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Cadernos de Estudos Africanos

Print version ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.27 Lisboa June 2014

 

Patrick Chabal e a África Lusófona

 

Clara Carvalho*

*Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal, clara.carvalho@iscte.pt

 

Em Abril de 2002, Patrick Chabal realizou o lançamento do seu recente livro, A History of Postcolonial Lusophone Africa (Chabal et al., 2002), na universidade de Brown, EUA, durante a conferência Portugal-African Encounters. Naquele dia e nesse encontro, mais do que a apresentação de um livro afirmou-se um novo campo de estudos sobre a África Lusófona. Chabal assistiu às apresentações de muitos jovens investigadores vindos dos EUA, mas também de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Portugal, Brasil, discretamente encostado ao fundo da sala de onde podia apreciar tanto os conferencistas como a assistência de uma centena de estudiosos que pela primeira vez se reuniam em torno do tema. Para todos os presentes ele era não apenas o pioneiro como a indiscutível referência deste novo campo de estudos.

A obra de Patrick Chabal foi inovadora nos estudos de ciência política sobre a África Lusófona e contribuiu em primeira mão para definir o conceito e o seu âmbito. O termo “África Lusófona” agregou um conjunto de académicos que trabalham sobre as condições sociais, culturais, históricas, políticas e económicas dos PALOP, tendo surgido e conhecido a sua maior divulgação fora do espaço académico lusófono. A implementação deste campo de estudos teve particularidades históricas, e consequências políticas. Os trabalhos sobre a África Lusófona foram inicialmente marcados pela historiografia e antropologia coloniais que publicaram, até 1974, o maior conjunto de estudos coloniais de todas as antigas potências colonizadoras europeias, quase integralmente oriundas da academia portuguesa. Depois de 1974 esta produção estancou, sendo quase abandonada na academia portuguesa, que sofreu uma ampla remodelação, e limitada nos paí-ses africanos de língua oficial portuguesa, onde as condições políticas atrasaram a afirmação dos estudos em ciências sociais. O interesse pela África Lusófona começa na década de 1980 desenvolvido por parte de académicos oriundos do universo francês, inglês ou americano, os quais encararam esta área por contraponto aos estudos sobre a África Francófona, Anglófona ou Arabófona. O termo foi cunhado no King’s College, onde Chabal começou a leccionar em 1984 e ficou até à sua morte, primeiro no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros e depois no Departamento de História, sendo professor de História e Política Africana desde 2011. Foi seguido na academia francesa e conheceu a sua principal expressão com o grupo de investigadores ligados ao Centre d’Études de l’Afrique Noire de Bordéus e à revista Lusotopie (1994), liderada por Michel Cahen, Christine Messiant e Christian Geffray. Do lado americano, onde foram surgindo paulatinamente trabalhos sobre Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e, mais recentemente, Angola, o conjunto crescente de investigadores sobre os paí-ses africanos de língua portuguesa levou à criação, em 1999, no congresso da African Studies Association em New Jersey, da Lusophone Africa Studies Organization (LASO) que tem, desde então, assegurado um lugar de destaque para os estudos sobre os PALOP. Contudo, apesar da sua afirmação no contexto internacional que hoje conduz ao estabelecimento de uma comunidade de estudiosos bem definida, o termo não foi tão bem aceite por parte dos intelectuais dos PALOP ou mesmo portugueses e brasileiros, como nas academias americana, inglesa ou francesa. A afirmação dos estudos sobre a África Lusófona coincidiu com o lançamento de programas políticos em torno da Lusofonia, e desde logo a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A noção da unidade lusófona, a ênfase colocada nos laços históricos e culturais que uniam os diferentes países envolvidos, esquecia a muito recente história de violência colonial e mesmo os interesses políticos e estratégicos de Portugal, principal interessado na iniciativa. Lembrava ainda a adopção do discurso lusotropical que, desde a década de 1950, se transformou na elaboração ideológica que permitia ao regime do Estado Novo justificar a permanência do processo colonial pela sua suposta excepcionalidade. Esta acepção, que continuou presente no discurso político e também coloquial português para além da mudança de regime operada em 1974, mascarou situações de violência e segregação, de interesses económicos e políticos. A proximidade entre os termos “lusofonia” e “África Lusófona” também não foi facilmente aceite pelos intelectuais dos países africanos envolvidos. Alguns argumentam que a escolha do português como língua oficial foi essencialmente política e conduziu a uma disseminação linguística que nada deve ao estado colonial, onde as limitações dos programas educativos são por demais conhecidas. Outros ainda, que a lusofonia mascara as diferenças abissais entre os diferentes países falantes de português. Actualmente os benefícios económicos potenciados pela similitude linguística, além do trabalho de aproximação que a CPLP tem vindo a desempenhar apesar das suas óbvias limitações, conduziram gradualmente a uma maior aceitação do conceito.

Embora nunca tenha produzido uma reflexão específica sobre a lusofonia, a obra de Patrick Chabal constitui a melhor resposta a este debate e, sobretudo, à questão dos limites da especificidade da África Lusófona. Desde logo o seu primeiro trabalho, a biografia política de Amílcar Cabral, é uma investigação de fôlego realizada não apenas sobre a luta pela independência na Guiné-Bissau como sobre os movimentos nacionalistas nas antigas colónias portuguesas. Como Chabal nota na reedição de 2003, embora tenham surgido outras obras sobre a luta de libertação e o papel de Amílcar Cabral, o livro mantinha-se, e mantém-se, como a biografia incontestável de um homem e de um movimento revolucionário[1], e um ponto de partida para a compreensão da ligação interna dos movimentos nacionalistas. As obras seguintes do autor correspondem ao seu trabalho como professor de Politics and Modern History of Lusophone Africa no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros do King’s College e versam sobre literatura da África Lusófona (Chabal, 1994; 1996). Neste último livro, Chabal debate-se com a questão de uma “literatura lusófona africana”, a escolha do português tanto como uma língua de expressão da literatura pós-colonial, como um processo de afirmação política. Considerando as taxas de iliteracia que superavam os 90% em três dos cinco países de língua oficial portuguesa à data da sua independência, e o muito diminuto impacto do ensino secundário e universitário neste contexto, Chabal salienta a escolha da língua como um instrumento político, uma perspectiva que segue nos seus trabalhos posteriores. Em Vozes Moçambicanas: literatura e nacionalidade (1994), A History of Postcolonial Lusophone Africa (1996) e The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (2002), Chabal regressa ao seu interesse pela história política e escreve, na longa introdução a esta obra, um ensaio seminal sobre o tema. Neste texto reconhece as semelhanças históricas entre os cinco PALOP, derivadas da experiência colonial comum, das lutas nacionalistas e da descolonização tardia. Nos países continentais, onde sobem ao poder movimentos de libertação com experiência de luta armada, Chabal enfatiza as semelhanças entre os três movimentos vencedores, PAIGC, MPLA e FRELIMO. Como nota, a luta anticolonial jogou-se em diferentes níveis, incluindo a criação de um sentimento de unidade nacional que passava também pela mobilização das populações rurais, maioritárias e socialmente afastadas das chefias dos movimentos. Esta mobilização passava igualmente pela manutenção de uma luta armada que obedecesse aos objectivos políticos, a organização política interna e a diplomacia internacionais, único meio de obter o apoio de outros países e o reconhecimento pelas Nações Unidas. O estado independente que emerge nos três países continentais, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, tem naturalmente semelhanças dada a sua génese histórica e política comum. Nestes três países a descolonização ocorre em resultado de prolongados conflitos, com consequências estruturais semelhantes, desde a legitimação da passagem do poder para partidos que emergiram de movimentos de guerrilha, à facilidade em movimentar as populações através de medidas autoritárias e à disseminação incontrolada de armas pelo país. Mas é sobretudo em termos políticos que os estados dos cinco países africanos que emergem da mesma experiência colonial se aproximam. Em todos o partido no poder se afirmou como o elemento vanguardista e centralizador, procurando controlar não apenas o aparelho do estado como a economia nacional. Nos três países continentais o estado independente recorreu sistematicamente a medidas de violência para impor as suas decisões e submeter a oposição. Os cinco países independentes herdaram da administração colonial um estado burocrático e não representativo. Contudo, para Chabal esta visão de conjunto é limitada e os cinco PALOP são melhor caracterizados pela sua inserção regional. Nesta perspectiva salienta as diferenças geoestratégicas entre os dois estados da África Austral, o pequeno país integrado na zona historicamente conhecida por Senegâmbia com semelhanças sociológicas e históricas reconhecidas, e os dois arquipélagos crioulos próximos de outras construções sociais semelhantes oriundas das economias de plantação e escravocratas coloniais. O autor sublinha igualmente que as supostas particularidades da construção do estado independente nos PALOP são mais um exemplo do estado pós-colonial em África, tendencialmente neo-patrimonial e centralizador, a um tempo violento e repressivo e politicamente frágil, não se distinguindo de outros estados vizinhos.

A reflexão de Chabal sobre os cinco países da África Lusófona lançou o debate sobre as similitudes destes estados independentes e desenhou de imediato os seus limites, ao indicar os principais factores identitários e geoestratégicos que haveriam de prevalecer, como se veio a verificar. Decorrida mais de uma década sobre o lançamento desta obra, a situação política nos cinco PALOP não poderia ser mais díspar. Angola afirma-se continuamente como uma potência regional, Moçambique assiste ao emergir de uma sociedade civil reivindicativa, a Guiné-Bissau debate-se com problemas de legitimidade do estado afundado em teias de clientelismo militar e no adiamento da reforma do sector de segurança, enquanto os dois arquipélagos, em particular Cabo Verde, afirmam e desenvolvem estruturas estatais consolidadas no sistema multipartidário.

A reflexão de Chabal sobre o estado nos PALOP é a expressão dos seus trabalhos sobre a natureza dos movimentos políticos em África que marcaram a sua obra e imagem. O muito debatido livro que escreveu com Jean-Pascal Daloz, Africa Works: Disorder as Political Instrument (Chabal & Daloz, 1999) renovou o debate sobre o estado em África, ocluso nas discussões lançadas uma década atrás por Jean-François Bayard sobre o estado patrimonial e a “política do ventre”. Em Africa Works, Chabal e Daloz discutem a dimensão política e histórica da desordem civil, estatal, económica, e sob esta perspectiva analisam o que consideram ser o falhanço estrutural do desenvolvimento em África. A esta obra, que marcou indelevelmente o lugar de Chabal nos estudos de ciência política, seguiu-se Culture Troubles: Politics and the Interpretation of Meaning (Chabal & Daloz, 2006) em que os autores, na esteira das suas ideias iniciais, justificam os diferentes comportamentos políticos pelas experiências culturais dos actores, envolvidos em teias de significado relacionais no seguimento da interpretação de Clifford Geertz. Ambas as obras concorrem para definir Chabal como um autor polémico que questionou a ciência política com base em estudos comparativos alargados. Em Africa. The Politics of Smiling and Suffering (Chabal, 2009), debate ainda a limitação da teoria política clássica para entender a especificidade das formações estatais e dos conflitos no continente. Na sua última obra, The End of Conceit: Western Rationality after Postcolonialism (Chabal, 2012), lança-se numa crítica detalhada dos limites da reflexão eurocêntrica, alimentada pelas ciências sociais e a historiografia, manifestamente inadequada para a compreensão das dinâmicas do “sul global”.

Patrick Chabal e o AEGIS

Talvez um dos maiores legados que Patrick Chabal nos deixou tenha sido o seu trabalho na criação e afirmação do AEGIS, a rede Africa-Europe Group for Interdisciplinary Studies. Inicialmente construída no início da década de 1990 como uma associação de um pequeno número de centros de estudos africanos na Europa, a rede rapidamente evoluiu no sentido da sua afirmação e consolidação, construídas em torno das conferências temáticas primeiro, das conferências europeias abertas a todos os investigadores em Estudos Africanos desde 2005, e consolidada pela parceria com a editora Brill e a criação da colecção AEGIS Series e do Africa Yearbook. A constituição do AEGIS marca igualmente a relação privilegiada que Patrick Chabal estabeleceu com o Centro de Estudos Africanos do ISCTE-IUL. A primeira direcção do AEGIS foi formada por Patrick Chabal pela University of London, Gerti Hessling pelo Center of African Studies de Leiden e Franz-Wilheim Heimer, pelo CEA, Lisboa. A direcção fundadora marcou indelevelmente o futuro da associação, Gerti Hessling incentivando a sua formalização e criando as bases estruturais que permitiram a sua continuidade, Franz-Wilhelm Heimer organizando em Lisboa a primeira das muitas conferências temáticas do AEGIS (O Estado em África, 2002) e Patrick Chabal liderando a evolução do AEGIS para o seu formato actual e coordenando a primeira conferência europeia de Estudos Africanos (ECAS) em Londres, em Julho de 2005. Desde então consolidaram-se tanto a relação privilegiada do CEA com o AEGIS, bem como a colaboração basea-da numa longa amizade com Patrick Chabal. Muitos dos investigadores que integram o CEA colaboraram ou participaram nas múltiplas actividades em que Chabal se empenhava, desde logo Gerhard Seibert que contribui com o capítulo sobre São Tomé e Príncipe para a obra A History of Lusophone Africa, e depois Nuno Vidal, o seu discípulo que com ele editou Angola: The Weight of History (Chabal & Vidal, 2007) e Southern Africa: Civil Society, Politics and Donor Strategies; Angola, Zimbabwe, Democratic Republic of Congo, Mozambique, Namibia and South Africa (Vidal & Chabal, 2009). Desde 2007 o CEA é membro da direcção do AEGIS, fazendo-se representar por Manuel João Ramos, e nessa posição organizou a última ECAS (ECAS 2013 Lisboa), em torno do tema African dynamics in a multipolar world. Patrick Chabal, que em 2007 abandonara a direcção da associação e passara a integrar o seu grupo de conselheiros, junto de outros membros fundadores, visitou Lisboa mais uma vez por ocasião dessa conferência e participou plenamente da homenagem que a associação fez aos seus decanos — ele próprio e Franz-Wilhelm Heimer. Para os estudantes, Patrick Chabal é um nome mítico e muitos pediram para se fazer fotografar ao seu lado na festa final da conferência, e continuam o seu legado lendo e discutindo as suas obras. Como todos conti-nuaremos, na prossecução dos Estudos Africanos.

Livros de Patrick Chabal citados

Chabal, P. (1993). Amílcar Cabral: Revolutionary leadership and people’s war (Cambridge University Press, 1983). Reissued as Amílcar Cabral: Revolutionary leadership and people’s war, with a new Introduction (Londres & Trenton, NJ: Hurst & Africa World Press, 2003).

Chabal, P. (1994). Vozes moçambicanas: Literatura e nacionalidade. Lisboa: Vega.

Chabal, P., et al. (1996). The postcolonial literature of Lusophone Africa. Londres, Chicago & Johannesburgo: Hurst, Northwestern University Press & Witwatersrand University Press.

Chabal, P., & Daloz, J.-P. (1999). Africa works: Disorder as political instrument. Oxford & Indianapolis: James Currey & Indiana University Press.

Chabal, P., et al. (2002). A history of postcolonial Lusophone Africa. Londres & Indianapolis: Hurst & Indiana University Press.

Chabal, P., & Daloz, J.-P. (2006). Culture troubles: Politics and the interpretation of meaning. Londres & Chicago: Hurst & University of Chicago Press.

Chabal, P., & Vidal, N. (Eds.) (2007). Angola: The weight of history. Nova Iorque: Columbia University Press.

Chabal, P. (2009). Africa: The politics of suffering and smiling. Londres: Zed Press.

Chabal, P. (2012). The end of conceit: Western rationality after postcolonialism. Londres: Zed Press.

 

Referências

Castanheira, J. P. (1995). Quem mandou matar Amílcar Cabral? Lisboa: Relógio de Água.         [ Links ]

Dhada, M. (1993). Warriors at work. How Guinea was really set free. Niwot: Colorado University Press.         [ Links ]

Sousa, J. S. (2011). Amílcar Cabral (1924-1973). Vida e morte de um revolucionário africano. Lisboa: Vega.         [ Links ]

Tomás, A. (2007). O fazedor de utopias. Uma biografia de Amílcar Cabral . Lisboa: Tinta da China.         [ Links ]

Vidal, N., & Chabal, P. (Eds.) (2009). Southern Africa: Civil society, politics and donor strategies; Angola, Zimbabwe, Democratic Republic of Congo, Mozambique, Namibia and South Africa. Lisboa & Luanda: Firmamento & Media XXI.         [ Links ]

 

Notas

[1]   Patrick Chabal cita em 2002, no prefácio à nova edição da biografia de Amílcar Cabral, os trabalhos posteriores de Mustafah Dhada (1993) e de José Pedro Castanheira (1995). A estes acrescentam-se hoje o estudo doutoral de Julião Soares de Sousa (2011) e a biografia de António Tomás (2007).

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