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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.34 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.4000/cea.2301 

DOSSIÊ

 

Perspectivas Retóricas Presentes no Discurso Político Brasileiro no Contexto da Cooperação Brasil-África[1]

 

Rhetorical perspectives present in Brazilian political discourse in the context of Brazil-Africa cooperation

 

 

Ana Paula Rodrigues Luz Faria1; Marta Zorzal e Silva2

1Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Rua Juiz Alexandre Martins de Castro Filho, 215, Santa Lúcia, Vitória - ES, CEP 29056-295, Brasil, ana.luzfaria@uol.com.br

2Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória - ES, CEP 29075-910, Brasil, mazorzal@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo se propõe a investigar perspectivas retóricas presentes no discurso do Estado brasileiro para a cooperação Sul-Sul, especialmente diante dos crescentes investimentos que vêm sendo efetuados por empresas brasileiras em países africanos, que passam a ser os maiores destinatários da cooperação técnica. O discurso da cooperação técnica desinteressada fundamenta-se na solidariedade internacional e no resgate da dívida histórica com os países africanos, dada a sua importância na formação da etnia brasileira. Coaduna-se, assim, com os princípios constitucionais das Relações Internacionais do Estado brasileiro, os quais dão sustentação a um novo paradigma na construção do Estado Democrático de Direito, como valores supremos da vida social que transcendem os limites territoriais estatais, tratados no artigo 4º da CRFB/1988. A questão que se coloca é o papel da retórica neste discurso desinteressado do Brasil, de modo a possibilitar o desvelar de outros interesses não reconhecidos.

Palavras-chave: cooperação Sul-Sul, discurso político, desenvolvimento, interesse econômico


ABSTRACT

This paper aims to investigate the importance of rhetoric in the discourse of the Brazilian State for South-South cooperation, especially in light of the growing investments that have been made by Brazilian companies in African countries, which go on to be the biggest recipients of technical cooperation. The disinterested technical cooperation discourse is based on international solidarity and on redeeming the historical debt to the Africans, given their importance in Brazil's ethnic makeup. This is consistent with the constitutional principles of the Brazilian government's International Relations, which provide support for a new paradigm in building the democratic state of law, such as supreme values of social life that transcend state territorial limits, as covered in article 4 of the Brazilian Federal Constitution of 1988. The issue that is posed is the role of rhetoric in this disinterested discourse in Brazil, in order to make it possible to uncover other, unrecognized interests.

Keywords: South-South cooperation, political discourse, economic interest


 

 

A reconfiguração da ordem política internacional, no limiar do século XXI, contribuiu para que o Brasil, na esfera da política externa, buscasse modificar sua estratégia de ação visando “aumentar sua autonomia internacional, elevando a capacidade de defesa de suas posições, em virtude de seu poder político, econômico e militar” (Fiori, 2013, p. 30). Neste contexto, um aspecto que chama atenção no discurso da política externa brasileira, desde 2003, tem sido a promoção de uma agenda internacional voltada para a eliminação da miséria e a redução da pobreza e da desigualdade, assente no discurso da solidariedade. Tal ênfase tem sido priorizada, sobretudo, em relação à cooperação com países do eixo Sul-Sul com vistas à promoção do desenvolvimento social.

Com a intenção de problematizar componentes dessa estratégia, o estudo tem por objetivo refletir sobre perspectivas retóricas presentes no discurso brasileiro da cooperação internacional. Partindo-se da constatação de que há diversos ângulos analíticos reveladores da Cooperação Sul-Sul (CSS), os quais isoladamente, não são capazes de dar conta de todos os aspectos da relação de cooperação, pretende-se limpar o terreno discursivo da retórica, visando trazer elementos que auxiliem explicar a racionalidade estratégica da CSS, considerando que o modo concreto como ela se desenvolve ainda demanda pesquisa adicional.

Nesta perspectiva, propõe-se mostrar indicativos de tensionamentos existentes entre o discurso da solidariedade e do acordo e o que se tem na prática da cooperação brasileira, notadamente em relação ao continente africano, de modo a desvendar práticas operacionais emergentes da cooperação, enunciando nuances do imaginário presente dos dois lados do Atlântico. A intenção é destacar a presença de fortes traços das formas de cooperação para o desenvolvimento inauguradas no eixo Norte-Sul, apesar de negadas aquelas práticas.

O continente africano vem ocupando um local de destaque desde a diplomacia da era Lula, que frequentemente se referiu à dívida histórica e moral e às afinidades do Brasil com aquele continente, ampliando o número de embaixadas ali instaladas, com dobra do quantitativo então existente. Não obstante, paralelamente há uma crescente intensificação das relações comerciais e em investimentos diretos privados nos setores de mineração, na construção civil, no petróleo, entre outros (Almeida & Kraychete, 2013).

Dado o recorte proposto, objetiva este trabalho apresentar alguns desafios e possibilidade de apreensão da CSS pela análise discursiva da “solidariedade”, com vistas a apreendê-la e direcioná-la a uma reflexão mais condizente com as diversas realidades. A intenção não é validar ou rejeitar as propostas da CSS encaminhadas pelo Brasil, mas antes de problematizá-las, a partir da compreensão de que suas formulações vêm em oposição ao modelo de ajuda para o desenvolvimento proposto pelo Norte global. A questão que se coloca é até que ponto a cooperação praticada pelo Brasil traz indícios daqueles universos hegemônicos, de modo a permitir uma análise crítica sobre a necessidade de um redimensionamento teórico da cooperação entre os países do Sul global.

Desenvolveremos o trabalho em três tópicos. No primeiro, apresentaremos notas introdutórias sobre formação dos BRICS. Na sequência, realizaremos um breve panorama da cooperação Sul-Sul, a partir da emergência desses novos atores no cenário da cooperação internacional para o desenvolvimento (CID). No terceiro, abordaremos a atuação brasileira na cooperação Sul-Sul com enfoque na problematização do discurso político nas relações internacionais com a África de modo a produzir reflexões críticas sobre as motivações diplomáticas e econômicas do país em relação ao continente tendo como foco a indagação: existe efetivamente cooperação técnica despida de condicionalidades?

 

Dos BRICs aos BRICS

Com o fim da Guerra Fria, após a queda do muro de Berlim, em 1989, profetizava-se que os Estados Unidos da América (EUA) seriam a única potência mundial. Entretanto, no limiar dos anos 2000, observa-se que países como Brasil, Índia, China e África do Sul passam a gozar de maior influência em questões importantes da política internacional, despertando dúvidas quanto à centralidade absoluta dos EUA (Ramanzini Junior Ribeiro, 2013).

Emergiu, neste contexto, o acrônimo BRIC, após o anúncio do relatório do economista Jim O'Neill intitulado Building Better Global Economic BRIC do grupo Goldman Sachs (2001). O relatório reproduzia a visão do mercado financeiro sobre os referidos países, fundado no mapeamento do crescimento do PIB, renda per capita e movimentos financeiros, e mostrava como estes deveriam ser considerados nas estratégias dos grandes investidores. A análise apontava para uma diminuição do peso dos países do G-7 na economia mundial, paralelamente ao aumento da participação dos BRICs, com ênfase na atuação da China (Carmo, 2011, p. 3), dada a manutenção de uma considerável taxa de crescimento destes, desde os anos 80. Integrados por Brasil, Rússia, Índia e China, na formação dada aos BRICs por O'Neill, não houve inclusão da África do Sul, ao argumento de não possuir as características e capacidades econômicas que motivaram o agrupamento dos quatro demais países (Carmo, 2011).

A crise financeira internacional de 2007-2008 alterou o panorama, notadamente no âmbito político, ao colocar como desafio para cada um dos países, não deixar que as negociações econômicas internacionais sobre a conjuntura ficassem restritas ao G-7[2] (Carmo, 2011, p. 10). Apesar de a crise ter provocado efeitos diversos sobre os BRICs, tendo a Rússia sofrido o maior impacto, tal conjuntura possibilitou a criação de uma zona de convergência política “entre esses novos atores da economia política internacional” (Carmo, 2011, p. 10), e também a criação de maiores vínculos, a partir da percepção da baixa influência que possuíam nas pautas que tratavam do sistema financeiro internacional.

No ano de 2009 ocorreu a primeira reunião de cúpula dos BRICs, deflagrando-se a concepção de uma aliança política tendo como foco uma concertação internacional.

Outras reuniões ocorreram visando a consolidação dessa estratégia e, no ano de 2011, deu-se a inclusão da África do Sul, alterando-se a denominação do grupo para BRICS. No mês de julho de 2014 realizou-se no Brasil, a VI Cúpula dos BRICS, com ênfase para a inclusão social e o desenvolvimento sustentável, deliberando-se sobre o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), que constitui linha de defesa adicional aos países mandatários e sobre o Novo Banco de Desenvolvimento com vistas ao financiamento de projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável[3], com sede em Xangai, na China, e a primeira presidência exercida pela Índia.

Ao longo desse processo de articulação entre esses cinco países procurou-se reforçar o papel dos BRICS como “espaço político de concertação para a agenda econômico-financeira internacional e fortalecer os laços entre os seus membros através dos mecanismos de cooperação para o desenvolvimento nas áreas de agricultura, energia e científica-tecnológica” (Carmo, 2011, p. 11). No entanto, devido à presença de fortes assimetrias políticas e econômicas existentes entre esses países, tais fatores impediram a formação de uma aliança no sentido de constituir um instrumento para promover e institucionalizar a redistribuição do poder econômico em escala mundial. Foi mantido o caráter “informal da aliança, não havendo um texto constitutivo, nem uma burocracia ou recursos financeiros para promover o aprofundamento da articulação entre os cinco países” (Carmo, 2011, p. 11).

Apesar dessas características, com a entrada dos BRICS no palco internacional, a cooperação para o desenvolvimento ganhou nova dinâmica, na medida em que esses países passaram a afirmar-se cada vez mais como vetores alternativos dos investimentos, tecnologias, ideias e produtos disponíveis para os países demandantes de apoio e cooperação internacional. Por sua vez, segundo Madeira, Hellmann e Medeiros (2011), o Brasil possui interesse diferenciado na articulação dessa estratégia de cooperação internacional, cujas evidências podem ser vistas na análise das principais diretrizes da política externa da primeira década do século XXI, que foram crescentemente “pautadas pelo ‘engajamento na luta contra a pobreza e a fome no mundo', pelo ‘estreitamento das relações com países emergentes' e pelo ‘alinhamento de desenvolvimento político ao socioeconômico'” (Madeira et al., 2011, p. 21). Além disso, na medida em que o equilíbrio entre os Estados nacionais foi amplamente impactado pelos processos de intensificação das interações transnacionais, impulsionadas pelos processos de globalização, o Brasil procura posicionar-se, de um lado, de modo a “contribuir para a construção de um sistema mundial multipolar, em lugar da atual unipolaridade norte-americana”, e por outro lado, no que concerne aos “temas econômicos busca o reforço dos organismos multilaterais e as alianças de geometria variável, como o G-20 e o G-3” (Vizentini, 2006,como citado em Madeira et. al., 2011, p. 21).

Desse modo, os BRICS comparecem como novidade no âmbito da política externa brasileira, ao mesmo tempo que surgem como novos protagonistas com a criação e o fortalecimento de redes de intercâmbio Sul-Sul. No entanto, como adverte Carmo (2011, pp. 13-14), pelo fato de se encontrarem em situação de disputa de espaços no mercado internacional, e em concorrência (seja por meio da promoção de suas exportações, seja na atração de fluxos de capitais), a possibilidade de construir uma aliança visando uma proposta estratégica comum tem probabilidade limitada, assim como também o é a capacidade de modificar as instituições internacionais ou definir um projeto de reforma para o sistema econômico internacional, na medida em que existem diferenças insuperáveis nas condições socioeconômicas e nos objetivos dos referidos países.

 

A cooperação Sul-Sul

A CSS tem se constituído em objeto de inúmeros estudos nas últimas décadas. Todavia, Iara Leite argumenta que o termo, que vem sendo utilizado largamente por governos, organizações internacionais e entidades da sociedade civil, tem sido concebido enquanto um conjunto amplo de fenômenos voltados às relações entre os países em desenvolvimento, caracterizadas pela formação de coalizões múltiplas, pela assistência em prol do desenvolvimento, por arranjos regionais de integração e pela barganha coletiva em arranjos internacionais. Já para especialistas, prossegue Leite, representa uma modalidade da cooperação internacional para o desenvolvimento, CID (Leite, 2012, p. 1).

O fato é que em razão do baixo interesse no estabelecimento de uma definição precisa acerca da CSS observa-se o uso de variadas definições, com utilização ora da expressão “cooperação”, ora, “colaboração”. Com frequência, algumas experiências de CSS mesclam elementos próprios da cooperação bilateral, da triangular e da regional. A coincidência simultânea desses elementos dificulta a classificação dessas experiências numa modalidade concreta (SEGIB, 2014).

A cooperação entre os povos do Sul ganhou impulso com o movimento independentista afro-asiático, remontando à conferência de Bandung (1955), o surgimento da classificação Sul-Sul e Norte-Sul. A conferência concretizou a percepção da capacidade de organização desses povos sem vinculação à presença de um país/ator dominante, a exemplo dos Estados Unidos e União Soviética (Amin, 2003). No mesmo evento, emergiu uma terceira categoria que resultou na formação do Movimento dos Países Não Alinhados (MPNA), no ano de 1961, cujo pressuposto era assumir uma neutralidade dupla, tanto frente ao bloco comunista, liderado pela URSS, como em relação ao bloco capitalista, encabeçado pelos EUA. Neste cenário iniciou-se, ou foi se tornando mais clara para os países do Sul global a oposição Norte-Sul, que passou a ter menos importância do que o conflito Leste-Oeste.

O momento representou, para além de uma simples oposição, um ambiente de busca de compartilhamento de interesses, entre Estados que tinham similares problemas e histórias de colonização, abrindo-se espaço à cooperação, frente às forças hegemônicas que cindiam o mundo em duas zonas de influência. Naquele contexto foi estabelecida a cooperação entre os países da Ásia e da África de acordo com a busca das ex-colônias pela Nova Ordem Econômica Internacional.

Alguns princípios de cooperação amigável foram previstos em Bandung: respeito aos direitos humanos fundamentais e aos princípios da Carta as Nações Unidas; respeito pela soberania territorial e pela integridade das nações; reconhecimento da igualdade das raças entre todas as nações; não intervenção ou interferência nas questões domésticas de outro país; respeito ao direito de defesa e abstenção de atos de ameaça ou de agressão ou do uso da força contra a integridade territorial e política de qualquer país, priorizando-se a resolução de conflitos por vias pacíficas, etc. (CVCE, 1955). A CSS surge assim como consequência do não alinhamento dos países do Terceiro Mundo durante a Guerra Fria, com forte caráter ideológico e político.

Na década de 1960, foi formada a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD)[4], e instituído o Grupo dos 77[5], consolidando a institucionalização da solidariedade dos países do Sul, servindo de impulso à Cooperação Técnica (CTPD) e a Cooperação Econômica entre os Países em Desenvolvimento (CEPD). E assim, nos idos do ano de 1961, os primeiros debates sobre as coalizões Sul-Sul foram consolidados, no seio da primeira conferência do MPNA, com participação de 23 países afro-asiáticos, um da América Latina (Cuba) e um europeu (Iugoslávia), movimento esse que, na visão de Soares Leite, pode ser concebido como a institucionalização da cooperação Sul-Sul (2008, pp. 50-54).

Em 1974 foi criada a Unidade Especial para Cooperação Sul-Sul do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com vistas à promoção da Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento. Posteriormente, em 2003, foi ampliada a sua atuação para a CSS, incluindo também, no plano econômico e político, a colaboração entre os Estados em desenvolvimento[6]. Vê-se que, com o tempo a CSS foi ganhando maior abrangência, compreendendo no conceito de países do Sul todos aqueles que, a partir de uma herança colonial exploratória, foram posicionados à margem do sistema internacional de nações.

No âmbito da cooperação econômica, Iara Leite ressalta como marco central de ação para a cooperação o primeiro choque do petróleo, em 1974, identificando a formação da OPEP como também a mais eficaz na história de barganha do Sul, “vis-à-vis” os países industrializados (Leite, 2012, p. 17). Já no âmbito multilateral, a cooperação técnica e econômica ganhou fóruns mais específicos, tendo a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) organizado a Conferência sobre Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD), com 138 países participantes.

Na década de 80 e até meados dos anos 90, ocorreu forte recuo nas relações Sul-Sul derivado de uma série de fatores. Primeiro devido ao desequilíbrio da economia internacional causado pelos impactos da crise econômica mundial ocorrida nos anos 80, que aliado à forte dependência das economias periféricas conduziu nestes países ao problema da crise da dívida externa. No caso dos países da América Latina, outro agravante foi o fato de a maioria dos países concomitantemente estarem passando pelos processos de transição à democracia, o que reduziu ainda mais suas capacidades para voltar-se a articulações no plano externo. Além disso, um terceiro fator decorrente da referida crise econômica foi à emergência de um novo modelo de desenvolvimento, focado no ajuste neoliberal, que acabou levando os países do Sul a competir pela recepção de investimento estrangeiro direto, desmobilizando décadas de ações conjuntas voltadas à reforma da ordem econômica mundial, arrefecendo as próprias iniciativas da CSS. Finalmente, a queda do muro de Berlim e com ele o regime soviético colocou em suspenso o próprio eixo central do movimento dos países do Sul, ou seja, a busca de autonomia diante da disputa bipolar (Leite, 2012, p. 18).

Entretanto, uma conjuntura distinta emergiu no limiar dos anos 2000, marcada pela maior consolidação das mudanças causadas pelos processos de globalização, e pelo retorno ao multilateralismo nos países do Sul. No âmbito doméstico, sobretudo no Brasil, cresciam as insatisfações com os impactos sociais causados pelos ajustes neoliberais, ao mesmo tempo que a recuperação econômica de parte dos países do Sul também estivesse ocorrendo ancorada, sobretudo, na alta dos preços das commodities, o que contribuiu para emergir um novo contexto em que alguns países do Sul puderam reassumir maior protagonismo em relação à CSS na cena internacional (Boscaine, 2013, p. 17).

Essa nova conjuntura, além de resgatar as atuações em prol da união em torno de barganhas no âmbito multilateral, sobretudo aquelas entre países em desenvolvimento que, no âmbito da OMC, atuaram em prol da quebra das patentes de medicamentos antirretrovirais, assim como pela abertura comercial dos países desenvolvidos para os produtos agrícolas (G-20), foi muito além buscando estabelecer conexões com outras potências emergentes (Leite, 2012, p. 21). Com isso inaugura-se uma nova fase mais intensa e complexa em que os países emergentes passam a ser muito mais atuantes, dando origem a partir de então ao conceito de Sul global, estreitamente relacionado ao auge da globalização (Boscaini, 2013, p. 17). Entre 2000 e 2007, além de conferências e reuniões mais frequentes, foi realizado o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul, em 2003, e emergiu o agrupamento Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul (BRICS), que começou a trabalhar coletivamente a partir de 2006, fortalecendo a CSS e legitimando a busca por novos modos de promoção de desenvolvimento. O G-77 já havia realizado, em 2000, a primeira Cúpula do Sul, em Havana[7], quando foram destacados os princípios de soberania e igualdade soberana dos Estados, integridade territorial e não intervenção nos assuntos internos de qualquer Estado, marcando o início da ação de novos protagonistas responsáveis por catalisar e disseminar atividades de cooperação.

Subsequentemente, em 2005, foi realizada em Doha a Segunda Cúpula do Sul, destacando-se a relevância da cooperação econômica para a CSS. O resultado foi a publicação do Plano de Ação de Doha[8], com o estabelecimento de variadas medidas, enfatizando a sua importância na superação do desenvolvimento em uma economia mundial em processo de globalização. Nesta ocasião foram tratadas ações asseguradoras de fluxos de investimento para países em desenvolvimento, com vistas também ao fortalecimento da cooperação em outras áreas como a tecnologia e a medicina. Em 2009, foi realizada a Conferência de Alto Nível das Nações Unidas sobre CSS, e em dezembro de 2011, na Coréia do Sul, o Quarto Fórum de Alto Nível sobre Efetividade da Ajuda, no qual houve o reconhecimento da CSS enquanto modalidade de cooperação internacional para o desenvolvimento.

Com o rearranjo de forças e ações verificado a partir de então, observa-se que as estratégias e ações praticadas na década de 1970 ressurgem com potencial inédito ao lado de novas coalizões multilaterais, no século XXI. Nesse sentido, destaca-se o reforço da cooperação triangular, sobretudo nas atividades da Cooperação Técnica entre Países para o Desenvolvimento (CTPD), cuja atuação ressurge revigorada contribuindo para o desenvolvimento das nações do Sul, envolvendo muitas vezes conexões entre dois países em desenvolvimento, com intermediação de um país desenvolvido[9].

Vale frisar que, além da diversidade dos atores, a cooperação Sul-Sul proclama os princípios da não interferência em assuntos internos, o respeito à soberania, à igualdade dos cooperados, à diversidade dos métodos presentes na colaboração, priorização dos recursos locais, à maior simplicidade e celeridade, à preservação da identidade da cultura e da diversidade, ao menor custo e à adaptação do que é prioritário à nação. Outro aspecto a ser sublinhado é que as relações de CSS possuem a vantagem de operar em contextos menos assimétricos do que as relações de cooperação Norte-Sul, tendo em vista que as realidades dos países do Norte estão em grande descompasso e assimetrias em relação às nações do Sul.

Mas, tanto Leite (2012) como Pino (2010, 2012) advertem que a CSS é um conceito de difícil definição, pela variedade de países que integram o “Sul”, e pela diversidade de atividades desempenhadas por eles no âmbito da CSS. Além disso, esses autores destacam que os estudos indicam que, a partir dos anos 90, as questões econômicas se colocam em zona de tensionamento com os princípios de solidariedade da CSS. Ressaltam que a ausência de condicionalidades políticas no discurso da CSS, o que seria de praxe e explícito no contexto da AOD, não raro aglutina cooperação técnica e a cooperação econômica em um mesmo projeto, o que, muitas vezes, atrai a implementação de condicionalidades que vão de encontro à horizontalidade que lhe serve de tônica. Com isso, os países receptores acabam assumindo ônus que vão desde o compromisso da compra de insumos e contratação de mão de obra para execução do projeto de cooperação até a vinculação da liberação de linhas de créditos e de investimento para execução de projetos, o que na prática resulta na quase reprodução da lógica hegemônica presente na cooperação Norte-Sul (Pino Leite, 2010).

Diante dos indícios levantados por Leite (2012) e Pino (2010, 2012), problematiza-se questionando em que medida os princípios humanitários e solidários presidem as ações e estratégias da CSS, em geral, e da Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD), em particular. Respostas a estas questões, no entanto, carecem de estudos empíricos sobre as coalizões e redes que se estabelecem no âmbito da execução dos projetos. Adiante retomaremos essa questão, por ora interessa explorar ainda outras dimensões da cooperação Sul-Sul.

 

Cooperação Sul-Sul: Brasil-África. Cooperação sem condicionalidades?

Ressalta Cesarino (2012, p. 2) que a cooperação Sul-Sul usualmente assume uma tendência de ser observada e apreendida na ótica de situações familiares mais conhecidas, no caso, “o desenvolvimento internacional feito pelos países do Norte, desde ao menos a Segunda Guerra Mundial”.

Tendo essa concepção como pano de fundo à abordagem, uma das “reações espontâneas” mais comuns, no tema da CSS, especialmente quando se trata da África subsaariana, é fazer a leitura sob a lente do neocolonialismo, onde em princípio poderíamos enquadrar o caso da China, por exemplo, cuja atuação é acompanhada por muitos discursos e propagandas negativas, especialmente por parte dos EUA.

Outras abordagens, como propõe Cesarino (2012), assumem uma tendência de enquadramento da CSS num arcabouço de governabilidade e outras questões afins. Essas apreensões, ou mesmo reações, vão se associando às correntes acadêmicas, caminhando à formação de um senso comum tanto dos países que vão oferecer ajuda, como também em relação aos países receptores da ajuda para o desenvolvimento, em torno de questões atinentes à verticalização, dominação e controle, presentes no cenário do desenvolvimento internacional.

Como vimos, na última década emergiu um “cenário renovado” da CSS. Três dimensões facilitaram sua profusão: uma dimensão política, relacionada à geração de perspectivas e práticas alternativas entre os países em desenvolvimento, favorecendo a comunicação e o estreitamento das relações bilaterais à criação e revitalização de coalizões regionais e inter-regionais; uma dimensão técnica, a partir da qual países em condições de desenvolvimento adquirem capacidades intelectuais e coletivas por “intermédio de intercâmbios cooperativos em conhecimentos, experiências tecnológicas, expertises tecnológicas, que se traduzem em projetos e programas de cooperação”; e uma dimensão econômica, materializada no âmbito comercial, financeiro e de investimentos (Pino, 2012, p. 239).

A América Latina, neste contexto, comparece com maior intensidade e dinamismo de experiências na CSS, palco de avanços e articulações positivas, e do estabelecimento de importantes marcos estratégicos como o conceito de Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD), que foi fruto da Conferência de Buenos Aires (1978).

Além da maior diversificação em relação aos países sul-americanos, o Brasil, nesta nova etapa, voltou também com maior intensidade seu olhar e atenção para a África (Pino, 2012; Soares Leite, 2008; Boscaini, 2013).

Os processos de globalização aliados aos realinhamentos na geopolítica mundial, sobretudo a partir do limiar do século XXI, como vimos, abriram espaço para que os países emergentes do Sul global expandissem suas áreas de influência e de cooperação para outros países ainda não industrializados, nos quais se inclui os países africanos. Neste cenário, muitos países procuraram consolidar alianças estratégicas tanto nos limites regionais como fora deles, “fazendo da cooperação um instrumento de política externa” (Almeida Kraychete, 2013, pp. 341-374). Apesar de a cooperação brasileira para o desenvolvimento ainda possuir dimensões modestas quando confrontada com outras potências ditas “emergentes”, como é o caso da China, o Brasil se posiciona como referência mundial em áreas como a pesquisa agropecuária, o atendimento básico na saúde, o tratamento com antirretrovirais para a AIDS e também na área social, a partir dos programas de transferência de renda e alimentação escolar. Com essas ações o Brasil assume sua importância cada vez mais reconhecida pelos países africanos, especialmente aqueles de língua portuguesa, foco principal da política externa brasileira na África.

Os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e os produtores de algodão passaram a ser os destinatários principais da cooperação técnica brasileira, sob o discurso da dádiva, fundamentado na solidariedade internacional, na necessidade de resgate e compensação da dívida histórica para com os africanos na formação da multiétnica sociedade brasileira (Almeida & Kraychete, 2013, p. 342). Não obstante, resulta imperioso reconhecer a existência de outros interesses econômicos silenciados no discurso brasileiro, que não podem ser ignorados nesta relação com os países africanos, tais como a necessidade de inserção competitiva do Brasil no mercado globalizado, e sua busca pela integração regional.

Dessa perspectiva, Almeida e Kraychete (2013) ressaltam que o discurso da dádiva, que sustenta a cooperação Sul-Sul, pressupõe que sua compreensão seja entendida como uma “relação de obrigações recíprocas destituídas de conflito e carregadas de valor moral, em contraposição a uma troca comercial interessada na qual se busca a satisfação de um interesse”. Nesse sentido, as autoras pontuam que se efetivamente a cooperação brasileira pode ser orientada por uma política externa que seja embasada em princípios de solidariedade internacional, da redução da desigualdade e cooperação entre os povos, na prevalência dos direitos humanos, artigo 4º da CRFB/1988 (CRFB, 1988), observa-se que há conflitos entre os investimentos que estão sendo efetuados a propósito da cooperação desinteressada e os efetivos anseios do povo e do governo moçambicano (Almeida Kraychete, 2013).

Vale sublinhar que a ajuda externa, desde seus primórdios nos anos de 1950, sempre esteve presente no cenário internacional acompanhada por um forte conteúdo moral pautado por ideias de solidariedade e humanidade considerando que, dentro do sistema internacional, o doador de ontem poderia ser o beneficiário de amanhã. Assim, em especial nas situações de colapso causadas por guerras ou desastres naturais, sempre foi reservado algum tipo de ajuda, a exemplo da ajuda para a reestruturação de países europeus vitimados pela Segunda Guerra Mundial, ou no mesmo diapasão a ajuda dada aos países em desenvolvimento, a partir de concepções do estado de miserabilidade de seus povos (Almeida Kraychete, 2013).

A questão é que nessa ação cooperativa do eixo Norte-Sul, a observância de condicionalidades na ajuda sempre foi mais clara. Essas condicionantes já serviam a sinalizar que a cooperação não se daria de modo isento e desinteressado, e nem sempre seria coincidente com a “real necessidade daquele que buscava ajuda” (Almeida Kraychete, 2013, p. 343). Em cenário mais recente dos anos de 1980, a cooperação passou a seguir as condicionantes ditadas pelo Banco Mundial[10] e pelo Fundo Monetário Internacional, com o compromisso de que os países receptores agiriam no propósito de promover a estabilidade econômica, reduzindo a intervenção estatal.

Observado o recorte metodológico proposto no presente estudo, importa destacar que, ao contrário do que se apresenta claro na cooperação Norte-Sul, o discurso da cooperação Sul-Sul do Brasil com a África parte do princípio da solidariedade e do compartilhamento de experiências, a partir de um pressuposto de que os países se encontram em semelhante situação de desenvolvimento, voltando-se o compartilhamento a “experiências” e “conhecimentos”. O trecho, a seguir, da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) evidencia o discurso da diplomacia brasileira:

A cooperação técnica no Brasil é desenvolvida segundo duas vertentes: a cooperação horizontal (ou “Sul-Sul”) e a cooperação recebida do exterior. A cooperação horizontal refere-se à cooperação técnica implementada pelo Brasil com outros países em desenvolvimento, por meio da qual o compartilhamento de experiências e conhecimentos disponíveis em um amplo espectro de instituições brasileiras junto a instituições de países interessados na cooperação com o Brasil permite promover o adensamento de suas respectivas relações em distintas dimensões, dentro do marco de uma política externa solidária no campo da Cooperação para o Desenvolvimento (ABC, 2014).

Se por um lado existe, especialmente no caso das relações Brasil-África, uma real mudança de paradigma, se considerada a menor assimetria entre os países cooperantes (quando comparada à relação de cooperação Norte-Sul), e ainda, a possibilidade efetiva de reestruturação dos respectivos países, a partir da transmissão do know-how em setores estratégicos, apresentando-se, assim, como uma alternativa que se apresente viável para o desenvolvimento em curto prazo, por outro lado, é preciso dar visibilidade aos interesses envolvidos nesses processos. Mais que isso, é necessário explicitar que tais processos implicam em mudanças profundas que por sua vez conduzem a perdas e custos para segmentos populacionais que serão afetados. Elementos estes que são silenciados no discurso das linhas mestras da política externa brasileira, alicerçada na defesa da paz, na solução pacífica das controvérsias, na prevalência dos direitos humanos, na busca pelo desenvolvimento, na autodeterminação dos povos, na redução das desigualdades.

Além disso, no plano discursivo é desconsiderada a existência de assimetrias na cooperação e mais, considera-se que há confluência das motivações altruístas com os interesses próprios do Brasil.

Outra questão que deve ser tensionada é que, embora os cooperadores brasileiros possam dominar os processos técnico-organizacionais em sua área de atuação, eles podem não deter grande conhecimento sobre as reais necessidades e os anseios dos povos africanos, nem sobre os desafios que envolvem a sua política de desenvolvimento. A se considerar que a CSS não representa somente uma cooperação técnica relacionada a programas, mas também uma cooperação associada a projetos de desenvolvimento, é necessário o investimento na capacidade de os países parceiros definirem suas próprias noções de desenvolvimento, de modo a poderem refletir e propor as alternativas possíveis, sustentáveis e inclusivas. Afinal, o que se entende por desenvolvimento?

A concepção do que se entende por desenvolvimento situa-se num campo de disputa discursiva, em que diferentes tradições de pensamento reivindicam legitimidade no plano discursivo quer seja acadêmico, político ou societário. Desse modo, envolve disputas de sentido em três aspectos principais: a visão ou medida do que deve ser uma sociedade desejável; a visão do processo histórico de mudança social; e a visão de quais devem ser os esforços deliberados de melhoria a serem efetuados por agências ou agentes de desenvolvimento (Thomas, 2000, p. 48). Significa dizer que tais concepções assentam em diferentes pontos de vista da História e sobre como o desenvolvimento deve ocorrer, desaguando em distintas prescrições sobre quem detém a posição de agente condutor do processo e como ele poderá ser alcançado, o que implica em “embates hegemônicos e contra-hegemônicos pela afirmação e legitimação de sentidos” (Zorzal e Silva, 2014).

Desse ponto de vista, a discussão sobre desenvolvimento implica em primeiro lugar em explicitar os pressupostos que fundamentam as concepções que orientam as diversas modalidades de cooperação entre os países doadores e os receptores da cooperação para o desenvolvimento. Para tanto, é preciso pensar a problemática do desenvolvimento a partir da dinâmica societária, o que implica em considerar o modo como as relações sociais se estruturam, portanto o modo como desigualdades e diferenças são historicamente configuradas nas respectivas sociedades; o que implica em considerar como interesses se expressam e os conflitos se realizam, sobretudo nas sociedades receptoras da cooperação, visando estabelecer uma pactuação mínima que leve em conta os diversos segmentos sociais constitutivos dessa sociedade, assim como quais são os custos sociais destes processos nunca esclarecidos a priori. Sobre este aspecto vale ressaltar que a ação cooperativa leva impressa a marca sociocultural que caracteriza os promotores da cooperação. Significa dizer que:

junto com os programas de cooperação e investimentos diretos “viaja” todo um universo de relações, sentidos e racionalidades que se sobrepõem assimetricamente nas sociedades receptoras, impondo-lhes condicionalidades e reordenamentos estruturais, que impactam o meio ambiente e a sociedade como um todo. Tais processos acabam ampliando as desigualdades sociais e econômicas em virtude da concentração de capital e de poder que eles induzem (Zorzal e Silva, 2014, p. 40).

Visto desse ângulo, não há possibilidade de dissociar o discurso solidário do Brasil, lastreado por princípios que tem por fim a redução das desigualdades entre os povos, sobretudo quando se observa a partir das relações estabelecidas pelas empresas brasileiras, também inseridas no discurso como integrantes desse mesmo processo de cooperação e ajuda. Inúmeras são as empresas que vêm se instalando, especialmente nos países de língua portuguesa do continente africano. Entre elas destacam-se: Construtora Norberto Odebrecht S.A., Companhia Vale do Rio Doce, Grupo Correa Camargo, Grupo Andrade Gutierrez, Petrobras. Notadamente em Moçambique, por exemplo, a relação dos investimentos da iniciativa privada atuando nos projetos de cooperação evidencia as contradições. Os projetos de investimentos dessas empresas impactam desigualmente os diversos grupos sociais moçambicanos, produzindo efeitos perversos sejam no âmbito territorial, social, cultural e ambiental, determinando mudanças profundas cujos custos afetam de modo contundente os segmentos mais desfavorecidos da sociedade (Garcia, Kato & Fontes, 2013; Zorzal e Silva, 2014).

Existem várias questões polêmicas envolvendo a atuação das empresas brasileiras em Moçambique. O site do Instituto Humanitas Unisinos (2011) publicou uma entrevista efetuada ao ativista da ONG moçambicana Justiça Ambiental, Jeremias Vunjanhe, mas também de organizações de base comunitárias em Moçambique, na qual relata contradições existentes entre a promessa de ajuda cooperativa ao desenvolvimento e o que se verifica na prática. Vunjanhe é contundente:

Como cidadão moçambicano, vejo o processo de instalação da Vale em Moçambique com muita preocupação, perplexidade e indignação. Aparentemente, a Vale seguiu formalmente todos os procedimentos exigidos por lei para dar início ao processo de instalação e obtenção da concessão do projeto de carvão de Moatize. Dada a sua capacidade de propaganda, a instalação da Vale aqui foi vista como promissora e despertou muitas expectativas no povo moçambicano, esperançados por oportunidades de emprego e de desenvolvimento do país. Porém, muito rapidamente a instalação da Vale Moçambique converteu-se num dos mais bem sucedidos processos de transformação do país numa plataforma privilegiada para a realização dos interesses capitalistas excludentes e alheios aos moçambicanos, dos grandes grupos empresariais e países do centro e emergentes (IHU, 2011).

Ademais, Vunjanhe destaca que há existência de grande tensão no ambiente de trabalho, pelo tratamento desigual conferido aos trabalhadores recrutados em Maputo em relação aos filhos de dirigentes políticos que estão na capital em Moçambique. Denuncia o labor precário em relação a trabalhadores de menor instrução e o problema da falta de diálogo. Sublinha a queixa dos trabalhadores ao serem forçados a servir-se de alimentos que lhes provocam alergias, denunciando descontos irregulares nos salários e trabalho inseguro, situações que seguem sem defesa coletiva em razão do enfraquecimento das entidades sindicais dado o longo contexto de ditadura de partido único, com limitação dos direitos e liberdades fundamentais do povo.

O depoimento reforça a constatação de que os projetos executados pelas empresas brasileiras têm suscitado muitas críticas e discussões envolvendo governo, ambientalistas, acadêmicos e organizações da sociedade civil em torno dos custos e benefícios econômicos, sociais e ambientais, assumindo forma de denúncia da ausência de respeito aos modos tradicionais da sociedade e, inclusive, à livre circulação dos cidadãos das comunidades de Moatize.

Tais questionamentos não se voltam apenas para o Brasil. Também no caso dos demais países integrantes do BRICS, estudos realizados pelo Policy Center evidenciam que a participação da África do Sul no grupo de emergentes não é pacífica no plano interno dos países africanos, tendo em vista que ela é considerada porta de entrada para os demais. A manifestação do líder da Liga Jovem do Congresso Nacional Africano (CNA), Julius Malema, contida no estudo referido, mostra o temor dos africanos em relação à exploração da África pelos demais países, nos seguintes termos:

As pessoas usam a África do Sul para entrar na África e tomar os recursos minerais do continente. A China é o país número um que recorre a esta prática. Os investidores chineses não dão nada, nem trabalho. Eles apenas abrem cidades chinesas e providenciam tudo... Eles não deixam nada[11].

O fato é que, não obstante o cenário de grandes tensões apresentado, do ponto de vista do discurso da diplomacia brasileira, a ênfase é colocada no reforço das capacidades e entre os parceiros, via relações horizontais, que resultaria em benefícios para ambos.

Dessa perspectiva a cooperação é concebida dentro de uma política equânime, sem que sejam consideradas possíveis assimetrias existentes entre os cooperados, decorrentes de seus diversos estágios de desenvolvimento. Por meio do reforço dos elementos emotivos o compromisso solidário comparece em quase todos os discursos da política externa do Brasil para com o continente africano.

O peso dos laços de sangue presentes no discurso da cooperação Brasil-África, na visão de Bodomo (2011, p. 78), coloca o Brasil em real vantagem sobre a Europa, a China e a Índia. Para o autor, mais do que a China e mais do que a Índia (que também sofreu com o comércio de escravos), o Brasil pode apresentar-se legitimamente frente à África como outra vítima da exploração ocidental e, deste modo, sustentar a defesa da necessidade de manutenção da união econômica e de investimento. No entanto, prossegue Bodomo no sentido de que esses vínculos de sangue não são suficientes, devendo ser enfatizadas as reais vantagens econômicas e sociais da cooperação.

Do ponto de vista do contraponto entre a retórica discursiva e o que se observa, nas análises fundadas em dados empíricos, é que, não obstante o discurso da cooperação técnica, o ingresso do Brasil e demais países constituintes do BRICS na África decorre também, em larga medida, dos interesses econômicos privados que visam ampliar suas condições de competitividade por recursos e por mercados no atual contexto do capitalismo globalizado. No caso específico do Brasil, vêm sendo incrementados, desde a última década, empreendimentos privados em diversos países do continente, tendo como carro chefe os investimentos diretos realizados pela Vale S/A e pela Petrobras.

Sobre este aspecto, o contraponto entre os interesses econômicos da Vale S/A e o discurso da solidariedade veiculado pelo Brasil evidencia o descompasso e as distâncias que se interpõem nessas relações. Neste sentido, vale conferir a análise de Santos (2012) que problematiza impactos da atuação da empresa no que se refere à sociedade local e aos direitos humanos, o que corrobora a desconexão entre discurso e ação:

As grandes multinacionais, algumas bem conhecidas dos latino-americanos, como a Rio Tinto e a brasileira Vale do Rio Doce (Vale Moçambique) exercem as suas atividades com muito pouca regulação estatal, celebram contratos que lhes permitem o saque das riquezas moçambicanas com mínimas contribuições para o orçamento de estado (em 2010 a contribuição foi de 0,04%), violam impunemente os direitos humanos das populações onde existem recursos, procedendo ao seu reassentamento (por vezes mais de um, num prazo de poucos anos) em condições indignas, com o desrespeito dos lugares sagrados, dos cemitérios, dos ecossistemas que têm organizado a sua vida desde há dezenas ou centenas de anos.

Sempre que as populações protestam são brutalmente reprimidas pelas forças policiais e militares. A Vale é hoje um alvo central das organizações ecológicas e de direitos humanos pela sua arrogância neo-colonial e pelas cumplicidades que estabeleceu com o governo (Santos, 2012).

Na mesma direção, ativistas internacionais e moradores da região de Moçambique levantam acusações sobre violações a direitos humanos praticados por empresas brasileiras. A ONG Human Rights Watch (HRW) publicou um relatório em que denuncia o reassentamento de populações em locais onde não há água nem comida, além da proibição, pelas autoridades locais, de diálogo entre líderes comunitários locais e organismos de imprensa (HRW, 2013). O que precisa ser desvelado? Para quem são os reais benefícios da cooperação?

Como adverte Zorzal e Silva (2014), o fato é que, não havendo muito espaço para debates, dada a burocracia dos processos decisórios, a arena pública segue permeada com o discurso da esperança, sempre à espera de futuros melhores do que aqueles verificados no presente.

 

Considerações finais

A análise das questões apontadas, confrontada ao contexto da CSS, notadamente no caso africano, revelou contradições no discurso brasileiro de cooperação para o desenvolvimento africano.

Embora a cooperação comporte a existência de interesses convergentes entre Brasil e África, que representam efetivamente um caminho (talvez o mais viável) para o desenvolvimento a curto e médio prazo dos países receptores, a ideia de que a cooperação para o desenvolvimento seria isenta de questionamento, sobretudo do ângulo dos países receptores das políticas de ajuda externa não se sustenta.

Além disso, apesar da importância da atuação brasileira em termos da cooperação técnica com África, existem grandes diferenças entre o Brasil e os países africanos que resultam em interesses nem sempre coincidentes. Ademais, há um considerável vazio em torno da busca por um debate ampliado entre os países cooperantes em torno daquilo que se entende por desenvolvimento no atual contexto do mundo globalizado.

Se de fato é identificado na relação entre o Brasil e alguns países africanos um maior enfoque em cooperação técnica, o que implica na partilha de tecnologia e know-how no combate à pobreza, fome e em incremento à saúde e à agricultura, por outro lado o alargamento do abismo em relação à assimetria existente entre os parceiros da CSS tenderá a produzir a verticalização das relações e, portanto, a reproduzir a polaridade entre “doador x receptor” que foi a tônica da cooperação Norte-Sul. Ao final, tudo é apropriado pela força do capital.

Neste sentido, é imperioso que se dê maior ênfase às responsabilidades dos países cooperantes e que se promovam avaliações dos impactos dos investimentos sobre as comunidades locais e sobre os direitos humanos das populações afetadas pelas mudanças decorrentes de grandes investimentos, efetuados sob o discurso da cooperação para o desenvolvimento. Ou seja, é preciso levar em conta a prevalência dos direitos humanos como princípios que regem a República Federativa do Brasil, em suas relações internacionais (artigo 4º, CF/1998), como baliza principal por meio da qual os imperativos e os dramas da existência humana são considerados e julgados nas suas exigências de equidade e de justiça.

O desconhecimento mútuo relativo ao acúmulo de problemas resultantes das desigualdades sociais e suas implicações para pensar a problemática do desenvolvimento entre os cooperados permanece como questão central desafiante nas duas extremidades do Atlântico.

Longe de querer esgotar questões complexas e difíceis de serem equacionadas, buscou-se pontuar alguns dos desafios que a dinâmica do desenvolvimento impõe com o intuito de desvelar as entrelinhas desse discurso. Dessa perspectiva, conclui-se que tanto do lado brasileiro como do africano, o mito do sucesso do desenvolvimento capitalista como caminho que conduz à sociedade desejável por todos, sem se discutir que sociedade é esta e quais serão os critérios por meio dos quais serão julgadas as exigências de equidade e justiça para o conjunto de ambas as sociedades, revela os limites intrínsecos ao próprio processo.

Para que seja reafirmada a singularidade e a superioridade da cooperação Sul-Sul em relação à cooperação Norte-Sul, é preciso ir além do plano discursivo, colocando em pauta também o debate sobre o caráter do desenvolvimento que se quer. É necessário expandir os diálogos sobre a cooperação para o desenvolvimento com vistas ao estabelecimento de mecanismos que assegurem pautas de discussão com a sociedade receptora sobre temas cruciais relativos aos modelos de desenvolvimento e, sobretudo, sobre os termos da horizontalidade e do benefício mútuo que será auferido pelos cooperados.

 

Referências

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Recebido: 1 de março de 2015

Aceite: 12 de agosto de 2017

 

 

NOTAS

[1] Texto escrito segundo a norma brasileira da língua portuguesa.

[2] Grupo dos 7, formado por EUA, Canadá, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Japão.

[3] Ver sítio eletrônico da Presidência da República do Brasil na publicação: “No Brasil em Pauta, Embaixador comenta resultados da VI Cúpula do BRICS, que permitiu avanços na infraestrutura de países em desenvolvimento”, disponível em linha em http://diplomaciapublica.itamaraty.gov.br/32-brics (consultado em 18/07/2014).

[4] Ver: United Nations Conference on Trade and Development, disponível em linha em http://unctad.org/en/Pages/Home.aspx (consultado em 25/07/2014).

[5] Nos dias 11 e 12 de junho de 2004, em sua décima sessão, foi comemorado em São Paulo o aniversário de 40 anos da criação do G77 , disponível em linha em http://unctad.org/pt/docs/td405_pt (consultado em 26/07/2014).

[6] Ver: United Nations Office for South-South Cooperation (UNOSSC), disponível em linha em http://ssc.undp.org/content/ssc/about/Background.html (consultado em 26/07/2014).

[7] Disponível em linha em http://www.g77.org/search.php?query=marrakech&search=1 (consultado em 26/ 07/2014].

[8] Disponível em linha em http://siteresources.worldbank.org/INTEDS14/Resources/gppp_gdn_wp.pdf (consul-tado em 22/07/2014).

[9] Para uma discussão mais ampla sobre abrangência conceitual da cooperação Sul-Sul e suas implicações, ver Leite (2012).

[10] Ver sítio eletrônico do Banco Mundial, disponível em linha em http://datos.bancomundial.org (consultado em 24-07-2104).

[11] “Entrada da África do Sul no Bric”, p. 4, disponível em linha em: http://bricspolicycenter.org/homolog/uploads/trabalhos/558/doc/1785962113.pdf (consultado em 16/07/2014).

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