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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.30 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

A Questão das “Ouvidas”, ou a Disputa entre Autoridades Civis e Militares pelo Julgamento de “Causas Gentílicas” na Angola de Meados do Século XIX

The issue of the “Ouvidas”: The dispute between civil and military authorities for the trial of “causas gentílicas” in mid-19th century Angola

 

João Figueiredo*

*Centro de História da Sociedade e da Cultura, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Largo da Porta Férrea, 3004-530 Coimbra, Portugal, de.castro.maia@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo parte de duas polémicas que nas décadas de 50 e 60 do século XIX se desenrolaram nas páginas do Boletim Official do Governo Geral da Provincia de Angola para apurar, quer como os modelos ideais de “Julgados” e “Presidios”, gizados na metrópole portuguesa, eram percebidos localmente, quer como o inevitável desfasamento entre estes paradigmas e o habitus dos agentes coloniais locais foi instrumentalizado em denúncias cruzadas por corporações rivais na prestação de justiça no sertão angolano. Especial atenção será dada à forma como estes embates na esfera pública se inserem nas tensões mais latas entre abolicionistas e negreiros, bem como entre os agentes fiéis a Lisboa e aqueles afetivamente mais próximos ao Brasil.

Palavras-chave: ouvidas, mucanos, missão civilizadora, organização judiciária, gentilismo, escravatura

 

ABSTRACT

This article pays close attention to two controversies which took place in the pages of the Boletim Official do Governo Geral da Provincia de Angola during the 1850s and 1860s. On the one hand, this scrutiny allows a best comprehension of how the ideal types of “Julgados” and “Presidios” drafted at the metropolis were locally understood. On the other, through this analysis it is possible to understand how the inevitable disparity between these models and the habitus of the locals was exploited by rival corporations responsible for the administration of justice, which from then on exchanged mutual accusations. The broader context will be also considered, taking into special account both the rivalries between abolitionists and slavers, and those between colonial agents either closer to the metropolis or Brazil.

Keywords: ouvidas, mucanos, civilizing mission, judicial organization, gentilismo, slavery

 

O ponto de partida para este artigo é a publicação de uma portaria a 10 de fevereiro de 1855, no Boletim Official do Governo Geral da Provincia de Angola, da autoria de José Rodrigues Coelho do Amaral, no seu primeiro mandato enquanto Governador-geral interino da colónia (1854-1860)[1]. Através desta, o estadista enceta uma tentativa de regular um ato cível, que denomina “Ouvida”, criando imediatamente polémica, quer em torno da natureza desta nebulosa instituição jurídica, quer das normas processuais a aplicar, controvérsia que extravasará, também ela, parcialmente para as páginas do Boletim Official[2]. A altercação que resulta da tentativa de José Amaral de “normativizar” “uma das [acções cíveis] que se apresentam mais frequentemente nos Julgados dos Districtos e Presidios”[3] revela tensões que permaneciam latentes, do ponto de vista administrativo, desde que, com a aplicação das reformas esboçadas no decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852[4], haviam sido finalmente dados passos consequentes no sentido de avançar com a desmilitarização da administração colonial[5]. Estes antagonismos, entre membros de corporações civis e militares encarregues de administrar a justiça cível no território colonial, reemergiriam mais uma vez em 1866, quando uma circular, emitida a 3 de agosto e publicada no dia seguinte no Boletim Official, indaga às médias patentes sertanejas a utilidade das “Câmaras Municipaes, Comissões Municipaes” e “Julgados”, instituições que entretanto haviam passado a desempenhar um papel em muitos aspectos concorrente com o dos militares[6].

O estudo de ambos os episódios é de interesse para a história da extensão do municipalismo a Angola no conturbado período em causa. Em primeiro lugar, porque permite descortinar a evolução da perceção que os vários participantes nas discussões em análise tinham dos modelos de administração territorial propostos a partir da metrópole portuguesa. A forma como entendiam estes esquemas vai-se tornando clara, por exemplo, sempre que, a fim de denegrir politicamente os seus rivais, os intervenientes nos debates comparam a sua visão da realidade angolana com a conceptualização que tinham de tais modelos, frisando falhas e apontando incongruências alheias. Em segundo lugar, porque a partir dos detalhes extraídos deste tipo de acusação é possível traçar uma etnografia parcial do habitus dos agentes coloniais do sertão[7], que continuou a ditar os seus comportamentos de forma em grande medida impérvia às normas oficiais expedidas a partir de Lisboa. Assim se explica que as mesmas críticas fossem ciclicamente avançadas por ambos os lados em contenda, demonstrando que na prática tanto os sertanejos militares quanto os civis se continuavam a reger no seu dia-a-dia por esquemas de sobrevivência e enriquecimento traçados e “incorporados”[8] quando o tráfico negreiro transatlântico era ainda legal.

Finalmente, o estudo do desenrolar de ambas as polémicas, despoletadas e alimentadas por emanações legais e comentários dados ao prelo no Boletim Official, permite apurar como nesta folha se cria um espaço de debate e contenda, liça para as elites locais, cujas controvérsias passam assim não só a poder ser seguidas mais de perto pela administração colonial metropolitana, como a deixar traços passíveis de serem hoje analisados pelos historiadores. Este é portanto também um estudo sobre a esfera pública angolana de meados do século XIX, conforme foi sendo instituída pelo Boletim Official, publicação que acabou servindo ao mesmo tempo de meio para a extensão, por via legal, do municipalismo a África, e de registo da opinião das elites coloniais intermédias em relação a este processo.

A perene tensão entre uma metrópole afetiva e uma metrópole normativa

Mesmo um estudo superficial da administração colonial portuguesa do território angolano permite a imediata perceção de um padrão de actuação que se manteve durante grande parte do século XIX, o qual, embora não imediatamente óbvio aos intervenientes históricos que o vão traçando, o é a posteriori para os historiadores. Este padrão, caracterizado pelos sucessivos impasses, demoras na aplicação ou mesmo promulgação local de decretos e outras emanações legais – que, após o serem, são imediatamente sofismados –, resulta da tensão permanente entre as normas exaradas a partir de Lisboa e o habitus dos agentes locais (Santos, 2010, pp. 539-556). Este era não só, e por definição, mais influenciado pelas práticas cotidianas e exigências da luta pela sobrevivência do que por quaisquer regras formais decretadas em abstrato, como também profundamente marcado pela força de gravitação, constante mas nem sempre conspícua, do Brasil – verdadeira metrópole afetiva do território[9]. Assim sendo, o desrespeito pela intenção do legislador assente na sede europeia do Império Português, que se traduz na negação ou adulteração local das normas resultantes dos sucessivos ímpetos reformistas oitocentistas, resulta igualmente numa crise de autoridade que, apesar de ser sobretudo o resultado da resiliência passiva de hábitos enraizados, era por vezes apercebida pelas fragilizadas elites portuguesas como um desafio programático ou reflectido à sua legitimidade[10].

Como tal, até meados do século XIX, Lisboa foi incapaz de introduzir em Angola certos avanços desejados pelos reformadores liberais, como a administração civil da justiça, pois assim que uma maior liberdade era concedida às elites civis locais, o desejo de aproximação ao Brasil era imediatamente ventilado, o que era entendido pelos dirigentes metropolitanos, não como o anelar utópico e nostálgico do regresso de um status quo ante que ainda era parcialmente reatualizado em certas vivências cotidianas dos “escravocratas” locais, mas como uma ameaça concreta à soberania portuguesa em África. Assim, nas três décadas que medeiam entre o complexo processo que culminou no reconhecimento português da independência brasileira em 1825, e a publicação do decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852, inúmeros fatores parecem conspirar para aproximar Angola dessa sua “metrópole” afim (Pantoja, 2003, pp. 187-215), ditando a manutenção até tarde de um “carácter predominantemente militar da administração colonial”, tido como garante último do vínculo com Lisboa (Dias, 1981, pp. 273-285).

Esta dinâmica pode ser facilmente surpreendida centrando a análise na resistência local a duas reformas profundas, programadas pelos decretos de 7 e 10 de dezembro de 1836, o primeiro conhecido como “Reforma Vieira de Castro”, o segundo como “decreto de Sá da Bandeira” (Marques, 1995, pp. 375-402). O último, ao promulgar abruptamente o final do tráfico negreiro transatlântico, choca frontalmente contra interesses económicos óbvios, cuja defesa, desde o acordo anglo-brasileiro de 1826 (Dias, 1981, pp. 294-304; Rodrigues, 2008, p. 120), se vinha cristalizando na colónia em torno da Junta da Fazenda de Luanda e do Senado da Câmara Municipal de Luanda (Alexandre, 1991, pp. 295-296).

Ambas as corporações, entre 1830 e 1833 – numa época em que o número de escravos exportados paradoxalmente aumentava –, denunciam de forma tão hiperbólica quão interessada os grandes males que o acordo entre o Império Britânico e o Brasil vinha supostamente trazendo à economia e às finanças da colónia, começando assim a aliar à resistência empírica dos negreiros um mais refinado discurso teórico, apologético da escravatura (ibid.). Posteriormente, estes interesses corporativos tornariam difícil a aplicação imediata do decreto de 10 de dezembro de 1836, atrasando mesmo a sua publicação na colónia mediante o boicote à publicação do primeiro número do Boletim Official (ibid., p. 309; Lopo, 1964).

A “Reforma Vieira de Castro”, por sua vez, estabelecia a divisão dos “Dominios Africanos” em “tres Governos geraes, e um particular”. Eram dotados de Governo-geral Cabo Verde e suas dependências, Angola e os territórios da “Africa Occidental Austral” e finalmente Moçambique e as “Possessões Portuguezas na Africa Oriental”, passando as Ilhas de São Tomé e Príncipe, em conjunto com o Forte de S. João Batista de Ajudá, a constituir um Governo particular. Aos comandos de cada um destes domínios passa a estar a figura civil do “Governador geral”, sendo os “Conselhos de Districto” substituídos por “Conselhos de Governo”.

Para além deste passo na desmilitarização do território, o decreto de 7 de dezembro prevê igualmente no seu 11.º artigo a criação de “regulamentos particulares” para a “organização das Authoridades Judiciaes, Administrativas, Municipaes e Fiscaes”, bem como, no seu artigo 17.º, o estabelecimento de “Governadores subalternos”, exercendo a autoridade “administrativa e militar” em “cada um dos Presidios e Estabelecimentos marítimos, ou no interior do Continente”. Finalmente, é este mesmo decreto que, no seu 13.º artigo, preconiza a publicação “debaixo da inspecção de cada Governo geral” de um “Boletim, no qual se publiquem as Ordens, Peças Officiaes, Extractos dos Decretos regulamentares enviados pelo respectivo Ministério aos Governos do Ultramar”[11].

Tidos em conjunto, estes dois decretos setembristas lançam não só as bases para a “civilização”, no sentido de desmilitarização, do aparelho administrativo colonial, como propõem sérias restrições à principal atividade económica em que se estriba a vivência das elites locais – o tráfico negreiro transatlântico – e, também, a criação de um órgão de difusão oficial no território angolano das normas legais enviadas do reino. Como tal, é sem surpresa que a reacção contrária ao ímpeto abolicionista de Sá da Bandeira[12] se estende igualmente à introdução da imprensa periódica na colónia (Lopo, 1964). Nesta conjuntura, o clima de insurreição e caos administrativo criado serve também como travão à desmilitarização do aparelho colonial, adiada até um balanço de forças tido como mais propício à metrópole portuguesa (Marques, 1995).

Na década de 1850, quando o tráfico transatlântico de escravos começa a estancar[13], a administração colonial metropolitana, aproveitando a relativa estabilidade política do período e a perceção de que o perigo independentista havia atingido o seu nadir, começa finalmente a reformar de forma consequente o carácter acentuadamente militarista do poder local em Angola. Do fim do comércio negreiro transatlântico resulta porém uma tentativa de transplantar para Angola o modelo escravocrata do Brasil numa escala puramente interna, por parte das pequenas burguesias crioulas. Estas, que com as sul-americanas partilhavam uma mundividência atlântica, passam a recorrer às plantações de açúcar e à destilação de álcool a fim de acumularem capital, depois empregue na compra de escravos no sertão (mais ou menos encapotados sob a denominação de “serviçaes”, “libertos” ou “resgatados”) (Torres, 1991). A mão-de-obra gratuita assim adquirida alimentaria um sistema “neomercantilista” circular, que primeiro derrotou as tentativas pífias de instalação de um sistema verdadeiramente capitalista por parte da metrópole, mas que depois viria a ser cooptado pela alta burguesia lisboeta[14].

Consequentemente, apesar de o “iníquo comércio” transatlântico ter sido gradualmente desmantelado, todas as técnicas refinadas de produção de escravos[15] para o mercado intercontinental foram antes de mais reajustadas à nova realidade interna, e não esquecidas. Este mero reajustar de escala possibilitou a manutenção de práticas e normas culturais locais que deixaram de colidir frontalmente com as reformas legais decretadas a partir de Lisboa, por as autoridades do reino passarem a contemporizar com a manutenção velada da escravidão interna[16]. Apesar de assim diminuir o potencial de conflito entre as sucessivas normas expedidas da metrópole europeia e o habitus dos locais que continuavam embrenhados num cotidiano esclavagista, graças a um realinhamento de interesses que se traduziu numa pacificação social, esta situação de equilíbrio era frágil. Era-o, porque dependia da não explicitação de pressupostos tacitamente aceites mas em choque, quer com a fachada abolicionista internacionalmente mantida, quer com as expetativas de ocidentalização e europeização cultural cada vez mais teleológicas e associadas ao conceito de “civilização”[17].

É neste contexto que é promulgado o decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852, que proporciona um novo regimento para a administração da justiça nas “Provincias de Angola, e S. Thomé e Principe e suas dependencias”. Para além de estabelecer no seu primeiro artigo que o “Reino de Angola, Benguella e suas dependencias” formam um “Districto Judicial”, o de Luanda, em conjunto com as “Ilhas de S. Thomé e Principe e suas dependencias”, este decreto promulga no segundo artigo a existência de três comarcas, de Luanda, Benguela e S. Tomé, subdividindo-as por sua vez no terceiro artigo em “Julgados e em Presidios”, “segundo a natureza e estado da sua respectiva população”.

Este decreto introduz de seguida uma inovação fulcral: o mais baixo escalão da hierarquia administrativa da justiça, para além de dividir os espaços coloniais entre aqueles sob a alçada civil (“Julgados”) e aqueloutros sob a militar (“Presidios”), subordina o apurar do aparato administrativo conveniente a um dado local à “natureza e estado” dos seus habitantes[18]. Assim, ao mesmo tempo que nos dicionários “civilização” ganha o sentido que lhe reconhecemos hoje (Lima, 2012, pp. 66-81), começa igualmente a “civilização” da administração da justiça – no sentido de desmilitarização – a estar subordinada ao que os governadores iluminados haviam entendido meramente como o grau de “polidez” ou “ilustração” de um dado povo[19].

Se o debate em torno das virtudes de um governo civil, e portanto polido ou policiado dos povos, era à data inexistente, porque havia ficado resolvido a favor do reconhecimento universal da sua conveniência[20], com o decreto de 30 de dezembro de 1852 a discussão em torno do tipo de tutela jurídica, se civil ou militar, mais adequada a um dado povo volta a ser pertinente, servindo de liça para o embate entre distintas corporações com interesses económicos ligados à prestação da justiça. Por outras palavras, neste contexto é possível a um militar defender que é à sua corporação que deve caber a superintendência à data nas mãos de um civil[21] por não estarem reunidas as condições de “civilização” da população da área em causa. A fundamentação desta inversão de uma “evolução” tida como irreversível – a dos “Presidios” em “Julgados” – era até então de tal forma impensável (Silva, 2006, pp. 16-18), que Massangano havia mantido os seus privilégios de vila mesmo quando não cumpria, havia décadas, com quaisquer outros requisitos que não os “históricos”.

O decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852 proporciona assim um enquadramento para o embate entre os membros das corporações militares e civis capazes de concorrer pela administração da justiça em Angola, ao mesmo tempo estabelecendo a denúncia do incumprimento de condições “civilizacionais” (no sentido de ocidentalização dos costumes, e não de simples submissão a leis codificadas) enquanto dispositivo retórico de preferência dos intervenientes. A disputa que se segue, ao ser travada nestes termos, passa a basear-se em delações de parte a parte relativas à adoção precisamente das práticas cotidianas que haviam sobrevivido enquanto elementos do habitus dos agentes locais afeitos ao comércio negreiro. Permanência que, beneficiando de tolerância tácita por parte das cúpulas da administração colonial local, estava na base da pacificação social do território que havia possibilitado quer o relançamento da economia, quer as novas reformas.

Por outras palavras, no confronto entre as corporações civis e militares pelo acesso aos postos administrativos mais baixos é quebrado parcialmente o silêncio em relação à continuada adoção generalizada dos costumes “gentílicos”, que desde o tempo dos capitães-mores faziam parte do cotidiano dos agentes coloniais, que a eles recorriam não só para criarem o seu pé-de-meia, como para produzirem parte da mão-de-obra escrava que alimentava a economia (Santos, 2005b, pp. 818, 822-824).

“Normatizando” o improviso

De entre todas as reformas de fôlego propostas pelo decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852, são as contidas no seu artigo 67.º aquelas que causam manifesta celeuma entre as corporações civis e militares responsáveis pelos escalões mais baixos da administração colonial. Este artigo, parte do capítulo dedicado às disposições gerais, regula que “os emolumentos” a cobrar pela prestação da justiça sejam “provisoriamente contados pelo que está determinado no Decreto de 26 de Dezembro de 1848 para o continente do Reino”. Assim, esta decisão implica, conquanto indirectamente, que o legislador seja forçado a determinar, posteriormente e de forma casuística, como vão ser calculados os valores arrecadados pelos funcionários que desempenham funções não equiparáveis a quaisquer outros em acção na metrópole europeia.

Esta normatização começa a ser ensaiada na alínea primeira do artigo 67.º, que versa sobre os emolumentos a cobrar por aqueles que “exercem as funções de Juizes, e de Empregados de Justiça nos Presidios e Districtos” – por outras palavras, os militares que velavam em África pela justiça cível. O autor do decreto determina que os valores coletados pelos ocupantes destes cargos sejam “provisoriamente os mesmos que até agora se percebiam”, ficando previsto, porém, nas alíneas segunda e terceira do artigo 67.º que a Relação de Luanda procederia “immediatamente a formar uma tabela fixa dos emolumentos”, a ser submetida ao Governador-geral de Angola, que sobre ela deveria deliberar “em Conselho por Consulta da Relação”, submetendo os resultados à publicação no Boletim Official[22].

É precisamente no cumprimento desta obrigação que José Rodrigues Coelho do Amaral, enquanto Governador-geral interino, faz publicar no Boletim Official a portaria número 66, de 10 de fevereiro de 1855. Nesta, defende a adoção definitiva da tabela provisória[23] que estabelecia os emolumentos a cobrar pelos que exerciam as “funções de juízes, e de Empregados da Justiça, nos Districtos e Presidios desta Provincia”, após esta ser aumentada com um aditamento que resolvia uma grave “omissão”. O Governador-geral interino aproveita então a oportunidade de revisão, proposta nas alíneas segunda e terceira do artigo 67.º do decreto de 1852, para colmatar o que entendia ser uma “falha” na legislação vigente, aumentando a tabela de emolumentos em vigor com uma listagem dos valores a arrecadar pela execução das acções cíveis que acreditava serem as mais comuns em Angola[24]:

Não se achando nesta tabela estabelecidos os emolumentos correspondentes á acção civel denominada – Ouvida – que é uma das que se apresentam mais frequentemente nos Julgados dos Districtos e Presidios, e na qual os Chefes julgam sumariamente, reduzindo tudo a um só auto de inquirição e de sentença:
Resultando desta omissão a maior arbitrariedade nas exigências dos Chefes, quanto aos emolumentos pela referida acção; pois que uns levam mais, outros menos, e todos pretendem receber quantias mui superiores ás que estão marcadas aos Juizes de Direito, por suas sentenças, na tabela respectiva:
Convindo regular esta matéria, em harmonia com a legislação vigente do reino, para que os povos do interior não continuem sob o vexame que até agora os tem oprimido, de pagarem excessivamente cara a administração da justiça, ou de prescindirem della, por lhes ser menos onerosa a continuação do damno sofrido...[25].

Após estas considerações, o Governador-geral interino determina que os “Chefes dos Districtos e Commandantes dos Presidios não poderão julgar e proferir sentença, senão naquellas [causas] que couberem na sua alçada, ou na dos Juizes de Direito com recurso para estes”, estabelecendo que, fora desta alçada[26], os militares apenas podem tomar conhecimento de causas enquanto “Juizes Arbitros” (estando as suas decisões sujeitas à aprovação ulterior do “Juiz de Direito da Comarca respectiva”). De seguida, numa tentativa de enquadrar de uma forma próxima à adotada na metrópole processos assentes na prestação oral de depoimentos[27], José Amaral define que nas “Ouvidas” é a “forma de processo perante os Juizes Eleitos, declarada no Titulo 10.º da Novissima Reforma Judicial” que deve ser “sempre seguida”[28]. Finalmente, o Governador-geral interino fixa uma tabela de emolumentos a cobrar aquando das “Ouvidas”, dependentes das alçadas das causas mas sempre simbolicamente fixados em “metade dos que estão marcados para os Juizes de Direito”, no decreto de 26 de dezembro de 1848, relativo à administração da justiça por civis no “continente do Reino”[29]. A subalternização simbólica dos militares é, assim, dupla: face às corporações civis e à metrópole.

Graças à breve descrição que José Amaral faculta do procedimento judicial que intitula de “Ouvida”, bem como a informações que viria a fornecer em resposta àqueles que publicamente declararam não haver compreendido o teor da sua portaria número 66, de 10 de fevereiro de 1855[30], é possível sem margem para dúvidas estabelecer que a “acção cível” em causa era o ato judicial que, até meados do século XIX, era sem qualquer pejo apelidado de “audiência de mucanos”[31]. Como tal, a mais profunda alteração proposta pelo Governador-geral interino seria a submissão das “Ouvidas” ou “audiências de mucanos” aos constrangimentos da escrita, que é, no fundo, o resultado da vinculação desta “acção civel” às regras processuais definidas na Novíssima Reforma Judiciária de 1841[32].

Assim sendo, com a portaria de 10 de fevereiro de 1855, José Amaral não só está a favorecer os administradores civis da justiça no território, discriminando os militares na hora de determinar os emolumentos que estes podiam cobrar e as alçadas até às quais podiam julgar, como está igualmente a propor a quebra do silêncio tacitamente mantido em torno de certos aspectos das “audiências de mucanos” – cuja oralidade lhes vinha permitindo continuar a ser uma parte essencial do esquema de criação de escravos em tempos de paz[33]. Isto porque exige mais uma vez o registo escrito das “Ouvidas”, o que imediatamente traria a lume a natureza “gentílica”, “pouco polida” ou “bárbara” de grande parte das normas orais de matriz africana seguidas no decorrer desta “acção cível”, que os agentes coloniais subalternos continuavam a resistir a fixar em embaraçosos registos escritos.

Uma tal reforma impossibilitaria de facto o prosseguimento do julgamento de grande parte dos casos trazidos à presença dos militares encarregados de administrar a justiça nos “Districtos e Presidios”, conforme admite logo à partida José Amaral, ao expor que estas eram as acções “que se apresentam mais frequentemente” a estas autoridades[34]. Isto porque ao tornar a escrita parte obrigatória da tramitação processual das “Ouvidas”, a portaria de 10 de fevereiro de 1855 havia não apenas subalternizado os chefes e comandantes dos distritos e presídios face aos seus rivais civis (a quem deviam submeter a transcrição das suas decisões), como impossibilitado o decorrer discreto, ou mesmo sub rosa, dos casos fundados e julgados, ainda que parcialmente, de acordo com princípios legais de matriz africana. Ora, estes casos eram não só uma importante fonte de rendimentos das autoridades militares subalternas, como também a origem de parte da mão-de-obra enquadrada na refundada economia esclavagista interna[35].

Assim, a mera reforma processual proposta pela portaria de 10 de fevereiro de 1855 revela-se capaz de transtornar profundamente o status quo consolidado após a economia esclavagista se haver readaptado aos limites impostos pelo bloqueio atlântico. Aparentemente apenas de carácter técnico e neutro, as medidas de José Amaral chocam, porém, com o habitus dos agentes coloniais locais, precisamente ao impossibilitarem a continuação irrefletida e não burocrática de uma série de formas de acção até aí tacitamente toleradas pela administração colonial metropolitana e aceites sem pejo pelas populações crioulas e do sertão.

No tocante à portaria de 10 de fevereiro de 1855, a resistência das autoridades subalternas a este novo desafio passou pela alegação de que esta era tanto incompreensível como inexequível. Isto porque não só mantinha uma grande indefinição em relação aos contornos precisos dos casos que podiam ser julgados nas “Ouvidas”, como ignorava que grande parte dos que tradicionalmente o eram tinha uma alçada impossível de calcular, do ponto-de-vista dos sistemas legais ocidentais, ficando portanto inviabilizada a cobrança de emolumentos de acordo com qualquer tabela baseada nesse parâmetro. Esta tática de alegar desentendimento e exigir esclarecimentos adicionais sem dúvida partia do pressuposto de que, uma vez confrontado com a hipótese de ter de explicitar o que até aí era tacitamente mantido em silêncio (o recurso generalizado a normas e jurisprudências de matriz africana), José Amaral seria forçado a desistir do seu propósito.

Confrontado com esta forma de resistência passiva, o Governador-geral interino responde por via de uma missiva, por ele ditada a Carlos Possollo de Souza, secretário do Governo, que é dada ao prelo no Boletim Official de 10 de março de 1855 e expedida individualmente a todos os “Chefes de Districtos e Commandantes dos Prezidios”. Nesta, o Governador-geral interino propõe-se responder às “dificuldades [expostas por] alguns Chefes dos Districtos e Presidios, [na] execução da Portaria do Governo Geral n.º 66 […], que trata das cauzas denominadas = Ouvidas = do modo de as processar, e dos emolumentos que nellas devem perceber os mesmos […] como Juizes”[36].

Nesta verdadeira “carta aberta”, José Amaral torna claro que, ao submeter as “Ouvidas” às regras processuais entronizadas na Novíssima Reforma Judiciária, havia pretendido precisamente “sanear” as antigas “audiências de mucanos” de todo o tipo de práticas processuais e recursos a direitos e jurisprudências orais de matriz africana. Por esta forma ele pretendia obstar a que o habitus afro-brasileiro e esclavagista dos agentes locais continuasse a reger de forma não mediada pela metrópole a distribuição de justiça, forçando os “Chefes dos Districtos e Presidios” à consonância com o novo projecto de dominação imperial almejado por Sá da Bandeira (abolicionista, e em que a influência sul-americana era mantida em xeque). Assim, quanto à queixa dos militares do sertão de que “versando muitas das = Ouvidas = sobre as questões, usuaes entre os gentios – de Mucano, Upanda, Quituchi, etc.[37] – mal podem ser determinados os valores das cauzas, para o efeito” de calcular os emolumentos a cobrar, ou que sendo-o, estas “são por tal modo diminutas, que não remuneram sufficientemente o trabalho do julgador”, o Governador-geral interino defende que[38]:

Ha desde logo a observar, quanto ao primeiro destes pontos, que os termos – Mucano, Upanda, Quituchi, Ruina etc. – exprimem actos mui diversos; sendo alguns deles de natureza tal, que não podem ser aqui convenientemente explicados, nem tão pouco as leis portuguezas serem-lhes applicaveis[39].

Apesar de constatar esta impossibilidade, José Amaral ensaia uma exposição do significado de “mucano”, atinente a demonstrar que era possível esvaziar as “Ouvidas” de qualquer conteúdo indesejável:

Mucano é a palavra com que se designavam as questões de liberdade das pessoas, entre os gentios. Destas questões conheciam os antigos Capitães-mores, na forma regulada pela Ordem Regia de 15 de Março de 1798; mas hoje os Chefes devem de seguir nellas o modo ordinario de processo, não havendo nenhuma dificuldade em se determinar o valor da cauza – que deve ser o da pessoa, ou pessoas, que reclamam contra a sua injusta escravidão. O Juizo de Mucanos nunca abrangeu, legalmente delictos de outras espécies. Se os antigos Capitães-mores capitulavam assim muitas questões, de que conheciam abusivamente, e em que decidiam segundo as praticas nefandas ou ridículas dos gentios, por isso foram reprehendidos frequentemente pelos Capitães Generais, como se póde ver no Regimento dado aos ditos Capitães-mores por D. Francisco Inocencio de Souza Coutinho, em 21 de Fevereiro de 1765.
Hoje, convém que os Chefes esqueçam até a palavra Mucano, ou ao menos que não façam uso della nos seus escriptos officiaes; pois que a cauza que ella significa se póde denominar, mui propriamente, de revendicação de liberdade.
Ás questões de Upanda, Quituchi, e outras similhantes, nenhuma lei de povo civilizado póde ser aplicável. Conseguintemente, quando dellas os Chefes tomam conhecimento, com apparato de Juizo, e as decidem, cingindo-se aos usos barbaros dos gentios, e respeitando compromissos vergonhosos que a taes questões dão origem, commettem gravíssima falta, que não poderá mais ser-lhes desculpada[40].

Torna-se evidente que, para José Amaral, o “civilizar” a justiça na colónia angolana, mais do que implicar uma desmilitarização do aparelho administrativo, significa o pugnar pela ocidentalização absoluta, se não do direito privado aplicado no território, pelo menos das normas e dos trâmites processuais, que deveriam passar a ser obrigatoriamente mediados pela escrita – uma clara herança das Luzes[41]. Esta condenação do recurso às “praticas nefandas ou ridículas dos gentios” enquanto parte indissolúvel do processo de “civilização” é assim matricialmente associada ao projecto imperialista abolicionista de Sá da Bandeira[42], ainda que de forma não explícita, pois é, na verdade, um ataque indirecto por parte do Governador-geral interino ao habitus dos agentes coloniais envolvidos na criação de escravos para o mercado interno por via do julgamento das causas “gentílicas” apresentadas nas “Ouvidas” ou “audiências de mucanos”.

Por outras palavras, não é mera coincidência que o novo significado de “civilizar”[43], enquanto ato de ocidentalizar os costumes e as culturas locais, seja mobilizado no contexto das colónias da África ocidental (os principais centros abastecedores de escravos para o tráfico atlântico), quando, por exemplo, não o era de igual forma na costa oriental[44] – e que o seja publicamente, através da divulgação de uma “carta aberta” no Boletim Official (quando em termos administrativos bastaria o envio das missivas particulares a cada um dos “Chefes de Districtos e Commandantes dos Prezidios”).

Logo, pode concluir-se que José Amaral se vale do Boletim Official não apenas como órgão de divulgação oficial, mas igualmente como ferramenta de pressão, esperando reformar o comportamento dos recalcitrantes agentes coloniais subalternos ao redefinir na esfera pública, entretanto criada pelo periódico, os limites do comportamento doravante tido como aceitável. A noção de “missão civilizadora” entra assim para o vocabulário colonial no contexto angolano, não enquanto forma de tentar regular ou justificar a dominação das populações africanas negras (mais ou menos independentes da dominação directa portuguesa), mas como parte do “arsenal” retórico empregue na tentativa por parte dos agentes próximos da metrópole europeia de regular as pequenas elites coloniais locais (mais dispostas a perpetuar habitus sedimentados ao longo de décadas de tráfico negreiro atlântico)[45]:

Com isto [com a afirmação de que o julgamento de “questões de Upanda, Quituchi, e outras similhantes” com recurso aos “usos barbaros dos gentios” não seria mais tolerado], porém, não se quer dizer, que os Chefes hajam de abandonar ao desforço de cada um, a reparação da offença que lhe tiver sido feita. É do rigoroso dever dos Chefes manter a ordem publica, e assegurar a todos os que vivem sob a sua jurisdicção, a tranquilidade domestica. Quando, pois, lhes forem appresentadas taes queixas de Upanda, Quituchi, etc. deverão fazer comprehender aos queixosos a irregularidade das suas supplicas, e a impossibilidade de lhas deferir como desejam; mas, ao mesmo tempo, advertirão as partes adversas para que não perturbem o socego das primeiras, tornando-as responsaveis pelas desordens que possam originar-se do despreso desta advertência; e se taes desordens se manifestarem, sem que todavia dêem logar a procedimentos judiciaes competentes, reprimil-as-hão com castigos correccionais de prudente arbítrio – que em similhantes casos são, e serão ainda por longo tempo indispensaveis neste paiz – mas sem exigir salários alguns, dos reos, quer pela prisão ou soltura, quer por a condemnação. […] A interferência gratuita que se lhes recommenda, sendo um dever de quem se acha investido da força publica, em toda a parte; deve-se aqui considerar como o mais necessario e impreterível desempenho da missão civilisadora que todos temos a cumprir, para com os rudes povos que dominâmos[46].

José Amaral admite assim que o “improviso” continue, e que seja mesmo necessário “por longo tempo”, mas impõe que este se confine à distribuição de “castigos correccionais” aos perturbadores da ordem pública, sem que de tal acção resultasse qualquer benefício material às autoridades militares, e, acima de tudo, sem recurso aos direitos e jurisprudências de matriz africana (uma vez que é na obstinada petição para a aplicação destes que se passa a estribar a própria definição de perturbação do “socego” público ou “tranquilidade domestica”)[47].

As propostas avançadas pelo Governador-geral interino, quer na sua portaria 66 de 10 de fevereiro de 1855, quer na “carta aberta” de 10 de março do mesmo ano, seriam posteriormente oficializadas em decreto assinado pelo Visconde de Atouguia, enquanto Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Marinha e Ultramar, a 7 de agosto de 1855[48]. Com este aval oficial metropolitano entroniza-se a interpretação específica que José Amaral havia promovido do terceiro artigo do decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852, segundo o qual uma dada subdivisão de uma comarca era constituída em “Julgado” ou “Presidio” de acordo com a “natureza e estado da sua respectiva população”. Seguindo este esquema, as zonas militarizadas coincidiam com as áreas em que a “civilização” do direito, no sentido de ocidentalização, não havia sido ainda possível, por as populações continuarem a exigir o recurso às “praticas nefandas ou ridículas dos gentios”, cabendo aos “Chefes e Commandantes” velar para que tais “abusos” deixassem de ter lugar[49], mediante a aplicação desinteressada de corretivos.

A reapropriação militar da retórica da “missão civilizadora”

Ao contribuir para a redefinição do entendimento dos espaços “não civilizados”, José Amaral acaba no entanto por ser também responsável, ainda que involuntariamente, por avançar com uma nova acepção dos pré-requisitos de “civilização” que passam a ser exigidos a uma dada área sob a alçada da justiça civil. Por outras palavras, não bastava a uma subdivisão de comarca estar pacificada e sob a administração civil para ser “civilizada”, e como tal ter definitivamente assegurado o seu estatuto de “Julgado”, deixando de poder voltar a ser equiparada a um “Presídio” para fins de tutela da justiça. Assim, é possível teorizar que, ao promover através das suas incursões na esfera pública da colónia o aceitamento da sua definição de “missão civilisadora”, fazendo-o enquanto forma de melhor controlar as acções dos agentes coloniais, na circunstância, militares subalternos, José Amaral acaba por proporcionar a esta corporação os referentes retóricos para articular de forma eficaz os desafios à legitimidade dos seus concorrentes civis.

Sendo os espaços “civilizados” dos “Julgados” entendidos como aqueles supostamente livres de “gentilismos”, as denúncias de recurso a elementos processuais e jurisdicionais oriundos ou influenciados pelos direitos de matriz africana tornam-se, de acordo com esta hipótese, uma arma retórica eficaz na contestação da sua legitimidade e continuidade. Como tal, acusações de “gentilismo” podem passar a estribar a reivindicação por parte dos militares da necessidade de reverter o processo de “civilização” da colónia – no sentido da desmilitarização da sua administração –, enquanto forma de avançar com a “missão civilisadora” que José Amaral lhes havia incumbido.

A veracidade desta conjectura parece ser reforçada, tendo em consideração as respostas a uma circular, emitida a 3 de agosto de 1866, e publicada dia quatro no Boletim Official[50]. Esta, mais de uma década após a polémica em torno das “Ouvidas”, faculta aos militares a hipótese de publicamente expressarem a sua opinião acerca da utilidade das “Câmaras Municipaes, Comissões Municipaes (proto-Câmaras)” e “Julgados”, possibilitando-lhes, desta forma, o reapropriar em seu proveito da retórica da “missão civilisadora”[51]. O comandante do Concelho de Cambambe lança a primeira pedra, ao atacar abertamente as instituições civis da área do seu comando militar, para as quais, é preciso ter em conta, perdera o privilégio de julgar:

Estas corporações [Câmaras Municipais], pois, precisam d’uma severa fiscalização, ou a sua dissolução. […] Que segundo as informações que tenho, aos habitantes d’este concelho não tem servido d’utilidade alguma o ter sido elle elevado a julgado, e antes pelo contrário é público e notório que uma grande parte dos povos d’este dito concelho se tem visto na necessidade d’emigrar para diversos pontos gentios, fugindo ás extorsões e vexames que tem sofrido da maior parte dos juízes ordinarios, ditos de paz, sub-delegados, escrivães, um imenso número de pretos intitulados meirinhos, etc. e além disto as suas decisões são quasi sempre absurdas e irrisórias; ainda que se appelle d’ellas para o juiz de direito da comarca levão imenso tempo primeiro que se decidão, pela grande distancia a que está d’esta localidade[52].

A linha dura do comandante de Cambambe marcará o tom de uma série de intervenções que passam então a ser regularmente publicadas no Boletim Official, e que proporcionam um manancial de detalhes sobre o cotidiano sertanejo. António Marques de Mello, “Capitão e Chefe do Concelho do Zenga do Golungo”, respondendo ao mesmo repto, afirma por sua vez:

Em quanto ao Julgado tambem não tem sido util aos povos; muitas vezes recorrem elles á justiça da administração queixando-se de injustiças e vexames, porque quando o povo procura a justiça judicial não é logo atendido sem primeiramente apresentar uma taxa exorbitante de preparos, e como ás vezes os queixosos não têem de prompto aquelles preparos deixão de progredir nas suas questões, que muitas vezes são de circumstancia[53].

Demonstrando que esta estratégia de denúncia não é apenas adotada pelos militares que serviam nos locais recentemente passados à alçada das corporações civis, também o comandante do “Concelho Principal de Massangano” tem o seu testemunho condenatório dado ao prelo:

O povo, em geral, não está satisfeito com o actual systema de Julgados; o povo desconfia sempre que os seus patrícios os enganão, e que sempre são lezados na aplicação da justiça: Juizes que se aproximem de possuir os requisitos pelos quaes possão satisfazer a um tão importante cargo julgo custoso, senão impossivel o encontra-los por estas paragens, sejão europeos ou nativos; porêm, com estes ultimos dá-se mais um contra, e é a superstição de que em geral são dotados, guiando-se muitas vezes por prejuizos, filhos da falta de educação que tiveram, a qual se recente imensamente do gentilismo. E ainda mais, acontece que muitas vezes, se não quasi sempre, o juiz não se julgando com forças de desempenhar um tão importante cargo, sem que por isso d’elle desista, recorre a quem o aconselhe; este d’ordinario abusando da inépcia do juiz, vai agravar a sorte dos menos favorecidos da fortuna; isto em algumas partes toca a meta do escandalo[54].

Significativamente, não só do histórico município de Massangano chegam queixas a Luanda, como de Ambaca, tendo aí os moradores feito circular um abaixo-assinado, “pedindo a extinção do julgado”[55]. O tenente José Fortunado Barreto, a autoridade militar deste concelho, reclama então:

é para mim o mais espinhoso possivel, por ter que informar (sem acusar) dos actos do julgado d’este concelho; todavia, referindo-me somente á vantagem, ou desvantagem que o dito estabelecimento de julgado tem produzido aos habitantes do mesmo, devo dizer a v. ex.ª que o dito estabelecimento não exerce nem é possivel exercer os actos judiciaes neste paiz, em toda a sua plenitude, por quanto os povos estão tão cheios de variados vícios e prejuizos gentílicos, que a lei jurídica não tem artigos applicaveis a taes prejuizos: logo é facto que os actos e julgamentos feitos, pelo juizo ordinario são pela maior parte arbitrarios e accommodados ás partes, conforme o seu caracter e consciência lhe sugere[56].

Para além destas acusações, no referido abaixo-assinado, publicado no Boletim Official em conjunto com a resposta de José Fortunado Barreto, pode ler-se que o “povo” vinha sendo “bastante espoliado de seus teres por meio d’embargos sucessivos e machinaes, movidos por pessoas poderosas, que dominão com imperio os juízes ordinarios, que não passão de simples authomatos”[57].

A partir do conjunto de testemunhos que foram dados ao prelo em resposta à circular de 3 de agosto de 1866, é possível estabelecer, antes de mais, que os tipos ideais que José Amaral associou aos espaços dos “Julgados” e dos “Presidios” haviam sido transversalmente interiorizados, tornando-se padrões com os quais os elementos de uma dada corporação julgavam depreciativamente o desempenho dos seus rivais, não por acaso, predominantemente, naturais.

Segundo este esquema, nos “Julgados” a ocidentalização dos procedimentos judiciais devia ser completa, pelo que passava a ser possível contestar a legitimidade da tutela civil de uma dada área pela alusão ao elevado grau de “gentilismo” da justiça nela aplicada. De outra perspectiva, era permitido aos civis criticar o julgamento por parte dos militares de certas “questões, usuaes entre os gentios”, porque a estes cabia a tarefa de serem agentes da ocidentalização progressiva do direito em jurisdições onde o pluralismo jurídico era ainda inevitável. A aceitação destes tipos ideais de “Julgados” e “Presidios” é, portanto, associada a uma noção específica de “missão civilisadora”, que se afere não pelo avanço da administração civil, mas pela ocidentalização dos direitos aplicados, ainda que de forma não inclusiva ou sequer possibilitadora de qualquer pluralismo legal[58] – o que não constituía um problema para os decisores da época. Tendo esta evolução em conta, nada passa a obstar que os militares se apresentem como aqueles em melhores condições para imporem, pela via das armas, a “civilização”.

Conclusão

O acesso a informações sobre o modo como a justiça era cotidianamente administrada pelos agentes coloniais portugueses ao longo das décadas de cinquenta e sessenta do século XIX é invariavelmente mediado pelos traços escritos que sobreviveram até aos dias de hoje. Parte destes elementos textuais foram inicialmente produzidos, e posteriormente divulgados no Boletim Official do Governo Geral da Provincia de Angola, de forma a servirem como argumentos na disputa que então se instalou na esfera pública colonial entre as corporações civis e militares encarregadas, respectivamente, de julgar nos “Julgados” e “Presidios” do “Districto Judicial” de Luanda.

As acusações que os militares esgrimem no seguimento de uma série de decretos e portarias que sucessivamente reordenam a orgânica administrativa da justiça na colónia revelam, uma vez contextualizadas pelas dinâmicas mais alargadas em curso – tanto em termos geográficos como temporais –, que ao longo deste período a própria acepção ou entendimento, em termos de tipo ideal, daquilo que era o espaço “civilizado” de um município ou “Julgado”, ou, por sua vez, “não civilizado” de um “Presidio”, sofreu uma evolução, que seria determinante para a história do território. Outro aspecto, imediatamente notório, é que todo o ímpeto reformista dos legisladores liberais metropolitanos acabou por ter pouco impacto no habitus dos agentes coloniais locais, que apenas teve de se reacomodar aos novos desafios impostos pela relançada economia esclavagista, agora em grande medida delimitada pelo mercado interno, dependente de subterfúgios que a encapotassem ou de esquemas ilícitos de contrabando.

Quanto aos novos tipos ideais associados a cada uma das subdivisões das comarcas, as correspondentes aos “Julgados” e “Presidios”, começam, a partir do decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852, a ter o foco da sua concep-tualização não no modo como a justiça é administrada, mas na “natureza e estado” das populações tuteladas. Anteriormente era possível, por exemplo, entender as populações do sertão como personae miserabilae[59], que, apesar de tudo, mereciam tanto o acesso a uma justiça polida e civil, como serem protegidas dos abusos dos militares – tendo, mesmo se teoricamente, o direito a verem as suas normas e jurisprudências reconhecidas, não entrando estas em conflito com os princípios da “Boa Razão” ou de uma versão minimalista da ética judaico-cristã (sendo esta a noção que presidiu aos projectos de codificação de “usos e costumes”[60]). Contudo, conforme o conceito de “civilizado” se começa cada vez mais a tornar coincidente com o de ocidentalizado, estabelece-se o princípio de que as populações “gentílicas” – e, portanto, não ocidentalizadas – deixam de poder ser tuteladas por civis, passando a ser entendidas como necessariamente “não civilizadas” em ambas as acepções do termo.

Esta transformação contribui para o crescente aceitamento tácito do modelo de administração da justiça militar – tipicamente sumário, sem recurso, muitas vezes imediatamente traduzido em penas físicas violentas – como o apropriado para estas populações[61], neste caso, pelo facto de não serem ocidentalizadas. Assim, não só o entendimento dos “rudes povos que dominâmos” como personae miserabilae deixa de ser possível[62], como se altera profundamente o entendimento quer do papel dos agentes coloniais militares, quer das elites intermédias das formações políticas africanas. As últimas passam a ser largamente ignoradas a favor de uma crescente mitificação da figura do “déspota negro” isolado, que supostamente tudo pode, militarmente regendo a formação política que encabeça[63]. Já os militares coloniais passam a estar incumbidos de uma “missão civilisadora”, que se num primeiro momento se traduz num mandato temporário (cabe-lhes preparar o caminho para a administração civil, mediante a pacificação dos territórios e a construção de infra-estruturas, por exemplo), com o equacionamento de “civilização” com ocidentalização assume um carácter perpétuo devido à natureza assimptótica e utópica da tarefa para que passam a estar mandatados.

O que esta evolução significa é que a administração civil de um dado espaço, pode a partir de então ter a sua legitimidade questionada pelos militares, bastando para tal que a realidade cotidiana do “Julgado” em causa de certa forma não satisfaça a inexequível ocidentalização total dos costumes, entretanto associada ao tipo ideal de espaço “civilizado”. Assim, abre-se a porta para uma nova militarização da administração colonial angolana, que culminaria nas décadas finais do século XIX, pondo fim ao interregno de desmilitarização de inspiração liberal. Devido ao novo sentido que a expressão “civilizar” ganha, passa a ser possível apresentar a tomada militar do território como necessária ao avanço da “missão civilisadora”.

Um outro aspecto interessante, que as críticas militares revelam ao focarem o inevitável desfasamento entre o tipo ideal de “Julgado” e as formas concretas de governo do território, é a continuidade de habitus estabelecidos quando o comércio negreiro transatlântico era ainda lícito. Esta constatação é possível apenas porque o recurso às “práticas nefandas ou ridículas dos gentios” passa a ser um factor a ter em conta no estabelecimento da legitimidade “civilizacional” de um dado local, tornando-se, portanto, a acusação de “gentilismo” uma das politicamente mais eficazes, ao mesmo tempo que o recurso a direitos, formas processuais e jurisprudências de matriz africana se mantinha essencial para a lucrativa produção de escravos. Por outras palavras, apesar dos libelos de ambas as partes se reajustarem à nova realidade, passando a ter em conta os tipos ideais propostos pelas sucessivas reformas legais, a manutenção do tipo de práticas delatadas era generalizada e transversal entre corporações, estando a cobiça pelo acesso à possibilidade de cometer “abusos” desta natureza na própria origem da delação destes quando praticados por outrem.

O lucro fácil, tal como nos tempos dos capitães-mores, continuava assim a depender da oportunidade de sofismar a legislação emanada de Lisboa, que, no entanto, ao promover a contenda na esfera pública angolana entre corporações locais começa, ainda que de forma inadvertida e incipiente, não só a ter acesso a melhores informações sobre o real impacto legislativo na colónia, como a jogar de forma proveitosa com rivalidades locais. Mais do que decretos ou portarias, a vigilância cotidiana mútua entre elementos de corporações rivais resulta, sem dúvida, numa mais rápida alteração dos habitus herdados do período anterior à proibição do tráfico negreiro transatlântico.

 

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Recebido a 30 de junho de 2015; Aceite a 6 de novembro de 2015

 

NOTAS

[1]   Boletim Official do Governo Geral da Provincia de Angola [BOGGPA], n.º 489, de 10 de fevereiro de 1855, pp. 1-2.

[2]   BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[3]   BOGGPA, n.º 489, de 10 de fevereiro de 1855, pp. 1-2.

[4]   Decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852. Acedido em 13 de outubro, 2015, de http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1418.pdf

[5]   Já almejada pelos reformadores liberais desde a promulgação do decreto de 7 de dezembro de 1836. Decreto de 7 de dezembro de 1836. Acedido em 13 de outubro, 2015, de http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1402.pdf

[6]   BOGGPA, n.º 31, de 4 de agosto de 1866, p. 293.

[7]   Aqui seguimos a definição do conceito proposta por Bourdieu (1990).

[8]   Tanto no sentido de inscritos nas suas memórias corporais individuais, como no de se haverem tornado hábitos considerados aceitáveis a membros de uma dada corporação.

[9]   Sobre o forte vínculo, geográfico, económico e cultural, entre as colónias da África Ocidental e o Brasil, cf. Ferreira (2014), Candido (2015), em especial o capítulo “Political reconfiguration of the Benguela hinterland, 1600-1850”, bem como o mais antigo Rodrigues (1964), e o prefácio de Alfredo Margarido a Torres (1991).

[10]  O que não implica que focos pontuais de resistência e revolta contra o Império Português não fossem de facto o resultado de atos pensados e organizados tendo uma união afro-sul-americana como claro referencial utópico. Cf. Dias (1981), Pinto (2010, pp. 101-128).

[11]  Decreto de 7 de dezembro de 1836. Acedido em 13 de outubro, 2015, de http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1402.pdf

[12]  Epidérmica e generalizada porque assente não só na negação e sabotagem reflectida e consciente ao decreto de 10 de dezembro, como na simples continuação de rotinas inscritas no habitus quer dos negreiros e escravocratas, quer dos escravos e demais elementos subalternos das malhas esclavagistas locais (que, com certeza, ignoram o abolicionista).

[13]  Devido à confluência de vários fatores, nenhum dos principais sob controlo direto dos portugueses (sendo de destacar o fecho dos portos brasileiros e a saturação do mercado neste país) (Dias, 1981, pp. 267-269; Ferreira, 2014, pp. 203-241).

[14]  Cujas elites, apoiando-se nas regras do jogo “neomercantilista”, a partir de 1864 começam a “sangrar” as burguesias angolanas com recurso ao Banco Nacional Ultramarino e a pautas aduaneiras draconianas (Torres, 1991).

[15]   Os sophisticated delivery systems, nas palavras de Roquinaldo Ferreira (Ferreira, 2014, pp. 14-15).

[16]  No fundo, adoptando o programa dos “gradualistas”, corrente na qual eventualmente se diluiu a opinião pública quanto à manutenção da escravatura nas colónias (Marques, 1999).

[17]  Movimento cultural generalizado no Ocidente, e que desaguaria na entronização do conceito de white man’s burden como álibi colonial em Berlim (1884-85) (Silva, 2004/2005, pp. 901-902).

[18]  Quando até então a escolha decorria em função dos limites da capacidade de acção da administração colonial portuguesa. Decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852. Acedido em 13 de outubro, 2015, de http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1418.pdf

[19]  Polidez ou ilustração que dependia da adesão a leis codificadas, não sendo especificamente necessário que estas fossem ocidentais. Cf. Lima (2012, p. 80) e Santos (2005a).

[20]  Ainda que meramente teórica (Santos, 2005b, pp. 817-848).

[21]  O que implicava a passagem de um “Julgado” a “Presidio”, extinguindo-se o município em que o primeiro se enquadra.

[22]  Decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852. Acedido em 13 de outubro, 2015, de http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1418.pdf

[23]  Esta tabela havia sido organizada pelo Conselho do Governo, a 7 de setembro de 1846.

[24]  BOGGPA, n.º 489, de 10 de fevereiro de 1855, pp. 1-2.

[25]  BOGGPA, n.º 489, de 10 de fevereiro de 1855, pp. 1-2.

[26]  De “60$000 réis fortes em movel, e de 40$000 réis em bens de raiz”. BOGGPA, n.º 489, de 10 de fevereiro de 1855, pp. 1-2.

[27]  E portanto marcados pelo recurso assimétrico à escrita, sendo que, em ambos os contextos, apenas dos juízes e escrivães se esperava um mínimo de aptidões literárias.

[28]  Tendo em conta, no caso específico em que, devido ao elevado valor das alçadas, os militares atuam como “Arbitros”, as “disposições dos artigos 150 a 156, e 225 a 234” desta mesma “Reforma”, respetivamente contidos no capítulo VII do título V, e título IX da Novíssima Reforma Judiciária de 1841. Cf. Decreto de 21 de Maio de 1841 (1857, pp. 36-37, 51-52, 53-57).

[29]  BOGGPA, n.º 489, de 10 de fevereiro de 1855, pp. 1-2.

[30]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[31]  Este tipo de processo judicial oral de matriz africana acaba sendo apropriado pelos portugueses, que instituem “Tribunais de Mucanos” em Luanda e Benguela de forma a julgar casos de reivindicação de liberdade por parte de escravos. Contudo, as audiências de mucanos que continuam tendo lugar além deste enquadramento institucional restrito conservam a amplitude, em termos do escopo dos casos apresentados a arbítrio, da instituição africana na sua origem. Sobre as audiências de mucanos, cf. Ferreira (2014, pp. 88-125), Santos (2005b, pp. 819, 822-825), Silva (2004/2005, pp. 907, 914), bem como Couto (1972).

[32]  Tentativa de normatização pela escrita e erradicação de influências africanas já ensaiada por Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, e que havia sido de novo intentada, com fracasso, na década de 40 do século XIX, quando um Projecto de Regimento para os Distritos e Presídios de Angola que prevê muitas das políticas de José Amaral é alinhavado, nunca chegando a ser promulgado. Cf. Santos (2005b, pp. 824-825), Silva (2004/2005, p. 914).

[33]  Sobre os mecanismos de “produção” de escravos em tempo de paz, cf. Ferreira (2014, pp. 52-87).

[34]  BOGGPA, n.º 489, de 10 de fevereiro de 1855, pp. 1-2.

[35]  Que reaproveitava assim enquadramentos oriundos das tradições de escravatura de linhagem. Cf. Santos (2005b, p. 823), Silva (2004/2005, pp. 909-910).

[36]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[37]  Para uma exposição dos vários significados do termo “Upanda”, que abrange tanto o crime de adultério como as compensações exigidas na reparação de variadas ofensas, cf. Kananoja, 2010, pp. 450-451. “Quituchi” é provavelmente a transliteração arcaica do termo quimbundo kituxi, na origem do atual “quituxe”, e cuja tradução é “pecado”, “afronta” ou “crime”. Cf. Dicionário da língua portuguesa sem acordo ortográfico (2003-2015).

[38]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[39]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[40]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[41]  Cf. Santos (2005a, 2005b), Silva (2009, p. 234).

[42]  Valentim Alexandre proporciona uma descrição sucinta das especificidades do projecto colonial de Sá da Bandeira, assente na ocupação territorial aliada ao abolicionismo e à introdução de uma economia capitalista. Cf. Alexandre (1998, p. 65).

[43]  Sobre os anteriores cf. Lima (2012).

[44]  No Codigo dos Millandos Bitongaes, Confeccionados, segundo os uzos e costumes dos mesmos, e vários documentos a elle relativos, coligido em 1852, são tomadas opções diametralmente opostas, sendo o projecto de codificação de jurisprudências locais levado ao extremo de regras serem estabelecidas para reger o julgamento por parte de agentes coloniais portugueses de causas resultantes de acusações de feitiçaria. Boletim da Sociedade de Geografia Comercial do Porto (1884, pp. 211-231); sobre o tema, cf. Pereira (2001, pp. 126-129), bem como Silva (2004/2005, pp. 905-907, 911-913).

[45]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[46]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[47]  BOGGPA, n.º 493, de 10 de março de 1855, p. 3.

[48]  BOGGPA, n.º 528, de 10 de novembro de 1855, p. 1.

[49]  Estes “abusos” seriam anteriormente difíceis de enquadrar. Assim, por exemplo, em áreas em que autos de vassalagem codificassem ou oficializassem o recurso aos “usos e costumes” locais, mediante a anterior definição de “civilizado” ou “policiado”, nada haveria teoricamente a apontar às populações que recorressem aos direitos de matriz africana. Contudo, conforme “civilização” se equaciona com ocidentalização, tal deixa de ser o caso. Cf. Lima (2012, p. 80); Silva (2004/2005, pp. 17-19, e 2006, pp. 22-23).

[50]  BOGGPA, n.º 31, de 4 de agosto de 1866, p. 293.

[51]  BOGGPA, n.º 31, de 4 de agosto de 1866, p. 293.

[52]  BOGGPA, n.º 34, de 25 de agosto de 1866, pp. 332-333.

[53]  BOGGPA, n.º 34, de 25 de agosto de 1866, p. 333.

[54]  BOGGPA, n.º 35, de 1 de setembro de 1866, p. 345.

[55]  BOGGPA, n.º 36, de 8 de setembro de 1866, p. 360.

[56]  BOGGPA, n.º 36, de 8 de setembro de 1866, p. 360.

[57]  BOGGPA, n.º 36, de 8 de setembro de 1866, p. 360.

[58]  Sobre a evolução do conceito de “missão civilizadora”, cf. Silva (2009, pp. 284-297).

[59]  Pessoas pobres ou de qualquer outra forma incapazes de assegurar a sua própria defesa. Cf. Santos (2005b, pp. 819-820).

[60]  Sobre o “filtro” da moral, cf. Silva (2006, p. 23, e 2009, pp. 220-221).

[61]  Noção que se torna hegemónica no último quarto do século XIX, e que resulta do confluir de diversas tendências intelectuais, de entre as quais convém destacar a ascensão das teorias racialistas. Cf. Silva (2006, pp. 2-3).

[62]  Pois a insistência no recurso aos direitos de matriz africana passa a ser a própria definição de perturbação ao “socego” público e à “tranquilidade doméstica”.

[63]  A falácia que Martin Chanock apelida de “black despot view of African political life” (Chanock, 1998, pp. 18-19 e 34).

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