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Cadernos de Estudos Africanos

Print version ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.31 Lisboa June 2016

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Hip-hop em Angola: O rap de intervenção social

Hip-hop in Angola: Social intervention rap

 

Gilson Lázaro*, Osvaldo Silva**

*Universidade Agostinho Neto, Faculdade de Ciências Sociais, Av. Ho Chi Minh, nº 56, Bairro Alvalade, Quintalão do Kudua, Luanda, Angola, lazaro.gilson@gmail.com

**Universidade Católica de Angola, Centro de Estudos e Investigação Científica, Rua Pedro de Castro Van-Dúnem, nº 24, Bairro Palanca, Luanda, Angola, o.sebastiao.silva@gmail.com

 

RESUMO

O artigo parte do argumento de que, enquanto um conjunto de estilos e formas culturais difundidos mundialmente a partir dos guetos afro-americanos de Nova Iorque dos anos 70 do século XX, o hip-hop obteve, em Angola, uma recepção e apropriação particulares. Para os jovens angolanos simpatizantes, a adaptação à realidade nacional daqueles estilos e formas culturais representou, a despeito do cálculo das consequências, um esforço de actualização e modernização da cultura nacional diante da emergência de um espaço público proporcionada pelo fim do regime monopartidário. Nesse contexto, o “rap de intervenção social”, produzido maioritariamente por jovens pertencentes às camadas sociais subalternas, vem assumindo-se como um instrumento artístico através do qual os rappers aliam a emancipação cultural ao exercício da participação política democrática.

Palavras-chave: hip-hop, rap de intervenção social, Angola

 

ABSTRACT

This article has as its starting point the argument that, while a group of styles and cultural forms spread world-wide from the Afro-American ghettos of New York in the 1970’s, hip-hop, in Angola, had a particular reception and appropriation. For the Angolan contemporary youth, the cultural incorporation of those styles and cultural forms to the national reality represented, despite the calculation of the consequences, an effort to update and modernise the national culture on the emergency of a public space provided by the end of the monopartisan regime. In this context, the so-called “social intervention rap”, mainly produced by the young from the lower classes, has been assuming itself as an artistic instrument through which rappers combine the cultural emancipation to the exercise of the democratic political participation.

Keywords: hip-hop, social intervention rap, Angola

 

De Nova Iorque a Luanda

Dentre os mais variados movimentos culturais e artísticos juvenis emergentes entre os anos 50 e 70 do século XX, o hip-hop veio a ser, certamente, um daqueles poucos cuja rápida e espantosa internacionalização atingiu, de maneira concreta e com implicações inéditas, realidades nacionais tão distantes do ponto de vista geográfico e idiossincráticas no que concerne à formação sociocultural, política e económica, como são os casos de Brasil e Japão, Senegal e Portugal, França e Moçambique, Canadá e Angola. À diferença do relativo sucesso mundial alcançado pelos movimentos pop e punk, bem como pela música rock a eles vinculada, a difusão do hip-hop conseguiu transpor todas as fronteiras – nacionais, linguísticas, raciais e classistas – até então intransponíveis, tornando-o, de facto, num movimento cultural global[1], no qual milhares de jovens, a despeito da inexistência de uma plataforma de intenções, encontraram os mais adequados instrumentos para a expressão artística de seus dramas e anseios colectivos[2].

Encarado na sua complexidade, pode-se dizer, ainda que em resumo, que esse fenómeno resultou da convergência de três factores distintos mas subsidiários. O primeiro se refere à inserção das modernas realizações culturais afro-americanas, notadamente o rap[3] e o breakdance[4] – dois dos assim considerados elementos artísticos básicos do hip-hop – no circuito da indústria cultural norte-americana e, por consequência, no mercado mundial de produtos culturais. Nesse sentido, a difusão do hip-hop em escala mundial ocorreu pela via da intensificação da globalização do comércio, da expansão do progresso técnico e da massificação cultural, inserindo-se, deste modo, no processo de afirmação da hegemonia cultural dos Estados Unidos da América (EUA) na cultura popular e nos estilos de vida de diferentes regiões do planeta[5].

O segundo factor está relacionado com as dinâmicas conjunturais internas de cada país, ou seja, com os graus de abertura comercial e cultural que permitiram o acesso aos produtos culturais de fora. De modo que quanto maior foi o grau de integração, imposto pela força do capital ou de livre aceitação, à modernidade e aos padrões de consumo reinantes nos países desenvolvidos, maiores terão sido as possibilidades de florescimento do hip-hop longe das ruas de Nova Iorque[6].

Já o terceiro e último factor, mas de importância central, está estritamente ligado ao processo de identificação que se efectivou entre a experiência artística, social e política veiculada pelo hip-hop e as realidades e condicionantes específicas dos jovens em diversas cidades do mundo. Noutras palavras, a incorporação do hip-hop às respectivas culturas populares e juvenis nacionais deveu-se, em última instância, à adequação de seu potencial artístico-emancipatório, que, pela natureza essencialmente múltipla e sincrética[7], jamais fecharia a porta a novos conteúdos e roupagens locais, aos propósitos, motivações, atitudes e expectativas dos sujeitos receptores. Isto explica, portanto, que a expansão e consequente apropriação das formas culturais do hip-hop, originando um movimento verdadeiramente planetário, se processaram não apenas ao ritmo do influxo externo, mas, ao mesmo tempo, à luz de constelações históricas internas, responsáveis pela verificação, na prática, da validade e funcionalidade dos modismos importados para a vida nacional.

No caso específico de Angola, tais constelações são desde logo indissociáveis do conjunto de transformações que culminaram, no princípio da década de 1990, com a transição social (da guerra para a paz), política (do monopartidarismo para a democracia) e económica (da economia centralizada para a economia de mercado). Quanto a esse último aspecto, importa notar que já a partir de 1983, oito anos antes do cessar-fogo e dos acordos de paz[8] que estiveram na base das primeiras eleições gerais em 1992, o país passaria a registar mudanças substanciais de estratégia e política económica com vista, entre outras coisas, a reestruturar o sistema económico, corrigindo desequilíbrios financeiros internos, sem deixar de haver preocupações ligadas à defesa nacional num cenário de guerra civil. De acordo com Ennes Ferreira (1993/1994), os programas de reforma económica levados a cabo pelo governo angolano à época, como o Programa Global de Emergência, foram as consequências óbvias do “falhanço da regulação administrativa da economia” (p. 136), que geraria uma situação económica progressivamente degradada, incapaz de aumentar ou apenas manter os níveis de produção industrial e agrícola[9]. Uma das principais medidas previstas foi, precisamente, uma maior abertura aos mercados internacionais através de um grande volume de importações de produtos dos países da Europa Ocidental e dos EUA, como salvaguarda da economia nacional, em particular do comércio interno[10].

É com a introdução no mercado interno de novos produtos, causa da alteração dos padrões de consumo das populações urbanas e semiurbanas, que apareceriam, à parte os bens electrónicos e alimentares, os primeiros filmes e vídeo-clipes de breakdance[11], alguns dos quais, como Breakin’ (1984) de Joel Silberg[12], exibidos nos cinemas de Luanda e em rede nacional pela Televisão Popular de Angola (TPA)[13], então único canal de televisão com transmissão para todo o país. O fascínio pelo novo estilo de dança no seio da juventude foi imediato, pois, além da novidade em si, ele representava o que havia de mais moderno e avançado na cultura juvenil mundial, exalando o progresso e vindo ao encontro de uma efervescência já existente em torno da dança de rua[14]. Por outro lado, ele correspondia com o espírito de irreverência e a necessidade de afirmação social, ou de se fazer ouvir, do que a juventude se via privada, tanto pelas contingências da guerra civil quanto pelo autoritarismo do Estado, o qual ainda detinha certo controlo do campo cultural, fruto de uma herança centralista[15].

Assim, por meio da imitação das vestimentas e dos gestos e movimentos das personagens dos filmes e vídeo-clipes, surgiriam os primeiros praticantes angolanos de breakdance, entre outros, Paulo Kumba, Sérgio Rodrigues[16] e, pouco mais tarde, o grupo SSP, que depois viria a trocar o breakdance pelo rap[17]. Com as aparições públicas desses dançarinos em eventos de rua, em shows e na televisão, o número de adeptos do breakdance aumentaria significativamente, chegando a alterar a imagem, a atitude e a rotina dos jovens. Esses passariam a ser vistos com desconfiança e certo desprezo pela geração mais velha, que julgava calças e camisetas largas, lenço à cabeça, cabelo à la black power e andar sincopado como desvios graves aos padrões da cultura tradicional e católicos que se deviam, a todo o custo, preservar[18]. No fundo, foi confrontando essa mentalidade conservadora e o monolitismo cultural que o breakdance e, por sua via, toda a cultura hip-hop, se impuseram, num primeiro momento, nos meios urbanos e periféricos de Luanda, conferindo aos actores sociais juvenis novos meios de sociabilidade.

No entanto, não obstante o seu estatuto pioneiro, o breakdance deixaria de ter a primazia para os jovens angolanos dentre os principais elementos artísticos do hip-hop. Provavelmente pelo grande impacto e influência internacional do rap cantado em língua portuguesa, sobretudo pelo rapper brasileiro Gabriel O Pensador[19], o breakdance acabou cedendo espaço ao rap, cuja popularidade viria a crescer a um ritmo assustador. É como se certa franja da juventude tivesse percebido que, atendendo às suas características intrínsecas de canto-falado e de protesto, o rap fosse um veículo adequado, porque eficaz e incisivo, para exteriorizar uma visão do mundo vinculada às condições sociais adversas que enfrentava e ainda enfrenta.

Em face desse cenário, o chamado “rap de intervenção social” ou “revo-lucionário”[20] acabou por subsistir em termos de adesão dentre as diferentes tendências ou vertentes do rap feito em Angola. Embora pouco divulgado, já que muitas vezes excluído dos circuitos convencionais de difusão cultural – televisão, rádio, etc. – por causa do seu teor incómodo, ele vem contribuindo para o pluralismo de opinião e participando da sociedade civil. Em certa medida, os rappers acabaram assumindo o papel de porta-vozes da sua geração e das suas comunidades, visando os problemas sociais de seu tempo. As temáticas das suas músicas encontram, assim, inspiração nas iniquidades que assolam o país e com as quais se defrontavam no dia-a-dia.

O elenco de grupos e rappers solistas praticantes da referida vertente é vasto, e inclui tanto aqueles pertencentes à chamada old school[21] quanto os da new school[22]: Pobres 100 Culpa, Consciência Activa, Nel Boy Dasha Burda, Kool Kleva, Phather Mak, Fortaleza Neutra, Filhos da Ala Este, Inferno 9, Mutu Moxi, Afroman, Nice Zulu, Actitude Violenta, Unidade Civil, África Preta, Brigadeiro Mata Frakus, Grand L, Keita Mayanda, Bob da Rage Sense, Quarteirão Norte, Dread Joseph, Família B.K, Incógnitas no Arredor, Soldados de Rua, G-S Unit, Ação Positiva, Reino Suburbano, Prollema Sul, Afrontamento, Supremo Regimento, Rappers Ilegais, Toy Cuba, Sábio Louko O Poeta, Afrodite, Dona Kelly, Mc K, Brigadeiro 10 Pacote, Kissaca, Phay Grand O Poeta, Jang Nômada e Carbono.

 

Um rap “politicamente incorrecto”

No panorama da música rap em Angola, o grupo Filhos da Ala Leste é fundamental quanto à representação das condições sociais, do dia-a-dia. É o que consta nas músicas dos dois únicos álbuns do grupo, Bootlege Politika pura sem mistura, de onde se destacam “Angola profunda”, “Ideal de paz”, “Processo 105”, “Tempo da morte cruel”, “Apologia”, “Bom cidadão”, “24 de Janeiro”, “Mãe Rússia”, “Mais miséria, menos voz” e “Homens do Império”. A linguagem inevitavelmente política da cidadania, justiça social e igualdade foi uma tónica que contribuiu – a seu modo e tempo – para a afirmação e reconhecimento desse grupo. Com a música intitulada: “Ideal de paz”, uma crítica severa às condições sociais que se reflectem na vida dos jovens desempregados sem rumo, o refrão desafia a ordem e põe em xeque as dúvidas e as incertezas perante um sistema político no qual já não acreditam. A expressão lírica é-nos apresentada por Nganga wa Mbote: “Este é o manifesto/ de um ideal de paz/ o sonho de um povo/ e toda uma nação” (Filhos da Ala Este, 1999b).

Neste pequeno excerto da música “Ideal de paz”, os Filhos da Ala Este vão utilizando palavras de ordem do regime monopartidário, que alguns deles vivenciaram na sua infância, enquanto membros da Organização do Pioneiro Angolano (OPA), organização infantil e viveiro dos futuros jovens militantes do MPLA. As estruturas de massas do MPLA estavam bem organizadas. Depois da OPA tinham que passar primeiramente pela JMPLA antes de ingressarem como militantes do partido.

As observações críticas do rapper Revolucionário agora questionam as bases sobre as quais assentava o ideal da sociedade angolana durante o período de partido único que apesar da idade, eles, os jovens rappers, vão retratando sempre numa relação dialéctica entre o passado do pós-independência que herdaram e o presente constrangedor:

Estamos sendo vítimas de um processo de lavagem cerebral/ proporcionado por um severo controlo policial/ a propaganda ideológica subjuga as massas por igual/ ainda vivemos num Estado de regime totalitário. (Filhos da Ala Este, 1999)

Mais uma vez as atenções estão viradas para os excessos da política, onde a constatação recai sobre a actuação policial, numa relação difícil com a juventude, que tem como primado a liberdade. Os jovens assumem o ideal libertário, na medida em que esse ideário é constantemente posto em causa pela atitude e actuação das autoridades policiais. Tal como nos sugere o escritor camaronês Mongo Beti (2000), em África, “a polícia é a instituição que melhor caracteriza qualquer sistema político. Se quisermos conhecer o sistema político de qualquer país, basta conhecer a polícia” (p. 23). A consciencialização faz parte do primeiro passo para se sair da condição social subjugada. Os rappers se mostram reticentes, duvidam dos programas políticos de governação e da conduta pública manifestada por alguns dos políticos. Ao questionarem insistentemente os programas de governação erigidos pelo partido no poder, porque não acreditam no mesmo, questionam o exercício democrático vigente e a liberdade de expressão tal como está consagrada na Constituição da República. Observam aquilo a que denominam de manipulação dos cidadãos por meio da propaganda ideológica do partido no poder. Por exemplo, a música “Angola profunda”, de 1999, tematiza as preocupações dos jovens perante o rumo que o país atravessava. Na verdade, manifestam uma preocupação da governação e os desafios que se impunham quanto ao futuro:

Essa é Angola profunda numa visão dos bastidores/ meu país é o da desilusão e dos sonhos amordaçados/ das esperanças subterradas e de ideias depravadas/ (...) de um povo e de um país sem futuro. (Filhos da Ala Este, 1999a)

Nas músicas desse grupo, é frequente constatar o uso de palavras como “sangue”, “choro” e “luto”, que caracterizam o momento da guerra civil. Às vezes, perante as incertezas da vida, eles se interrogam no presente sobre o seu futuro, num prolongamento das preocupações de todos os jovens angolanos, principalmente os mais necessitados. Eles vão incorporar parte das aspirações, das frustrações de inúmeros indivíduos os quais cedo viram as suas vidas ameaçadas pela guerra que assolava o país e que não havia meios de terminar:

Angola é o segundo maior produtor de petróleo do continente, mas com uma miséria consagrada constitucionalmente/ é para rir ou para chorar/ temos pobreza em excedente/ os diamantes só chegam para matar mais inocentes. (Filhos da Ala Este, 1999a)

Os questionamentos que esses rappers fazem à acção política governativa apresentam-se nas contradições de um país rico em recursos minerais e uma pobreza galopante. Paralelamente, é visível nas letras o domínio do campo político angolano. A maior parte dos autores de rap crescera num clima de guerra civil, o que contrasta com a narrativa da geração mais-velha sobre o período glorioso do pós-independência. Este legado, frequentemente posto em causa pela geração mais nova, acaba por ser determinante para o entendimento do exercício político. No caso, a música “Angola profunda” é representativa dessa constatação, na medida em que Adhamou se interroga nos seguintes termos: “Quem é que não tem medo quando o presidente sai à rua?/ Quem não tem medo quando a polícia antiterror actua?/ Entre o silêncio do povo a opressão armada se acentua” (Filhos da Ala Este, 1999a).

“Angola profunda” é, portanto, uma reflexão sobre as contradições sociais, aqui sinalizadas por uma geração que herdou as aspirações de um futuro melhor com o fim da guerra civil, tal como os seus pais com o advento da independência nacional.

Onze anos passados do lançamento do primeiro álbum, Bootleg, de 1999, em 2010 seguiu-se o álbum Politika pura sem mistura, de circulação fechada[23]. Neste, o grupo não deixou de reflectir sobre os problemas do quotidiano angolano nas suas músicas.

No último excerto da música “Ideal de paz”, Adhamou continua na mesma cadência musical crítica:

Transformaram os angolanos em máquinas de guerra dividida em duas partes/ esqueceram-se que a guerra não é mais do que o diálogo, mas também uma arte/ somos indignos da vida que por direito é a nossa parte/ obrigam-nos a lutar por algo que desconhecemos. (Filhos da Ala Este, 1999a)

Já no segundo álbum, Politika pura sem censura, a música “Mais miséria, menos voz” fez o seguinte retrato da realidade social:

Refrão: No meu país impera a ditadura e a monarquia/ só para inglês ver essa falsa democracia/ eleições viciadas, imprensa privada diariamente silenciada/ sociedade civil fortemente subjugada/ opinião e imprensa pública instrumentalizada. (Filhos da Ala Este, 2010)

Mais adiante os rappers do grupo Filhos da Ala Este afirmam, numa referência à história recente:

Os filhos do socialismo democrático de 92 escolheram a 5 de Setembro mais miséria, menos voz/ mais política de governação atroz/ mais corrupção, menos diálogo, menos emprego, menos arroz/ e as promessas eleitorais não saíram da agenda/ os comícios avermelhados, as promessas e lendas/ foram substituídas por mais vergonha, mais destruição de moradias, mais gente nas tendas/ e os políticos em quem confiaste o teu voto/ aos lamentos do povo fazem ouvidos de mouco/ fingem não ver a desigual distribuição dos lucros do petróleo e dos diamantes/ a maioria absoluta tornou-os mais insensíveis, mais arrogantes. (Filhos da Ala Este, 2010)

 

Contradições do quotidiano e rimas irónicas

A música rap tem sido capaz, de forma muito mais ostensiva do que os outros estilos musicais em Angola, de sinalizar as contradições da sociedade angolana através das letras explícitas das músicas. Nestas letras os problemas sociais são, na maior parte das vezes, apresentados de forma aberta e clara, diferente de outros estilos musicais, a excepção do kuduro feito por Dog Murras, que iniciou a carreira musical como rapper e só pouco tempo mais tarde passou para o estilo kuduro. As vivências são apresentadas de modo que as práticas sociais, os princípios e as regras estão constantemente em contradição, sobretudo na imagem da sociedade emanada pelas elites e os seus aspirantes a uma vida similar. A excepção faz-se regra e a regra confirma que há uma excepção enquanto regra, num quotidiano em permanente transformação. Os rappers Kid Mc, Yannick, Kool Klever e Filhos da Ala Este demonstram isto nas suas músicas.

(...) e assim, apesar do crescimento económico, aumenta o contingente de excluídos social e economicamente/ enquanto isso as famílias Van-Dúnem e dos Santos se lambuzam no poder eternamente/ e os bajuladores oferecem de presente abusivamente a supremacia da comunicação social aos filhos do Presidente/ que já dominam a economia e têm (...) [assentos] no parlamento/ se infiltraram no desporto e até determinam o preço do cimento. (Filhos da Ala Este, 2010)

Ou ainda o rapper Kool Klever retratando o quotidiano na música “Nós somos”, do álbum KoolTivar de 2008:

Refrão: Somos estrelas no céu/ com medo de brilhar/ pés fixados no chão/ com medo de voar.
Underground, players e revolucionários/ os alunos malcriados/ dos professores sem salários/ somos os génios sem trabalho/ os netos desorientados/ a geração da utopia sem força nem vontade/ para acreditar na poesia/ somos cegos por opção/ a realidade dói demais/ na autodestruição encontramos a nossa paz/ somos os críticos acérrimos da má governação/ mas andamos à pancada com microfones na mão/ numa guerra verbal sem nexo nem explicação/ crescemos com a televisão/ passámos para as parabólicas/ e agora é Internet/ somos os filhos do semba[24]/ mas a nossa música é o rap/ somos patriotas mas não queremos fazer guerra/ nacionalistas mas ninguém quer morrer pela terra/ inúteis moralistas nesta Sodoma e Gomorra/ (...) nós já fomos socialistas/ agora somos diaristas/ rappers e kuduristas/ pró-capitalistas/ estudamos com fome/ e ficamos sem nome na lista/ somos da OPA/ esquecemos Ngangula/ fugimos à tropa/ quando temos gastamos em damas, desbundas[25] e roupas/ juízo coisa pouca/ cabeças bué ocas. (Kool Klever, 2008)

Já na voz de Mc K, as contradições assumem tom mais politizado. Como diria Marta Lança (2008) a propósito do seu primeiro álbum,

Trincheira de Ideias foi suficiente para que as suas letras se espalhassem nos candongueiros[26] de Luanda e nas províncias. Era coisa nova, assuntos e abordagens que não se ouvia com sotaque angolano, uma coragem que vinha agitar as águas. (p. 4)

Na música “A teknica, as causas e as consequências”, do referido álbum, Mc K produz como que um diagnóstico da sociedade angolana, sem deixar de incluir as suas principais chagas. A sua crítica penetra nos vários segmentos sociais, mas é na exortação dirigida directamente às camadas mais desfavorecidas que ganha maior relevância:

Cidadão angolense acorda antes que o sono te enterra/ se deres ouvido à minha poesia conhecerás as causas do mosquito que nos ferra/ saberás que as causas do caos do povo não foi apenas a guerra/ o quotidiano mostra a cor da corrente que nos cerra/ preto em baixo, vermelho em cima e amarelo no meio. (Mc K, 2002b)

A letra, atractiva nas descrições que faz, rapidamente popularizou-se pelas ruas de Luanda e arredores. O refrão “Sei lá quê” é uma codificação irónica que o rapper pretende transmitir ao público-ouvinte. Está muito próximo de uma exclamação dirigida ao MPLA, partido que governa Angola desde 1975, que tanto pode significar desespero, angústia, sofrimento pelo abandono das promessas de liberdade, solidariedade, resumidas no slogan segundo o qual “o mais importante é resolver os problemas do povo”, muito propalado após a independência e, sucessivas vezes, recuperado pelo partido no poder durante a realização das suas actividades políticas de massas. O rapper deixa a interpretação irónica para os mais atentos ao desenrolar da situação sociopolítica de Angola. A letra manifesta as convicções de um jovem que acredita que as condições sociais do seu país fazem parte de uma estratégia mascarada elaborada pelos políticos para a eliminação selectiva dos pobres. A desconfiança da política passa a ser o centro da sua abordagem crítica. Às vezes irónico, às vezes decididamente frontal, a sua música encontra ressonância nos bairros periféricos e mais carentes de Luanda. O apelo outras vezes é sintomático na conformação do estado social:

Envolvida pelos anéis de utopia na parte externa/ a inocente fabrica e multiplica as vítimas na escravidão moderna/ como a massa desconhece a técnica na manipulação popular/ do linchamento angolense/ ninguém sente o peso da algema/ o teu caso é uma prova visível da arte dos lobos/ os teus argumentos são frágeis e incompatíveis com a filosofia suprema/ não tens abrigo/ procuras emprego a século, mas continuas fiel ao sistema/ estás preso sobre uma frequência de controlo automática/ eles traçaram o teu futuro no ventre da tua mamã/ sofres diariamente e não sabes como reclamar/ as armas calaram, mas o teu estômago continua em guerra/ a luta começa no dia do teu parto/ com a primeira gasosa que os teus pais compram à equipa em serviço/ e só acaba com o último batimento do teu coração/ guerra é luta, e luta é mesmo isso/ a tua esperança anda mais de 40 anos no Beiral/ afastaram-te dos livros desde criança/ aos 12 anos uniram-te as cervejas/ encheram o teu fim-de-semana com maratonas/ deram-te uma educação mutilada/ aniquilaram o teu espírito de revolta com igreja/ tens uma década de escolaridade/ sobre a vida não sabes nada/ cultivam em ti o medo que semearam nos teus pais/ as tuas atitudes dependem da rádio e da televisão. (Mc K, 2002)

Essa música de Mc K tornou-o popular pelo país adentro. E como consequência do seu apelo à consciencialização dos jovens em geral, Arsénio Sebastião, mais conhecido por “Cherokee”, jovem lavador de carro nas ruas de Luanda e morador do Marçal, bairro periférico da capital, era um ouvinte assíduo das músicas do rapper que, em circunstância confusa, foi morto pela guarda presidencial por ter ousado cantar em voz alta:

On November 22, 2003, “Cherokee” was washing cars and was singing a song to pass the time between jobs. He sang the lyrics of rap song by the singer MCK, from the The Chaba[27] neighborhood, called “The technique, the causes and the consequences”. This song exhorts its listeners to “clean the duty out of your eyes/ open your eyes brothers/ switch off TPA (Public Television)/ tear up newspapers and analyze daily realities.” It critiques the state of affairs in which “we have more firearms than dolls, fewer universities than discos, and more bars than libraries.” A group of presidential guards who happened to be at the docks overheard “Cherokee” singing and they began to beat him. (Moorman, 2008, p. 195)

Como excepção à regra, em “Atrás do prejuízo”, do álbum intitulado Nutrição Espiritual, de 2006, feita pelo rapper Mc K com participação do músico consagrado Beto de Almeida, “a música que passa na Televisão Pública de Angola[28], mas é vedada nas principais antenas de rádio, fala da luta diária pela sobrevivência” (Lança, 2008, p. 4), talvez devido à presença desse último e do seu tom mais apelativo e menos severo para com os políticos. Trata-se, contudo, de mais um retrato do quotidiano luandense endossado pela melódica música “Moussoolou” de Salif Keita.

Refrão: Eu vou sorrir para não chorar/ é mais um dia da minha vida/ vou cantar para não pensar/ as malambas[29] da vida/ (bis)
Hoje o sol nasceu mais cedo/ começou o dia/ o galo cantou às 4/ motivos para a poesia/ agradeço a Deus por mais um dia de vida/ já são 6 horas da manhã/ estou pronto para a batida/ Bidón nas costas/ não tenho água em casa/ vou roubar debaixo da ponte/ tenho de ir em brasa/ de seguida vou à kixima[30]/ caular[31] o pitéu/ uma lata de leite, dois ovos e um kibéu[32]/ tá bala/ tenho que dar para a fau[33]/ até logo Djamila/ avó Domingas tchau/ rasguei o musseque/ já estou no asfalto/ cidadãos reclamam pelos preços estão mais altos/ o lixo nas ruas/ mais o semblante matinal/ a subida do combustível é manchete de jornal/ a quitandeira grita o nome do produto que vende/ taque ataque arreiou[34]/ para ver se a cena rende. (Mc K, 2006)

As várias músicas feitas pelos diferentes grupos de rap encontram muita dificuldade para a transmissão dos seus conteúdos nas estações de rádio devido, provavelmente, ao tom crítico à governação do país, na medida em que essas estações de radiodifusão pautam-se por linhas editoriais conservadoras do status político vigente. Apesar desses obstáculos quanto à circulação dos conteúdos das músicas fruto da pressão exercida pelos rappers, na segunda metade dos anos 90 surgiu na estação de rádio Luanda Antena Comercial (LAC) o primeiro programa, designadamente “A era do hip-hop”, que visava, dentre outros, a divulgação desse estilo musical – entre internacional e nacional –, onde os rappers passaram a ter efectivamente espaço reservado para a troca de ideias e correspondência com um público mais amplo.

Entretanto, alguns desses rappers angolanos radicados em Portugal introduziram no panorama do rap uma nova forma de estar e fazer música com o projecto musical Conjunto Ngoguennha, numa mistura das vivências e experiências individuais em Angola e Portugal, cantando momentos da infância, adolescência e os confrontos da mocidade no país que os viu nascer, ultrapassando as barreiras impostas pela circulação vetada das suas músicas nas rádios locais quando iniciou-se a divulgação desses conteúdos por meio de blogues e de sites específicos abertos na Internet. Fazem parte desse elenco os seguintes elementos: Leonardo Wawuti (Condutor), Ikonoklasta e Keita Mayanda[35].

Na música “Guerrilheiro do musseke[36]”, do álbum de Mc K, que contou com a participação de Keita Mayanda e Leonardo Wawuti (Contador), o rapper anula-se a si para dar voz a uma criança oriunda de uma família carenciada. A voz é de um menino que retrata o dia-a-dia por que passa para conseguir sustentar a si e a sua família. Trata-se de uma fotografia que marca bem as dificuldades de muitas famílias em Angola, mesmo em contexto urbano como Luanda:

São 6 horas da manhã, me levanto cedo sem resmungar/ o meu pai está a tomar banho e a minha mãe está arrumar/ sou um puto[37] de 8 anos nos musseques de Luanda/ já ciente da realidade e de como a vida anda/ meu pai é polícia há 15 anos com patente pequena/ dizer a ele para deixar de ser polícia/ não vale a pena/ minha mãe é quitandeira/ Roque Santeiro seu escritório/ lugar pestilento igual a um purgatório/ tenho dois irmãos canucos[38]/ eu é que cuido deles/ se não fizer as tarefas levo um castigo daqueles. (Mc K, 2002a)

Nesta música referida mais acima, o refrão é inspirado numa outra com o título “Guerrilheiro”, de autoria de David Zé, integrante do grupo FAPLA-Povo dos anos 1970, composto de jovens militares que animavam as tropas nos quartéis; pouco tempo mais tarde, ele e mais outros dois músicos acabaram sendo vítimas da onda repressiva do 27 de Maio de 1977 (Weza, 2007, pp. 144-145). Esta retrata as dificuldades ingentes por que muitos cidadãos passam diariamente. A representação continua sendo do jovem adolescente cantada nas vozes de Condutor e Mc K:

Vou para a escola sem mata-bicho[39] e só piteu[40] quando regresso/ Nasci no berço da miséria/ minha vida é vivida no avesso/ mesmo sem ténis novo nunca baixo a cabeça/ estou sempre na sala quando a primeira aula começa/ de regresso a casa preparo os sacos de água fresca/ não há peixe se o pescador não vai à pesca/ venci mais um dia, sou puto, um guerrilheiro do musseque. (Mc K, 2002a)

Como se pode verificar nos excertos expostos, “a crítica destes rappers destina-se, antes de mais, a alertar as consciências, sobretudo dos jovens (...)” (Lança, 2008, p. 2), pois é este segmento social que é o principal consumidor desse estilo de música. Por exemplo, Kid Mc no seu primeiro álbum, intitulado Caminhos, desenvolve essas contradições que se refere mais acima, nas músicas “Educação barata” e “Levanta e anda”, em rimas e críticas não muito diferentes dos outros rappers. O elemento diferenciador é a agressividade com que compõe e expressa as suas músicas. A radicalização de Kid Mc é notória no álbum de 2010, O Incorrigível. As músicas “Incorrigível”, “ Metamorfose”, “Lição” e “Até à morte” caracterizam bem essa faceta do rapper:

(...) o calar não é a solução/ eu notei insuficiência na bala/ peguei no microfone e confiei na força das palavras/ enquanto a miséria me consumia/ eu interiorizava o trauma que me deu a grande máquina de rima/ tornei-me naquilo que não estava nos planos/ interromper a saga dará origem a muitos danos/ talvez eu seja teimoso/ aos olhos de um sistema que me vê como altamente perigoso/ por não querer ver, ouvir e calar/ por ser aquele homem que tende a ver, ouvir e cantar/ mas o que é que esperavam de uma criança/ pertencente a uma nação/ onde balas iam de irmão para irmão/ essa filosofia de vida foram vocês que me incutiram/ os vossos conflitos me atingiram/ durante os anos de independência/ marcaram-se acontecimentos/ que germinaram homens prudentes/ morreu muita gente/ dos sobreviventes havia um puto que era tratado como um demente/ um excluído social/ por isso tratem-me como sequela ou dano colateral. (Kid Mc, 2010a)

As contradições do dia-a-dia dos angolanos continuam a ser tematizadas por Dread Joseph e Jang Nômada com a música “Fragmentos de liberdade”, num constante esforço de actualização das letras:

Quero, quero minha voz brutal/ não a quero bela, pura ou melódica/ (...) não quero que esse poema vos divirta/ enfim, falo do homem que se recusa a se submeter ao apodrecimento lento da mente/ e luta pelo pavor que a miséria provoca/ a fome, o desemprego, a prostituição/ quero com isso dizer que há uma crise de escolarização em Angola. (Dread Joseph & Jang Nômada, 2003)

Na música “Balumukeno”, de Dread Joseph, o conteúdo exprime preocupações sócio-proféticas muito diferentes dos demais fazedores de rap nacional:

Mais uma vez cá vou eu desfazendo os nô da merda dessa vida/ daqui do planeta Terra/ procurando encontrar oportunidades e alternativas/ tentando compreender o quê: o princípio e o fim/ e a essência de Deus/ mas todos me dizem que tenho de ter paciência e acreditar nos planos da igreja e estudar um pouco mais de ciência (...) / e compreender o significado do trabalho debaixo do sol (...) / lutar para sobreviver no meio dessa densa escuridão/ Deus sabe que é dessa forma que penso quando ando nas ruas entre homens e mulheres que pelo sistema babilónico são escravizados. (Dread Joseph, 2001)

Ou ainda o rapper Brigadeiro Mata Frakus, que põe em comparação a vida folgada de uns e a desfavorável de outros na sua música “Mundo de loucos”:

(...) Se cada um de nós testemunhasse o horror/ a angústia de uma guerra e seus efeitos devastadores/ na primeira pessoa e não relatado por uma caixa a cor/ estou certo que insignificâncias passariam a ter mais valor/ e muitas situações são de simulação simples/ (...) / sobreviver com menos de um euro por dia e manter um sorriso/ como podes visualizar uma seca se nunca te roncou a torneira?/ ou imaginar a desnutrição quando pôs comida à beira do prato? (Mata Frakus, 2003)

Numa outra vertente se coloca Yannick, líder do grupo Afroman, com o álbum intitulado Mentalidade, de 2008, cuja temática central é a precariedade da sociedade angolana nas suas mais diversas formas: desde a falta de bens de primeira necessidade, do racismo às avessas, da homofobia e a sexualidade até às contradições sociais decorrentes do uso das tecnologias de informação, particularmente a mistificação da utilidade do telemóvel. As músicas “Mentalidade”, que dá título ao álbum, “Traz azar”, “Possas” e “Algo em comum” caracterizam as preocupações centrais do rapper, às vezes num niilismo consequente e desconcertante. Aliás, aqui a dimensão niilista de Yannick nas músicas “Mentalidade”, “Estou a desconfiar”, “Possas” e “1, 2, 3”; do Conjunto Ngonguenha com as músicas “É dreda ser angolano”, “Sorriso angolano”, “O boda” e “Kem manda mais fuma?”; de Kid Mc com as músicas “Feche a boca”, “Reeducação”, “Aguenta o flow” e “Olhar de pai”; de Mc K com as músicas “Eu sou Angola”, “O país do pai Banana”, Quarentona atraente” e “Por de traz do pano”; e de Phay Grand O Poeta com as músicas “Pão burro” e “Olha bem” dão corpo e sustentabilidade à desresponsabilização social e política dos indivíduos que compõem a sociedade angolana.

É dreda ser angolano/ ter sofrido no tutano/ mas mesmo assim ter chegado aonde chegámos/ é dreda ser angolano/ viver num país cobiçado/ só temos a infelicidade de não termos dirigentes ajuizados/ é dreda ser angolano/ quando vês paisagens fixes/ palancas negras gigantes/ é dreda avacalhar o continente inteiro com triplos e lançamentos certeiros. (Conjunto Ngonguenha, 2004)
O país está a mudar mas a mentalidade não/ é só pra ver que as pessoas já não fogem carro/ carro é que lhes foge/ estás a ser assaltado ou agredido/ só ficam a te olhar/ ninguém vem te acudir/ depois de te fatigarem/ estão a vir: é o quê?/ te roubaram o quê? / Mangolê é solidário/ o carro do outro avariou na estrada/ ao invés de ajudar/ está a buzinar/ tira essa lata daí pá. (Afroman, 2008)
Refrão: Povo burro/ povo burro/ (bis)
Kotas burros, ndengues burros/ jovens burros/ todos burros/ damas burras/ velhas burras/ donas burras/ povo burro/ se o passado é merda/ porcaria no futuro/ se o presente é lixo/ não sei o que eu procuro/ frequentam escola/ mas continuam no escuro/ ignoram o negro quando falo um mambo puro. (Phay Grande, 2010)

Neste sentido, tais formas de fazer música estão em busca de algumas particularidades localistas que se traduzem num retrato da precariedade, nas condições de um país atrasado social e economicamente, em plena relação com uma cultura de massas proveniente de uma sociedade capitalista adiantada, que funciona ou era percebida como novidade para superar o movimento culturalista em torno da música que vingou nos anos de 1970 e 1980. O hip-hop vai ser então o influxo externo que permite uma movimentação em confronto com a provincialização do espaço cultural, particularmente dos palcos da música e da literatura voltados para a glorificação da independência, da exaltação da mulher e da beleza do país, numa simbiose entre o triunfalismo militante e o folclore popular promovida pela elite nacionalista. A função da sátira social ou “paródia dos costumes” enquanto influxos internos em contacto com o hip-hop (cultura de massas de uma sociedade capitalista, isto é, influxo externo) serviriam de motor para o processo de desprovincialização das artes e, sobretudo, uma sinalização das transformações do quotidiano angolano. Como exemplo, a década de 90 de guerra civil, de fome e de sofrimento, é questionada no virar do século pelos rappers Revolucionário (Keita Mayanda) e Condutor, na música “Radiografia da miséria”:

Olha para essa gente que aos poucos se desespera/ olha para esse quotidiano homicida que não se altera/ isso chama-se holocausto a conta-gotas/ as tuas necessidades são esquecidas depois que votas/ quem se preocupa, quem se importa com as nossas vidas/ as panelas estão no fogo, mas não vemos comida/ as fardas, as armas, as prisões/ o crime ou a tropa são as únicas opções/ mães choram seus filhos que se tornam carne para canhão/ salário mínimo: a criança chora por falta de pão/ campo e cidade: desenvolvimento desigual/ a corrupção governativa aumenta a exclusão social (...) / temos o índice mais baixo de desenvolvimento humano (...) / temos uma esperança de vida mais curta do que a tinta da caneta/ com que se assinaram os acordos de paz em 91/ pois, desde então morrer da forma mais cruel é comum/ as promessas políticas não foram cumpridas dos dois lados/ as calças novas de Setembro hoje cobrem os corpos mutilados. (Revolucionário & Condutor, 2001)

 

A revisitação da história

Os rappers reivindicam e reavivam as memórias das músicas nacionalistas de contestação social da geração mais-velha[41] em que se destacam David Zé, Urbano de Castro e outros nomes cujo conteúdo das letras ultrapassa a sua época. Estas músicas são frequentemente objecto de sampling[42] e passaram a constar dos coros dos rappers num processo de mixagem. A memória do 27 de Maio e de outras lutas sociais travadas pela geração mais-velha são usadas na música rap como fontes de inspiração.

Nestas circunstâncias, o rap torna possível o contar e recontar da história, a voz é ela própria um testemunho vivo no ritmo e nas letras. O lirismo em metáforas abundantes, em vozes heterogéneas que se erguem buscando elo entre a história do passado e representações do presente, dão corpo a uma consciência de grupo transgeracional marcada por contradições permanentes. Estas são esgrimidas no rap nacional num jogo de vocalização entre posições identitárias, assumindo e reforçando, contudo, os signos exteriores dos movimentos de luta e resistência. A voz no rap é a voz dos excluídos, dos descontentes, de grupos de jovens com intensidade variável e posturas diversas. Essas vozes adquirem dimensões políticas, económicas, morais e estéticas, colocando e reactualizando a discussão e o lugar das margens no debate público do país.

Em certa medida o rap nacional é não só um mecanismo de consciencialização dos jovens perante os problemas sociais, das suas expectativas e aspirações, é também o meio de identificação e actualização das memórias sociais como, por exemplo, no refrão da música “27 de Maio[43]”, de Baxaxa, uma das músicas mais radicais:

Os heróis serão vingados (bis)/ Há uma palavra de mensagem/ em cada bala que dispara um camarada/ (bis). (Baxaxa, 2001)

O excerto da música “27 de Maio”, derivado de uma apropriação histórica da repressão político-militar em resposta à tentativa fracassada de golpe de Estado, apela à reflexão e sinaliza o percurso do país nas mais diversas dimensões: política, económica e sociocultural. A música é uma convocatória generalizada que o artista faz num jogo de interrogações umas seguidas das outras:

Não sou eu/ não fui eu/ (bis) / quem embebeda a juventude em 28 de Agosto? / não sou eu/ quem traficou armas com Pierre Falconne?/ não fui eu/ quem escraviza os Nyaneka e Humbi[44] na UGP?[45]/ não sou eu/ quem representa a maçonaria em Angola?/ não sou eu/ (...) de que cor é aquele homem de cabelo encaracolado debaixo do sol/ que pede esmola no largo da Maianga[46] com uma perna mutilada?/ não é mulato!/ de que cor são os jovens iletrados/ que invés da formação tiveram direito a farda verde e castanha?/ quem são os detentores das altas patentes nas forças armadas?/ quantos mulatos estão nos campos de aquartelamento desempregados?/ quantos mulatos são desmobilizados?/ quantas paróquias da igreja católica existem em Angola e quantos párocos são negros e nacionais?/ Apartheid religioso/ velho contínuo da igreja não se confunde com o Papa/ e a faxineira da tua casa não tem a cor da virgem santa/ não adianta/ quem combateu em Nhareia, Kumacupa, Bailundo[47] não foram angolanos com dupla nacionalidade assim como você/ enquanto escorriam lágrimas nos olhos do povo/ Jorge Morgado[48] falava em nome da pátria na RTP[49]/ Janeiro de 1961[50]/ mais de 27 mil aldeias/ 22 mil mortos/ genocídio na Baixa de Kasanje/ 14 anos depois o MPLA-PT[51] pinta a imagem de Iko Carreira como herói nacional/ (...) / quem fala do problema é chamado de racista, matumbo[52], atrasado, revoltado e frustrado/ os gabinetes estão todos ocupados/ só existe vaga na pedreira e nas empresas de segurança/ o branco analfabeto é chefe de obra: Odebrecht[53], Soares da Costa[54]/ e o que é feito do negro licenciado? / (...) te esforças para cumprir um horário/ (...) são cinco anos de trabalho por apenas um televisor/ são mais de sete centenas de chefes de família explorados por latifundiários que não têm a minha cor (...) / dão soja no povo enquanto negoceiam com José Eduardo dos Santos do nosso petróleo e cobalto. (Baxaxa, 2001)

É possível verificar um diálogo entre as músicas “27 de Maio” de Baxaxa, “Metamorfose” de Kid Mc e “Na fila do banco” de Mc K, aproximadas pela mesma temática, pois as três retratam o racismo e a discriminação em Angola. A grande diferença entre elas está na forma e no conteúdo, pois enquanto a música “27 de Maio” é explicitamente frontal, levando ao público-ouvinte uma conotação racial da atitude do artista, nas outras duas a crítica é mais implícita. Na “sátira dos costumes” de Mc K:

Bom dia! / Vim confirmar uma transferência da Inglaterra!/ solicitei uma caderneta a semana passada, até agora não me dizem nada!/ quero os extractos de Agosto, Setembro e Outubro!/ bilhete de identidade, número da conta, por favor/ tá bué calor aqui/ meu Deus já não aguento/ a fila está enorme e o sistema está lento/ enquanto aguardo, viagem no pensamento/ quero caular[55] bloco, mosaico e cimento/ estou com a cabeça quente/ o kumbú[56] não vai chegar/ xé![57] só tem dois pretos a bumbar?/ a tiota[58] da vassoura e o papoiti[59] com aka[60]/ tá tipo Dom Quio[61]/ o mambo[62] parece praga. (Mc K, 2011)

Ou ainda Kid Mc, com a música “Metamorfose”, cujo refrão conta com o sampling dos músicos seniores Irmãos Kafala:

Não diria que sou inocente/ mas também não sou culpado/ saberás o que trago aqui dentro encaixado/ a minha vida é feita de buracos e facadas/ danificada por dificuldades e pancadas/ criado por um antigo combatente/ deixa dizê-lo/ hoje é miserável nem vale um cinzeiro/ pensou que seria recompensado/ não sabia que depois da guerra passaria a ser um frustrado/ estraçalhado/ como um cão sem dono/ serviu à nação e a recompensa foi o abandono/ eu me virava aí/ em qualquer lado/ lavava carro/ foi assim que terminei o Makarenco/ mas para a faculdade/ até dá medo/ tentei na pública/ não tive sucesso/ tentei outros meios/ mas não tinha dinheiro/ pensei na privada/ mas quantos carros tenho de lavar para estudar numa faculdade privada?/ aí a cabeça já não estava bem/ se o destino é ser lavador de carro/ tásse bem/ comecei a facar todos os senhores/ (...) o meu irmão vive aí à procura de emprego/ os boss[63] parece que já não gostam de negros/ eu até fico gripado/ quando ouço boa aparência/ já sei que tem que ser mulato/ e fico lixado quando a doença aperta/ logo pego no trabuco[64] e fico em alerta. (Kid Mc, 2010)

O rap de cariz político entre os rappers angolanos assumiu uma característica central após a apropriação da cultura hip-hop. Verifica-se, contudo, uma vontade de identificação com a história, num processo de diálogo permanente com o passado. Por exemplo, as músicas “Tempo da morte cruel” e “ Processo 105” estão carregadas de referências da história de África – no caso da primeira –, e de Angola – no caso da segunda – que reanimam o imaginário dos jovens artistas. O “Tempo da morte cruel” é, na verdade, o título da obra literária do escritor sul-africano Alex La Guma, do qual os rappers Filhos da Ala Este se apropriaram para nele descreverem o processo de cristianização do continente africano e o perfilar de guerras fratricidas pelo mundo fora. É um despertar para a realidade secular, como anuncia o seu refrão:

Os setes selos se encerram/ as setes igrejas se enterram/ sete flagelos anunciam a ruptura do céu/ do génese ao apocalipse/ tempo da morte cruel. (Filhos da Ala Este, 1999c)

As referências cristãs não escapam ao olhar crítico dos rappers, pois eles estudam a história e dela extraem as suas contradições seculares. Mais adiante Revolucionário apresenta o primeiro verso da música que diz o seguinte:

Cristo está de volta ao calvário no final do século/ o cenário é deprimente/ a todos os níveis ridículo/ a coroa de espinhos orna a cabeça do rei da glória/ o cordeiro será imolado/ assim reza a história. (Filhos da Ala Este, 1999)

No último verso, Adhamou acrescenta o seguinte conteúdo:

(...) gerou-se o conflito entre o Deus morto e o homem vivo/ deu-se origem ao caos/ a extrema desesperança/ a terra passou a ser lugar de chacinas e matanças/ destruições e carnificina em duas guerras mundiais/ genocídio ruandês/ genocídio dos judeus/ extermínios brutais/ mortes para todos os gostos em um milénio. (Filhos da Ala Este, 1999)

Inversamente, na música “Processo 105” os rappers narram um dos processos mais polémicos do pós-independência, assente na acumulação capitalista de diamantes em território angolano, que culminou com o julgamento de muitos cidadãos envolvidos na exploração, roubo e outras práticas menos abonatórias. Na verdade, o que mais salta à vista na música é o carácter vexatório usado para chamar a atenção da sociedade em geral. Ainda nesse grupo, constata-se outra referência histórica no refrão da música “Mãe Rússia”, na voz de Nganga wa Mbote:

(...) geração de 60 experiência e astúcia/ filho de português/ irmão de cubano/ casou com a mãe Rússia/ (bis) / órfãos de Manguxi a geração de 80/ geração de 90/ filha de Man Zé e da guerra civil a geração/ mais miséria e sofrimento para a geração de 2000. (Filhos da Ala Este, 2010)

Aqui o processo de apropriação da história por parte dos rappers serve de meio de esclarecimento da própria história do país, que não é ensinada nas escolas nem discutida em espaços públicos. A música passa, em virtude da ausência da história no sistema de ensino, a ser veículo de aprendizagem e veio de transmissão para o público-ouvinte, sobretudo do período colonial, da participação soviética e cubana na luta pela independência de Angola:

de esperança/ largo da independência fomentou a ganância/ (bis). (Filhos da Ala Este, 2010)

De modo diferente, outro exemplo de peso é ilustrado nas músicas “Nossa História”, “Politrixx” e “Nuvem negra”, do rapper angolano Mutu Moxi (Intelektu) – radicado na África do Sul há mais de 10 anos – que usa referências históricas de discursos políticos nacionais. Na música “Politrixx”, do seu mais recente álbum promocional intitulado Senso Clássico, de 2010, o rapper Mutu Moxi usa excertos do discurso de Jonas Savimbi, o líder da rebelião armada em Angola enquanto introdução e refrão ao mesmo tempo:

(...) e é importante nesse momento/ para sermos sinceros/ para com a história da nossa própria terra/ agradecer o papel que Portugal desempenhou/ ao mesmo tempo dizermos/ por que eu estou aqui/ eu sou antes de mais nada e, sobretudo; / eu sou nacionalista; eu sou patriota/ para mim, acima de Angola não existe mais nada/ (...) nós queremos que o angolano seja mais valorizado do que dantes/ o angolano é o centro das nossas preocupações/ eu ponho em primeiro lugar: o angolano/ em segundo lugar: o angolano/ em terceiro lugar: o angolano/ em quarto lugar: o angolano/ depois não sei onde ficam os outros/ deveriam ficar nas suas terras[65]. (Intelektu, 2010)

Em seguida, o rapper critica a política e os políticos, dizendo que não acredita na propaganda dos partidos políticos nacionais. Uma ênfase é colocada na decadência política e social, constatando o paradoxo entre o enriquecimento da elite política que detêm o poder económico e os cidadãos maioritariamente em situação de profundas carências sociais. Já na música “Nuvem negra”, uma das mais recentes do rapper, a atenção recai no excerto do polémico discurso do Presidente da República como refrão:

(...) conhecemos a origem da pobreza em Angola/ não foi o MPLA nem o seu governo que a criou/ essa é uma pesada herança do colonialismo[66]. (Intelektu, 2010)

Intelektu questiona a veracidade de tal afirmação proferida pelo Presidente da República, que é contrariada – a olho nu – pelo paradoxo gritante entre a luxúria das elites governantes e as desigualdades sociais. A música enfatiza a discordância do artista perante o discurso de justificação da origem da pobreza em Angola.

 

Estética das transgressões

O rap de intervenção social feito em Angola, na forma e no conteúdo, é movido por uma estética das transgressões, ou seja, por uma estética da agressividade. A estética da agressividade está na forma do rap, no instrumental que contraria a ordem da execução de uma música de matriz dos anos 60 e 70 até à chegada da cultura hip-hop; está na indumentária com que se apresentam os fazedores de hip-hop, numa sociedade algo conservadora, que questiona a “aparência estranha” com a qual se não identifica e que não se conforma à ordem aceite; a estética da agressividade está na afirmação de uma identidade juvenil no corte de cabelo e na linguagem. Os rappers denominados de “revú” expressam nas suas músicas conteúdos diversos: crítica política, criminalidade, crítica à guerra civil, apropriação histórica do passado, lirismo de confrontação; eles materializam uma forma de fazer rap que pode ser induzida pelo contexto de violência física, psíquica e estrutural que marcou o percurso do Estado independente. Essas várias gerações de rappers – em grande parte nascidos entre os finais dos anos 70 e início dos 80 – não conhecem um país diferente do contexto de conflito armado e militarizado. A militarização das consciências, por hipótese, dá origem a uma atmosfera traumatizante derivada da longa guerra civil que continua embutida e em constantes mudanças, aquilo que Franz Fanon (2010) denomina de “atmosfera da violência” (pp. 94-95), e os rappers como parte activa da sociedade não estão excluídos dessa “climatização violenta”. É frequente encontrar músicas de intervenção onde os letristas se exprimem com uma violência verbal extasiante.

Um primeiro exemplo dessa agressividade é-nos demonstrado por Ngadyama Wakamba Sonhy, líder do grupo Pobres 100 Culpa, na forma de cantar e mesmo no conteúdo das músicas “Sociedade aberta” e “Um país do faça você mesmo”:

Pobres 100 culpa/ rebeldes naturais/ (...) 15 anos depois/ a fúria pobre ressuscita outra vez/ dizem que o pobre é malandro/ pobres 100 culpa fodidamente voltando. (Pobres 100 Culpa, 2010)

A mensagem contida nas músicas e a forma como são cantadas confirmam a existência dessa lógica de transgredir a ordem estética vigente, rompendo com o modelo de governação, sobretudo nas críticas de responsabilização que fazem directamente ao chefe do governo. De seguida se constata mais dois exemplos dessa estética das transgressões, por um lado, encontrada em Flagelo Urbano com a música “Manifestação”, do seu primeiro álbum, Entre o tempo e a memória, lançado em 2009:

Fechem as rádios, fechem os jornais e a televisão/ privatizem a democracia e a liberdade de opinião/ cortem os nossos direitos, pisem nos decretos/ promulguem leis pronto-a-vestir se acharem certo/ excluam-nos/ construam morros e muralhas/ protejam os vossos bens com homens e metralhadoras/ partam as nossas casas e em seu lugar construam condomínios. (Flagelo Urbano, 2009)

E, por outro, seguido de Kid Mc com a música “Lição”, igualmente do seu primeiro álbum, Caminhos, de 2008:

(...) vidas abaixo/ juventude ameaçada/ parece que estamos bem no avesso/ vivemos nesse mundo e distante do universo/ o país está a crescer eu admito/ mas às vezes o nosso governo é esquisito/ andamos distraídos na reconstrução/ esquecendo que o futuro consta na educação/ a rigorosidade já passou/ por isso é que a falta de respeito nesse lugar aumentou/ dinheiro trouxe modernismo e favas/ estamos a nos esquecer que vivemos em África/ educação deixou de ser conservadora/ assim vamos a caminho de uma realidade perigosa/ até crianças fazem o que querem/ desrespeitam qualquer pessoa/ porque ninguém repreende/ e crescem assim/ até cair nas drogas/ para eles a educação significa escola/ os jovens querem mandarem-se a si próprios. (Kid Mc, 2010b)

 

À guisa de conclusão

Sem o devido cálculo, o hip-hop acabou sendo a novidade que viria a contribuir para a desprovincialização das actividades culturais do país. O rap, seu expoente máximo, nem por isso o elemento que acompanhou o pioneirismo do movimento vindo das Américas, jogou um importante papel na definição de uma nova agenda cultural da camada mais jovem.

A maneira como o hip-hop, sendo uma cultura de demanda liberal, foi apropriado pela juventude angolana ocasionou reacções de confronto com a música semba de viés revolucionário apologético vigente na época. Resumidamente, as músicas aqui analisadas visualizam as transformações sociais ocorridas em Angola captadas pelos rappers atentos, assumindo assim posições irreverentes quer em momentos de crise social, quer conjugando para afirmação dialógica uma cultura vinda de fora e as particularidades locais.

As propostas oferecidas pela música rap, em particular, e pelo hip-hop, em geral, têm vencido obstáculos e promovido a modernização do campo músico-cultural.

 

Referências

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Recebido: 27 de agosto de 2015; Aceite: 11 de dezembro de 2015

 

Notas

[1]   A esse propósito, parece bastante questionável, porque excessiva, a relevância mundial que Eric Hobsbawm (2001) atribui ao rock, chegando a considerá-lo como elemento principal de uma “cultural jovem global” entre as décadas de 1960 e 1970 (pp. 320-321). Na verdade, como o próprio Hobsbawm tende a reconhecer, apesar da sua expansão através da difusão mundial de sons e imagens, da moda na sociedade de consumo, da rede mundial de universidades e dos contactos internacionais promovidos pelo turismo juvenil, dificilmente o rock conquistou adesão efectiva para além dos núcleos urbanos da cultura jovem ocidental de classe alta e média, e, quando o fez, jamais por assim dizer rejeitou a sua matriz classista e racial, o que implicou, em grande medida, o seu insucesso popular (ibid., p. 324).

[2]   Não obstante os seus apelos contestatários e emancipatórios, por meio dos quais os jovens rejeitavam uma ordem social simbolizada por convenções de gostos, modos e costumes considerados repressivos e arcaicos, é notório que no âmbito do movimento pop, ao contrário do que ocorreu – e, de certo modo, ainda vem ocorrendo – no hip-hop, a mera rebeldia pessoal sempre predominou em face da necessidade e do desejo de emancipação social, sendo sexo, drogas, tatuagens e gestos obscenos as maneiras mais óbvias de confrontar a autoridade dos pais, o poder dos vizinhos e a repressão da lei (cf. Hobsbawm, 2001, pp. 325-327).

[3]   Abreviação da expressão rhyme and poetry, que designa a vertente musical da cultura hip-hop, executada por um Mc (Master of ceremony) ou rapper.

[4]   Forma que caracteriza a dança da cultura hip-hop, divida em três subgéneros, a saber: poppin’, lockin’ e b.boy.

[5]   Esse dado revela um paradoxo típico da cultura sob a ordem da produção capitalista, o qual o hip-hop não conseguiu contornar. Pois, tendo nascido como uma cultura urbana de resistência, ou seja, uma contracultura afro-americana nos EUA, ele não resistiu aos ditames da mercadorização e só pôde difundir-se mundialmente como parte da afirmação da mesma hegemonia cultural à qual se opunha no plano interno. Daí que seja hoje temerário descrever o hip-hop como uma forma cultural exclusivamente marginal ou revolucionária: “Qualquer um que afirme a contínua marginalidade do hip-hop deveria ser pressionado a dizer onde imagina que o centro pode estar agora” (Gilroy, 2007, p. 214).

[6]   Sem prejuízo da necessidade de análises detalhadas de cada contexto, talvez este factor evidencie, em grande parte, a razão de o hip-hop não ter tido o mesmo nível de aceitação em todas as sociedades. É pressuposto que em países como o Irão e a Índia, por um lado, a Rússia e a China, por outro, a difusão do hip-hop tenha registado acções de resistência maiores do que em outras partes do mundo. No primeiro caso, pelo alto grau de conservadorismo cultural aliado ao fundamentalismo religioso, ao passo que no segundo, pelas restrições políticas e comerciais em relação aos produtos norte-americanos e ocidentais de forma geral.

[7]   Sobre o carácter essencialmente sincrético do hip-hop, cf. Paul Gilroy (2001, pp. 89-100). Nota-se ainda que, em outro lugar, o foco da crítica desse autor é justamente o reducionismo etnicista e/ou racial que predomina em certas abordagens sobre o hip-hop, pois, para ele, o sincretismo, que é sempre um processo imprevisível e surpreendente, sublinha “a complexidade de suas dinâmicas por cima das linhas de cor. O cruzamento, assim como a dispersão da diáspora em outros países, não é mais algo que pode ser conceituado como um processo unidimensional ou reversível” (Gilroy, 2007, p. 215).

[8]   Refere-se, aqui, aos Acordos de Bicesse, assinados, em Maio de 1991, pelo governo representado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a guerrilha representada pela União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) sob os auspícios de uma troika composta por Portugal, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e EUA (cf. Messiant, 2004).

[9]   O autor aponta três factores que, no seu entender, estiveram na base da referida crise, nomeadamente “as consequências directas e indirectas da situação militar no país [ou seja, da guerra civil], o aumento da dependência face ao sector petrolífero e, finalmente, (...) uma má definição e gestão da política económica” (Ferreira, 1993/1994, p. 136).

[10]   É de referir que, desde a Independência, Angola importava já diversos produtos destinados ao abastecimento do mercado interno, de proveniência sobretudo dos países do leste europeu, como a República Democrática Alemã (RDA) e a URSS.

[11]  Segundo Rafael Guarato (2008), foi precisamente no início dos anos 80 do século XX que “ocorreu uma explosão da breakdance nos Estados Unidos da América, culminando numa série de filmes e aparições de dançarinos vinculados ao break nos meios de comunicação de massas daquele país, mais precisamente a partir de 1982” (p. 62, itálico do autor).

[12]  De acordo com o testemunho da maior parte dos mais antigos protagonistas do hip-hop em Angola, este filme pode ser considerado como um marco para o surgimento do breakdance e, consequentemente, do hip-hop em Angola. Aliás, dois dos seus personagens, Turbo e Onze, tornar-se-iam ídolos para os jovens que, na altura, se iniciavam naquele novo estilo de dança (cf. Samurai, 2010). Em todo o caso, outras influências foram importantes, como as dos passos de dança de Mc Hammer e do grupo Kriss-Kross (cf. Tchilar, 2009).

[13]  Os filmes e outros materiais videográficos chegavam a Angola já depois de legendados em Portugal.

[14]  No final da década de 1980 e início da de 90, a dança de rua tornou-se uma actividade artística bastante divulgada e praticada em certas regiões de Angola, principalmente na capital, em virtude do surgimento de vários estilos de dança, ligados ou não ao carnaval, tais como a kabetula, a bungula, a vaiola e o kwassa kwassa, este último proveniente do então Zaire, actual República Democrática do Congo.

[15]  Como assinala Nelson Pestana (2008), o Estado angolano monopartidário desde logo procurou “estruturar o campo cultural propondo-se ‘desenvolver a cultura de massas’ segundo os princípios do marxismo-leninismo, considerado ‘valor primordial da educação do povo’” (p. 9).

[16]  Cf. os testemunhos de Miguel Neto, Kool Kleva, Nelson Mandela (Dj Nkaapa) e Wima Naioby (Tchilar, 2009).

[17]  No entanto, a exemplo do que constata Rafael Guarato (2008) em relação ao aparecimento do breakdance em Uberlândia, é bem provável que estes dançarinos não executem as manobras de break tal e qual as personagens dos filmes a que assistiam. Atendendo ao facto de que a maior parte já estava acostumada a outras danças e tendo em conta que toda a cópia é ela mesma uma criação, a hipótese é que eles produziam uma mescla de estilos de dança, na qual o breakdance predominava (pp. 63-64).

[18]  Um dos principais alvos foi, sem dúvida, a noção patriarcal da ordem social angolana, para a qual era inconcebível rapazes amarrarem lenços à cabeça, usarem calças abaixo da cintura e andarem em ritmo sincopado.

[19]  Cf., entre outros, o testemunho de Nelson Mandela (Dj Nkaapa) (Tchilar, 2009). De facto, Gabriel O Pensador representou a possibilidade do rap em português, algo inédito para os ouvidos daqueles jovens angolanos, que, no momento, apenas conheciam o rap americano.

[20]  Trata-se de designações usadas por certos rappers angolanos para caracterizar a vertente de rap que praticam, diferenciando-se e, em certa medida, opondo-se, assim, aos praticantes do chamado “rap comercial”.

[21]  São assim designados os rappers que participam do movimento hip-hop em Angola desde o final da década de 1980 e/ou o princípio da de 90.

[22]  Rappers que iniciaram a sua carreira não antes da segunda metade da década de 1990.

[23]  Distribuição e comercialização restrita aos grupos de rappers e pessoas interessadas.

[24]  Música urbana de Luanda surgida na década de 40 da mistura de vários estilos.

[25]  Gastos exorbitantes.

[26]  Rede de transportes particulares de passageiros semi-colectivos.

[27]  Bairro periférico de Luanda.

[28]  A designação da televisão alterou-se após a mudança de sistema político de popular para pública.

[29]  Designação que refere-se aos problemas.

[30]  Mercado.

[31]  Comprar.

[32]  Pão.

[33]  Faculdade.

[34]  Baixou.

[35]  Autor do álbum O homem e o artista (2005).

[36]  O termo musseque actualmente designa as zonas periféricas e também semiurbanas das cidades de Angola. Este termo é originário do período colonial e servia para designar as zonas habitacionais de terra avermelhada fora do casco urbano da cidade.

[37]  O termo faz parte da gíria luandense e refere-se a uma criança.

[38]  Menores.

[39]  Comida.

[40]  Termo da gíria luandense que se refere ao acto de comer.

[41]  Refere-se àquelas pessoas nascidas nas décadas de 1950 e de 1960.

[42]  Introdução de excertos ou sobreposição de músicas.

[43]  Episódio de golpe de Estado que ocorreu no interior do partido MPLA e do Estado, opondo dois grupos em torno do Presidente Agostinho Neto e do então ministro da Administração Interna e Comandante das FAPLA, Alves Bernardo Baptista, vulgarmente conhecido por Nito Alves.

[44]  Dois grupos etno-linguísticos que compõem a população sudoeste de Angola.

[45]  Unidade de Guarda Presidencial.

[46]  Distrito residencial da cidade de Luanda.

[47]  Três municípios da província do Huambo, região centro de Angola.

[48]  Político luso-angolano da UNITA.

[49]  Rádio e Televisão Portuguesa (RTP).

[50]  Data da repressão colonial na região norte de Angola.

[51]  Movimento Popular de Libertação de Angola - Partido do Trabalho (MPLA-PT).

[52]  Iletrado (refere-se a uma pessoa sem estudos e proveniência rural com um sentido jocoso).

[53]  Empresa de construção civil de origem brasileira.

[54]  Empresa de construção civil de origem portuguesa.

[55]  Comprar (expressão da gíria luandense).

[56]  Dinheiro (expressão da gíria luandense).

[57]  Exclamação que dependendo do sentido pode denotar admiração, surpresa ou ainda chamada de atenção.

[58]  Senhora (expressão da gíria luandense que se refere a uma senhora).

[59]  Senhor (expressão da gíria luandense que se refere a um senhor).

[60]  Kalashnikov – arma de fabrico russo.

[61]  Abreviatura do nome da discoteca Dom Quixote, em Luanda.

[62]  Coisa.

[63]  Chefe ou rico.

[64]  Arma.

[65]  Discurso proferido durante a campanha para as eleições gerais realizadas pela primeira vez em Angola, em 1992.

[66]  Discurso proferido na reunião do Comité Central do partido MPLA, em Luanda, em 2011.

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