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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.33 Lisboa jan. 2017

https://doi.org/10.4000/cea.2216 

DOSSIÊ

 

Para Compreender a “Escravidão Moderna”: Vozes dos arquivos

 

Understanding “modern slavery”: Voices of archives

 

 

Eric Allina

Department of History, University of Ottawa, 55 avenue Laurier Est, Ottawa, ON K1N 6N5, Canada, endereço de correio eletrónico: eallinap@uottawa.ca

 

 


RESUMO

Este texto analisa a experiência africana do trabalho forçado na época colonial em Moçambique, onde a administração desenvolvia um regime de trabalho semelhante a uma “escravidão moderna”. Observadores do período e também os pesquisadores acadêmicos subsequentes têm utilizado o modificador “moderno” para descrever tipos de trabalho forçado e traçar linhas de diferenciação das formas mais antigas de escravidão. Este trabalho tem como objetivo historicizar noções de trabalho livre em meio a uma atmosfera mais ampla de coerção e compreender o silêncio de certos atores no que diz respeito à questão da escravidão. O texto explora o modo como os africanos em Moçambique entendiam as práticas de trabalho colonial, enfatizando as questões de dignidade, honra e degradação.

Palavras-chave: escravidão, colonialismo, trabalho forçado, Moçambique, experiência africana, historiografia


ABSTRACT

This paper examines the African experience with forced labor in colonial Mozambique, where the administration developed a labor regime that resembled a ‘modern slavery.’ Both contemporary observers and subsequent scholarly research have used the modifying ‘modern’ to describe types of forced labor and to draw distinctions from older forms of slavery. This work aims to historicize notions of free labor in the midst of a broader atmosphere of coercion and to make sense of the silence of certain actors on the question of slavery. The paper explores the ways in which African in Mozambique considered colonial labor practices, with an emphasis on questions of dignity, honor and degradation.

Keywords: slavery, colonialism, forced labor, Mozambique, African experience, historiography


 

 

No início do século XX, um jornalista inglês chamado Henry Nevinson percorreu partes da África portuguesa investigando alegações de que a escravidão e o tráfico de escravos continuavam, apesar dos esforços europeus em ampliar e assegurar a sua abolição naquele continente. Nessa época, europeus – em especial os britânicos – preocupavam-se com a persistência da escravidão na África anos após terem abolido a prática, principalmente em suas colônias no mundo atlântico. Na Inglaterra houve grande preocupação de que o cultivo de cacau baseado na mão de obra escrava, em especial aquele destinado à produção do popular chocolate produzido pela Cadbury Brothers, estimulasse a demanda por escravos nas partes do continente africano controladas pelos portugueses[1]. Após suas viagens, Nevinson escreveu uma feroz crítica aos portugueses, intitulada A Modern Slavery (Uma Escravidão Moderna), em que detalhava uma grande variedade de terríveis abusos e acusava os portugueses de, na melhor das hipóteses, fazerem vistas grossas à exportação de escravos de Angola para as “ilhas do chocolate” de São Tomé e Príncipe. Em seu livro, Nevinson escreveu que “a diferença entre o trabalho por ‘contrato’ em Angola e a escravidão à moda antiga da época de nossos avós é apenas uma questão de termos legais. Na prática, não há qualquer diferença” (Nevinson, 1906, p. 37).

Nevinson estava, é claro, errado: existiam muitas diferenças importantes entre a “escravidão à moda antiga” e o sistema de trabalho forçado predominante na África no início do século XX. Embora o trabalho forçado colonial compartilhasse muito da violência, degradação e exploração que haviam marcado as formas anteriores de servidão, a diferença que começou a se desenvolver após a abolição era considerável[2]. Contudo, embora equivocado, Nevinson não estava sozinho ao enquadrar o trabalho forçado nos termos da escravidão. Africanos também faziam isso, ainda que de maneira não tão explícita. Dada a natureza do regime colonial, em que os africanos enfrentavam uma exclusão generalizada dos direitos políticos e viviam, muitas vezes, sob sistemas opressivos de governo, raras eram as oportunidades que tinham para expressar publicamente seus pontos de vista. Nas palavras dos idosos que entrevistei, no final da década de 1990, perguntando sobre o regime de trabalho forçado colonial na região central de Moçambique, sobre a raiva e o rancor que sentiam do recrutamento para o trabalho: “você não podia deixar nem mesmo seu rosto denunciá-lo”, para que o descontentamento não se transformasse em motivo para surras ou algo ainda pior[3]. Apenas em raras ocasiões os africanos podem ter tido oportunidade de expressar suas opiniões para um estrangeiro interessado, como Nevinson – ainda assim, são comparativamente poucas as fontes daquela época que retratam perspectivas africanas, especialmente fora do pequeno círculo das elites urbanas letradas. Para oferecer uma visão mais ampla de como os africanos entendiam o trabalho forçado, este artigo examina documentos da era colonial. Constantemente deixados de lado pelo tom burocrático e, por vezes, intolerante dos administradores que os criaram, os documentos coloniais podem revelar mais do que seus autores percebiam. Eles podem servir como veículos involuntários, carregando também o que africanos pensavam do poder colonial. Aqui, eles mostram que os africanos achavam que o trabalho forçado compartilhava experiências fundamentais com formas mais antigas de servidão, incluindo aquela que Nevinson chamou de “a escravidão da era de seu avô”.

A escravidão em todas as suas formas: Moçambique no contexto regional

Servindo de pivô nas redes globais que integravam sociedades do centro-sul africano e da África Oriental àquelas da Península Arábica e do sul asiático, o centro de Moçambique há muito reflete a crescente interação de práticas africanas, asiáticas e europeias. Essa evolução e desenvolvimento foram acelerados especialmente depois que exploradores portugueses desembarcaram na costa leste da África em 1498, quando as competitivas trocas comerciais entre os três continentes impulsionaram esforços para concentrar influências políticas e econômicas. O estabelecimento de colônias portuguesas no ponto mais ocidental das redes de comércio do Oceano Índico criou registros escritos facilmente acessíveis sobre as atividades de Lisboa na região, bem como observações de comerciantes, colonos e missionários sobre seus vizinhos, parceiros comerciais, aliados e rivais[4]. Pelos relatos de suas atividades, sabemos que tanto europeus quanto asiáticos e africanos (e também aqueles de origem miscigenada) mantinham escravos e cativos, negociando-os na arena do Oceano Índico e além dela (Mudenge, 1988; Newitt, 1995; Pabiou-Duchamp, 2013; Santos, 1988)[5].

Os vários séculos que se seguiram à entrada de Portugal na região viram uma grande diversidade nas formas de escravidão – em parte, devido à natureza cosmopolita do sudeste africano durante essa era, que assistiu à intensificação das trocas políticas, comerciais e culturais à medida que indivíduos ambiciosos dos três continentes disputavam o controle das riquezas da região – algumas delas reais, outras imaginadas (Elkiss, 1981; La Violette, 2008; Nurse & Spear, 1985). Sociedades africanas do interior mantinham escravos, mas tal servidão não se assemelhava ao formato de propriedade pessoal (chattel) que viria a se tornar predominante no mundo atlântico (Lovejoy, 2012; Miers & Kopytoff, 1977). Em vez disso, os escravos eram cada vez mais mantidos como o que chamavam de “dependentes adotados”, com o status inferior que tinham os indivíduos à margem da sociedade, ou como penhores – indivíduos trocados por um pagamento em bens ou gêneros alimentícios, geralmente em momentos de emergência, com a expectativa de que o penhor fosse resgatado em tempos melhores (Douglas, 1960, 1964; Isaacman & Isaacman, 1977; Lovejoy & Falola, 2003). Dependência e penhor são apenas dois dentre os diversos rótulos que os estudiosos têm utilizado para distinguir da escravidão algumas formas de servidão menos conhecidas; a distinção reflete, em parte, a variação das escalas de marginalidade social que caracterizava essas formas de servidão (em contraste com a exclusão fixada e totalizante da escravidão, especialmente daquela racializada), mas isso também é evidência do desconforto de pesquisadores em associar essas práticas àquilo que Frederick Cooper chamou de a sordidez da escravidão (Cooper, 1979, p. 105). As sociedades africanas do interior, especialmente aquelas estabelecidas ao longo dos grandes cursos de água da região, também vendiam escravos para as elites suaíli em densos e quase urbanizados assentamentos ao longo da costa; estas elites dependiam de escravos para o trabalho doméstico e para o trabalho relacionado às atividades comerciais, mas, por vezes, vendiam esses escravos em redes litorâneas que levavam mais ao norte e mais a leste (Lovejoy, 2012, pp. 61-62). Por fim, colonos portugueses compravam, vendiam e mantinham escravos, utilizando-os, assim como os comerciantes, para transporte e para o trabalho doméstico e militar, entre outros propósitos.

A determinação portuguesa em transformar o sudeste africano num centro de seu crescente império global introduziu, na história da escravidão, um elemento diferente de qualquer outro, em virtude da decisão (rapidamente abandonada) de Lisboa de estabelecer elites metropolitanas em grandes extensões de terra, ou prazos, no vale do Zambeze[6]. Os prazeiros, como se tornaram conhecidos os proprietários dessas terras, formaram alianças com autoridades africanas locais para administrar as vastas extensões territoriais que reivindicavam, coletando tributos e reunindo tropas compostas, em grande medida, por escravos africanos que haviam comprado. Como instituição, o prazo dividia poder e autoridade entre o prazeiro e os governos autóctones, com as chefias africanas reinando soberanas sobre a terra e a população, que lhes fornecia mão de obra e tributos anuais. O prazeiro tinha pouca influência direta sobre os moradores dos prazos, mas recebia um tributo anual das chefias em troca da proteção militar que oferecia com seus exércitos. Essa divisão bem marcada entre prazeiros europeus e chefes africanos perdeu nitidez com o passar do tempo: as relações transoceânicas que ligavam os assentamentos portugueses no leste africano e no sul da Ásia, combinadas ao escasso número de mulheres entre os colonos e viajantes portugueses, levou a um aumento dos casamentos entre os diferentes grupos – transformando os prazeiros em descendentes da mistura de portugueses, africanos e asiáticos. Allen Isaacman e Malyn Newitt escreveram sobre como os prazos representam uma história profunda das instituições híbridas no sudeste africano, com uma vida social, política, cultural e econômica que refletia, nesses assentamentos do vale do Zambeze, suas origens cosmopolitas (Capela, 1995; Isaacman, 1972; Isaacman & Isaacman, 1975; Newitt, 1973).

Os prazos e os portugueses continuaram como uma importante parte da paisagem regional, mesmo quando Portugal se viu sob a pressão de concorrentes europeus e africanos. Foi apenas no final do século XIX que Portugal conseguiu ter sucesso em suas reivindicações sobre o território que viria a ser conhecido como Moçambique, invadindo o interior a partir de seus postos dispersos pela costa e ocupando um território que se ampliava ao norte, saindo da região que se tornaria a Suazilândia e chegando até o território que hoje conhecemos como a Tanzânia. A disputa pelo continente africano, que teve como participantes também belgas, britânicos, franceses, alemães e italianos, coincidiu com o crescente esforço global de abolir a escravidão, uma campanha liderada pela Grã-Bretanha desde o início do século. Apesar dos intensos esforços abolicionistas, a escravidão e o comércio de escravos persistiram na África (Cooper, 1977; Getz, 2004; Harms, Freamon & Blight, 2013; Lovejoy & Hogendorn, 1983; Miers & Roberts, 1988). No sudeste africano e em muitas outras partes do continente, o crescente avanço da abolição forçou a exportação de escravos a assumir formas clandestinas, enquanto a posse de escravos por parte dos africanos permaneceu praticamente intocada, chegando mesmo a expandir-se para novas áreas, alimentada pelo crescimento da demanda por produtos tropicais como a borracha e o marfim (Campbell, 1989; Capela, 2002; Capela & Medeiros, 1987; Isaacman & Isaacman, 2004; Monnier, 2006).

Em meio à crescente instabilidade associada ao aumento das expedições de captura de escravos e à proliferação das armas de fogo, alguns prazeiros praticamente saquearam suas propriedades, deslocando soldados que haviam armado com auxílio do comércio de marfim para capturar e vender residentes até então livres, ou mesmo vendendo seus próprios exércitos de escravos, numa espiral de autodestruição e violência – e muitos dos que foram vendidos acabaram nas plantações de açúcar nas ilhas do Oceano Índico, nas outras destinações na região, como a Colônia do Cabo, e ainda mais distante, nas Américas e no Caribe (Campbell, 2007; Allen, 2013, 2014). Os envolvidos nesse comércio, cientes do banimento formal do tráfico, não reconheciam os cativos que chegavam do interior como escravos, referindo-se a eles como “emigrados livres” (libres engagés) que haviam supostamente concordado com contratos de longa duração como mão de obra migrante. Esses pseudo-acordos nada mais eram do que uma camuflagem para iludir a supervisão oficial, com os cativos sem conhecer seu destino e sem pagamento ou a oportunidade de retornar para casa (Martin, 1983). Os trabalhadores chegavam à costa por diversas rotas: algumas alimentadas pela desintegração do sistema dos prazos, outras escoando cativos das expedições de captura de escravos ao norte do Zambeze. Outros “emigrados livres” vinham ainda de redes austrais, especialmente daquelas controladas pelo Império de Gaza, que se estendia da atual Baía de Maputo até o interior e norte do vale do Zambeze. Estabelecido na década de 1840, Gaza foi um dos maiores estados do sul da África, e seus soldados cobravam tributos – incluindo cativos – das comunidades submetidas. Alguns cativos eram mantidos, mas sua integração social era parcial e mantinham um status social inferior, marcado por sua classificação como amatonga, “significando escravo ou cão e implicando, consequentemente, a ausência de direitos” (Harries, 1981, p. 317). Gaza fez grande uso de mão de obra cativa, tanto para o trabalho agrícola quanto para transportes. Também vendeu escravos aos europeus em troca de armamentos e outros produtos importados. As trajetórias dessas variadas formas de escravidão e de trabalho forçado, cada uma delas com origens distintas e todas em desenvolvimento numa era de grandes transformações, começaram a convergir no final do século XIX, com a imposição do poder colonial.

O crescimento das economias e sistemas de governo coloniais na região criou novas demandas por mão de obra, assim como Estados coloniais cada vez mais poderosos, que tinham por objetivo controlar como e onde os africanos deviam trabalhar. Também os portugueses, como outras potências colonizadoras, tinham por objetivo fazer cumprir as normas então vigentes na Europa sobre quais instituições de trabalho seriam apropriadas para os impérios modernos (Cooper, 1989). Para atender à necessidade de controlar o trabalho africano e o imperativo mais amplo de legitimar este controle, Portugal criou um Código de Trabalho em 1899, estabelecendo o princípio de que todos os “nativos” vivendo sob domínio português estavam “sujeitos à obrigação, moral e legal, de procurar adquirir pelo trabalho os meios que lhes faltem de subsistir e de melhorar a própria condição social”. A lei estabelecia que eles tinham “plena liberdade para escolher o modo de cumprir essa obrigação; mas, se a não cumprem de modo algum, a autoridade pública pode impor-lhes o seu cumprimento”[7]. Este princípio, consagrado no artigo primeiro do Código, sustentou o sistema de trabalho forçado que tornou tão conhecida a história colonial portuguesa na África (Ball, 2003; Chilundo, 2001; Duffy, 1967; Isaacman, 1996; Keese, 2004, 2011; Penvenne, 1995; Vail & White, 1980). A lei definiu a obrigação dos africanos de trabalhar, isentando mulheres, homens acima de 60 anos ou abaixo de 14, deficientes, chefias e outras autoridades africanas e também aqueles que servissem em forças militares e de policiamento[8]. Assim como a prática francesa de reunir trabalhadores forçados a partir da “deuxième portion” das campanhas anuais de recrutamento militar ou a confiança britânica no “trabalho comunal” mobilizado pelas chefias, o código de trabalho português era de extrema importância para o funcionamento do regime de trabalho forçado colonial (Akurang-Parry, 1998; Echenberg & Filipovich, 1986; Thomas, 1973).

A lei de 1899, como se apresentava, foi parte das tentativas de Portugal de satisfazer igualmente as demandas imperiais e abolicionistas. E nas mãos das autoridades locais, a sua promulgação em Moçambique era uma resposta ao panorama regional do trabalho. Muito antes de os portugueses ocuparem e controlarem efetivamente sua colônia no sudeste do continente, os africanos empreendiam migrações de longa distância, alguns por iniciativa própria e outros sob pressão, conforme um circuito econômico no sul da África começou a ganhar forma (Harries, 1981). No final do século XIX, múltiplos movimentos migratórios percorriam a região que ia do planalto do Grande Zimbábue ao Oceano Índico, do sul do Zambeze ao Transvaal e Natal. As extensões mais ao sul viram o surgimento da migração circular de longa distância de trabalhadores, com muitos homens jovens viajando para o sul, para trabalhar nas plantações de açúcar de Natal – estabelecidas pelos colonos britânicos a partir de 1850. Estes mesmos homens logo foram atraídos pela força gravitacional da indústria mineradora sul-africana, com as descobertas de diamantes em 1867 e de ouro, em 1886. Da década de 1890 em diante, rapazes e homens da região central de Moçambique estavam entre os milhares que se dirigiam para o sul em busca de emprego, parte da paradigmática migração de longa distância de trabalhadores que marca a África Austral (Harries, 1994; Lubkemann, 2008; Moodie & Ndatshe, 1994). Mais ao norte, na vasta bacia do Zambeze, as companhias demandavam milhares de trabalhadores africanos para a atividade de grande escala nas plantações; por causa dos prazos, as sociedades africanas nessa área tinham uma bem-estabelecida tradição de oferecer mão de obra para as poderosas elites locais (Isaacman, 1972; Newitt, 1973; Vail & White, 1980). Mais a oeste, no entanto, os africanos tinham pouca experiência prévia com patrões estrangeiros e com o trabalho assalariado; para eles, a transição para as relações coloniais de trabalho veio com a subjugação. O código de trabalho português tinha por objetivo direcionar todos esses movimentos em prol dos interesses coloniais, ao mesmo tempo que se esforçava para manter uma distinção entre a coerção colonial legal e a servidão ilegal.

Poder colonial no centro de Moçambique

No centro de Moçambique e em outros lugares de todo o centro-sul do continente africano, o estabelecimento da “ocupação efetiva” que os poderes imperiais idealizaram na Conferência de Berlim não começou senão em meados da década de 1890, seguindo a conquista portuguesa do império de Gaza – que, por muito tempo, dominou grande parte da área ao sul do rio Zambeze[9]. As minas de ouro na porção oriental do planalto do Grande Zimbábue eram uma famosa fonte de riqueza, atraindo muitos interesses de colonos e mais investimentos iniciais do que qualquer outra parte do território. A autoridade colonial veio sob a forma da Companhia de Moçambique, que recebeu autorização do governo português para administrar um território de 160.000 km² com poderes quase soberanos (Axelson, 1967; Newitt, 1995; Warhurst, 1962). Colonos e recursos logo se deslocaram para os territórios da companhia, com muitos procurando explorar minas que esperavam ser um “segundo Rand”, que competiria com o da África do Sul. Outros estavam ansiosos para garantir uma estratégica entrada no vasto interior britânico que se tornaria as Rodésias e Niassalândia. Operando como uma entidade comercial com poderes de Estado, a companhia começou a criar a infraestrutura e as instituições que garantiriam seu poder, que durou até 1942 (Allina, 2012a; Neil-Tomlinson, 1987; Vail, 1976).

À medida que a companhia conquistava seu território, as autoridades africanas enfrentavam demandas de submissão acompanhadas por ameaças de violência, as quais logo foram seguidas pela imposição de taxas anuais e do trabalho forçado. O pagamento de impostos sinalizava um reconhecimento da nova autoridade e era uma fonte importante de receitas, mas foi o trabalho forçado que se tornou a experiência permanente do viver sob o domínio da companhia. A infraestrutura no território – sistema de telégrafo, estradas, caminhos de ferro, pontes, portos e docas – tinha que ser construída do zero. Uma vasta área em que pairava a ameaça da mosca tsé-tsé limitava o uso de animais de tração, e a política da companhia de manter mínimos os investimentos de capital na região levaram a administração colonial a ter uma necessidade constante de mão de obra (Neil-Tomlinson, 1987). Além disso, o influxo de colonos e as atividades comerciais deram origem a uma ampla e quase incessante demanda por mão obra para empreendimentos privados. Dois fatores mantiveram a companhia comprometida em atender a essas demandas: em primeiro lugar, ela muitas vezes tinha uma participação minoritária nos empreendimentos privados que existiam no território; em segundo lugar, a administração da companhia havia, conscientemente, optado por evitar a participação direta em muitas das atividades econômicas. Ao invés disso, garantia numerosas subconcessões e planejava ter lucro a partir de seus poderes de quase-Estado, coletando impostos, cobrando tarifas aduaneiras e taxas de frete (Neil Tomlinson, 1987, pp. 43-45, 101-107, 114-116). O seu lucro, advindo do que pode ser visto como típico das funções públicas de um Estado, dependia diretamente do sucesso de outros. Sem o trabalho africano, ninguém lucraria, pelo que a companhia assumiu o papel de recrutadora e distribuidora de mão de obra (Allina, 2012a).

Em seus anos iniciais, a companhia valeu-se do uso abundante da violência para assegurar suas demandas por impostos e mão de obra. Enquanto a receita fiscal contribuía significativamente para seus cofres, um efeito secundário – mas não menos importante – foi transformar os africanos em força de trabalho, uma vez que a penalidade para o não-pagamento dos impostos era um longo período de trabalho forçado[10]. Quando a companhia começou suas operações, em 1896, seus agentes muitas vezes confiscaram os bens da população ou queimaram suas palhotas e campos de cultivo como uma tática para demonstrar as consequências da resistência. Numa chefia, seis madalas – ou anciãos – foram capturados e executados; ao invés de enterrar os corpos, os enviados da companhia decapitaram-nos e desfilaram com as cabeças “nas vilas das cercanias, como uma demonstração das consequências de resistir às demandas da companhia” (Neil-Tomlinson, 1987, p. 61). Com o tempo, essas práticas aterrorizantes diminuíram, mas a polícia da companhia usava a palmatória – uma pá de madeira cuja superfície perfurada deixava as mãos em carne viva – para garantir suas demandas por impostos e mão de obra. Ninguém, nem mesmo os chefes, estava isento dessa prática violenta[11].

Os colonos europeus que chegaram ao território, especialmente aqueles que se dedicaram ao cultivo do milho, praticamente não tinham capital para investimento e sobreviveram apenas com o trabalho forçado que a companhia garantia de forma generosa (Neil-Tomlinson, 1987, pp. 119-120, 222, 242, 262). Uma comunidade colonial reunida em torno do cultivo de milho surgiu apenas na primeira década do século XX – a maioria dos primeiros colonos esperava que a riqueza viesse da mineração do ouro. Muitos eram iniciantes na agricultura e não estavam familiarizados com o ambiente: aprendendo conforme plantavam, revisavam constantemente – sempre para mais – seus pedidos por mão de obra africana. Um administrador da companhia comentou a origem extremamente modesta de muitos dos colonos portugueses em território moçambicano, observando – de forma irônica – que, em Portugal, esses colonos provavelmente não seriam mais do que mão de obra barata. Pouco inclinados ao planejamento ou gerenciamento, “cegam-se com o primeiro punhado d’ouro que adquirem e [são] atacados da monomania da riqueza”[12]. No centro de Moçambique, no entanto, os colonos prosperaram, beneficiando-se do trabalho de baixo custo e de outras formas de assistência da companhia (Allina, 2012a, pp. 17-45, 139-157).

Durante a primeira década de suas operações, a companhia tinha um sistema bastante limitado para localizar, recrutar e distribuir a mão de obra compulsória. Quando esse sistema foi sobrecarregado pela demanda, a companhia estabeleceu, em 1910, uma repartição centralizada do trabalho indígena, criando a infraestrutura administrativa para identificar, localizar, capturar, transportar e vigiar dezenas de milhares de trabalhadores africanos todos os anos. Oficiais locais desenhavam mapas mostrando a localização de cada vila e chefia em seus distritos, indicando em cada um deles a quantidade e as idades de homens, mulheres e crianças, e as quantidades de meninos e homens considerados “apto[s] para trabalho”. Duas vezes ao ano, administradores de distrito enviavam forças policiais em datas pré-estabelecidas para capturar trabalhadores africanos e conforme cada um deles ingressava no sistema, a companhia registrava uma grande quantidade de dados: nome, vila e chefia, duração do contrato, pagamento antecipado – se algum – e salário, datas de partida e chegada dos locais de recrutamento e trabalho, nome do empregador, tipo de trabalho e localização, salário pago no local de trabalho, enfermidades, lesões (e indenizações por lesões ou morte decorrentes do trabalho), dias ausente por doença, salário devido quando do retorno para casa, e casos de fuga, morte ou “realistamento”[13]. Os trabalhadores do departamento de trabalho eram obrigados a portar um “passe” (mais tarde, conhecido como caderneta indígena) contendo suas impressões digitais e um número de identificação, além de nome, chefia de origem, data e distrito do recrutamento, nome do empregador, duração do contrato, o valor recebido pela hora trabalhada, dias de ausência por doença e os comentários do empregador sobre suas habilidades e conduta[14].

O departamento de trabalho fez grandes progressos ao burocratizar e tornar rotineiras suas atividades de recrutamento, especialmente ao envolver as chefias africanas em suas operações. Agentes do departamento trabalhavam com administradores locais para integrar a autoridade e a influência dos chefes no que chamavam de atividades de “recrutamento” – tanto na apreensão inicial daqueles que eram recrutados à força como ao longo de seus “contratos”. A companhia estabeleceu a prática de pagar aos chefes uma taxa por cada recrutamento feito em sua esfera de poder – um incentivo para que cooperassem no recrutamento e ajudassem a perseguir aqueles que fugiam[15]. Administradores locais regularmente cruzavam seus distritos, procurando por chefias para assegurar que elas seguissem as ordens e para registrar a quantidade de homens considerados elegíveis e “aptos” para o trabalho forçado em cada uma delas. A meta era transformar os chefes numa extensão local da autoridade colonial, integrando-os às suas atividades[16]. Embora muitos chefes não se sentissem atraídos por esse novo papel, logo perceberam que os que se recusavam a se aliar ao sistema de trabalho colocavam seu status – e até mesmo sua liberdade – em risco, em especial quando a relutância impedia as varreduras em busca de mão de obra. No auge das operações do departamento, o relatório anual do diretor mostrava o quão profundamente a burocracia se estendia sobre a população rural do território, com uma listagem de autoridades africanas de 142 páginas, nomeando mais de oito mil chefes e líderes de aldeias – um para cada trinta e cinco africanos no território – e com dados populacionais de cada chefia, incluindo o número de residentes do sexo masculino considerados “apto[s] para o trabalho”[17].

O regime de trabalho da companhia era parte de uma colcha de retalhos mais ampla de sistemas coercitivos que cobria o sul e o centro-sul da África. Grande parte do centro de Moçambique, ao norte do rio Zambeze, estava sob o controle das companhias dedicadas às grandes plantações estabelecidas nos prazos remanescentes de séculos anteriores. A herança do sistema de prazos significava que a população africana havia reconhecido a obrigação de contribuir com impostos e mão de obra para o detentor da propriedade. No início do século XX, depois de muitas décadas de escravização predatória, seguidas por uma dúzia de anos de subjugação e revolta, alguns dos africanos do vale do Zambeze estavam dispostos a ceder, por alguns meses no ano, sua força de trabalho para as plantações de cana, sisal ou coco administradas por europeus – em troca de serem deixados em paz (Vail & White, 1980). Apoiadas pelo código de trabalho imperial, as companhias de plantação usavam suas provisões de trabalho forçado para forçar os africanos a trabalharem para elas. Ainda mais ao norte, a Companhia do Niassa detinha uma concessão para governar as províncias do Niassa e de Cabo Delgado e enquanto sua administração promovia poucas atividades econômicas, ela também se apoiava no mesmo código de trabalho para recolher impostos e mão de obra forçada. A oeste, no que se tornaria a colônia britânica da Rodésia do Sul, a Companhia Britânica da África do Sul de Cecil Rhodes impunha sua própria lei de trabalho draconiana para suprir com mão de obra forçada africana a crescente comunidade colonial e a nascente indústria mineradora (Phimister, 1994; Schmidt, 1992; Van Onselen, 1977).

No sul de Moçambique, o Estado português manteve controle direto, recrutando milhares de africanos para o trabalho forçado – para o Estado colonial e para os colonos na cada vez mais próspera capital de Lourenço Marques (Covane, 2001; Penvenne, 1995). Enquanto isso, a indústria mineradora na vizinha África do Sul expandia-se consideravelmente após a descoberta de ouro em 1886 e, em 1900, criava sua própria associação de recrutamento de mão de obra para distribuir e controlar seus suprimentos. Com a garantia portuguesa de que teria liberdade para operar nas províncias mais ao sul de Moçambique, a associação recrutou dezenas de milhares de homens moçambicanos para as minas de ouro sul-africanas – moçambicanos que preferiam este trabalho às alternativas que lhes eram impostas pela administração colonial portuguesa (Harries, 1994; Katzenellenbogen, 1982). A associação reuniu um exército de recrutadores e de pessoas em busca de lucro agindo em aldeias no interior de Moçambique e em regiões mais amplas. Desta forma, mesmo quando o sudeste e o centro-sul africano estavam divididos por múltiplas – ainda que relacionadas – administrações coloniais, a crescente demanda por mão de obra africana e uma legislação de trabalho extremamente coercitiva uniam a região (Paton, 1995).

Trabalho, dignidade, identidade

O código de trabalho que norteava as intensas atividades do trabalho africano especificava que o dia de atividades ia “de sol a sol”, mas alguns fazendeiros forçavam seus trabalhadores a ir para os campos antes do amanhecer, “conservando-os curvados sobre as enxadas” até a escuridão da noite[18]. De modo similar, a lei especificava que as porções de alimento recebidas deveriam estar em “perfeito estado de conservação”, mas alguns se deparavam com farinha de milho apodrecida ou até mesmo nada, sendo informados de que poderiam procurar por tomates silvestres[19]. Alguns empregadores não ofereciam moradia, deixando os trabalhadores dormir sem abrigo mesmo durante a época das chuvas, outros ignoravam a regulamentação que exigia “moradias salubres” e abrigavam seus trabalhadores em locais que um administrador descreveu como “miseráveis, impróprios até para alojar animais”, muitas vezes próximos a pocilgas ou áreas pantanosas sujeitas a inundação[20].

O castigo corporal, proibido por lei, era rotina. Um fazendeiro batia em seus trabalhadores com tanta regularidade que sua fazenda tornou-se conhecida como “Chigodore”, palavra derivada do ideófono shona godo, “golpear a cabeça com uma vara”[21]. O Inspetor Geral também percebeu isso, mas ao notar que o acesso contínuo dos empregadores à mão de obra africana era “muito para desejar”, escreveu que poderia ser “conveniente fechar os olhos para qualquer excesso de severidade...”[22]. Um colono que tinha concessão para coletar látex via claramente o espaço que a violência devia ocupar nessa lógica, pedindo ao administrador local que batesse em seus trabalhadores com um chicote de couro de hipopótamo, ao invés de usar a palmatória, “que estragaria suas mãos para o trabalho”[23].

As condições sob as quais os africanos trabalhavam eram frequentemente fatais. Especialmente em risco estavam os meninos e os recrutados subnutridos que não tinham aquilo que, por vezes, os administradores francos chamavam de “robusteza necessária” para o trabalho[24]. Um empregador, horrorizado com as condições em que os trabalhadores chegavam para as atividades nas plantações de milho, os descreveu como “verdadeiros farrapos humanos”[25]. Recrutados como “apto[s] para o trabalho”, quando chegavam aos milharais alguns só estavam aptos para pouco mais do que uma estadia no que a companhia chamava de seu “hospital”, embora o local não merecesse esse nome[26]. Um recrutador de mão de obra, não alheio aos abusos do sistema, ficou incomodado quando soube do caso de um trabalhador que apareceu no hospital em Manica, próximo ao coma e quase nu, enrolado em trapos para enfrentar as frias temperaturas do inverno. Desacompanhado, sem conseguir falar e sem identificação, ele morreu sozinho e desconhecido[27].

Em meados de 1929, quatro homens do distrito de Sena, no vale do Zambeze, fugiram do serviço de manutenção na linha do trem que ia do porto de Beira, no Índico, ao sul da Rodésia. Quando questionados sobre as razões para sua fuga, eles narraram o de sempre no repertório padrão de abusos de seu supervisor português – diminuição no registro dos dias trabalhados, proibição de beberem água ou de fazerem suas necessidades, coerção para trabalhar aos domingos e fixação de tarefas diárias impossíveis (criando, assim, um pretexto para descontar dias de trabalho e ampliar os termos de serviço). O que é mais notável nas acusações é que os homens não eram trabalhadores forçados, mas sim os chamados voluntários, que haviam procurado emprego por sua vontade. Milhares de pessoas faziam isso anualmente, preferindo exercer alguma autonomia de escolha sobre o trabalho, já que mesmo sob as ordens dos mesmos empregadores abusivos, seu tratamento seria melhor do que o enfrentado pelos trabalhadores forçados[28]. Ao listar as razões pelas quais haviam fugido do trabalho na ferrovia, o inspetor do departamento de negócios indígenas relatou também o fato de o supervisor “os tratarem como serviçais do contracto à frente de todos os outros voluntários”[29]. O restante das queixas sobre as condições de trabalho feitas por aqueles trabalhadores que haviam fugido poderia ter provocado também a infelicidade e a fuga de trabalhadores forçados (e, de fato, eles também fugiam aos milhares com as mesmas reclamações), mas o fato de serem tratados como trabalhadores por contrato, tal como preservado no relatório do inspetor, merece destaque. Os quatro homens rejeitavam ser tratados como trabalhadores forçados, ter seus status degradado ao nível de um “contratado” (um termo para “trabalhador forçado”) diante de seus companheiros de trabalho. Esse comentário, tão breve mas tão ilustrativo, mostra o teatro do local de trabalho, onde o status – e o orgulho ou a vergonha a ele associados – desempenhavam um papel nas lutas que ocorriam. O incidente revela como a identidade do trabalhador sustentava-se no status, e como os africanos consideravam o trabalho forçado colonial um roubo deste status, trazendo falta de respeito e de honra.

Naquele mesmo ano, um moçambicano na casa dos quarenta anos chamado Massungue decidiu compartilhar seu ponto de vista sobre o contrato de trabalho forçado com um grupo de sete contratados africanos, homens destinados, em sua maioria, a tarefas nos milharais comandados por portugueses que se estendiam ao lado da ferrovia. Massungue advertiu os homens que poderiam esperar do agente de trabalho que os havia procurado “o trato o pior possível”: “castigando-os violentamente com as suas próprias mãos” e que a alimentação que receberiam seria insuficiente. Por fim, Massungue avisou que o agente “vende pretos como galinhas e cabritos”[30].

Contestando essas afirmações, o agente em questão reclamou do que chamou de “propaganda” de Massungue, afirmando que ela havia feito com que muitos trabalhadores fugissem, incluindo aqueles que ele havia acabado de obter depois de vinte e um dias de caçada numa região vasta e pouco povoada, numa viagem que ele chamava de “desastre”[31]. Ele, no entanto, mal podia disfarçar que as palavras de Massungue não eram de todo sem mérito, já que apenas alguns meses antes havia escrito a um empregador: “espero também da sua parte que deixe de bater nos serviçais que, como sabe, eh expressamente proibido ficando sujeito a apanhar alguma multa, o que se torna desagradável”[32]. As advertências sobre o empregador abusivo destacavam-se não apenas por seu tom cauteloso, mas também pelo fato de ter criticado o tratamento dado pelo empregador a seus trabalhadores em geral. A legislação colonial portuguesa de trabalho proibia que empregadores administrassem eles mesmos castigos corporais. Para além disso, indicava, em detalhes minuciosos, a quantidade e variedade de comida a ser dada aos trabalhadores, mas essas garantias raramente eram apoiadas pela prática administrativa[33].

Estar na posição de quem recebe a batida do chicote e não ter a nutrição necessária para a existência podia significar a redução à condição de mercadoria ou pior. Sofrer as surras sem ter a quem recorrer e ter negadas refeições regulares, ser forçado a alimentar-se de forragens, como gado em busca de pastagem (conforme aconteceu com os trabalhadores por contrato, por vezes), era algo profundamente humilhante, adicionando uma terceira dimensão ao aviso de Massungue: a desonra. Sua crítica era mais intensa ao aproximar os contratados das galinhas e cabras – pois, se surras e comida insuficiente traziam sofrimento em si mesmas, sua referência específica tinha a força de um golpe direto. Ele não usou a linguagem explícita da escravidão, nem precisou. Sua intenção era clara. Usando o discurso indireto, o agente de trabalho preservou o fraseado vernacular dos comentários de Massungue e transmitiu seu significado codificado, mesmo que ele próprio não o tenha entendido. Ao comparar homens a galinhas e cabras, Massungue falava de pequenas criações, ao invés de gado, que representava a verdadeira riqueza. As suas palavras tornavam-se duplamente humilhantes. Pequenas criações não eram vistas como coisas de valor, eram comida, e não produziam e reproduziam riqueza. Galinhas e cabras são consumidas e devoradas: são dispensáveis.

Compreendendo a servidão pós-abolição na África

Se o trabalho forçado não ocupa o mesmo espaço de destaque na história das colônias francesas ou britânicas, como no caso de Portugal, isso não significa que era incomum[34]. Administradores britânicos usavam uma variedade de medidas para obrigar africanos a trabalhar para o Estado e para empregadores particulares como carregadores, trabalhadores agrícolas, mineradores, e também como tropas de apoio, apenas para listar algumas das atividades (Bradford, 1993; Coquery-Vidrovitch, 1972; Fall, 1993; Johnson, 1992; Murray, 1997; Suret-Canale, 1968; Thomas, 1973; Van Onselen, 1977; Willis, 1995). Diferentemente de Portugal, a Grã-Bretanha não tinha um código de trabalho unificado para suas colônias; ao invés disso, as regulamentações estabelecidas pela administração de cada colônia autorizavam diversos sistemas de trabalho forçado, dificultando a categorização de práticas tão variadas. Além disso, a política de trabalho era “apenas em parte uma questão de legislação”. Justin Willis destaca a importância das “políticas locais”, o conjunto de improvisações e acomodações que oficiais coloniais criaram ao transformar política em prática. Nela, “mais importante que [...] medidas legais eram as extra-legais ou, por vezes, ilegais que eram eufemisticamente referenciadas como ‘encorajamento’ ou ‘pressão administrativa’” (Willis, 1995, p. 26; ver também pp. 37-46)[35]. Apesar da onipresença do trabalho forçado, as políticas imperiais ditavam silêncio em torno dessa prática. Em realidade, por exemplo, os oficiais no Quênia sabiam que “obter mão de obra de um chefe para beneficiar colonos brancos ‘dependia do quanto ele estava disposto a ultrapassar as instruções recebidas’” (Cooper, 1989, p. 750). Da mesma forma, a França também arrendou uma grande faixa de seu território na África Central para companhias privadas que fizeram uso amplo e irrestrito do trabalho forçado. Em suas colônias na África Ocidental, o Estado colonial francês designou uma porção dos africanos recrutados para o serviço militar – a “deuxième portion du contingent” – para trabalho forçado nas obras públicas, e ainda outros foram levados contra sua vontade para trabalhar para empregadores particulares, práticas que terminaram somente em 1946. Frederick Cooper notou que a coerção era uma rotina que, se não era reconhecida, existia na prática: “Nenhuma instrução por escrito sobre esse assunto foi dirigida aos administradores em atividade” (Cooper, 1989, p. 750).

Os regimes coloniais de trabalho forçado envolviam rotineiramente o uso da violência, a apropriação da mão de obra e a falta de remuneração além das necessidades básicas de sobrevivência[36]. Nesses aspectos, os sistemas coloniais compartilhavam a violência, a exploração e a degradação comuns a todas as formas de servidão. Apesar das semelhanças, não é surpreendente que a maioria dos funcionários coloniais evitasse estabelecer qualquer paralelo entre as práticas coloniais e as formas anteriores de escravidão. Ao invés disso, usavam eufemismos como “persuasão”, “trabalho por contrato” e “recrutamento”, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, quando crescia um consenso internacional sobre a necessidade de eliminar a servidão escancarada e institucionalizada. (Allina, 2012a, 2012b; Cooper, 1995; Miers, 2003). Era rara qualquer discussão explícita sobre a escravidão ainda existente, exceto aquelas que se davam a uma distância confortável – como as investigações da Sociedade das Nações sobre o “problema da escravidão” – e mais raras ainda eram as tentativas de compreender como os africanos poderiam ter encarado o trabalho colonial forçado como um esforço de continuidade da exploração, sob um disfarce mais aceitável para as normas do império moderno. Assim que assumiu o posto de representante da Grã-Bretanha na Sociedade das Nações, Frederick Lugard reconheceu que os africanos poderiam muito bem considerar o trabalho colonial forçado como uma “escravidão do homem branco”[37].

Críticos como Nevinson chamam isso de “escravidão moderna”, argumentando, de modo polêmico, que não havia diferença entre o trabalho colonial por contrato e a “escravidão à moda antiga do tempo de nossos avós”. No entanto, como nova forma de servidão, o trabalho colonial forçado era diferente, e o modificante “moderno”, se usado de maneira mais analítica do que polêmica, pode destacar distinções importantes (Allina, 2012a, pp. 13-15). As ideias de Nevinson sobre a escravidão moderna durante a era colonial eram diferentes do que poderia ser chamado de “escravidão histórica” (associada à escravidão do mundo atlântico) em três aspectos: na afirmação de que traria progresso às sociedades africanas; no aproveitamento do poder burocrático do Estado moderno para impor a servidão; e no tratamento dado aos trabalhadores, que os transformava em bens descartáveis. Aqueles que, numa era anterior, afirmavam ser proprietários de seres humanos nunca negaram o fato de manter escravos cativos. Tampouco precisaram da camuflagem de contratos duvidosos, uma vez que os escravos mantidos em cativeiro trabalhavam sob um regime legal, que reconhecia as reivindicações de posse. Em Moçambique colonial, por outro lado, os administradores se referiam ao “trabalho por recrutamento” e mascaravam a coerção de africanos atrás de uma ficção legal de “contratos” imaginários (Allina, 2012a, 2015). Antes, os proprietários de escravos consideravam de maneira franca que os negros eram inerentemente inferiores e que, com razão, eram mantidos em cativeiro, enquanto que aqueles que comandavam a escravidão moderna diziam que compelir os africanos a trabalhar, “à força, se necessário” (Enes, 1946b, p. 27), melhoraria o “bem estar moral e material” destes africanos[38]. Ao invés de um sistema que visava colocar fim à desigualdade – percebida e praticada –, a escravidão moderna se passava por uma força transformadora, reivindicando elevar os africanos ao status dos europeus.

Na maioria das narrativas históricas sobre a escravidão, herdadas dos impérios do mundo atlântico que dominaram a imaginação histórica (e a historiografia), senhores de escravos por vezes tratavam-nos com grande brutalidade, mas, tendo investido um grande capital em sua compra, percebiam que eram propriedades de valor. Em contrapartida, como o governador da Companhia de Moçambique observou um raro momento de franqueza, em 1910:

Como regra geral os agricultores de Manica e Chimoio tratam os pretos fornecidos pela Companhia de Moçambique muito pior de que tratam qualquer burro ou boi que possuem, pela simples razão de que se o preto adoece e mesmo chega a morrer apenas têm o trabalho de o mandarem para o hospital ou para a sua terra, em quanto que com a morte de um boi ou de um burro perdem o dinheiro que ele lhes custou[39].

Vinte anos depois das viagens de Nevinson por Angola, um angolano mais velho, comparando o regime de trabalho colonial com a escravidão legal que o precedeu, destacou que “os escravos eram melhor alimentados do que os trabalhadores forçados porque nós não somos propriedade” (Ross, 1925, p. 20). Embora esse tipo de testemunho direto dos africanos seja incomum, a discussão anterior revela que as vozes africanas podem emergir dos arquivos coloniais. Essas evidências não são tão diretas quanto o testemunho oral daqueles que viveram sob o regime colonial – algo especialmente importante quando se lida com sujeitos que os oficiais coloniais ignoravam. As autoridades coloniais, no entanto, expressaram, por vezes, pontos de vista dos africanos – mesmo quando não compreendiam totalmente as perspectivas que reportavam.

Tradução de Raquel G. A. Gomes

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Recebido: 22 de março de 2016

Aceite: 10 de agosto de 2016

 

 

NOTAS

[1]   Para uma abordagem recente e inovadora do “escândalo do chocolate” Cadbury, em que Nevinson esteve envolvido, incluindo dimensões mais amplas das preocupações intelectuais sobre escravidão e liberdade, ver Higgs (2012).

[2]   Qualquer comparação sistemática dessas diferenças está além do escopo deste artigo, mas algumas das mais importantes são o fato de o trabalho forçado colonial ser uma experiência temporária, enquanto a escravidão permeava a existência de uma vida, e de não se colocar como uma condição hereditária, como acontecia usualmente na escravidão do mundo atlântico.

[3]   Testemunho oral, Messica (25 de setembro), 31 de maio de 1997.

[4]   Os portugueses não eram os únicos a manter registros de suas atividades, mas, levando em consideração que aqueles que o faziam eram muitas vezes os representantes do Estado português, eles tinham que prestar contas regularmente de suas atividades, deixando registrada, pelo menos para determinados períodos, uma documentação bastante densa e contínua. Muitos documentos portugueses foram reunidos em Documentos Sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, volumes 1-9. Além destas fontes portuguesas mais acessíveis, os residentes das cidades-estado ao longo da costa suaíli entre Mogadíscio e Angoche também produziram textos escritos em suaíli e em árabe (e, após a chegada portuguesa, também em português, utilizando o alfabeto árabe), hoje guardados em arquivos em Portugal, na Tanzânia e em Moçambique.

[5]   Bose (2006) usa o termo “arena” para indicar tanto o Oceano Índico quanto seus territórios costeiros e no interior.

[6]   Tal determinação, apesar de seus esforços, não atingiu os efeitos esperados, e uma cadeia de assentamentos mantidos por Portugal ao longo da costa leste do continente africano transformou-se mais em pontos isolados do que na espinha dorsal de seu império.

[7]   Artigo 1 do Código de Trabalho, retirado de Silva Cunha (1955, p. 147).

[8]   Essas isenções estão estabelecidas no artigo terceiro da lei de 1899, reproduzida em Enes (1946a, p. 496). A isenção do trabalho feminino era desobedecida com frequência, apesar de os serviços como trabalhadoras forçadas para o Estado ou para empregadores particulares serem, em grande medida, locais e de curta duração, enquanto os homens eram frequentemente enviados para lugares distantes, por períodos de muitos meses. O cultivo forçado, diferente do trabalho forçado, tornava as mulheres vulneráveis a jornadas quase incessantes de trabalho.

[9]   Gaza não caiu até o final de 1895, e alguns prazeiros submeteram-se às autoridades portuguesas apenas anos depois. Os Makombe, soberanos da região de Barué, na área mais elevada do vale do Zambeze, mantiveram boa parte de sua autonomia até 1917, quando uma grande – porém fracassada – rebelião contra os portugueses terminou com uma reafirmação do poder colonial. Ver Isaacman e Isaacman (1976); Pélissier (1984).

[10]  Boletim da Companhia de Moçambique, 10 (16 de maio de 1907). O trabalho forçado em outras áreas de Moçambique colonial é analisado por Chilundo (2001); Covane (2001); Isaacman (1996); Tembe (1998); Penvenne (1995); Vail & White (1980).

[11]  Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), Fundo da Companhia de Moçambique, Secretaria Geral Processos, Caixa (daqui em diante AHM/FCM/SGP/Cx.) 183: Relatório de Manica, maio de 1902; testemunho oral, Machipanda, 14 de maio de 1997.

[12]  AHM, FCM, Secretaria Geral, Relatórios/Caixa (daqui em diante AHM/FCM/SGR/Cx.) 236: Relatório Anual do Distrito de Manica, 1914, SGR/5045/01, 163.

[13]  O regime de trabalho da companhia era baseado em “contratos” ficcionais que os trabalhadores não viam e nem sequer assinavam; muitos dos regulamentos do departamento de trabalho eram igualmente ficcionais, especialmente aqueles relativos a salários e pagamentos.

[14]  Boletim da Companhia de Moçambique, 14, 17 de julho de 1911, Ordem 3216 de 12 julho de 1911.

[15]  Esses pagamentos que eram feitos, a princípio, de maneira informal, foram mais tarde autorizados oficialmente e incorporados às práticas regulares de administração dos distritos. AHM/FCM/SGR/Cx. 1: Relatório Anual do Governador 1901, SGR/002/01, 19; Cx. 256: Relatório do Distrito de Moribane, julho de 1898; Cx. 2: Relatório Anual do Governador 1905, SGR/006/01, 46; Cx. 5: Relatório Anual do Governador, 1911, SGR/011/01, 20; SGP/Cx. 74: Circular 29/2010 de 1 de setembro de 1916.

[16]  Tal dependência dos chefes era uma prática generalizada em toda a África colonial, muitas vezes designada, na época, como parte do sistema de governo indireto (indirect rule). Sara Berry (1992) chama-a de “hegemonia por um fio” e Mahmood Mamdani (1996), de “despotismo descentralizado”.

[17]  AHM, FCM, SGR/Cx. 113: Departamento de Trabalho Nativo (daqui em diante referenciado como DTN) Relatório anual de 1926, SGR/2268/01, 18, 20-161.

[18]  AHM, FCM/SGP/Caixa 69: Inspecção de Finanças e Exploração para o Governador, carta 374 de 28 de agosto de 1924, 5.

[19]  AHM, FCM/SGP/Caixa 69: Inspecção de Finanças e Exploração para o Governador, carta 374 de 28 de agosto de 1924, 5; Caixa 71: Indígenas para Manica, Governador para o Diretor Administrativo, carta 1441 de 1910, 3 de novembro de 1910.

[20]  AHM, FCM, SGP/Caixa 70: D. A. Manica para o Governador, 302/2304 de 31 de dezembro de 1919, SGP/0130/39; Relatório de Comissão para D. A. Manica, 31 de dezembro de 1919, SGP/0130/39 [anexado à carta 302/2304, D. A. Manica para o Governador].

[21]  Testemunho oral, Davide Franque, 18 de agosto de 1998; Hanna (1987, p. 189).

[22]  AHM, FCM/SGP/Caixa 74: Fuga de Indígenas para o Território inglês; Inspetor Geral de Exploração para o Governador, no. 411 de 1901, confidencial, 22 de novembro de 1901.

[23]  AHM, FCM/SGP/Caixa 105: P. Bindé para D. A. Moribane, 17 de julho de 1900.

[24]  Para as avaliações dos administradores da companhia quanto à capacidade dos recrutados para encarar tarefas, ver AHM, FCM/SGR/Caixa 235: Relatório Anual do Distrito de Manica 1912, SGR/5032/01, 154; Caixa 236: Relatório Anual do Distrito de Manica, 1914, SGR/5045/01, 130; AHM, FCM, SGP/Caixa 69: Carta do D. A. Manica para o Governador, 27 de julho de 1914.

[25]  AHM, FCM SGC/Caixa 15: Governador para o Gerente Administrativo, no. 357, 30 de março de 1910; AHM, FCM, SGP/Caixa 74: Agricultores Vila Pery para o Governador, 22 de abril 1918, SGP/0130/39.

[26]  “Apto para o trabalho” era o termo usado nos censos dos distritos para registrar o número de homens e rapazes que poderiam ser recrutados.

[27]  AHM, FCM, ATID/Caixa 27: Correspondência Confidencial 1927-1929, Agente Vila Pery para o Diretor Geral, 10 de junho de 1927.

[28]  Ver Allina 2012a, capítulo 7.

[29]  AHM, FCM/Negócios Indígenas/Processos/Caixa 15: Departamento de Assuntos Nativos, Inspetor para D. A. Neves Ferreira, 4 de julho de 1929.

[30]  Arquivo Histórico de Moçambique, Companhia de Moçambique/Associação do Trabalho Indígena/Corres-pondência Expedida/Caixa 13: Agente Neves Ferreira para D. A. Neves Ferreira, 27 de maio de 1929.

[31]  AHM, FCM/ATI/CE/Caixa 13: Agente Neves Ferreira para o Diretor Geral, 15 de maio de 1929.

[32]  AHM, FCM/ATI/CE/Caixa 13: Agente Neves Ferreira para George Diakuo, Monte Chiluvios, 13 de janeiro de 1929.

[33]  Boletim da Companhia de Moçambique, suplemento ao no. 6 (19 de março de 1929), Decreto 16:199, “Código do trabalho dos indígenas nas colónias portuguesas de África”, 145-185.

[34]  Concentro-me nos casos da França e da Grã Bretanha, em parte, para ser conciso, mas também porque, junto com Portugal, foram as potências imperiais que mantiveram múltiplas colônias ao longo de toda a história do domínio colonial na África.

[35]  Willis concentra-se na formação da “política local” e assim destaca o papel das autoridades africanas como parceiras dos administradores de distritos nas elaborações políticas. Seu argumento mais geral sobre a distância entre a lei e a prática revela similaridade com o caso moçambicano.

[36]  Essa caracterização da escravidão é fortemente inspirada em Bales (2000).

[37]  Sociedade das Nações, Temporary Slavery Commission, Atas da Segunda Sessão (13 a 25 de julho de 1925), 102 (anexo I: Note on Forced Labour). Destaca-se a ironia do fato de Lugard – arquiteto do indirect rule que mantinha diversas formas de escravidão – compreender claramente que trabalhar à força e sem remuneração seria visto como uma inovação trazida pelos europeus.

[38]  Preâmbulo para a Ata Geral da Conferência de Berlim, reproduzida em Hertslet (1967, p. 468).

[39]  AHM/FCM/SGP/Cx. 71: Indígenas para Manica, Governador para Diretor Administrativo, no. 1441 de 1910, 3 de novembro de 1910.

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