos em Maputo, o autor constata a existência de generalizações abusivas sobre as práticas de gestão chinesas, assim como o risco de essencialismo nestas abordagens.

Finalmente, João Mosca apresenta uma recensão crítica[1] sobre a obra coletiva Mozambique and Brazil. Forging New Partnerships or Developing Dependence?, coordenada por Chris Alden, Sérgio Chichava e Ana Cristina Alves, editada em 2017 na África do Sul.

 

 

Nota

[1] N. E.: Ver secção Recensões, pp. 245-246.

 

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