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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.35 Lisboa jan. 2018

https://doi.org/10.4000/cea.2505 

DOSSIÊ

 

Os Debates da Organização das Nações Unidas sobre a Questão Colonial Portuguesa e o Desenvolvimento da Ideia de Autodeterminação (1961-1975)

 

The United Nations debate regarding Portuguese colonial issue and the development of the idea of self-determination (1961-1975)

 

 

Aurora Almada e Santos

Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa, Portugal, auroraalmada@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este texto pretende abordar o relacionamento entre a Organização das Nações Unidas e o governo português no período entre 1961 e 1975, particularmente os debates sobre a questão colonial portuguesa. A autodeterminação foi inscrita na Carta das Nações Unidas de forma genérica e indeterminada, e desapegada das determinações dos territórios dependentes. Num longo processo de institucionalização, a autodeterminação passou gradualmente a significar o direito de os povos colonizados determinarem livremente o seu destino. As Nações Unidas pretendiam que Portugal implementasse o conceito “onusiano” de autodeterminação nos seus territórios colonizados. A análise continuada da questão colonial portuguesa influenciou o debate sobre a autodeterminação, obrigando a Organização das Nações Unidas a introduzir precisões no conceito, que nunca perdeu o seu carácter controverso.

Palavras-chave: Organização das Nações Unidas, questão colonial portuguesa, ideias, autodeterminação, independência, movimentos de libertação nacional


ABSTRACT

This text intends to approach the relationship between the United Nations and Portuguese government in the period between 1961 and 1975, in particular the debates regarding the Portuguese colonial issue. Self-determination was inscribed in the United Nations Charter as a generic and undefined concept, detached from the dispositions of dependent territories. Due to a long process of institutionalization, the idea gradually became the right of the colonized peoples to freely determine their own destiny. The United Nations intended that Portugal implement the concept of self-determination adopted by the organization to its colonized territories. The continuous analysis of the Portuguese colonial issue influenced the debate regarding self-determination, constraining the United Nations to introduce precisions in the idea, which nevertheless continued to have a controversial meaning.

Keywords: United Nations, Portuguese colonial issue, ideas, self-determination, independence, national liberation movements


 

 

O estudo do passado colonial europeu tem vindo a ser sujeito a ângulos de visão mutáveis, produzindo perspetivas divergentes[1]. Um momento fundamental foi a publicação em 1951 do artigo de Georges Balandier intitulado The Colonial Situation, que propunha que se analisasse a dominação colonial como uma “totalidade” e enquanto processo histórico específico (Cooper, 2005, p. 4). Nas décadas de 1950 e 1960, não obstante o interesse suscitado entre estudiosos e intelectuais, o colonialismo não foi objeto de estudos que averiguassem as relações de poder que lhe eram subjacentes ou os seus significados sociais, económicos, políticos e culturais. As principais preocupações dos autores foram as questões da modernização, urbanização e industrialização das sociedades colonizadas, sendo que alguns optaram por tratar a colonização do ponto de vista psicológico ou psicanalítico (Cooper, 2005, pp. 41-43). Nos momentos seguintes, designadamente nos anos 70 e inícios da década de 1980, os estudos sobre a situação colonial centraram-se na história económica, com um enfoque particular nas relações dos territórios colonizados com o capitalismo europeu. Em simultâneo, com a publicação em 1978 por Edward Said da obra Orientalism, que demonstrou como elementos da sociedade asiática penetraram na literatura europeia, os estudos coloniais foram direcionados para as interações entre as metrópoles e as colónias, bem como entre os colonizadores e os colonizados (Rothermund, 2006, p. 31).

A partir da década de 1980, assistiu-se a um alargamento dos estudos coloniais, para o que muito contribuiu a influência de disciplinas como a Antropologia (Cooper, 2005, pp. 48-49). Havendo uma grande influência de Michel Foucault, os estudiosos passaram a discutir sobretudo o significado do poder no mundo colonial. Outro dos temas centrais prendia-se com o que havia de “colonial” nas sociedades colonizadas, apontando-se para a importância da reprodução social (Cooper, 2005, p. 49). Com a influência dos Subaltern Studies, a complexidade e a mútua influência entre a implementação das decisões metropolitanas e a resistência dos povos colonizados foram igualmente valorizadas. Tendo em consideração os debates gerados pelos Subaltern Studies, os estudos coloniais ganharam uma renovada vitalidade, sendo que o anterior foco na estrutura política das sociedades colonizadas e nos impérios económicos foi desviado para as conceções culturais da política, com a ideia de modernidade a ocupar o centro das atenções (Cooper, 2005, p. 50).

As análises sobre a ascensão dos territórios coloniais à condição de Estados soberanos têm de certa forma refletido o percurso associado ao exame dos impérios europeus. Quando o termo “descolonização” foi elaborado na década de 1930 pretendia-se que fosse utilizado como um conceito amplo para caracterizar a dissolução dos impérios coloniais (Rothermund, 2006, p. 1). Quer o termo tenha ou não sido aplicado segundo o desejado, o processo de descolonização ocorrido após a II Guerra Mundial tem suscitado grande atenção, produzindo interpretações que atravessam as fronteiras disciplinares. De acordo com alguns estudos, a descolonização terá sido uma iniciativa das potências coloniais, sendo atribuída uma menor importância à ação dos povos colonizados (Rothermund, 2006, pp. 21-23). Outros equacionam o ponto de vista designado como “excêntrico”, que consiste na afirmação de que as colónias não aceitaram passivamente as decisões das metrópoles, mas terão modelado o impacto imperial e a descolonização (Rothermund, 2006, pp. 23-24). Ao metropolitismo e, de certa forma, ao excentrismo tem-se oposto a perspetiva que valoriza os contextos, seja económico, social ou de outro tipo, dos territórios colonizados. Os contributos dos Subaltern Studies e dos estudos pós-coloniais têm igualmente adicionado novas dimensões à história da descolonização, seja através da análise das vozes das classes baixas como pela procura da identidade submergida pelo impacto colonial (Rothermund, 2006, pp. 30-32).

Todas essas abordagens apresentam limitações e, embora a importância das forças estruturais seja amplamente reconhecida, outras explicações têm sublinhado que a descolonização foi promovida pela ascensão de ideias anticoloniais (Jackson, 1993, p. 114). De acordo com essa abordagem, a descolonização europeia é descrita como tendo sido desencadeada não somente por transformações económicas, políticas ou geoestratégicas, mas também por uma mutação nas ideias relativas à dominação colonial (Goldstein & Keohane, 1993, p. 3; Emmerij, Jolly & Weiss, 2009, p. 7). Gerando uma grande controvérsia, essas interpretações entendem o conceito de ideias enquanto crenças comuns partilhadas por indivíduos, governos e organizações, que podem explicar resultados políticos (Emmerij et al., 2009, p. 38). As ideias são consideradas como resultantes de um processo promovido por grupos, através de pesquisas, debates ou de tentativas para as transformar em práticas políticas (Emmerij et al., 2009, p. 38). São apresentadas como tendo capacidade para formatar indivíduos, Estados e instituições, tornando-se numa motivação para a mudança quando assumem a forma de opiniões mundiais. Embora existam diferentes tipos de classificações, segundo esta abordagem as ideias normativas ou principled beliefs, que estabelecem a distinção entre o certo e o errado, o justo e o injusto, foram responsáveis por uma mutação em que o colonialismo tornou-se objeto de disputa, perdendo a sua justificação moral (Emmerij et al., 2009, p. 9). Neste sentido, tem-se vincado que os paradigmas usados na legitimação do colonialismo foram substituídos por uma outra ideia: a da autodeterminação (Emmerij et al., 2009, p. 9).

A ascensão das ideias anticoloniais não foi porém imediata nem linear, desenvolvendo-se por meio da consolidação de uma tendência que vinha de trás e que segundo alguns autores produziu uma “revolução na soberania” (Philpott, 2001, p. 4). Subjacente a essa revolução terão estado mudanças ocorridas nas conceções sobre justiça e autoridade política, que desafiaram a legitimidade imperial, originando protestos, revoltas e guerras. De acordo com esta interpretação, as críticas à dominação colonial surgiram por via da promoção do nacionalismo anticolonial e da defesa da igualdade racial por parte de intelectuais, ativistas, estudantes ou movimentos anticolonialistas nos territórios colonizados, bem como por organizações internacionais, atores não estatais ou grupos de cidadãos nas metrópoles e em países como os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) (Philpott, 2001, p. 161). Tornando mais difícil a manutenção das colónias, a dimensão segundo a qual os decisores políticos, os partidos ou a opinião pública nas metrópoles foram influenciados pelas ideias anticoloniais tem sido utilizada para explicar os diferentes padrões de descolonização (Philpott, 2001, p. 164).

Considerada como uma fonte de ideias e conceitos que influenciaram o discurso internacional sobre a dominação colonial, a Organização das Nações Unidas (ONU) desde a sua fundação esteve envolvida no processo de descolonização, tendo estado sujeita a inúmeras pressões, designadamente dos Estados-membros e de outros atores (Emmerij et al., 2009, 2005). O significado atribuído à participação da ONU na descolonização deriva do facto de lhe ser reconhecido o desempenho de um ideational role, que lhe permite compreender e resolver problemas coletivos através da formulação de normas e recomendações políticas (Weiss & Thakur, 2010, p. 28). Com base no seu papel na institucionalização de ideias, as Nações Unidas são apresentadas como uma arena onde teve lugar a consolidação de uma nova compreensão do estatuto dos territórios colonizados, permitindo que as principled beliefs produzissem uma mutação nos paradigmas que legitimavam o colonialismo (Philpott, 2001). Tendo tido resultados distintos, as decisões das Nações Unidas sobre a dominação colonial têm sido interpretadas como um contributo para uma mudança normativa, estabelecendo gradualmente a associação entre a ideia de autodeterminação e o destino dos povos colonizados (Luard, 1989).

Em particular, alguns estudos têm demonstrado que a controvérsia entre a ONU e a África do Sul sobre o estatuto da Namíbia foi decisiva para a mutação nas atitudes e práticas relativas à autodeterminação (Crawford, 2002, p. 294). A mesma ligação não tem no entanto sido estabelecida entre a questão colonial portuguesa e o ideational role das Nações Unidas quanto à ideia de autodeterminação. Dada a existência dessa lacuna, este texto pretende demonstrar que as tentativas da ONU para implementar a ideia de autodeterminação nas colónias portuguesas entre 1961 e 1975 devem ser entendidas como uma etapa do processo de mudança normativa, promovendo a deslegitimação da dominação colonial. Como os debates sobre a política colonial portuguesa constituíram um exemplo das contradições e complexidades relacionadas com o envolvimento da ONU na descolonização, é nossa intenção argumentar que foram responsáveis por uma evolução – longa e bastante controversa – do conceito “onusiano” de autodeterminação.

 

A ONU e a ideia de autodeterminação

Assumindo diferentes formas e significados, a ideia de autodeterminação foi concebida antes da criação da ONU. Tendo estado relacionada com o desenvolvimento do liberalismo e do nacionalismo e com acontecimentos como a independência dos EUA ou a Revolução Francesa, o conceito de autodeterminação foi usado por representantes de diferentes filiações ideológicas (Cassese, 1995, p. 26). Lenine foi o primeiro a apresentá-lo a nível internacional, defendendo a sua implementação nos acordos de paz após a I Guerra Mundial (Manela, 2007, p. 37). Recomendando a sua aplicação unicamente aos territórios europeus, Woodrow Wilson acrescentou um outro significado à ideia de autodeterminação, tornando-a num slogan retórico (Cassese, 1995, pp. 19-23). Com as expectativas geradas pelo conceito wilsoniano, a autodeterminação foi considerada de forma precipitada pelos nacionalistas anticoloniais, nomeadamente no Egito, na China ou na Coreia, como argumento para a dissolução dos impérios coloniais (Manela, 2007, pp. 8-9). Tornando-se num dos mais conhecidos princípios do período entre guerras, a ideia de autodeterminação foi introduzida na Carta do Atlântico em 1941 enquanto elemento que deveria orientar as mudanças territoriais, o estabelecimento de governos democráticos e a restauração dos direitos no final da II Guerra Mundial (Manela, 2007, p. 39).

Uma vez que as potências coloniais tentaram evitar que a autodeterminação fosse considerada enquanto obrigação a ser aplicada aos territórios dependentes, foi devido às pressões da URSS que as referências ao conceito foram introduzidas na Carta das Nações Unidas (Cassese, 1995, p. 38). Com a sua presença nos artigos 1.º (§ 2.º) e 55.º, as Nações Unidas promoveram a ascensão da autodeterminação enquanto conceito legal, embora não tivesse um significado definido (Santos, 2014, p. 68). A formulação presente na Carta pretendia unicamente o desenvolvimento de relações pacíficas e amigáveis entre os países e o respeito pela não interferência nos assuntos internos dos Estados (Conforti & Focarelli, 2010, p. 370). Sem ter sido estabelecida a ligação entre a autodeterminação e a situação dos povos dependentes, a ambiguidade da Carta, não obstante o facto de as formas mais violentas de colonialismo terem sido rejeitadas, destinava-se à defesa dos interesses das potências coloniais (Mazower, 2012, pp. 16-17). Reconhecendo o paternalismo colonial, a ONU estabeleceu a distinção entre os territórios não autónomos, que deveriam ser preparados para o autogoverno, e os territórios sob tutela, que estariam intitulados à independência. Pretendendo que as potências coloniais transmitissem informações técnicas e estatísticas sobre as condições económicas, sociais e educacionais nos territórios não autónomos, a Carta somente estabeleceu mecanismos de supervisão internacional das ações das potências coloniais no caso das possessões abrangidas pelo sistema de tutela (Hill & Keller, 2010, pp. XII-XIII).

Embora seja aceitável considerar que algumas disposições da Carta representavam um compromisso com as prerrogativas das potências coloniais, os pedidos para a preparação dos territórios não autónomos para o autogoverno e dos territórios sob tutela para a independência tiveram um grande alcance (Ziring, Riggs & Plano, 2005, p. 381). Através de uma evolução empírica, a solicitação de informações técnicas e estatísticas e a supervisão do sistema de tutela acabaram por legitimar as aspirações dos povos colonizados (Mazower, 2009, p. 25). Com o desenvolvimento de interpretações evolutivas da Carta ocorreu um processo de institucionalização, de forma lenta e sujeita a inúmeras contradições, da ideia de autodeterminação (Santos, 2014, p. 66). Devido às disputas entre os Estados-membros, a autodeterminação foi uma das questões mais controversas nas Nações Unidas, sendo relacionada com os conceitos de soberania e democracia (Burke, 2010, p. 39; Normand & Zaidi, 2008, p. 212). O principal mecanismo para o desenvolvimento da ideia de autodeterminação foi a sua associação aos direitos humanos, que gradualmente tornaram-se dominantes na ONU (Burke, 2010, p. 5).

Aquando da admissão de Portugal, que teve lugar em 1955, as Nações Unidas estavam a desenvolver tentativas para submeter os territórios não autónomos, à semelhança dos do sistema de tutela, à supervisão internacional. A recusa de Portugal, juntamente com a da Espanha, em corresponder aos pedidos de informações técnicas e estatísticas sobre as colónias obrigou a ONU a clarificar alguns aspetos da Carta, tornando-se em mais um impulso para a institucionalização da ideia de autodeterminação (Santos, 2014, p. 115). Como Portugal afirmava não ter colónias, em dezembro de 1960 a Assembleia Geral apresentou, na resolução 1541 (XV), uma definição do conceito de territórios não autónomos, enfatizando as diferenças geográficas, étnicas e culturais em relação às potências coloniais e a subordinação administrativa, jurídica, económica ou histórica (United Nations, 1960b). Estabelecendo uma equivalência entre territórios não autónomos e dependências coloniais, a resolução afirmou que todos os povos podiam escolher livremente o autogoverno, que seria alcançado através da independência, da associação ou da integração num outro Estado (United Nations, 1960b). Para atribuir uma dimensão mais concreta a essas afirmações, a Assembleia Geral também aprovou, através da resolução 1542 (XV), uma lista de territórios não autónomos, na qual todas as colónias portuguesas foram mencionadas (United Nations, 1960c).

A XV Assembleia Geral adotou ainda a resolução 1514 (XV), que continha a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais. Acrescentando uma nova atualidade à relação entre a ideia de autodeterminação e os direitos humanos, a resolução 1514 (XV) tornou-se num elemento central do contributo das Nações Unidas para o processo normativo de deslegitimação do colonialismo. Com a adoção da Declaração sobre a Concessão da Independência, que insistiu na dimensão anticolonial e integrou elementos presentes nas resoluções que vinham sendo adotadas pela ONU, todos os povos colonizados passaram a estar intitulados à autodeterminação (United Nations, 1960a). Reconhecendo a legitimidade de os povos colonizados disporem livremente do seu destino, foi indicado que quaisquer obstáculos à autodeterminação seriam inaceitáveis e que as fronteiras herdadas das potências coloniais deveriam ser respeitadas (United Nations, 1960a). Dado que foi estabelecido o direito de os povos gerirem os recursos naturais pertencentes aos seus territórios, a vertente económica da autodeterminação foi igualmente valorizada. Sendo um exemplo do envolvimento das Nações Unidas na codificação do direito internacional público, a ideia de autodeterminação adquiriu um significado mais preciso, embora continuasse a ser identificada com uma grande variedade de situações (Conforti & Focarelli, 2010, p. 370).

De acordo com a nova formulação da ideia de autodeterminação, mesmo que na resolução 1514 (XV), como de resto na 1541 (XV), fosse estabelecido que os povos colonizados podiam escolher a associação ou a integração num outro Estado, a independência foi claramente assumida como a solução preferencial. Como resultado desenvolveu-se o entendimento de que a autodeterminação era equivalente à independência, ou seja, que deveria originar a constituição de Estados soberanos (Santos, 2014, pp. 96-100). Não obstante a definição das Nações Unidas ter recebido uma ampla aceitação, os debates relativos às questões coloniais evidenciaram diferentes abordagens sobre o significado da ideia de autodeterminação, que demonstrou ser bastante controversa. Tendo em atenção que a manutenção das colónias por Portugal não estava de acordo com a interpretação das Nações Unidas quanto à autodeterminação, com o início da guerra em Angola, em 1961, a questão colonial portuguesa foi inscrita na agenda da ONU, tornando-se numa prioridade. Os debates sobre a política colonial portuguesa experimentaram mudanças significativas nos temas analisados, com avanços e recuos indicativos de que os esforços das Nações Unidas não foram lineares (Santos, 2014, p. 118).

 

A questão colonial portuguesa e a ideia de autodeterminação

Dada a complexidade da ação das Nações Unidas, podem ser definidos diferentes momentos no processo em que os debates sobre a questão colonial portuguesa influenciaram o desenvolvimento de novas interpretações sobre a ideia de autodeterminação (Barbier, 1974; Beller, 1970; Martins, 1995; Santos, 2014; Silva, 1995). Numa primeira etapa, entre fevereiro de 1961 e novembro de 1962, a ONU multiplicou as iniciativas relativamente à questão colonial portuguesa. Inicialmente a situação em Angola esteve em evidência, sendo debatida no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral. As restantes colónias portuguesas rapidamente também suscitaram as atenções, sendo que o caso do Estado Português da Índia, devido à invasão da União Indiana, mereceu um estudo particular. Embora aquando do primeiro debate sobre Angola e posteriormente na questão do Estado Português da Índia o Conselho de Segurança não tivesse produzido qualquer decisão, na Assembleia Geral as resoluções quase alcançaram a unanimidade dos votos (Santos, 2014, p. 177).

Tentando enfatizar a questão colonial portuguesa, acusando Portugal de violações dos direitos humanos e de ameaças à paz e à segurança internacionais, os Estados-membros das Nações Unidas, entre os quais os africanos e os asiáticos, adotaram decisões destinadas a reforçar a obrigação de o governo português transmitir as informações técnicas e estatísticas solicitadas na Carta (Organisation des Nations Unies, 1961, p. 76). Aumentando a pressão para a aplicação da Carta, o pedido de informações, que inicialmente destinava-se à promoção do autogoverno, foi contudo subordinado a um propósito diferente. O principal objetivo passou a ser a aplicação da resolução 1514 (XV), ou seja, a implementação da autodeterminação nos territórios coloniais portugueses (Santos, 2014, p. 190). Para contornar a intransigência do governo português, que não reconhecia a competência da ONU para abordar questões que considerava de jurisdição interna do Estado, foram estabelecidos o Subcomité de Angola e o Comité Especial para os Territórios sob Administração Portuguesa, que, recorrendo a procedimentos semelhantes aos aplicados para as questões de tutela, procederam à recolha de informações sobre a situação nas colónias portuguesas. Embora o processo de recolha de informações não tivesse sido linear, devido a interferências portuguesas, à influência de outros Estados ou ao comportamento dos membros de ambos os órgãos, o resultado foi desfavorável para Portugal, consistindo numa rejeição dos seus argumentos (Santos, 2014, p. 131).

As decisões respeitantes à questão colonial portuguesa demonstraram a tendência para, através da constante repetição, se confirmar sucessivamente o conceito de autodeterminação presente na Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (Santos, 2014, p. 133). Reforçando a legitimidade do conceito, os debates revelaram contudo que a mudança normativa estabelecendo a ilegitimidade do colonialismo era um processo ainda em construção. A maioria dos Estados-membros tentou fazer vingar uma interpretação minimalista da ideia de autodeterminação, indicando que deveria conduzir à independência e à transmissão do poder para representantes das colónias livremente eleitos (Santos, 2014, p. 122). Tendo uma grande influência no sistema das Nações Unidas, os países alinhados com o bloco ocidental conseguiram contudo impor em inúmeras ocasiões uma abordagem maximalista, pretendendo que a autodeterminação não era necessariamente equivalente à constituição de Estados soberanos e que teria de ser precedida por um período de preparação (Santos, 2014, p. 129). A conceção maximalista, embora não descartasse a hipótese da independência, constituía um certo retrocesso porque aceitava que as colónias pudessem continuar a ter ligações com as metrópoles, o que era algo que os minimalistas consideravam que os povos colonizados muito dificilmente escolheriam de livre vontade (Organisation des Nations Unies, 1964, pp. 18-19). Experimentando avanços e recuos nas tentativas para estabelecer a associação entre a autodeterminação e a independência, as resoluções relativas às colónias portuguesas demonstraram a tendência para se legitimar o uso da força enquanto meio para a implementação da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (Escarameia, 1993, p. 92, nota 16). Essa legitimação, que contrariava o objetivo principal das Nações Unidas de preservar a paz e a segurança internacionais, esteve em evidência nos casos do Estado Português da Índia e de São João Baptista de Ajudá, que foram integrados na União Indiana e no Daomé sem que tivesse havido protestos significativos.

Mesmo que os debates e o número de participantes tivessem diminuído, as resoluções das Nações Unidas entre finais de 1962 e o ano 1964 recorreram a uma crescente pressão. Novas preocupações foram introduzidas na análise da política colonial portuguesa, nomeadamente com a criação do programa especial de formação para os habitantes das colónias portuguesas (Santos, 2014, pp. 191-192). Foi concedida uma menor atenção às solicitações para a transmissão de informações técnicas e estatísticas, pois a aplicação da resolução 1514 (XV) tornou-se na preocupação dominante com o estabelecimento do Comité de Descolonização, que transformou-se no principal órgão dedicado ao estudo das questões coloniais (United Nations, 1962, p. 10). Com os debates a serem bastante agressivos, a maioria entendeu a situação nas colónias portuguesas como uma ameaça à paz e à segurança internacionais, solicitando a adoção de sanções. Mas, como o Conselho de Segurança não aceitou o pedido, evidenciou-se novamente as dificuldades dos países afro-asiáticos para concretizarem as suas intenções. Efetivamente, o apoio às decisões das Nações Unidas contra a política colonial portuguesa tornou-se menos óbvio, uma vez que Portugal conseguiu os votos de Estados-membros influentes, como os EUA (ANTT, p. 38). Dado o facto de algumas contradições evidenciadas anteriormente terem sido reforçadas, nomeadamente no que se refere à influência da Guerra Fria na análise da política colonial portuguesa, os órgãos das Nações Unidas aprovaram por vezes decisões contraditórias, hesitando entre uma linguagem severa e a moderação (Santos, 2014, pp. 243-244).

Sendo o período em que o significado da autodeterminação foi amplamente debatido, as intervenções demonstraram que o conceito podia ser invocado por todos, independentemente da posição de cada Estado-membro. Esta situação esteve particularmente em destaque nas conversações realizadas entre Portugal e os países africanos em 1963 sob o patrocínio do secretário-geral, U Thant. Adotando um conceito ambíguo, Portugal argumentou que a sua política estava de acordo com os princípios das Nações Unidas e que a autodeterminação consistia no consentimento das populações em relação às instituições e à forma de governação estabelecidas pelo governo (UNARMS, 1963, pp. 1-9). No seio dos países africanos surgiram divergências quanto à interpretação da ideia de autodeterminação, por alguns terem considerado que podia conduzir a mais soluções que não somente à independência, com a manutenção da ligação às potências coloniais, enquanto que outros continuaram a defender a abordagem presente na resolução 1514 (XV). Ignorando os que favoreciam outras perspetivas, o Conselho de Segurança confirmou a versão minimalista da ideia de autodeterminação enquanto sinónimo de independência, acrescentando um novo capítulo na ratificação do conceito “onusiano” (United Nations, 1963). Não obstante o facto de a confirmação se destinar a colocar fim às disputas, a reafirmação de que a autodeterminação consistia no direito de os povos disporem livremente do seu destino não impediu a persistência de ambiguidades (Santos, 2014, p. 249).

Na ausência de modificações na política colonial portuguesa, as Nações Unidas de 1965 a 1967 demonstraram um redobrado empenho na condenação de Portugal. A ação da ONU representou um aumento da pressão e as suas iniciativas foram alargadas, nomeadamente com a análise de questões como as atividades e os interesses económicos estrangeiros que impediam a aplicação da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais nas colónias portuguesas ou a resposta das instituições internacionais, incluindo as agências especializadas, às decisões adotadas quanto a Portugal. A renovação das pressões poderá ser atribuída a inúmeros fatores, designadamente ao agravamento da situação nas colónias portuguesas em resultado do início da guerra em Moçambique, às queixas apresentadas contra o governo português pela violação da integridade territorial de países africanos, à declaração unilateral da independência da Rodésia do Sul e ao desencadear da luta armada no Sudoeste Africano (Santos, 2014, pp. 293-294). Essas circunstâncias, e em particular as duas últimas, suscitaram o descontentamento dos países africanos, que conseguiram que as decisões da ONU traduzissem a violência dos argumentos apresentados nos debates. Nas resoluções da Assembleia Geral, o reconhecimento da legitimidade da luta armada, os apelos a embargos e sanções, bem como os pedidos para o aumento da assistência às vítimas do colonialismo português tornaram-se recorrentes[2]. Dado o alcance de algumas decisões, o radicalismo alienou parte dos Estados-membros, pelo que as resoluções não foram aprovadas por maiorias tão expressivas quanto anteriormente.

Reforçando os pedidos de independência das colónias portuguesas, as Nações Unidas revelaram a tendência para considerar a ideia de autodeterminação como um dos princípios predominantes do direito internacional. Como resultado, a autodeterminação suplantou a proibição do uso da força, que era um dos elementos centrais do sistema das Nações Unidas (Escarameia, 1993, p. 92, nota 16). Legitimou-se a ação armada como forma de implementação da autodeterminação e a sua não aplicação pelas potências coloniais foi equiparada a um crime contra a humanidade (United Nations, 1966, p. 8). Continuando com a associação aos direitos humanos, foi reconhecida uma identificação entre a autodeterminação e a noção de liberdade, sendo esta entendida como a cessação de todas as ligações com as potências coloniais. Representando um alargamento da interpretação adotada na resolução 1514 (XV), a dimensão económica da autodeterminação continuou a ser definida enquanto soberania sobre os recursos naturais e foi relacionada com o direito ao desenvolvimento que estava em fase de estruturação (Santos, 2014, p. 307). Sendo uma decisão que teria desenvolvimentos nos anos seguintes, a ONU começou a estabelecer a conexão entre a ideia de autodeterminação e a definição de um estatuto para os movimentos de libertação, reconhecidos como intermediários na receção da assistência para as populações das colónias portuguesas (Santos, 2014, p. 292).

Com os constantes apelos efetuados pela maioria para a aplicação de novos métodos contra Portugal – como por exemplo a definição de uma data limite para a independência das colónias ou a expulsão do governo português da ONU –, no período de 1968-1970 as resoluções das Nações Unidas apresentaram no entanto um carácter moderado. Os apelos a embargos e sanções, bem como outras afirmações controversas, estiveram ausentes das decisões (Organisation des Nations Unies, 1968a, pp. 2-3). Esta situação verificou-se sobretudo ao nível da Assembleia Geral, pois o Comité de Descolonização manteve no essencial a posição de radicalismo outrora assumida, enquanto o Conselho de Segurança começou a demonstrar a predisposição para adotar medidas mais duras contra Portugal. A moderação da Assembleia Geral poderá ser explicada por diversas razões, designadamente pelas expectativas suscitadas com a substituição de António Oliveira Salazar por Marcelo Caetano enquanto presidente do Conselho de Ministros, pelo desejo de obter um apoio unânime na condenação da política colonial portuguesa e pela secundarização da questão devido à análise conjunta com os restantes itens da agenda referentes à África Austral (Santos, 2014, p. 362). Demonstrando a flexibilidade da abordagem das Nações Unidas, a diminuição das pressões foi parcialmente bem-sucedida na medida em que as resoluções foram adotadas novamente quase por unanimidade. Ainda assim, o principal objetivo, que era persuadir o governo português a renunciar à sua política colonial, não foi atingido dado que Marcelo Caetano não efetuou qualquer alteração na posição assumida por Salazar (Castilho, 2012, pp. 432-433).

Embora empregando uma linguagem menos violenta, as decisões das Nações Unidas introduziram novos desenvolvimentos na ideia de autodeterminação, tanto mais que em 1970 foram aprovados o Programa de Ação para a Implementação da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais e a Declaração de Princípios do Direito Internacional sobre as Relações Amigáveis e a Cooperação entre os Estados. Por intermédio desses documentos, a ideia de autodeterminação foi alargada, produzindo-se o amadurecimento do conceito[3]. Avançando-se com a renovação da legitimidade do uso da força, foi reconhecido o direito de os povos colonizados recorrerem “a todos os meios necessários” para a luta contra a dominação colonial (United Nations, 1970). Reafirmando-se o carácter universal que se pretendia imprimir à ideia de autodeterminação, rejeitou-se que a dimensão territorial, o isolamento geográfico ou a limitação de recursos pudessem ser considerados como argumentos para se negar o seu exercício (United Nations, 1970). Insistindo-se na liberdade de escolha foi vincado que, além da independência, a integração, a associação ou qualquer outro estatuto político livremente escolhido pelas populações poderiam ser considerados como resultados válidos da autodeterminação, o que representou uma extensão da resolução 1514 (XV). Com a ligação ao Direito Internacional Humanitário, uma vez que se pretendia a aplicação aos guerrilheiros da Convenção de Genebra Relativa ao Tratamento de Prisioneiros de Guerra (1949), a ideia de autodeterminação promoveu um novo estatuto internacional para os movimentos de libertação. Anteriormente considerados como intermediários das populações, os movimentos de libertação obtiveram o reconhecimento enquanto uma das partes em conflito e as Nações Unidas legitimaram o apoio às suas reivindicações e ações (Organisation des Nations Unies, 1968b, p. 2).

Mais avanços na ideia de autodeterminação em resultado da análise da política colonial portuguesa verificaram-se nos anos de 1971-1974, quando a pressão das Nações Unidas sobre Portugal atingiu o nível mais elevado. O número de sessões dedicadas à questão colonial portuguesa aumentou, tendo havido o culminar do processo que vinha-se desenrolando desde 1961. As iniciativas das Nações Unidas multiplicaram-se, com a agravante de o Conselho de Segurança, que anteriormente evitara adotar medidas drásticas, ter endurecido as suas decisões[4]. As resoluções introduziram novas medidas, atribuindo aos movimentos de libertação o estatuto de observador nas Nações Unidas (United Nations, 1971). Dada a proliferação de agrupamentos anticoloniais, somente os reconhecidos pela Organização de Unidade Africana (OUA), que adotou como critérios a eficácia na luta contra Portugal e o envolvimento em ações armadas, receberam no entanto tal estatuto (Walraven, 1999). Os beneficiados foram a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que tinham um longo historial de participação em reuniões dos órgãos das Nações Unidas. Em resultado, passaram a estar presentes nos procedimentos da Assembleia Geral, a receber documentos oficiais e a obter imunidade e assistência financeira da ONU. Com o estatuto de observador a permitir que os movimentos de libertação expandissem os seus contactos internacionais, o PAIGC, após uma missão de visita do Comité de Descolonização ter confirmado a existência de áreas libertadas na Guiné, foi reconhecido como o único e legítimo representante desse território e de Cabo Verde (United Nations, 1972). Talvez por não ter sido possível enviar missões semelhantes a Angola e Moçambique, a FNLA, o MPLA e a FRELIMO foram considerados unicamente como autênticos representantes das aspirações das populações (Santos, 2014, p. 371). Com a declaração unilateral de independência pelo PAIGC em 1973, as Nações Unidas reconheceram implicitamente a existência da República da Guiné-Bissau, dando crédito ao argumento segundo o qual tratava-se de um Estado que tinha parte do seu território ocupado por forças estrangeiras (United Nations, 1973a). No mesmo sentido, a ONU rejeitou a legitimidade do governo português para representar as colónias, considerando que enquanto país Portugal encontrava-se limitado pelas fronteiras europeias, excluindo as designadas províncias ultramarinas (United Nations, 1973b).

Sublinhando a interpretação minimalista da autodeterminação, os anos finais do envolvimento das Nações Unidas na análise da questão colonial portuguesa contribuíram para a consolidação da tendência para se estabelecer o vínculo entre a ideia e o estatuto dos movimentos de libertação. Estes converteram-se em sujeitos de direito internacional, sendo-lhes reconhecida a capacidade para representar os povos colonizados, mesmo antes de obtida a independência. Revendo alguns aspetos do conceito, as decisões adotadas demonstraram a existência de variações no entendimento da ideia de autodeterminação. Assistiu-se ao desenvolvimento da tendência para se afirmar que as negociações para a independência deveriam ser conduzidas unicamente com os movimentos de libertação envolvidos na luta armada (Santos, 2014, p. 371). As resoluções das Nações Unidas legitimaram que a autodeterminação pudesse conduzir à transferência direta do poder para os movimentos, sem a realização de consultas às populações (Santos, 2014, p. 371). A anterior versão segundo a qual o poder deveria ser transmitido a representantes livremente eleitos deixou desta forma de ser considerada uma condição para a autodeterminação.

No seguimento dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, com o derrube do Estado Novo, as Nações Unidas continuaram a exercer forte pressão sobre Portugal, condicionando o processo de descolonização, que não poderá ser compreendido sem se ter em consideração a dimensão internacional (Ferreira, 1994, p. 56). Mesmo quando a ONU não esteve presente nas negociações, a sua influência fez-se sentir por intermédio de declarações produzidas sobretudo por representantes do Comité de Descolonização (Santos, 2009, pp. 95-106). As Nações Unidas atribuíram uma grande atenção aos desenvolvimentos nas colónias portuguesas, argumentando que Portugal deveria adotar medidas para assegurar a autodeterminação e a independência destes territórios (Organisation des Nations Unies, 1976, p. 8). De forma a acelerar o processo de descolonização, o secretário-geral empreendeu uma deslocação a Portugal, foi igualmente enviada uma missão de visita a Cabo Verde e realizou-se uma reunião do Comité de Descolonização em Lisboa. Além da questão da autodeterminação, entre as preocupações das Nações Unidas esteve também sempre presente a assistência económica e técnica às colónias portuguesas de forma a permitir a reconstrução dos territórios (Organisation des Nations Unies, 1976, p. 8).

Como o governo português demonstrou inicialmente uma certa hesitação no reconhecimento da aplicabilidade da autodeterminação às colónias, as Nações Unidas defenderam a descolonização total, com a preservação da unidade nacional e da integridade territorial (United Nations, 1974). No seguimento da atribuição da personalidade jurídica internacional aos movimentos de libertação em virtude do desenvolvimento da ideia de autodeterminação, a ONU indicou que os únicos representantes válidos para as negociações eram as entidades que tinha reconhecido anteriormente, mais a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e o Movimento para a Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) (Santos, 2009, pp. 105-106). Esta afirmação secundarizou as organizações que não estiveram envolvidas na luta armada e descartou outras soluções como a realização de referendos, uma vez que foi entendido que o conflito militar era, por si só, demonstrativo do desejo de independência (Organisation des Nations Unies, 1976, p. 14). Neste sentido, as declarações das Nações Unidas sobre a ideia de autodeterminação legitimaram a independência das colónias portuguesas, com a transferência do poder para os movimentos de libertação reconhecidos pela ONU, sem referendo popular. Com as decisões das Nações Unidas a funcionarem como enquadramento normativo, a descolonização portuguesa foi o resultado não somente de condicionalismos internos, mas também de uma interpretação da autodeterminação associada a uma compreensão da liberdade enquanto remoção das interferências ou constrangimentos externos (Santos, 2014, p. 372).

 

Considerações finais

Como indicado, a recusa portuguesa em implementar as decisões das Nações Unidas foi um importante fator na definição de um enquadramento mais preciso para a ideia de autodeterminação. Esta constatação permite-nos relativizar as afirmações segundo as quais a ONU foi ineficaz devido à resistência portuguesa em implementar as resoluções. Como a autodeterminação não teve uma definição precisa na Carta, os debates relativos à questão colonial portuguesa permitiram a maturação de uma interpretação “onusiana”. A confrontação com o governo português resultou numa definição minimalista do conceito, com a associação à independência e à liberdade. Gradualmente, as decisões relativas à política colonial portuguesa contribuíram para a consolidação da perceção de que a ideia de autodeterminação possuía um carácter prioritário, o que a tornou quase que num dos principais fundamentos do direito internacional. Essa presunção levou a que a não aplicação da autodeterminação fosse considerada um crime contra a humanidade e se legitimasse o uso da força como meio para a independência. Mesmo que a questão fosse controversa, a ideia de autodeterminação sancionou a assistência aos povos colonizados por intermédio dos movimentos de libertação, que foram revestidos de uma personalidade jurídica internacional. Deste modo, a questão colonial portuguesa deu um contributo para a interpretação da ideia de autodeterminação e quando esta foi implementada por Portugal em 1974-1975 a solução foi bastante diferente da prevista inicialmente pela Carta e pela Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais.

 

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Recebido: 14 de maio de 2016

Aceite: 17 de julho de 2017

 

 

Notas

[1] Este texto baseia-se na tese de doutoramento intitulada A Organização das Nações Unidas e a Questão Colonial Portuguesa (1960-1970), defendida em 2014 na Universidade Nova de Lisboa.

 

[2] Um dos exemplos encontra-se em: United Nations (1965, December 21). Resolution 2107 (XX).

 

[3] Mais informações sobre esses documentos podem ser encontradas em http://www.un.org.com

 

[4] A mudança de posição do Conselho de Segurança pode ser explicada em parte pela reação às ações portuguesas contra Estados africanos, nomeadamente a invasão da República da Guiné em 1970 para derrubar o governo de Sekou Touré e neutralizar o apoio que o PAIGC recebia desse país.

 

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