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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.34 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.4000/cea.2309 

ARTIGO ORIGINAL

 

Mia Couto e as Possibilidades Literário-Pedagógicas para a Lei n.º 10.639/03[1][2]

 

Mia Couto and the literary-pedagogical possibilities for Law no. 10639/03

 

 

Eni Alves Rodrigues

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Rua Manoel Salomé de Oliveira, 14, Guarujá, Betim, MG, CEP 32603-230 Brasil, enialro@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo pretende avaliar de que forma Mia Couto, autor de literaturas africanas de língua portuguesa, pode ser abordado na Lei n.º 10.639/2003, ou seja, no estudo da história da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e na constatação da importância do negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e políticas pertinentes à história do Brasil. Neste artigo procedeu-se à análise literária da escrita miacoutiana em consonância com as recomendações da Lei n.º 10.639/2003, mostrando a sua importante contribuição literária e pedagógica para a aplicabilidade da referida lei.

Palavras-chave: Lei n.º 10.639/2003, literatura afro-brasileira, Mia Couto-obras, propostas pedagógicas, brincriações, realismo


ABSTRACT

The paper aims to assess how Mia Couto, author of African literatures in Portuguese, can be addressed in Law no. 10.639/2003, i.e., the study of history of Africa and Africans, the struggle of black people in Brazil, the Brazilian black culture and the realization of the importance of black people in the formation of national society, rescuing the contribution of black people in the social, economic and policy relevant to the history of Brazil. In this article we proceeded to literary analysis of miacoutian written in line with the recommendations of the Law no. 10.639/2003, showing its important literary and educational contribution to the applicability of that law.

Keywords: Law no. 10.639/2003, Afro-Brazilian literature, Mia Couto-works, pedagogical proposals, brincriações, realism


 

 

A criação da Lei n.º 10.639/2003 e a literatura afro-brasileira: um breve cenário das políticas literárias brasileiras

A iniciativa das Nações Unidas que proclamou o período de 2003 a 2012 como a Década da Alfabetização, alavancou uma série de ações governamentais em todo o mundo para erradicação do analfabetismo funcional. Tal combate estaria voltado “não somente à aprendizagem inicial da leitura e da escrita, mas seus usos para a comunicação, a informação, a produção artística, a participação e a aprendizagem ao longo da vida” (Terceiro Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional, 2003, p. 3).

No Brasil tem sido adotado o tema letramento para atingir esse foco mais amplo da alfabetização. Vivemos na sociedade da informação, e esta, na maioria das vezes, encontra-se na forma escrita, portanto o primeiro pré-requisito da sociedade da informação é saber ler (ter o letramento) para ser um cidadão ativo, nesta sociedade cada vez mais conectada. Para estar na rede não basta apenas decodificar, é preciso ler no sentido de entender o que está escrito. Para que os cidadãos sejam incluídos neste mundo de leitura são necessárias ações e políticas públicas voltadas para alfabetização e letramento, pois as defasagens são altíssimas. As observações provenientes da pesquisa Retratos da leitura no Brasil (2011) indica esse panorama:

Ao constatarmos que cerca de 40% dos entrevistados, nessa edição da pesquisa, informaram que não gostam de ler porque apresentam alguma dificuldade para fazê-lo (leem devagar; não compreendem o que leem; não tem paciência ou são analfabetos), descobrimos que esses brasileiros, que representam quase 40% da população (70 milhões de pessoas), não dispõem de habilidades essenciais para se tornarem leitores. Esse número representa 85,4% do total de não-leitores (88,2 milhões).

No entanto, como saber ler? Como promover a leitura? Quem pode e/ou deve agir para inserir leitura na vida dos cidadãos da sociedade da informação?

O caminho para que o cidadão seja leitor primeiramente passa pela alfabetização, seja a de fato ou a funcional. No Brasil é grande o número de analfabetos funcionais (aqueles que leem, mas não entendem o texto). O ato de ler mesmo, a prática da leitura, precisa ser incentivado. Abordaremos, de forma sucinta, as políticas públicas de literatura no Brasil, que direcionam suas ações para a distribuição de kits literários. Para cumprir o que determina a Lei 10.639/2003, tem também se adotado esta política. Acreditamos que ao distribuir kits de literaturas africanas e afro-brasileiras, os criadores desta política focalizam em uma leitura como ação transformadora da realidade. A função transformadora da literatura e do ato de ler e escrever textos literários, segundo Cândido (2004), são fundamentais na formação do homem e, consequentemente, o direito à literatura pode ser visto como direito humano.

Especificamente tratar-se-á da leitura literária, aqui entendida como a prática da leitura de literatura, por meio da qual o leitor pode acumular experiências só vividas imaginariamente, o que o torna mais criativo e crítico; a leitura possibilita ao leitor internalizar tanto estruturas simples quanto complexas da língua.

No Brasil as políticas para ampliação da leitura e, consequentemente, dos seus resultados, passam na maioria das vezes pela distribuição de kits de livros. Nesse âmbito, o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) é uma iniciativa que agregou esforços dos ministérios da Educação e da Cultura e de instituições comprometidas com a promoção do livro e da leitura, cujos eixos são:

Democratização do acesso;
Fomento à leitura e à formação de mediadores;
Valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico;
Desenvolvimento da economia do livro.

Ao contar com a leitura funcional dos alunos para produzir sentidos e alterar o cenário do longo período de negação da história e da cultura afro-brasileira, a política de distribuição de kits literários esbarra em problemas de letramento arraigados no sistema educacional brasileiro. São muitas ações para que o sujeito contemporâneo consiga ser ativo na sociedade, tenha seu papel de cidadão construído, independente de condições étnico-raciais. Sabemos que a literatura aliada a uma prática leitora competente (não apenas decodificadora) pode contribuir muito para significativas mudanças sociais.

Fala-se em empoderamento do cidadão como objetivo destas políticas públicas, mas ainda são incipientes os resultados destas ações em índices estatísticos. A sociedade da informação impactou a criação dessas políticas literárias, mas nem sempre os atores envolvidos no setor de livro e leitura conhecem as políticas, atuam ou usufruem delas. Muitas vezes os educadores, ao invés de promover o acesso a novas visões de mundo presentes na literatura, acabam por repetir os estereótipos de exclusão tão presentes na sociedade brasileira. Na esteira destes enganos, estão práticas pedagógicas carentes de políticas de formação dos professores e de melhorias das condições de trabalho destes.

Sabemos que no Brasil estes profissionais tão responsabilizados por promover mudanças de comportamento são também, muitas vezes, vítimas da crueldade da exclusão étnico-racial e da falta de acesso a condições de vida digna. Geralmente são profissionais que estão muito desencantados com o sistema educacional instituído no Brasil, ou profissionais jovens que estão na carreira por falta de opção. Se a leitura não é um talento nato do homem, mas uma prática social que se estrutura e se perpetua dentro de uma comunidade que a pratica e a valoriza, então a leitura merece toda a atenção e preparo para que não seja repetido o que, lamentavelmente, ocorre muitas vezes no processo de escolarização da leitura: a sua descaracterização, a sua transformação em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma o seu poder de humanização (Cosson, 2006).

A intertextualidade e a ação social é objetivo primordial dos kits literários afro-brasileiros, redimensionando histórias de personagens que elucidem a realidade vivida sem reforçar preconceitos e padrões de comportamento vigentes na sociedade brasileira. Nesta sociedade, considerada por muitos como uma democracia racial, foi preciso instituir uma lei para que tomássemos consciência de um problema que existe desde o descobrimento do Brasil. Vale ressaltar que a promulgação dessa lei só foi possível pela luta dos movimentos negros organizados, conscientes da necessidade de se resgatar a contribuição negra para a história do Brasil e de se combater o racismo. Sabemos que tal ato em si não resolve problemas étnico-raciais não assumidos pelos opressores, e muitas vezes nem as vítimas têm esta consciência. A história do Brasil nunca foi contada focalizando os operários da economia escravagista, nem os grandes lutadores negros da liberdade e da igualdade. Os heróis negros das libertações são quase sempre destorcidos para outros atores da história brasileira.

Mesmo com a reforma da educação, em 1996 (Lei n.º 9.394), e a instituição dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), em 1998, o tema da cultura e história africana não foi contemplado de forma efetiva. Após intensos debates dos movimentos de luta étnico-raciais é que o tema, por meio de decreto-lei, foi inserido no contexto escolar. A partir daí percebeu-se que no mercado não havia muitas obras literárias, de atividades pedagógicas literárias, que contemplassem a implementação da Lei n.º 10.639/2003. Nota-se, neste fato, o reflexo do sistema capitalista na literatura, no qual há um grande predomínio de escritores brancos, masculinos, heterossexuais, cristãos e burgueses. A produção literária brasileira não conta com expressiva participação da enorme parcela parda e negra, que fica à margem das mídias convencionais, mesmo sendo parte de um movimento social muito atuante. Os grandes destaques midiáticos acabam, muitas vezes, por legitimar seu sucesso com o silenciamento do conflito das relações entre as raças. O que vimos então, foi uma grande dificuldade de incluir o tema subjetividade do negro nas práticas pedagógicas, mesmo porque historicamente seu lugar foi desconstruído pelo domínio europeu. O negro, depois que foi subjugado pela escravidão, ao assumir-se como sujeito, acaba por não ter um lugar a ocupar, logo o que acaba ocorrendo é que ele se “branqueie”, seja no comportamento ou atitudes (Fanon, 1968).

Por outro lado, também temos o exacerbamento do conceito do “politicamente correto” nos kits literários distribuídos no Brasil. Este foi o caso da presença do livro Negrinha, de Monteiro Lobato, na lista do Programa Nacional Biblioteca na Escola que foi tema de grande debate, devido ao fato de o conto homônimo apresentar termos pejorativos, para o contexto atual, da trajetória de uma menina negra. Mas como conscientizar se não disponibilizarmos o acesso à história? É preciso primeiro conhecer para depois agir, não é eliminando questões étnico-raciais presentes na literatura que trabalharemos as consequências da negação da história do negro no Brasil.

Se considerarmos que o homem sempre está em busca de reflexão em torno da vida e que uma das formas mais extraordinárias de enriquecer essa reflexão pode ser dada pela literatura, entendemos o esforço de muitos professores para formar bons leitores de literatura. Textos literários podem realizar interseções pertinentes na vida dos indivíduos, permitindo mudança de valores, de paradigmas ou mesmo de direção da vida de uma pessoa mais que outros meios. A mudança de comportamento e de modo de ver o mundo, propiciada pela leitura da obra literária, seria possível porque a literatura leva o indivíduo a pensar e a questionar a condição social do ser humano e, a partir daí, pode ser motivado a lutar para operar mudanças significativas no seu comportamento e mesmo na sociedade em que vive. Essa questão está posta na área da educação, tanto quando foram reconhecidas posturas preconceituosas presentes em muitos livros didáticos e, principalmente, quando se consolidou a Lei n.º 9.394/1996, que foi alterada em 2003 pela Lei n.º 10.639/2003, que instituiu as diretrizes curriculares para o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no ensino fundamental e no ensino médio. O teor da lei a que nos referimos é bastante significativo:

Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003.
Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1.º A Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1.º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2.º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3.º (VETADO)”
“Art. 79-A. (VETADO)”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra'.”
Art. 2.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182º da Independência e 115º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque.
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 10.1.2003 (Lei n.º 10.639, 2003).

Para fins de cumprimento da lei anterior, foi necessária uma nova lei que incluía o tema étnico-racial no currículo oficial da escola:

Lei n.º 11.645, de 10 de março de 2008.
Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura Afro-brasileira e Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1.º O art. 26-A da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1.º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2.º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187º da Independência e 120º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad
Este texto não substitui o publicado no DOU de 11.3.2008 (Lei nº 11.645, 2008).

De acordo com Petronilha Gonçalves (Conselho Nacional de Educação, 2004), a Lei n.º 10.639/2003 não defende, como afirmam muitos críticos, uma abordagem etnocêntrica, que poderia ser vista como apenas uma troca de lugares entre um enfoque europeu por um africano. O objetivo da lei, diz ela, é ampliar a base dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Neste sentido, é necessário incluir no contexto dos estudos cotidianos também as contribuições dos povos indígenas, dos descendentes de asiáticos, entre outros. No Parecer CNE/CP3/2004 - Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Conselho Nacional de Educação, 2004), a relatora Petronilha Gonçalves explica ainda que a Lei n.º 10.639/2003, sobretudo o seu artigo 26A exige, na verdade, que repensemos as relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Ela propõe uma ampliação do que é central, sendo assim todos/as têm o direito à fala, todos/as têm o direito ao centro. É preciso reescrever a história da África e dos africanos, mostrando que houve, sim, luta dos negros no Brasil, que a cultura negra brasileira retém muito das contribuições africanas como palavras que estão presentes no idioma oficial do Brasil, contribuições na culinária, na música, na religião dentre outras manifestações culturais.

Algum tempo após a aprovação da Lei n.º 10.639/2003, foi instituída oficialmente no calendário nacional a data de 20 de novembro como Dia da Consciência Negra (Lei nº 12.519, 2011), passando o tema da africanidade a ser “comemorado” neste dia. No mês de novembro, as escolas se veem “obrigadas” a tratar do tema, então os kits literários que, muitas vezes, estão esquecidos em armários nas secretarias escolares ou amontoados em bibliotecas são requisitados, mas, na maioria das vezes, as atividades pedagógicas acabam por reforçar os estereótipos do negro submisso, alegre e alienado. Brincadeiras racistas e pejorativas sobre o Dia da Consciência Negra são constantes nesse período, elas ocorrem na nossa sociedade e em equipamentos públicos educacionais, de leitura e de cultura. Frases como estas são recorrentes: Negro tem consciência? A consciência negra só existe hoje? Zumbi existiu mesmo ou é uma lenda como o saci? Hoje é dia de finados dos negros?[3]

O negro tem uma intensa participação na formação da sociedade nacional e não se encontra devidamente reconhecido nesta. A lei é a primeira ação – ela permite um debate sobre a cultura e história afro-brasileira, reconhece que houve (e ainda há) um esquecimento desta parcela da população do Brasil e caminha para o resgate da contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil.

Assim, as diversas políticas educacionais que visam o cumprimento da lei foram iniciadas pelos poderes públicos nas esferas federal, estadual e municipal. As secretarias de educação de todo país têm buscado alternativas para que a lei seja cumprida de fato, embora a efetivação das atividades nas escolas ainda não esteja sendo avaliada.

Na esfera federal temos a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR), criada pela Medida Provisória n.° 111, de 21 de março de 2003, convertida na Lei n.º 10.639/2003, que se originou a partir do reconhecimento das lutas históricas do movimento negro brasileiro. Há nessa secretaria diversas ações que visam cumprir a referida lei de obrigatoriedade de ensino da história e cultura nas escolas. Como realização significativa dessas demandas destacamos o projeto A Cor da Cultura,queprevê uma série de ações culturais e educativas com foco na produção e veiculação de programas sobre o histórico da contribuição da população negra à sociedade brasileira, conforme consta em seu texto:

Esta produção, transformada em material didático, aplicado e distribuído às escolas públicas, deverá ampliar o conhecimento e a compreensão sobre a história dos afrodescendentes e história da África e, assim, contribuir para os objetivos previstos na Lei 10.639 (SEPPIR, 2004, p. 7, grifo nosso).

Como atividades importantes desse projeto, destacamos o programa de Livros Animados, documentários exibidos na TV Cultura[4], para incentivar a leitura entre as crianças. A proposta do projeto é assim descrita: “os Livros Animados – que incentiva a leitura junto ao público infantil – composto de dez edições, destacando escritores, temáticas afro-brasileiras e africanas e visibilidade de artistas negros em várias áreas – da interpretação à produção literária, por exemplo” (SEPPIR, 2004, p. 7).

Como produto do projeto A Cor da Cultura, temos a distribuição de dois mil kits para escolas públicas de ensino fundamental de sete estados da federação. Nestes, há fitas de vídeo, livro para os professores, dicionário de línguas africanas, jogos educativos, entre outros recursos de fixação de conhecimento sobre a África e sobre a população afro-brasileira. Observamos que neste kit não está claramente indicado que há a inclusão de obras literárias afro-brasileiras.

Ainda na esfera federal, existe o projeto Pontos de Leitura Ancestralidade Africana no Brasil, que tem por objetivo apoiar e estimular iniciativas culturais, já em andamento, voltadas para a promoção, preservação e divulgação da história e cultura africana e afro-brasileira.

Os pontos de leitura temáticos foram equipados pelo Sistema Nacional Bibliotecas Públicas/Fundação, Biblioteca Nacional, de maneira a possibilitar a ampliação de suas ações na área de leitura, constituindo-se como mais um espaço de democratização ao acesso aos livros, em seus diferentes suportes, e ao estímulo às práticas leitoras.

Ao todo são dez unidades da federação brasileira que receberão os Pontos de Leitura Ancestralidade Africana, sendo uma delas em Minas Gerais - Quilombo de Macuco - Estrada do Município de Minas Novas na região Alto Jequitinhonha[5].

No Programa Nacional Biblioteca na Escola, do Ministério da Educação (MEC), não encontramos especificamente kits de literatura afro-brasileira, mas sabemos que há a distribuição de kits de literatura em geral para as bibliotecas de escolas e, no kit de 2013, foi verificada a presença da obra O último Voo do Flamingo, de Mia Couto.

Em Minas Gerais, a Secretaria de Educação não distribui kits de literatura que trabalhem a Lei n.º 10.639/2003. Existem incentivos e cursos de formação para os professores para estimular a implantação da referida lei nos currículos. Dentro destes incentivos, destacamos o projeto Afrominas:

O Projeto de Valorização da Cultura Afro-Brasileira na educação pública - AfroMinas - visa fortalecer a educação como instrumento de promoção social, de cidadania e de valorização da diversidade étnico-racial. Por meio da inserção de temas voltados para o combate ao racismo e discriminação racial, no cotidiano das salas de aula, busca ressaltar as condições sobre as quais o preconceito se manifesta e, através da revisão dos fatos históricos e inclusão de temas voltados para valorização cultural e social dos povos afro-brasileiros, assegurar o respeito e o reconhecimento do papel do Negro na constituição e manutenção da sociedade brasileira (Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, 2014).

Como se procura cumprir os dispositivos da lei no município de Belo Horizonte? A Secretaria de Cultura de Belo Horizonte criou o kit de literatura afro-brasileira, seguindo o exemplo de diversos municípios do Brasil que, para fins de cumprimento da Lei n.º 10.639/2003, optaram pela formação de kits de livros que são distribuídos às escolas. Além da capital, tem-se o registro de distribuição de kits de livros nas cidades de Contagem, Betim, Ribeirão das Neves e Nova Lima, todas da região metropolitana de Belo Horizonte.

Entendemos que os kits, segundo a lei, devem oferecer material para contemplar:

o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e políticas pertinentes à História do Brasil (Lei n.º 10.639, 2003).

Em Belo Horizonte, há um Núcleo de Relações Étnico-Raciais que foi criado em 2004 a partir da Lei n.º 10.639/2003. O trabalho a ser desenvolvido na SMED/BH (Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte) é regido pelas seguintes legislações:

A Resolução CME/BH n.º 003 de 20 de novembro de 2004, que institui diretrizes curriculares municipais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.

A Lei n.º 9.934 de 21 de junho de 2010, que dispõe sobre a Política Municipal de Promoção da Igualdade Racial e cria o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial e dá outras providências. O Núcleo de Relações Étnico-Raciais compõe a Gerência de Coordenação da Política Pedagógica e de Formação da Secretaria Municipal de Educação, com o objetivo de atender à demanda crescente de formação e subsidiar o trabalho com a temática étnico-racial nas escolas municipais de Belo Horizonte.

Desde o ano de 2004, foram enviados cinco kits de literatura afro-brasileira a todas as escolas de ensino fundamental da SMED/BH. O acervo é composto por livros teóricos, para formação docente, e por livros de literatura para docentes e discentes. Os estabelecimentos de educação infantil, incluindo as creches conveniadas, só passaram a ser contemplados com a entrega do material a partir do quinto kit de literatura afro-brasileira.

Segundo o Núcleo de Relações Étnico-Raciais os livros selecionados para os kits de literatura afro-brasileira são:

em linhas gerais os livros que apresentam personagens negras em contextos diferenciados de maneira positiva, com perfil bem elaborado e muitas vezes desempenhando papel central; que trabalham com uma abordagem histórica da cultura africana e afro-brasileira; que contribuam para uma modificação da rede de significados da palavra negro, mestiço, pardo, pois rompem com uma tradição de representação da personagem negra em condições subalternas e pejorativas. Observa-se ainda, para a escolha, produções que contemplem as temáticas que dizem respeito às relações de gênero, à diversidade sexual e identidade de gênero (SMED/BH, 2013).

Os participantes desta escolha são integrantes do Núcleo de Relações Étnico-Raciais e de Gênero e consultores especializados em literatura africana e afro-brasileira e de gênero. Ainda, no que se refere à escolha temos, como em todas as relações da sociedade capitalista, as questões mercadológicas. Como se trata de compras públicas que exigem demasiada burocracia documental e processos presenciais licitatórios, alguns livros que hipoteticamente cumpririam os critérios não são selecionados e outros que poderiam ter os critérios de sua inclusão nos kits questionados são mantidos porque estão na mídia ou porque os professores e alunos os demandam, ou ainda porque exigem menos dificuldade burocrática de cumprimento do processo licitatório do que os de outras empresas do editorial, que desconhecem os meandros das compras públicas no Brasil.

Junto às políticas para Promoção da Igualdade Racial através da distribuição do kit de literatura afro-brasileira estão as políticas para a leitura e, consequentemente, as escolas e o desenvolvimento de ações pedagógicas de promoção da igualdade racial. As escolas que, sem dúvida, são os espaços de preservação do saber coletivo, da formação do cidadão e da promoção das mudanças esperadas, são contempladas pela SMED/BH com ações de fomento à formação de educadores, almejando que as diretrizes da Lei n.º 10.639/2003 sejam alcançadas através de atividades pedagógicas que façam circular os livros constantes nos kits distribuídos.

Levando em consideração todas as ações que objetivam o cumprimento da lei, afirmamos que obras de autores das literaturas africanas de língua portuguesa, presentes nos kits, podem contemplar o objetivo geral da Política de Promoção da Igualdade Racial na SMED/BH, que é: “a redução das desigualdades raciais no município, com ênfase na população negra, mediante a realização de ações exequíveis a longo, médio e curto prazo, com reconhecimento das demandas mais imediatas, bem como das áreas de atuação prioritárias”. (SMED/BH, 2013, s.p.)

Ficou já constatado que Mia Couto, reconhecido autor moçambicano que recebeu uma série de prêmios literários e, em 2013, foi o vencedor do Prêmio Camões, é o escritor mais prestigiado nos kits, como podemos ver no quadro a seguir:

 

Quadro 1

 

Nos kits I e II não houve presença de obras de autores dos PALOP. Em 2007 e 2009, os autores de Moçambique obtiveram maior representatividade no total geral de títulos, pois foram incluídos sete títulos moçambicanos, sendo as obras de Mia Couto a maioria entre os livros de autores dos PALOP presentes nos kits da SMED/BH.

Podemos dizer que existe de fato uma relação entre literatura e propostas de mudanças de comportamento, principalmente nas obras das literaturas africanas de língua portuguesa, voltadas às questões do homem e da sociedade africana. Resta saber se as obras presentes nos kits de literatura afro-brasileira de Belo Horizonte vão ao encontro dessa afirmativa.

 

A escrita de Mia Couto

Mia Couto[6], escritor moçambicano, filho de portugueses que se mudaram para Moçambique na época em que o país era colônia, viveu sua infância em um espaço fronteiriço entre o bairro dos colonos brancos e o bairro dos negros. Esta condição fronteiriça pode ser constatada em suas obras quando seus personagens trazem os questionamentos de preconceito.

Apresentamos um pouco sobre Moçambique, terra natal de Mia Couto. Este país originalmente ocupado pelo povo Bantu, depois dominado pelos portugueses através da opressão dos povos e imposição de violência em suas mais diversas formas de manifestação. Sua independência oficial só veio em 1975. A partir daí, o povo subjugado repetiu, muitas vezes, as formas opressoras de poder para governar seu país, sendo um dos exemplos mais sórdidos disto os campos de reeducação da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Houve também uma violenta e duradoura guerra civil entre os dois movimentos que lutaram pela independência: RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) e FRELIMO. Mesmo após seu término, em 1994, ainda persiste uma tensão política e militar no país.

Há, neste país, um território grande, economia forte e, em contraponto, problemas sérios na educação, saúde e cultura. Reproduz também neste a diversidade de idiomas; além do português como língua oficial, temos outras línguas nacionais, tais como: cicopi, cinyanja, cinyungwe, cisenga, cishona, ciyao, echuwabo, ekoti, elomwe, gitonga, maconde (ou shimakonde), kimwani, macua (ou emakhuwa), memane, suaíli (ou kiswahili), suazi (ou swazi), xichanga, xironga, xitswa e zulu.

A partir do conhecimento de um pouco de Moçambique, podemos aprofundar no projeto literário deste país, pois é importante saber sobre o espaço de produção literária, já que a literatura pode ser considerada, por excelência, o lócus da verossimilhança[7]. Sendo assim, e segundo Fonseca (2007), Moçambique apresenta suas produções literárias em três fases: a fase colonial, a fase nacional e a fase pós-colonial. Sendo principais representantes da primeira fase os escritores: Rui de Noronha, João Dias, Augusto Conrado e Luís Bernardo Honwana. Na fase nacional destacamos Alberto de Lacerda, Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glória Sant'Anna, António Quadros, Sebastião Alba e Luís Carlos Patraquim. Na fase de contribuição à identidade nacional temos os escritores que participaram da FRELIMO, dentre os quais citamos Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes. Ainda nesta linha de contextualização do moçambicano, enquanto ser africano, ser do mundo, temos Noémia de Souza, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Ungulani BaKa Khosa, Mia Couto e Paulina Chiziane.

Nas obras de Mia Couto vemos uma linguagem caracterizada pela poesia em forma de prosa. Esse processo criativo está aliado à transgressão dos processos de formação de palavras e da estrutura textual. Nesse sentido a língua portuguesa oficial vem apresentada, em suas obras, de modo diferente para conciliar as especificidades que se pretende narrar: sejam elas de sentimentos ou de uma realidade difícil de ser escrita.

O processo criativo de Mia Couto e o teor de suas entrevistas levaram a crítica literária, principalmente a brasileira, a assemelhar sua obra à de Guimarães Rosa. É certo que as estratégias de imersão do cenário linguístico da nação e da criação de novas palavras, provérbios ou apropriação de termos usados no cotidiano, são comuns aos dois autores que buscam a interação da língua oral com a língua escrita. Vale ressaltar que cada um destes autores vai além de uma inovação linguística; nota-se, na obra deles, uma inovação literária que faz o conjunto da obra ir da realidade ficcionalizada à criação de histórias de uma imaginação única.

Mia Couto tem um grande volume de publicação de obras literárias no mercado editorial, além de muitas crônicas que foram publicadas apenas em Moçambique. Destas obras podemos citar os livros de poesia Raiz de Orvalho (1983), Raiz de Orvalho e outros poemas (1999) e Tradutor de Chuvas (2011); de contos e crônicas, Vozes Anoitecidas (1986), Cada Homem é uma Raça (1990), Estórias Abensonhadas (1994), Contos do Nascer da Terra (1997), Na Berma de Nenhuma Estrada (1999), O Fio das Missangas (2003), Cronicando (1991), O País do Queixa Andar (2003), Pensatempos: Textos de Opinião (2005), E se Obama fosse Africano? e Outras Interinvenções (2009) e os romances Terra Sonâmbula (1992), A Varanda do Frangipani (1996), Mar Me Quer (1998), Vinte e Zinco (1999), O Último Voo do Flamingo (2000), Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra (2002), O Outro Pé da Sereia (2006), Venenos de Deus, Remédios do Diabo (2008), Jesusalém [no Brasil, o livro tem como título Antes de nascer o mundo](2009), A Confissão da Leoa (2012), A Chuva Pasmada (2004);além da literatura infantil,com O Gato e o Escuro (2001) e O Beijo da Palavrinha (2006).

Mia Couto além de escritor é biólogo de formação, e atua na área de impacto ambiental. Ele faz parte da geração que lutou pela independência de Moçambique, e foi membro da FRELIMO. Os escritores moçambicanos dessa geração apresentam um comprometimento com a história da nação, pois sempre carregam com eles o estereótipo de falar das questões africanas e do povo negro em geral. De acordo com Mata (2006), a literatura acaba por enunciar problemas que seriam mais adequados ao discurso científico, e isso traz algumas implicações. Uma delas é o fato de que a literatura vai além da ficcionalidade e ultrapassa os eixos do prazer estético e da função sociocultural.

Procuraremos, a partir deste ponto, demonstrar um panorama da escrita miacoutiana, atentando para alguns aspectos relevantes no conjunto da sua obra, tais como o realismo, linguagem, questões de raça e as estratégias de construção dos personagens.

 

Brincriações e sonoridades

Mia Couto apresenta em suas obras uma atitude morfossintática e semântica ao buscar a transcriação da oralidade para a escrita. Esse recurso é investigado por Moreira (2005), quando reflete sobre especificidades de uma escrita literária que dialoga com o universo oral:

Os textos literários, aí [Moçambique e países africanos de língua portuguesa], são produzidos a partir de um processo interativo entre as línguas autóctones e a língua portuguesa, seja devido à condição bilíngue dos escritores ou à sua opção por criar uma linguagem literária que retrate a cultura moçambicana – como também a angolana, a cabo-verdiana, a guineense e a santomense – em sua variedade psico-etnológica mesmo quando do unilinguismo dos escritores (Moreira, 2005, p. 79).

Nesse sentido, as obras de Mia Couto exploram construções de linguagem que nos permitem perceber a performance de um contador de histórias que explora a condição bilíngue que também está na literatura. Desde sua primeira obra reconhecida internacionalmente, Terra Sonâmbula, cuja primeira edição data de 1992, seus textos apresentam diversos processos criativos que levam o leitor às possibilidades de audição da literatura por ele criada, já que verificamos muito da cultura acústica moçambicana em suas obras, tais como a apropriação de provérbios nos textos.

Nos seus livros, sente-se a presença de um narrador que, aproximando-se do contador de histórias tradicionais espalhadas por toda a África, utiliza estratégias dos diferentes rituais de contação de histórias. Pode-se dizer que se recuperam estratégias do contador tradicional, que em alguns países africanos é denominado griot.

Além da aproximação da escrita ao universo da oralidade, os procedimentos de narração de Mia de Couto recorrem a estratégias presentes no texto poético, explorando, como assinala Paixão (2013), recursos desse gênero literário:

Em geral, a prosa poética costuma recorrer a figuras típicas da poesia como a aliteração, a metáfora, a elipse, a sonoridade das frases, etc. Contudo, o emprego desses elementos subordina-se ao ritmo mais alongado do discurso, voltado para ser, ao final das contas, uma boa prosa (Paixão, 2013, p. 152).

Recursos linguísticos singulares para fazer literatura são chamados por muitos estudiosos de Mia Couto como brincriações[8], que seria o processo de construção de expressões, palavras que representam a intenção autoral de melhorar e ressignificar a cultura híbrida moçambicana na escrita de suas obras.

Podemos ver como exemplo das brincriações de Mia Couto a transformação de substantivos em verbos, a personificação exacerbada, invenção de palavras, transformação dos provérbios, a omissão de preposições, processos que podem ser observados em quase todas as suas obras e como podemos observar nos trechos do livro O Gato e o Escuro:

Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam.” “À medida que avançava, seu coração tiquetaqueava.” “Só quando desaguou na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos.” “Nada sobrava de sua anterior gateza. E o escuro, triste, desabou em lágrimas.” “E os olhos do escuro se amarelaram. E se viram escorrer, enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto.” “Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro mora quem lá inventamos.” “Somos nós que enchemos o escuro com nossos medos.” “Metade de seu corpo brilhava, arco-iriscando.” “Quando a mãe olhava o escuro, a mãe ficava com os olhos pretos. Pareciam cheios de escuro. Como se engravidassem de breu, a abarrotar de pupilas.” (Couto, 2008, pp. 8-9, grifo nosso).

A transcriação da língua portuguesa feita por Mia Couto consegue representar a miscelânea de sentimentos que atordoa seus personagens que, muitas vezes, expressam um conflito de felicidade pela independência e da dor deixada pelas mazelas das guerras. No espaço de guerra e de disputa pelo poder que aflige o país, o autor busca obter, por meio de suas narrativas, uma representatividade da voz dos sujeitos silenciados pela violência de guerras e mesmo da tradição.

Mia Couto salienta haver, na maioria de suas obras, marcas da oralidade em seus textos. É nesse sentido que ele sempre se define nas entrevistas como um contador de histórias. Na afirmação seguinte podemos ver a construção dos personagens buscando a enunciação dos sujeitos à margem das histórias oficiais:

na construção das personagens que transitam entre os espaços da oralidade e da escrita, que se utilizam da escrita para possibilitar o conhecimento do leitor sobre a diversidade cultural moçambicana e na representação intelectual deste lugar, isto é desse entre-lugar de fronteira, é que a enunciação do escritor africano assume a tensão colocada no texto de Coetzee. Da margem, criando condições enunciativas para a voz daqueles à ‘margem', os africanos, mas também os que na África são marginalizados, Mia Couto produz uma escrita expandida que consegue abraçar as falas de outros espaços marginalizados do mundo (Fonseca Cury, 2008, p. 16).

A oralidade retratada em seus livros busca, então, demonstrar a fragmentação histórica e identitária de sujeitos desconstruídos pelos traumas impostos pelo processo colonial e dar voz à cultura e tradições locais em sua convivência com a globalização.

Em justaposição a isso, temos o pressuposto da morte do narrador sobre a qual nos alertava Benjamin, ao afirmar que “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha desta companhia. Mas o leitor de um romance é solitário” (Benjamin, 1994, p. 217). Mas a literatura africana, em geral, consegue manter vivo o contador de histórias em seus romances, sem ser nostálgica. Muitas vezes, o recurso de indivisibilidade do mundo dos vivos e dos mortos permite uma interação mútua de personagens e história, de leitor com o narrador. Vemos a prática de um processo de escrita no qual o processo de leitura se faz pela “escuta”, pois se fizermos uma leitura em voz alta somos capazes de sentir a presença da contação da história narrada.

Temos na obra de Mia Couto a sonoridade de histórias contadas pelos velhos africanos aliada ao rebuscamento da forma da prosa, tornando-a algo poético e imagético. Nelas os fatos narrados são sentidos e visualizados de uma forma tão intensa que, o leitor, ao deparar com os espaços geográficos ficcionalizados em seus romances, é capaz de afirmar que as aldeias e vilas descritas nas obras do autor confundem-se com aquelas descritas por outras obras mais ligadas à verossimilhança e à reprodução da realidade.

A apropriação de provérbios feita por Mia Couto em suas obras é estratégia marcante na linguagem do autor. Ele pode apresentá-los na íntegra: “as ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão”, provérbio africano (Couto, 2005, p. 117), inventados: “Saudade de um tempo? Tenho saudade é de não haver tempo. Ditado de Tizangara” (Couto, 2005, p. 33) ou ainda desconstruídos para mostrar que as verdades da vida podem ser relativizadas: “Não tenho onde cair torto, o alfaiate dizia, para justificar os seus atos sacrílegos. E concluía: é que isto, em Vila Longe, vai de animal a pior. [...] o tio escrevia torto onde não havia linhas.” (Couto, 2006b, p. 91).

No uso de provérbios, além de uma marca da oralidade, retoma a força da tradição. Muitas vezes os provérbios enriquecem descrições de comportamentos de personagens e mesmo dos narradores. Além disso, os provérbios ressaltam outra característica de seus romances ao serem utilizados como epígrafe de capítulos. Isso pode ser ilustrado no capítulo doze de O Outro Pé da Sereia: “O mais grave nos negros não cristãos não é serem selvagens. Mas é estarem convertendo em selvagens os portugueses que são brancos e cristãos” (Couto, 2006b, p. 196).

O processo de desconstrução de normas da língua portuguesa está presente também na construção de personagens. Uma das características desse processo está nos nomes dados a eles, muitas vezes criados a partir de situações inusitadas, como se verá nas análises propostas nos capítulos seguintes. Destaca-se também a forte presença de personagens femininas, de meninos e de velhos. Os velhos na narrativa vêm representando a tradição, já as crianças, o futuro da nação. Podemos verificar muitos jovens personagens que simbolizam o momento atual da nação moçambicana.

Os personagens de Mia Couto vivenciam, no tempo e no espaço, fatos que perpassam tradição e modernidade em Moçambique, o que reflete o próprio fazer literário do autor. Eles são apresentados dentro de um tempo fluido, sem demarcações claras, assim podemos perceber a identidade como processo, como movimento, algo em construção. A identidade é desmanchada pelas mazelas da disputa de poder, cada indivíduo é atingido e sua família também, solidariedade e amizade são quase sempre menosprezadas, os personagens são apenas sobreviventes da história. Os personagens, pelos fatos opressores, quase indizíveis, sofridos por anos a fio, podem necessitar de tradução, como é o caso de o Tradutor de Tizangara, personagem e narrador do romance O Último Voo do Flamingo, que em seu depoimento antes de começar a narrativa nos alerta que:

Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência. Fui acusado de mentir, falsear as provas de assassinato. Me condenaram. Que eu tenha mentido, isso não aceito. Mas o que se passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram. Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima (Couto, 2005, p. 9).

Neste contexto, o imperialismo, seja ele na forma da colonização ou da globalização, acaba por impor uma inexpressividade das culturas e das tradições não ocidentais, e as especificidades locais são consideradas exóticas, ultrapassadas, ou até incompreensíveis ao mundo. Mesmo os indivíduos que nascem no espaço do dominado, muitas vezes desconhecem seu passado, suas línguas, enfim seu povo. Essa necessidade de tradução, vislumbrada com o Tradutor de Tizangara, vai além de traduzir as diversas línguas faladas em Moçambique. Faz crer a necessidade de resgate da moçambicanidade dos indivíduos, no tempo e no espaço, que não pertence apenas aos nativos, mas também aos filhos de portugueses que lá nasceram, pois estes fazem parte daquela terra, é aquele o espaço de sua existência.

Neste espaço de antigas nações, não apenas etnias, vemos que a identidade tem traços da fragmentação dos povos no processo colonial, seja a luta das etnias, conflitos de cor e outros, mas o que temos que ter em mente é que todos são igualmente moçambicanos. Podemos ver que o sujeito narrado por Mia Couto concatena com esta característica não só do sujeito africano, mas da contemporaneidade, pois todo sujeito contemporâneo é fragmentado, com perda das certezas, da sabedoria dos antepassados e com um futuro incerto, e isso, fatalmente, torna a juventude vagueante, não só em espaços de Moçambique, é também uma questão mundial.

Ainda neste espaço de conflito existencial e de violência, o rio e o mar apresentam-se como elementos muito presentes no cotidiano dos personagens miacoutianos. O rio figura como uma evasão das situações adversas vividas pelos personagens. O mar também vem como o local das possibilidades infinitas, já que ele é ilimitado aos olhos do homem. Em O Outro Pé da Sereia podemos ver essa imensidão simbolizada na necessidade de levar um pouquinho da terra de partida:

Essa era a tradição dos escravos: dava sorte navegar levando sacos de terra. Os que embarcavam nas naus – os anamadzi, os da água, como lhe chamavam – obedeciam a esse preceito. Quem não levasse consigo, numa bolsa de couro, uns torrões da sua terra natal corria o risco de se perder para sempre entre as névoas do mar (Couto, 2006b, p. 109).

A presença marcante do mar, e do rio também, nas obras de Mia Couto metaforiza a identidade de personagens que vivenciam múltiplas culturas que só podem ser sujeitos que usam identidade essencialmente transitória e mutável.

As narrativas miacoutianas, na maioria das vezes, contemplam personagens mulheres, mostrando todos os conflitos universais de gênero que acompanham o feminino, além de especificidades das mulheres moçambicanas. Mulheres que se submetem à tradição, sentindo todo o peso da submissão ao homem, seja ele pai, irmão ou marido. Essa submissão, observada pelo ponto de vista ocidental, parece algo opressor, mas para essas mulheres faz parte da cultura. Em O Outro Pé da Sereia temos duas personagens femininas que mostram toda a força da mulher para conduzir a história delas e de seus familiares. Uma é Mwadia, a outra sua mãe Constança. Apesar de vivenciarem situações opressoras e de silenciamento, são capazes de se libertarem através do resgate da história da sereia (santa) encontrada no rio. Essas duas personagens femininas são levadas a cumprir a sina de procriadoras e de perpetuação dos rituais e crenças da aldeia. Porém, elas se veem embrenhadas em uma história na qual a cultura local se mescla com a do colonizador, além de incorporar contribuições da Índia portuguesa e da globalização. Sendo assim, elas se reconstroem, enquanto indivíduos, contribuindo para a formação coletiva de outras mulheres ao reverter muitas atitudes que seriam da tradição. Esse reencontro de mãe e filha é potencializado pela presença de uma terceira personagem feminina que é uma mulher brasileira:

Reuniram-se as três mulheres em redor do almofariz, cada uma delas munida de um pau de pilão. Foi Mwadia quem começou a socar o milho. Depois, foi a vez de Constança levantar o msundi[9] e deixá-lo tombar provocando um som cavo no ventre da madeira. A brasileira esperou pelo seu turno, como num jogo de infância. Demoraram a acertar até descobrirem o compasso e a alternância das batidas (Couto, 2006b, p. 173).

Esse contato de Constança e Mwadia com a mulher brasileira, uma psicóloga de nome Rosie, demonstra que ao aproximar culturas diversas, pode ser possível promover sentimentos de aproximação e estranhamento, desde que haja respeito e não imposição como ocorreu na época da colonização. Encontro e partida é o mote principal da viagem destas três mulheres, Mwadia e Rosie saem dos lugares onde vivem para viajarem, no caminho delas está Constança e todas partem para uma viagem simbólica, para um encontro de si mesmas:

A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa. Mwadia Malunga sentiu que realmente viajava quando perdeu de vista o único casebre de Antigamente (Couto, 2006b, p. 65).

No romance O Último Voo do Flamingo também há três personagens femininas muito expressivas para representar a posição destas na sociedade moçambicana. Temos Ana Deusqueira, Temporina e Emerlinda, a primeira, a prostituta que nunca fora de ninguém, segundo palavras dela: “e eu, Excelência, eu até me sinto orgulhada nesses ciúmes deles. É que nunca eu fui de ninguém. Nunca.” (Couto, 2005, p. 41). A velha – moça Temporina – antes era Hortênsia, sofre a maldição de possuir o rosto de uma velha porque não pertencera a nenhum homem, mas esta se torna fonte de muitos desejos. O italiano Massimo Risi tem sonhos quentes com Temporina, como mostra no trecho abaixo:

O italiano, cansado, nem se sentiu adormecer. Nessa noite, um estranho sonho tomou conta dele: a velha do corredor entrava no quarto, se despia revelando as mais apetitosas carnes que ele jamais presenciara. No sonho, o italiano fez amor com ela. Massimo Risi nunca tinha experimentado tão gostosas carícias. Ele rodou e rerodou nos lençóis, gemendo alto, esfregando-se na almofada. Se era pesadelo, ele muito se divertia... (Couto, 2005, p. 24).

Ermelinda, esposa do administrador da Vila, a “administratriz”, como era chamada pelo marido, gostava de exibir suas joias e fazer “tilintar os ouros, multiplicados em vistosos colares” (Couto, 2005, p. 20). Esta mulher, segundo seu marido, o tinha enfeitiçado para ele arder em fogo quando este fizesse amor. Essas três mulheres da obra O Último Voo do Flamingo, assemelhadas não apenas pela sensualidade, mas pela força de luta, mostram a força da mulher africana na sociedade, apesar de terem que contornar todas as tradições que as colocam numa situação inferior à do homem.

As personagens do imaginário infantil, representando o novo país Moçambique, são quase sempre presentes nas obras miacoutianas. Em O Beijo da Palavrinha (2006a), temos uma menina, Maria Poeirinha, que não tinha direito a sonhar, o que nos infere a pensar a fragilidade da atualidade moçambicana e a falta de sonhos. Embora personagens jovens sejam marcantes em outras obras de Mia Couto, nas obras dele selecionadas para os kits isso não se confirma.

 

Realidade – como magia e subversão

Tendo como espaço de narrativas os espaços moçambicanos vítimas de guerras e opressões, as histórias de Mia Couto, muitas vezes, contam com personagens que narram histórias para se narrarem. As narrativas são permeadas por menções à necessidade de construção, de resgate das tradições. Podemos ver isso na figura do velho, que é uma metáfora do conhecimento da cultura africana que precisa permanecer. Mia Couto costuma aliar a essa figura um jovem ou uma criança, denotando a permanência do passado como suporte para construção do presente. Nota-se o dilema dos sentimentos em uma nação que precisa se construir e separar aquilo que pode ser esquecido do que pode ser lembrado. Em relação à escravatura vemos um desejo de esquecimento do sofrimento dos antepassados. Podemos, no seguinte trecho, verificar a inclusão deste tema na obra O Outro Pé da Sereia:

O adivinho sentou-se na berma, olhou os ramos e anunciou:
– esta é a árvore.
– a árvore?
– a árvore do esquecimento.
Não havia em toda a redondeza exemplar maior de mulambe. A árvore era conhecida, desde há séculos, como “a árvore das voltas”: quem rodasse três vezes ao seu redor perdia a memória. Deixaria de saber de onde veio, quem eram seus antepassados, tudo para ele se tornaria recente, sem raiz, sem amarras. Quem não tem passado, não pode ser responsabilizado. O que se perde em amnesia, ganha-se em amnistia (Couto, 2006b, p. 276).

Personagens que vivenciam cenas de morte e de guerra têm que conviver com a dualidade de tentar esquecer o sofrimento, sem perder suas memórias. Este recurso de memórias dos personagens traz elementos que tornam os romances bastante intrigantes no que se refere à história oficial de Moçambique e ficção. Portanto, ao escolhê-los para exercitar o trabalho pedagógico com a Lei n.º 10.639/2003, exige-se, de professores e alunos, uma competência literária aliada à experiência de conhecimentos sobre Moçambique bastante ampliados para que se compreenda o enredo em todas as suas possibilidades.

Faz-se preciso nos atentar para o fato de os romances com ênfase na memória dos personagens apresentarem muitos recursos de tempo narrativo e, por isso, prescindem de leituras bem feitas para compreender a narrativa e os recursos literários bem rebuscados como, por exemplo, a rememoração. O que podemos ver no trecho de O Último Voo do Flamingo:

O tamarindo mais sua sombra: aquilo era feito para abraçar saudades. Minha infância fazia ninho nesta árvore. Em minhas tardes de menino, eu subia ao último ramo como se em ombro de gigante e ficava cego para assuntos terrenos. Contemplava era o que no céu se cultiva: plantação de nuvens, rabisco de pássaro. E via os flamingos, setas rapidando-se furtivas pelos céus. Meu pai sentava embaixo, na curva das raízes, e apontava os pássaros (Couto, 2005, p. 159).

Podemos ver que Mia Couto contribui para a construção da história de Moçambique, invocando recursos que dão voz àqueles que estiveram silenciados por muito tempo na história oficial e inova em formas da linguagem.

Para a cultura africana, por exemplo, a dos povos Banto que habitaram Moçambique, a relação com os mortos é de muita proximidade com os vivos. Sendo assim, vemos um respeito a essa tradição nas obras de Mia Couto, pois a distinção entre os dois mundos não é o foco. Vivos e mortos transitam livres pelas narrativas, pois “Mia Couto caracteriza-se dentro do sistema literário moçambicano como um fino contador de histórias, que se alimenta tanto da cultura banta, como da intertextualidade mantida com seus atores preferidos” (Silva, 2010, p. 11).

Quando trata de temas relacionados à raça, Mia Couto o faz de forma delicada, pois a segregação racial vai muito além da cor. Na história da colonização de Moçambique, a maioria dos colonizados, dos moçambicanos, sofriam com o preconceito. E o branco, representado na presença do colonizador, tinha o lugar do poder, mas os brancos exilados pela ditadura de Portugal sofriam os desmandos ocasionados pelo lócus social a eles designado. Os portugueses residentes em Moçambique eram os responsáveis por colocar em prática a política de exploração das riquezas locais, de tornar os negros assimilados na cultura europeia. Com suas famílias residindo no país, os filhos destes portugueses acabaram por nascerem moçambicanos, como é o caso de Mia Couto, que “se considera um mulato cultural, e com juízo ele acredita que raça é um constructo social” (Secco, Salgado & Jorge, 2010, p. 86). Nesse sentido, a questão racial enfrentada na realidade brasileira é diferente de Moçambique, logo a questão racial presente nos livros de Mia Couto deve ser ponderada para que haja uma consonância com os objetivos da Lei n.º 10.639/2003, pois havia algumas diferenças na condição exploratória do negro em Moçambique e no Brasil.

Nas obras de Mia Couto podemos verificar, muitas vezes, a valorização da cultura local, a presença acentuada das tradições e, principalmente, o sincretismo das culturas africanas. Suas obras se encaixam no movimento literário atual que podemos denominar realismo contemporâneo em suas diversas formas de apresentação. As literaturas africanas, não só as de língua portuguesa, por apresentarem modos diferentes de vivenciarem questões universais (vida, morte...), são classificadas como obras de realismo fantástico ou animista – termo utilizado por Pepetela. Este realismo pode ser melhor definido nas palavras de Tarouco (2010), quando afirma que:

a realidade africana pode ser mais bem compreendida através do viés animista, pois nada mais é do que a convivência harmoniosa do mundo dos vivos com o mundo dos mortos e dos tempos passado, presente e futuro (Tarouco, 2010, p. 5.).

Sendo assim, vemos nas histórias de Mia Couto essa conectividade muito presente entre vivos e mortos, e também podemos ver uma estreita relação entre o tempo passado, presente e os personagens. Como recurso notável do realismo animista, temos os narradores defuntos e as histórias encaixadas como é o caso de O Outro Pé de Sereia, que nos conta uma história passada no tempo colonial e outra da atualidade.

Mia Couto vai além deste realismo animista, ele apresenta a subversão como forma de refratar a realidade moçambicana e até africana em suas obras. Isso torna marcante sua forma de narrar, em comparação com a literatura dos países africanos de língua portuguesa.

O autor, com sua expressiva qualidade literária, vai além de retratar a realidade de fome, guerra e mazelas da corrupção de seu país. Ele nos faz ver a escravatura de negros no romance O Outro Pé da Sereia do modo como ela realmente foi, sem deixar de apresentar questões universais do ser humano, como amor e morte. As duas histórias que correm em paralelo neste romance, a da viagem ao reino de Monomotapa e a da viagem de Mwadia a Vila Longe, nos fazem ver e rever o contexto histórico antigo e o atual do povo africano ficcionalizado no romance. A viagem dos personagens centrais mostra não só a realidade de busca de alternativas para uma vida melhor para os moçambicanos, mas também a realidade atual de busca de uma identidade, que sabemos processual e em movimento, no atual contexto vivido não apenas por eles, mas por todos os cidadãos no mundo globalizado.

É uma recorrência nas obras de Mia Couto a subversão da memória oficial. Os papéis de herói e vilão da história oficial são desconstruídos no sentido de mostrar dois lados da história. Na obra O Outro Pé da Sereia, quando o americano Benjamin Southman e o barbeiro Arcanjo Mistura estão na barbearia – o americano com sua visão estereotipada e vitimizadora dos africanos e o outro, o moçambicano, com seu discurso afiado e contextualizado historicamente –, neste encontro vemos que as ideias do americano são confrontadas e ele é obrigado a refletir sobre a posição dos movimentos negros:

– Uma coisa é certa, disse Southman, vocês, daquele lado, e nós, deste lado, temos uma única luta, a afirmação dos negros...
Foi lenha atirada à fogueira. O barbeiro, navalha em riste, argumentou:
– Irrita-me, senhor Benjamin, esse discurso da afirmação dos negros.
– Irrita-o porquê?
– O que diria você se encontrasse uns brancos proclamando o orgulho de serem brancos: não diria que eram nazis, racistas?
– Não se pode comparar, meu amigo. São percursos diferentes...
– Ora, diferentes, diferentes... Por que somos tão complacentes conosco próprios?
– A verdade é só uma, afirmou Benjamin, nós, os negros, temos que nos unir...
– É o contrário.
– O contrário, como? Sugere que nos devemos desunir?
Mulemba. Rio de Janeiro:
– Nós temos que lutar para deixarmos de ser pretos, para sermos simplesmente pessoas. E agora baixe a cabeça (Couto, 2006b, p. 188).

Esse diálogo nos leva a refletir que uma visão totalizadora da violência, racial ou física, partindo da posição do opressor ou da vítima, não é benéfica para evolução da busca de igualdade de direitos dos seres humanos.

 

Considerações finais

A obra de Mia Couto não está aprisionada a elementos da realidade de Moçambique, os enredos transcendem a isso, mesclando elementos culturais africanos diversos, principalmente sobre a morte e o importante relacionamento que os africanos têm com os elementos naturais. Existem nas obras de Mia Couto muitas características textuais que podem contribuir com o enriquecimento de questões históricas e culturais que a Lei n.º 10.639/2003 recomenda que sejam estudadas, principalmente em relação à disciplina Literatura, podendo também, com muita atenção, ser utilizadas como referência na disciplina de História para complementar a história oficial dos negros de Moçambique, e da África como um todo.

Verificamos que estas obras abordam questões étnico-raciais, sem deixar de explorar estratégias de ficcionalidade. Muitas vezes, as obras valorizam, através de recursos literários, as especificidades de seu país, de sua história, de sua língua. Isto exige do leitor um conhecimento das características culturais, para não interpretar as nuances de cada país como generalizações homogeneizantes que em nada contribuem para construção da visão edificadora do africano, esteja ele em qualquer lugar do mundo.

As obras de Mia Couto, especificamente essas presentes nos kits afro-brasileiros da SMED/BH, são recursos interessantes de contribuição literário-pedagógica com a Lei n.º 10.639/2003, pois as estratégias narrativas do autor, além de contemplar a história e cultura africanas, abrangem elementos intrínsecos à questão racial e diaspórica do negro.

 

Referências

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Recebido: 24 de março de 2016

Aceite: 05 de março de 2017

 

 

NOTAS

[1] Este artigo é baseado em minha dissertação de mestrado, intitulada “A inclusão de obras de Mia Couto nos kits de literatura de escolas mineiras e os pressupostos da Lei n.º 10.639/2003: Pontos de vista e propostas de leitura”.

[2] Texto escrito segundo a norma brasileira da língua portuguesa.

[3] Uma apropriação de Zumbi como referência a morto-vivo.

[4] TV Cultura é uma rede de televisão pública brasileira.

[5] A Associação Quilombola Macuco. Associação dos Moradores e Produtores Rurais das Comunidades de Macuco, Mata Dois, Pinheiro e Gravatá – APRONPIG. Responsável: Itamar Alves de Souza / Presidente: André Ferreira de Matos. Endereço: Rua Santana, 45 – Centro, CEP 39650-000 Minas Novas MG.

[6] O nome verdadeiro dele é António Emílio Leite Couto.

[7] Segundo Platão, as imagens miméticas são a imitação da imitação, já que imitam a pessoa e o mundo do artista. Discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C) refutou o conceito ontológico do mestre, enalteceu o processo mimético e criou uma concepção estética para a arte, segundo a qual a imitação não se limita mais ao mundo exterior, mas se sustenta pelo critério de verossimilhança e fornece a representação como uma possibilidade, no plano fictício, sem qualquer compromisso de traduzir a realidade empírica (Araújo, 2011, pp. 71-72).

[8] Termo criado pela estudiosa das obras de Mia Couto, Fernanda Cavacas.

[9] Msndi: pau de almofariz.

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