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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.29 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

Sociedade Felupe: Desintegração ou transformação social?

Felupe society: disintegration or social transformation?

 

Lúcia Bayan*

*Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Avenida das Forças Armadas, 1649-026, Lisboa, Portugal, luciabayan@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo tem como objectivo abordar algumas das mudanças e transformações sociais, ocorridas nos últimos anos, nas dinâmicas internas dos Felupe, ou Joola-ajamaat, uma sociedade rural localizada no noroeste da Guiné-Bissau. Bem adaptados ao meio, os Felupe são detentores de um conjunto de saberes e técnicas que, durante séculos, lhes permitiram garantir a sua segurança alimentar e coesão social. Actualmente, esta sociedade encontra-se confrontada com mudanças bruscas de parâmetros como, por exemplo, as alterações ambientais, a inconstância do mercado mundial ou a diminuição de mão-de-obra. Pretende-se, com suporte em consulta bibliográfica e informações recolhidas durante o trabalho de terreno efectuado em 2009 e 2012, identificar as estratégias que esta sociedade desenvolveu para se adaptar aos condicionalismos inerentes às dinâmicas da globalização.

Palavras-chave: Felupe, Guiné-Bissau, globalização, segurança alimentar, migração, resiliência

 

ABSTRACT

This paper aims to analyse some of the changes and social transformations occurred in recent years in the internal dynamics of the Felupe (or Joola-ajamaat), an agrarian society in the north-west of Guinea-Bissau. Well adapted to the environment, the Felupe have the necessary knowledge and techniques that allowed them to maintain food security and social cohesion for centuries. This society currently faces sudden changes of parameters such as climate changes, world market prices instability or reduction in labour availability. Based on literature review and field work carried out during 2009 and 2012, this paper identifies the strategies adopted by this society to respond to the constraints inherent to the dynamics of globalization.

Keywords: Felupe, Guinea-Bissau, globalization, food security, migration, resilience

 

As dinâmicas internas das sociedades rurais africanas são fortemente condicionadas por dinâmicas externas. Maioritariamente dependentes de sistemas agrícolas de subsistência e governadas por sistemas de tipo segmentário, as sociedades rurais africanas não partilham as “lógicas” e os “códigos” dos sistemas centrais. Confrontadas com factores adversos, que comprometem o equilíbrio dos seus sistemas produtivos e, por arrastamento, a sua organização económica, social e política, são forçadas a reestruturar-se e adaptar-se, tentando assegurar a sua sobrevivência (Sigrist, 2001).

Contudo, actualmente, a força invasiva das dinâmicas da globalização impõe às sociedades rurais africanas um maior esforço de adaptação. A globalização gera uma grande diversidade de fluxos de ideias, informação, capital, bens, pessoas, etc., que são promotores de mudanças bruscas e originadores de turbulências que contribuem para, de forma por vezes radical, induzir transformações significativas na vida económica, social e política das populações afectadas e mesmo, nalguns casos extremos, pôr em causa a própria sobrevivência quotidiana de sectores populacionais particularmente desfavorecidos (Schiefer, 2002).

As alterações rápidas de contexto, socioeconómicas e ambientais, desafiam as capacidades das sociedades para responder aos vários tipos de choques naturais e socioeconómicos. A mudança brusca de parâmetros decisivos, como o custo dos alimentos e as políticas de migração, forçam as suas dinâmicas de subsistência e pressionam a sua capacidade de resiliência. As sociedades rurais africanas como a sociedade felupe (um subgrupo joola), detentoras de sistemas produtivos tradicionais, assentes em pequenas unidades familiares e dependentes de monoculturas, encontram-se ainda mais fragilizadas para enfrentar as turbulências provocadas nas suas dinâmicas internas. No entanto, existem dinâmicas de mudança, mesmo nas sociedades onde os sistemas parecem vulneráveis ou insustentáveis (Batterbury, 2007).

As dinâmicas de mudança são complexas e muitas vezes negativas. Diversificando os meios de subsistência, intensificando ou não a produção agrícola e/ou adoptando novas estratégias de sobrevivência, as sociedades rurais africanas reinventam-se, tentando assegurar a sua continuidade (Temudo & Schiefer, 2004).

Este artigo tem como objectivo abordar algumas das mudanças e transformações sociais, ocorridas nos últimos anos, nas dinâmicas internas da sociedade felupe, ou joola-ajamaat, uma sociedade rural localizada no noroeste da Guiné-Bissau. Pretende-se, com suporte em consulta bibliográfica e informações recolhidas durante trabalhos de terreno efectuados em 2009 e 2012, aferir de que forma o novo mundo global tem interagido e condicionado a estabilidade e resiliência da sociedade felupe.

A sociedade felupe: uma sociedade alicerçada e centrada na orizicultura

Estabelecida na região mais oeste de Casamança, Senegal, na área compreendida entre a Gâmbia e o rio Cacheu, na Guiné-Bissau, a sociedade agrícola Joola detém um sistema produtivo assente em pequenas unidades familiares que desenvolvem uma economia de subsistência. Esta sociedade, de cerca de meio milhão de elementos (Tomàs, 2009, p. 131), é constituída por diversos subgrupos muito heterogéneos que, dedicando/empenhando a totalidade das suas ferramentas agrícolas, da sua experiência e do seu engenho ao serviço da orizicultura (Pélissier, 1966, p. 710) e mantendo vivas muitas das suas tradições ancestrais, partilham uma dupla identidade espacial e cultural. A primeira advém de uma adaptação específica e exímia ao meio, espelhada pela técnica de cultivo de arroz[1], que marca e influencia a organização social, religiosa, económica, cultural e política. A segunda justifica a primeira construindo toda a orgânica da sociedade em torno da cultura que melhor aproveita o meio, a orizicultura. A junção destas duas identidades, ou a intimidade desta população com o meio e a organização social daí resultante, é reconhecida no apelidar os Joola de a “sociedade do arroz”. De facto, o arroz é o corpo e a alma desta sociedade: é a base da alimentação; a primeira refeição de um recém-nascido é uma papa de arroz; a posse de arrozais e de celeiros cheios de arroz são sinónimos de riqueza e prestígio; a fixação da maior parte das tabancas dependeu da localização dos arrozais; as cerimónias religiosas exigem a oferenda de arroz e vinho de palma; os mortos são enterrados com uma provisão de arroz; as manifestações sociais e as cerimónias religiosas dependem do calendário agrícola do arroz; o arroz tem quinze designações diferentes conforme o tipo de semente ou estado: plantado, acabado de colher, com ou sem casca, armazenado, cozinhado, etc. (Bayan, 2010, pp. 25-30).

Sujeitos a diferentes condicionamentos históricos – expansão mandinga, distintos poderes coloniais (França e Portugal) e estatais (Senegal e Guiné-Bissau), entre outros – os Joola desenvolveram algumas diferenças na estrutura social, económica e religiosa. Uns, à cultura do arroz, adicionaram a do amendoim; outros, a cultura do caju. Uns detêm uma organização social do trabalho assente em classes de idade e género com estatutos igualitários, outros desenvolveram uma forte hierarquização social, marcada por estatutos masculinos e femininos, primogénitos e cadetes, que alterou a divisão do trabalho agrícola, sendo o arroz

(cultura de consumo) cultivado apenas pelas mulheres e o amendoim (cultura de renda) pelos homens. Uns adoptaram o Islão, alguns o Catolicismo e outros mantêm a religião tradicional, Awassen-au (Marzouk, 1993, p. 485).

Um destes subgrupos Joola, formado por cerca de vinte e cinco mil indivíduos (Journet-Diallo, 2000, p. 82) estabelecidos na ponta extrema do noroeste da Guiné-Bissau e uma faixa estreita do sudoeste de Casamança, constitui a sociedade joola-ajamaat, ou felupe segundo a identificação assumida pelos próprios. A fronteira entre o Senegal e a Guiné-Bissau, com a implicação inerente de línguas, cultura, administração e leis estatais diferentes, não constitui, para os Felupe, um efectivo significado de separação. Pelo contrário, o sentimento de pertença a um grupo transfronteiriço é reflectido pela existência de intensas relações de interdependência e de complementaridade desenvolvidas pelas actividades económicas e sociais (trocas comerciais muito fortes, casamentos recorrentes entre pessoas de um e outro lado da fronteira, circulação de pessoas e bens geralmente sem entraves, etc.) e, no plano político e simbólico, pelos diferentes “reinos” independentemente do lado da fronteira onde se situam (Bayan, 2010, pp. 31-33).

Bem adaptados ao meio – área muito irrigada, com muitos mangues e palmares e um solo ferruginoso rico em matérias orgânicas, meio propício à orizicultura – e detentores de um conjunto de saberes e técnicas que, durante séculos, lhes permitiu assegurar as suas necessidades alimentares, religiosas e de valor de prestígio (Almeida, 1955, p. 622; Silva, 1960, p. 38), os Felupe mantêm ainda muitas das suas características tradicionais. De facto, se a fixação da maior parte das povoações desta sociedade dependeu, no passado, da localização dos arrozais, actualmente, a posse destes e de celeiros cheios de arroz ainda são sinónimo de riqueza e de prestígio e as manifestações sociais e cerimónias religiosas mantêm-se dependentes do calendário agrícola do arroz.

Sistema produtivo cativo de muitos braços e bom tempo

A sociedade felupe desenvolve uma economia de subsistência com um sistema produtivo assente em pequenas unidades familiares e vocacionado principalmente para a produção de culturas alimentares para autoconsumo e de pequenos excedentes, escoados através de um sistema de troca que privilegia redes de parentesco e de aliança, complementado com a produção em pequena escala de culturas comerciais e pela pesca. Grande parte dos trabalhos agrícolas, especialmente os grandes trabalhos de preparação das bolanhas, são efectuados em associações, constituídas com o objectivo único de entreajuda e, devido à especialização do trabalho, organizadas por género e idade.

No entanto, a partir da década de 1970, as duas maiores fragilidades do seu sistema produtivo – exigência de mão-de-obra numerosa e estável e dependência de um regime pluviométrico forte e prolongado – agudizaram-se, alterando o equilíbrio alimentar até então conseguido[2]. Por um lado, após a independência, circunstâncias diversas estimularam a migração temporária e o êxodo rural, iniciadas com a luta pela independência, reduzindo a mão-de-obra necessária para a preparação das bolanhas e para a manutenção dos diques. Por outro lado, a diminuição do número de meses de chuva, inerente à alteração do regime pluviométrico, não permite a lixiviação correcta dos solos, favorecendo a acumulação de sal e diminuindo drasticamente a área produtiva.

De acordo com o Ministério da Agricultura da Guiné-Bissau a superfície de arroz de mangal diminuiu, nos últimos anos, cerca de 20% devido à má distribuição das chuvas no espaço e no tempo (como citado em Medina, 2008, p. 15). Esta alteração do regime pluviométrico e diminuição da área produtiva, aliada à diminuição da mão-de-obra e à debilidade dos sistemas agrícolas tradicionais, reduziu a produção de arroz, tornando-a insuficiente para suprir as necessidades alimentares, obrigando à compra deste cereal para colmatar o défice de arroz cultivado. De facto, nos últimos anos, a produção anual de arroz na Guiné-Bissau, que tem correspondido a cerca de 65 kg por pessoa, tem sido insuficiente para satisfazer a necessidade interna, cerca de 130 kg por pessoa, obrigando à compra do arroz em falta no mercado externo (Barry, Creppy & Wodon, 2007). O valor da importação deste cereal, cerca de 1/3 das importações alimentares, reflecte bem a sua importância na dieta alimentar da população deste país (Ba, 2007; Bock, 2009; Medina, 2008).

 Com uma produção de arroz insuficiente para cobrir as suas necessidades, os Felupe socorrem-se da produção hortícola, praticada pelas mulheres, e da fruticultura, praticada pelos homens, para a obtenção dos rendimentos essenciais à compra do arroz em falta. No entanto, a sua comercialização revela-se muito precária porque limitada ao acesso a pé das mulheres felupe aos mercados das povoações mais próximas. O acesso aos mercados de Bissau e de São Domingos, a cidade mais próxima do território felupe, assim como o acesso de comerciantes externos (de Bissau ou Senegal), é condicionado pelo mau estado das estradas, agravado durante a estação das chuvas, altura em que são praticamente intransitáveis, pela consequente falta de transportes e pela inexistência de centros de armazenamento. Porém, as povoações situadas junto à linha da fronteira, como é o caso de Budjim, desenvolveram redes comerciais que permitem vender os produtos no lado contrário da fronteira onde são produzidos, apesar do forte policiamento aí existente devido às movimentações dos rebeldes do Mouvement des Forces Démocratiques de la Casamance (MFDC)[3]. Esta permuta transfronteiriça permite também o acesso a uma maior diversidade de produtos.

A adopção de culturas de renda, amendoim e caju, foi outra das estratégias para a obtenção do arroz em falta. No entanto, estas culturas concorrem na utilização dos terrenos de cultivo, alterando o equilíbrio da dieta alimentar felupe, e permitem um acesso apenas aparentemente mais facilitado a rendimentos, pois deixam os produtores muito dependentes das directivas do governo guineense, impostas pelas flutuações bruscas de preços e de mercado.

O amendoim, que nas primeiras décadas do século passado foi uma cultura de exportação geradora de rendimentos, detém actualmente um peso pouco significativo na balança comercial da Guiné-Bissau (Ba, 2007; Bock, 2009; Medina, 2008). Devido a isso, o controlo estatal à sua venda é hoje mais reduzido, o que permite aos Felupe efectuarem a sua venda no Senegal por melhor preço, fazendo uso da malha de redes estabelecida entre as suas povoações dos dois lados da fronteira e entre estas e as povoações dos outros subgrupos Joola, mas limitados a pequenas quantidades dependentes da capacidade individual de transporte.

Bem diferente é a cultura do caju. Desde a década de 1990 que a castanha de caju é o principal produto de exportação da Guiné-Bissau, correspondendo a cerca de 90% do total das suas exportações (Barry et al., 2007). A comodidade do trabalho exigido por esta cultura que, por se limitar essencialmente à colheita, também exige menos mão-de-obra que o arroz, os rendimentos obtidos e o preço relativo generalizado entre a castanha de caju e o arroz (1 kg de castanha de caju por 1 kg de arroz) foram factores importantes para a promoção da difusão desta cultura, espelhada pela taxa de crescimento médio anual de cerca de 16% (Ba, 2007; Bock, 2009; Medina, 2008). Além da venda da sua castanha, a cultura do caju é também favorável pelos rendimentos obtidos com a venda do vinho e da aguardente produzidos a partir do fruto.

Os Felupe vendem o vinho e a aguardente nos mercados locais e também no Senegal, fazendo uso das suas já referidas redes comerciais transfronteiriças. Já para a castanha, esta estratégia é difícil de adoptar pois, como é o principal produto de exportação, o exército guineense é colocado na fronteira durante toda a campanha, impedindo assim o seu transporte para o Senegal (Bayan, 2010, pp. 40-45).

O início do período de colheita do caju é anunciado pelo governo guineense, que também fixa o preço de venda de referência da castanha de caju. A sua venda é efectuada por três vias: venda do produtor ao comerciante/colector, que trabalha no sector apenas durante a época da colheita (de Abril a Julho), com um volume de transacção reduzido (de 50 kg a algumas toneladas); venda directa do produtor ao grossista estabelecido nas principais cidades; e venda do produtor directamente ao exportador ou ao comprador indiano, os principais importadores da castanha de caju (Ba, 2007, p. 66).

Devido aos referidos condicionalismos de transporte e armazenagem, os produtores felupe dependem da primeira via e, como tal, raramente conseguem vender ou trocar a castanha de caju pelo valor fixado pelo governo. Ainda assim, o aumento dos rendimentos obtidos com a venda da castanha de caju, adicionado aos rendimentos da venda do vinho e da aguardente, permite-lhes o acesso a bens e serviços, contribuindo para a melhoria das suas condições de vida. Reflexo disso é o número crescente de comerciantes ambulantes que, percorrendo de bicicleta o território felupe durante a estação seca, comercializam produtos importados como lanternas, telemóveis, colchas, cortinados, etc., assim como o número também crescente de jovens felupe que prosseguem os seus estudos nas cidades de São Domingos e Bissau.

Migração, uma estratégia falhada?

A migração felupe é predominantemente sazonal e direccionada para os centros urbanos guineenses mantendo, por isso, um contacto muito directo com a povoação de origem. Com a independência da Guiné-Bissau deu-se início a uma primeira geração de migrantes para o Senegal, mais especificamente para Casamança, onde permaneceu durante cerca de uma década. Este fluxo resultou do “ajuste de contas” entre antigos combatentes do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e apoiantes do exército colonial português, que penalizou severamente os Felupe pelo apoio prestado ao exército colonial português durante a luta pela independência. Com a “reconciliação” trazida pelo golpe de Estado de Nino Vieira[4], os Felupe libertados ou regressados do Senegal não retornaram às suas povoações de origem, preferindo instalarem-se em São Domingos e seus arredores, uma cidade que devido à sua localização – situada a 7 km da fronteira, no eixo viário Bissau-Ziguinchor – oferece mais oportunidades de obtenção de rendimentos.

O percurso destes migrantes permitiu-lhes criarem redes dos dois lados da fronteira que beneficiam a população rural felupe. Os que se instalaram nos arredores de São Domingos mantêm a sua actividade de agricultores, mas centram a sua produção agrícola em produtos para venda no mercado desta cidade que, devido à grande proximidade da cidade senegalesa de Ziguinchor, e ao número de cerca de três mil visitantes, desenvolveu na sua periferia um mercado de abastecimento e de redistribuição de maioritariamente produtos manufacturados e comercializados por senegaleses (Ba, 2007, pp. 34-44).

Os Felupe residentes na cidade de São Domingos são funcionários públicos ou comerciantes. Uns e outros deslocam-se às suas povoações de origem durante a época da lavoura e para as diversas cerimónias religiosas. Os que se dedicam ao comércio estabeleceram redes entre as povoações felupe, o mercado de São Domingos e os comerciantes senegaleses que aí se deslocam, permitindo às populações rurais o acesso a produtos manufacturados e favorecendo o escoamento dos seus produtos agrícolas.

Os migrantes felupe seguintes são maioritariamente sazonais, constituídos por jovens do sexo masculino, que têm de se deslocar para São Domingos ou Bissau para completar os seus estudos, e por um número crescente de jovens mulheres que, migrando para Bissau, trabalham essencialmente como domésticas para ajudar a família, amealhar dinheiro para o casamento ou para custear as suas despesas de educação. O seu número é de tal maneira significativo que os guineenses referem que existe uma empregada felupe em todas as casas de Bissau, “fazendo dos Felupe os detentores de todos os segredos da sociedade de Bissau, especialmente os da elite guineense”.

No passado, a migração sazonal foi uma dinâmica integrante da sociedade felupe. Efectuada pelos homens, durante a época seca, para a recolha de vinho de palma, que posteriormente era vendido pelas mulheres aos senegaleses, estava integrada no ciclo da orizicultura e constituía um contributo importante para a economia das famílias. Actualmente, a migração sazonal não coincide totalmente com o ciclo orizícola. Efectuada por jovens que se deslocam para a cidade para prosseguirem os seus estudos ou em busca de melhores rendimentos, o seu retorno é limitado ao período de férias escolares ou laborais que, mesmo que coincidente com a época da lavoura, é insuficiente para satisfazer as exigências do sistema orizícola felupe de mão-de-obra numerosa e estável. Esta perturbação do sistema orizícola deixa os Felupe dependentes dos rendimentos obtidos com a venda da castanha de caju. Com os preços desta e do arroz fortemente condicionados pelas flutuações do mercado mundial, a migração sazonal vai-se tornando, cada vez mais, dinâmica desintegrante e potenciadora de insegurança alimentar.

Tentativas de adaptação: ajustar estratégias antigas e conceber novas

Perturbadas as dinâmicas internas da sociedade felupe, essencialmente pela diminuição de mão-de-obra, mas apoiados pelo aumento dos rendimentos obtidos com a venda da castanha e da aguardente de caju, os Felupe adoptaram novas estratégias. As associações, tradicionalmente constituídas com o objectivo de entreajuda para os trabalhos agrícolas, actualmente, e especialmente para os grandes trabalhos de preparação das bolanhas, prestam serviço a troco de dinheiro que reverte para um fundo de cada associação. Este fundo é utilizado para empréstimos aos seus associados em casos de necessidade, como os motivados por doença, e para custear as necessidades das povoações, como as festas, as cerimónias religiosas ou a construção de equipamentos sociais.

Em Suzana, a maior povoação felupe, a sobrecarga de trabalho das mulheres, originada pelo incremento do cultivo do arroz de sequeiro, devido à falta de mão-de-obra masculina, e pelas culturas hortícolas, foi atenuada com a construção, pela sua associação, de um infantário que recebe as crianças em idade pré-escolar até depois do almoço. O salário das educadoras e o almoço das crianças é também pago pela associação das mulheres. Com as manhãs libertas das crianças as mulheres podem dedicar-se ao seu, cada vez mais exigente, trabalho agrícola (Bayan, 2010, p. 78).

Em Sucujaque, uma povoação a escassos metros (1.130m) da fronteira com o Senegal, a ausência dos jovens para cuidarem do gado foi ultrapassada, no período entre a colheita e a lavoura do arroz, com a atribuição deste serviço a indivíduos senegaleses, que propositadamente ali se deslocam. Estratégia desnecessária durante a lavoura e entre esta e a colheita uma vez que o gado é fechado para não danificar as sementeiras. Este serviço é retribuído com a recolha do leite, não consumido pelos Felupe por razões tradicionais.

Em diversas povoações, as suas associações, com o apoio de ONGs que operam na zona e com o reforço das quotizações dos seus associados, têm vindo a construir centros de saúde primários. Junto a estes centros são normalmente construídas, pelo colectivo feminino, maternidades para uma assistência de melhor qualidade às parturientes, mas mantendo o costume tradicional. Segundo este, as mulheres dão à luz e residem, até à queda do cordão umbilical do bebé, numa casa de acesso proibido aos homens, construída longe das outras casas e cercada por uma paliçada que a afasta dos olhares masculinos. A alimentação é da responsabilidade das utentes, mas para as parturientes necessitadas o arroz, que segundo Almeida (1955, p. 630) era retirado do celeiro colectivo da povoação, é hoje fornecido pela associação das mulheres (Bayan, 2010, pp. 78-79).

No entanto, constata-se actualmente que a construção da maternidade, junto aos centros de saúde primários, afastou os utentes masculinos destes centros. Estes reclamam um centro de saúde primário exclusivamente para homens. Segundo os resultados provisórios de um inquérito, efectuado pela ONG VIDA (Voluntários Internacionais para o Desenvolvimento de África)[5] nos primeiros meses de 2012 e ao qual tive acesso durante o meu trabalho de terreno desenvolvido em Abril e Maio de 2012, esta situação é, aparentemente, devida à não aceitação pelo colectivo masculino felupe da proximidade destes dois equipamentos.

De acordo com o costume tradicional, as questões das mulheres são interditas aos homens, não podendo estes participar ou interferir no processo da maternidade. Esta interdição impede os homens de verem os seus filhos e mesmo de saberem o sexo das crianças antes da saída destas e das mães da maternidade, que ocorre apenas após a queda do cordão umbilical. Desta forma, a proximidade destes dois equipamentos, maternidade e centro de saúde primário, é entendida pelos homens como uma apropriação do centro de saúde primário pelas mulheres e, como tal, para eles interdito.

Os Felupe valorizam a formação escolar e asseguram a existência de uma diferença desfavorável de escolaridade entre eles e as outras etnias, atestada pela existência de um único deputado felupe na Assembleia Nacional. Acreditam na necessidade de educar os jovens para que estes possam ocupar cargos governamentais e administrativos como forma de defesa das suas causas. Para isso, em 2010, asseguravam, em todas as povoações felupe, o ensino até à sexta classe por professores, geralmente sem formação ou formação inadequada, pagos maioritariamente pelas associações através da quotização de cada família de um valor anual fixo, independentemente de ter ou não filhos a frequentar a escola (Bayan, 2010, pp. 78-79).

Depois da sexta classe os jovens têm de se deslocar para São Domingos ou Bissau, onde existem os graus seguintes de ensino, com propinas pagas pelos pais de cada jovem. Desta forma, o ensino nas povoações era precário, a continua-ção onerosa e poucos eram os jovens que completavam a totalidade do ensino liceal e, consequentemente, menor era o número dos que efectuavam uma formação profissional ou académica.

Posteriormente, o ensino passou gradualmente a ser assegurado pelo governo guineense, permitindo às famílias felupe canalizarem as suas contribuições para custear a continuação dos estudos dos seus filhos em São Domingos ou Bissau. Esta alteração e os incentivos dados às famílias para a educação das raparigas permitiram também o acesso destas aos graus de ensino apenas existentes nas cidades. No entanto, este aumento da saída para a cidade do número de jovens de ambos os sexos se, por um lado, permite o acesso à educação e formação de um número maior de jovens, por outro lado fragiliza ainda mais o sistema produtivo e sobrecarrega os familiares que na cidade recebem os jovens.

Como solução de entreajuda para as mais diversas situações, para interligar as associações dos jovens de cada povoação, apoiar os estudantes deslocados nas cidades, combater o analfabetismo e incentivar as raparigas a estudar, os jovens felupe estudantes em Bissau criaram a AOFISS – Associação Onenoral[6] dos Filhos da Secção de Suzana. Actualmente a AOFISS reúne várias associações locais e tem representações em Bissau, São Domingos, Ziguinchor (Senegal) e na Gâmbia (Bayan, 2010, p. 80).

Esta associação constitui também um reforço das redes felupe já existentes, utilizadas para os mais diversos fins como, por exemplo, o apoio à migração, ao comércio ou o acesso aos serviços de saúde senegaleses. De facto, devido à precariedade dos serviços de saúde guineenses, à grande proximidade de Ziguinchor e ao apoio das suas redes, é essencialmente aqui que os Felupe se deslocam quando necessitam destes serviços.

O rendimento obtido com a comercialização da castanha e a aguardente de caju, aliado à influência de algumas das dinâmicas da globalização, como a descida de preço de muitos produtos importados, permite à sociedade felupe o acesso a outros bens e serviços como as comunicações móveis e a energia eléctrica.

A possibilidade de aquisição de telemóveis e de serviços de telecomunicação é também favorecida pelo acesso facilitado às redes móveis senegalesas, devido à localização geográfica do território felupe. A utilização deste serviço permite uma melhor comunicação entre os habitantes felupe dos dois lados da fronteira, reforçando os laços desta sociedade.

O acesso a energia eléctrica, inicialmente muito oneroso porque dependente de recursos para a aquisição de geradores e gasóleo para o seu funcionamento, estava limitado a um número muito reduzido de famílias felupe, circunscrevendo-se, geralmente, apenas a pequenos comerciantes. Contudo, a baixa substancial do preço dos sistemas de energia solar, provocada pela presença da China no mercado mundial, alterou esta situação. Actualmente, o preço de custo de um destes sistemas na Guiné-Bissau permite o acesso a energia eléctrica a um número crescente, embora ainda diminuto, de famílias felupe.

Fragilidades actuais: os riscos da dependência do mercado mundial

Os aparentes benefícios da opção do deslocamento da produção agrícola de consumo local para a cultura de renda do caju, e consequente dependência da venda da castanha de caju para satisfazer a compra de cerca de 50% do arroz necessário para garantir as necessidades alimentares, revelam inconvenientes. A produção de caju, por um lado, permitiu um melhor rendimento e, consequentemente, o acesso a novos bens e serviços. Por outro lado, o equilíbrio da segurança alimentar, além de fragilizado pela diminuição da produção do arroz de sequeiro (um complemento tradicional ao arroz de bolanha em período de soudure[7]) e pelas turbulências na lavoura do arroz de bolanha, causadas pelo acesso ao vinho de caju (situação anteriormente não sentida uma vez que a bebida alcoólica tradicional, o vinho de palma, só é produzido e consumido na estação seca, ou seja, no fim da lavoura), tornou-se fortemente dependente da flutuação dos preços do arroz e da castanha de caju no mercado mundial.

Em relação ao vinho de caju note-se que, ao contrário do vinho de palma, o seu consumo não é regulado por prescrições religiosas ou tradicionais nem o seu tempo de preservação é limitado. Sem estes dois condicionalismos, o consumo deste tipo de vinho é efectuado durante todo o ano e também durante o período laboral, constituindo-se obstáculo à actividade agrícola. Num sistema de trabalho agrícola muito dependente de mão-de-obra, como o felupe, todos os factores que contribuem para a sua redução são indutores do aumento da insegurança alimentar.

Dependentes de complexas dinâmicas globais, cada vez mais imprevisíveis, os preços do arroz e da castanha de caju alteram-se muito rapidamente, não deixando o espaço necessário à sua adaptação. Desta forma, as alterações favoráveis de preço dificilmente podem ser aproveitadas e exploradas como forma de garantir os efeitos das alterações desfavoráveis. Este foi, por exemplo, o caso da campanha de caju em 2011 que, devido ao conflito que grassava na Costa do Marfim, o principal produtor africano de castanha de caju, fez da Guiné-Bissau o destino dos seus importadores indianos. Nesse ano, a Guiné-Bissau exportou cerca de 174 mil toneladas de castanha de caju, um aumento significativo face aos valores dos anos anteriores (122 mil toneladas em 2010, 135 mil em 2009 e 109 mil em 2008), arrecadando cerca de 226 milhões de dólares. Os produtores, ao venderem a sua produção de castanha de caju a uma média de 333 francos CFA/kg, em vez dos habituais 200 ou 250 francos CFA/kg, conseguiram um aumento significativo de rendimentos, que lhes permitiu fazer face ao aumento do preço do arroz importado, 350 francos CFA/kg[8], mas insuficiente para ultrapassar o grave défice de 2012, provocado pelo golpe de Estado ocorrido em 12 de Abril de 2012, durante a campanha do caju.

A constante situação de instabilidade: mais um golpe de Estado

Apesar de “acostumada” à constante instabilidade do Estado guineense e consequente insensibilidade e inoperância para com as suas especificidades e dificuldades, o golpe de Estado em Abril de 2012 provocou fortes turbulências em todos os sectores da sociedade felupe.

Em Maio de 2012 as famílias felupe já sentiam os efeitos do golpe de Estado na campanha do caju. O bloqueio generalizado imposto pela comunidade internacional obrigou os bancos a fecharem o crédito aos grandes intermediários, interrompendo toda a cadeia/fileira de comercialização da castanha de caju. Devido a esse facto, os comerciantes/colectores, a quem normalmente os produtores felupe vendem a castanha de caju, não se deslocaram à região felupe para a comprar. A inexistência de redes comerciais felupe no Senegal para a castanha de caju, resultante da constante presença do exército guineense na fronteira durante a sua campanha, também não permitiu aos Felupe o acesso a redes alternativas para escoar a produção de castanha de caju. Estes factores tornaram os produtores felupe dependentes dos especuladores que, em Maio deste ano, compravam a castanha de caju a 150 francos CFA/kg em vez do valor estabelecido pelo governo de 250 francos CFA/kg.

Além disso, o preço do arroz também aumentou devido à escassez trazida pelo bloqueio, passando, na mesma altura (Maio de 2012), de 350 para 500 francos CFA. Desta forma, o preço relativo que vigorava, de cerca de 1 kg de castanha de caju por 1 kg de arroz, alterou-se substancialmente e o valor da castanha de caju diminuiu drasticamente, obrigando os pequenos agricultores a aceitarem o novo valor de cerca de 2,5 kg de castanha de caju por 1 kg de arroz.

Sendo extremamente dependentes do rendimento obtido com a produção de caju, esta brusca e grande alteração de preços coloca os Felupe em sérias dificuldades para colmatarem o défice de produção orizícola necessária ao garante da sua alimentação e obrigações religiosas e sociais. A esta conjuntura são conjugadas muitas outras turbulências trazidas pelo golpe de Estado, indutoras do desequilíbrio da organização económica, social e política e que, ameaçando a estabilidade da sua sociedade, leva os Felupe a um maior afastamento/desconfiança (ou mesmo antagonismo?) do Estado guineense, a quem intitulam alulum-âu, “o branco”.

O golpe de Estado interrompeu o ano lectivo em curso e os jovens estudantes foram obrigados a retornar às suas povoações. A ajuda inesperada, mas necessária, que a presença destes proporciona em diversas tarefas, como o fabrico do vinho de caju ou o desmatar dos campos para a próxima lavoura, não compensa o esforço assim desperdiçado pelas famílias para custear os estudos dos seus filhos na cidade. Como exemplo do encargo exigido a uma família, refira-se que uma formação profissional de três anos na Escola Nacional de Administração (ENA), em Bissau, importa em cerca de 12.000 francos CFA de matrícula e um valor anual de propinas de 30.000 francos CFA, perfazendo um total de 102.000 francos CFA (cerca de 155 €), num país em que o salário médio nacional corresponde a cerca de 28.500 francos CFA (aproximadamente 43,50 €). A esta preocupação, juntam-se os mais pequenos, que ainda frequentam a escola da povoação e que também ficam sem aulas, visto que os professores, anteriormente pagos pelas famílias felupe, são agora funcionários do Estado. Assim, a rotina das famílias felupe é alterada, os rendimentos diminuem e o trabalho, das mulheres em particular, aumenta.

Processo iniciático: as amarras da organização e coesão social

A sociedade felupe é socialmente organizada através de santuários (ukìn-aku)[9] e gerida por um conjunto de Autoridades Tradicionais legitimadas por uma complexa cadeia iniciática. Sem autoridade centralizada, nem estruturas hierárquicas, esta sociedade tem, como símbolo da sua unidade, exclusividade e incarnação dos seus valores essenciais, uma figura com carácter sagrado e secreto, detentor dos altares mais importantes, sacerdote[10] máximo, mas com autoridade restrita, que a representa e identifica perante os outros: o Ây de Caroai.

O último ây, Abdu Djata, morreu em 2003 e desde então tem sido substituído por um ây interino que, como tal, não pode realizar um grande número de cerimónias importantes como a entronização do aramb-âu, o representante do ây em cada povoação. A entronização do novo ây tem sido impossibilitada, em grande parte, devido ao conflito na Casamança motivado pelos rebeldes do MFDC. Recorde-se que o chão da sociedade felupe abrange povoações de um e outro lado desta fronteira. Além disso, as regras tradicionais desta sociedade exigem que parte das cerimónias de preparação e entronização do ây sejam efectuadas em povoações de um lado da fronteira e outras em povoações do lado contrário. Contudo, o longo período sem ây, e consequente impossibilidade de legitimação do, naturalmente, crescente número de buramb-abu (plural de aramb-âu), situação motivadora de instabilidade social, foi agravada pela morte inesperada, em Junho deste ano, do ây interino, Ernesto Djinut Diatta. Esta irregular e desestabilizadora situação da sua organização político-religiosa obrigou esta sociedade a iniciar, este ano, o processo de preparação do futuro ây, apesar do perigo da presença dos rebeldes do MFDC na fronteira entre a Guiné-Bissau e Senegal.

Este complexo processo, além de demorar vários anos, exige um enorme esforço económico de toda a sociedade felupe e, em particular, dos habitantes das povoações onde se realizam as diversas cerimónias, devido à obrigação tradicional de assegurar arroz e vinho de palma para as oferendas aos ukìn-aku e para alimentar os habitantes e os visitantes presentes nas cerimónias.

As consequências do golpe de Estado podem perigar todo este processo. A quebra de rendimentos e o aumento da insegurança alimentar, provocados pela alteração dos preços da castanha de caju e do arroz, põem em risco a capacidade de os Felupe satisfazerem as suas obrigações de arroz e vinho de palma para as cerimónias. A participação de militares senegaleses na força da CEDEAO, instalada na Guiné-Bissau após o golpe de Estado, pode ser aproveitada para combater o MFDC, situação que aumentaria drasticamente a insegurança física na fronteira e nas povoações situadas muito perto dela, pondo em risco, ou mesmo impedindo, a realização das necessárias cerimónias[11].

Conclusão

No passado, a sociedade felupe, perante condicionalismos e turbulências geradas por dinâmicas externas, conseguiu adaptar as suas dinâmicas internas, garantindo a sua coesão social. Estabelecida essencialmente na Guiné-Bissau, um país em que, nas últimas três décadas, a instabilidade política tem enfraquecido fortemente a infra-estrutura produtiva, aumentando a vulnerabilidade da população, a sociedade felupe reforçou estratégias antigas e ensaiou novas: diversificou a produção agrícola e, servindo-se da especificidade da sua organização social, da localização do seu chão (zona fronteiriça entre a Guiné-Bissau e o Senegal) e dos laços tecidos com outros subgrupos Joola, reforçou e reestruturou redes tradicionais. Como resultado conseguiu uma melhoria das condições de vida e, consequentemente, manteve a coesão social.

No entanto, actualmente, as dinâmicas transportadas pela globalização são mais fortes e invasivas. Por um lado, a dependência, risco e incerteza inerentes às flutuações anuais dos preços dos alimentos nos mercados externos fragilizam a sua economia e dificultam a criação atempada de estratégias de adaptação às turbulências causadas no equilíbrio da segurança alimentar e, consequentemente, na estabilidade social. Por outro lado, os fluxos instáveis de influências, ideias e comércios ilícitos a nível estatal poderão contribuir para a manutenção da instabilidade política e/ou da insegurança, agravando os constrangimentos existentes, gerando novas turbulências e fragilizando a coesão social.

Estas bruscas e agressivas mudanças de parâmetros poderão condicionar fortemente as dinâmicas de mudança da sociedade felupe e fragilizar a sua capacidade de resiliência.

 

Referências

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Recebido a 14 de março de 2014; Aceite a 17 de abril de 2015

 

NOTAS

[1]   Os Joola cultivam o arroz essencialmente em bolanhas de água salgada (terrenos alagadiços de fertilidade variável, de tipo mangue), utilizando complexos sistemas de comportas para entrada e saída de água e, através da água das chuvas, controlar a excessiva salinidade do solo. Este tipo de arrozais é uma marca característica da ocupação do terreno pelos Joola, assinalada desde o século XV por navegadores portugueses (Mota, 1972, p. 221).

[2]   O padre Giuseppe Fumagalli, da congregação P.I.M.E., responsável pela missão católica de Suzana e um bom conhecedor da região, numa entrevista efectuada durante o trabalho de terreno realizado em 2009, referiu que quando chegou a Suzana, em 1968, os celeiros das famílias felupe tinham arroz de três, quatro e mesmo cinco anos, confirmando a ideia generalizada dos Felupe, recolhida através de entrevistas e conversas informais.

[3]   Movimento independentista joola, fundado em 1947 e responsável por conflitos periódicos na Baixa Casamança, especialmente entre 1982 e 2004. 

[4]   Em 14 de Novembro de 1980, Nino Vieira encabeçou um golpe de Estado que alterou as posições radicais até aí estabelecidas permitindo o regresso e a libertação da prisão de todos os guineenses que, durante a luta pela independência, tinham combatido nas fileiras do exército português.

[5]   A quem endereço os meus agradecimentos pelo apoio e partilha de informação.

[6]   Segundo membros da AOFISS, onenoral significa, em felupe, “ajudemo-nos uns aos outros”.

[7]   Período entre o início da estação das chuvas (que coincide com o início dos trabalhos agrícolas) e o início das primeiras colheitas. Durante este período de tempo, que pode durar de algumas semanas a dois ou três meses, o mundo agrícola deve viver com as reservas restantes da colheita do ano precedente. Quando as colheitas do ano precedente foram más e as colheitas do ano em curso demoram a vir, pode ocorrer um grave “défice alimentar”.

[8]   Dados fornecidos pela CNC - Comissão Nacional do Caju.

[9]   No singular bakìn-abu, um termo polissémico que designa ao mesmo tempo o ser espiritual, o seu local de culto e o altar onde, durante as cerimónias, são feitas as libações de sangue ou vinho de palma (Journet-Diallo, 2000 e 2007).

[10]  Sacerdote aqui entendido como ministro autorizado de uma deidade (intitulada pelos Felupe de Emit-ai) que, em nome do povo felupe, oficia os ritos, agindo como mediador entre a deidade e os indivíduos.

[11]   Não seria inesperado o Senegal, devido ao apoio dado ao novo governo guineense e à presença dos seus militares na força da CEDEAO, conseguir a autorização necessária do governo guineense para as suas tropas levarem a cabo as acções consideradas necessárias, de um e outro lado da fronteira, como tentativa de desmembramento do MFDC e desfecho dos conflitos na Casamança.

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