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Cadernos de Estudos Africanos

Print version ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.24 Lisboa July/Dec. 2012

 

Identidade e Estilo em Lisboa: Kuduro, juventude e imigração africana

Identity and style in Lisbon: Kuduro, youth and African immigration

 

Frank Nilton Marcon*

*Universidade Federal de Sergipe (UFS) Aracaju, Brasil

marconfrank@hotmail.com

 

Resumo

O kuduro é um estilo de dança e música que chegou a Portugal através da imigração africana. Recentemente, passou também a ser produzido entre jovens imigrantes ou descendentes na região metropolitana de Lisboa. Em tal contexto, formaram-se redes de produtores e consumidores de kuduro e se estabeleceram formas de sociabilidade nos bairros de Lisboa e dos municípios em seu entorno onde vivem as populações de imigrantes e seus descendentes oriundos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. É através das formas de expressão, da produção, da circulação e do consumo do kuduro que proponho analisar como se estabelecem sentidos compartilhados de identificação e diferença entre estes jovens.

Palavras-chave: identidade, estilo de vida, imigração, africanos, Lisboa

 

Abstract

Kuduro is a type of music and dance that arrived in Portugal with African immigration. In the last years, young immigrants or Afro-descendants in the metropolitan area of Lisbon are also producing it. In this setting, networks of producers and consumers of kuduro were created and new forms of sociability were established in the neighborhoods of Lisbon and surrounding municipalities where most immigrants from Angola, Cape Verde, Guinea-Bissau and São Tomé and Príncipe and their descendants live. This article seeks to analyze how shared senses of identification and differentiation among these youth groups are established through the forms of expression, production, circulation and consumption of kuduro.

Keywords: identity, lifestyle, immigration, Africans, Lisbon

 

O kuduro é um estilo de dança e música que surgiu em Luanda, nos anos noventa, e que logo em seguida chegou a Portugal através das relações entre os imigrantes angolanos e o país de origem. Ao lado de outras formas de expressão cultural juvenis, como o hip-hop, o rap e o reggae, o kuduro passou a fazer parte integrante do consumo e da produção cultural dos jovens da periferia de Lisboa, em meio a um universo de tensões sociais, étnicas e geracionais. A escola, a rua e a internet se tornaram os principais ambientes de socialização do kuduro, que entrou no cotidiano de imigrantes e descendentes, tendo como referência o país de origem ou mesmo uma África imaginada pela relação de solidariedade entre imigrantes originários dos diferentes Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).

O que proponho analisar neste artigo são questões de produção, consumo cultural e estilos de vida, estando principalmente atento aos sentidos de identificação e diferença que se manifestam através do kuduro na Área Metropolitana de Lisboa. É interessante verificar entre a juventude que produz e ouve kuduro se há ou não configuração de um estilo de vida específico, e até que ponto ocorre uma correlação entre sentimentos coletivos de afetos, de pertencimentos e de solidariedades através de tal expressão. Em que critérios tais sentidos se fundariam e quais os argumentos de apelo a identificação e diferença que existiriam no contexto do kuduro?

Mais especificamente, a manifestação do kuduro nos permite pensar sobre questões relacionadas à imigração originária dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e suas implicações, articulando-as com a questão dos jovens imigrantes, dos jovens afro-descendentes e de modo mais amplo da juventude em geral que vive na periferia de Lisboa. Suas formas de expressão estão imbricadas em condicionantes contemporâneos relativos à percepção sobre inclusão e exclusão, no contexto das novas configurações sociais e políticas do cenário pós-colonial, em que os significados de identificação e diferença são, muitas vezes, acionados e re-contextualizados.

Certas questões relacionadas com a imigração, como a questão da residência e as do acesso aos postos de trabalho, às escolas, aos espaços de lazer e ao consumo, dizem respeito especialmente às populações jovens. Por juventude entendo a construção social com a qual se nomeiam grupos pelo critério etário ou fase da vida associada a um período intermediário entre as fases concebidas como infância e vida adulta num dado contexto sócio-político, neste caso atravessado pela questão da imigração[1]. Neste enquadramento social, se vivenciam experiências locais e globais muito distintas daquelas que se proporcionavam às gerações anteriores, que influenciam as tomadas de decisões e as afeições e repulsas ideológicas, os modos de ser, de entender o mundo, os afetos, os gostos e os consumos.

Nesta análise, a música e a dança são tomadas como significantes dos estilos juvenis, seguindo as perspectivas das pesquisas do Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS). Levo em consideração a crítica ao determinismo do enfoque dado por aqueles estudos à ideia de resistência cultural como contra-hegemônica e procuro analisar como a música, a dança e o que mais lhes possa estar associado ganham sentidos nos percursos das relações sociais que demarcam os sinais diacríticos das diferenças étnicas, de geração, de gênero, de classe, entre outros. Tais percursos não são necessariamente de resistência, mas das possibilidades das artes da existência (Ferreira, 2012): mesmo sem qualquer tipo de programa social que enfatize a inversão de posições e valores, apresentam-se como produtores da diferença na vida cotidiana. A noção de estilo, nesta acepção, auxilia na análise da relação entre juventude, gosto e modos de vida sem condicioná-la a qualquer substancialismo[2].

Imigrantes africanos em Portugal

No ano de 2003, os dados oficiais sobre a imigração para Portugal apontavam para aproximadamente 200.000 pessoas oriundas de outros países membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)[3], enquanto os próprios órgãos oficiais suspeitavam haver mais ou menos o mesmo número de imigrantes ilegais procedentes da mesma área[4]. Analisando a relação entre o contexto de formação da CPLP, o contexto pós-colonial e a imigração, Bela Feldman-Bianco (2002) sugere a necessidade de reflexões atentas sobre a relação entre o cenário internacional, as reconfigurações dos contextos sociais e econômicos, e as políticas de imigração.

Num estudo sobre imigração e população africana em Portugal, Machado (1994) contextualiza historicamente as levas de imigração para o país. Os cabo-verdianos foram os primeiros imigrantes a chegar, nos anos sessenta, e conti-nuam sendo um dos maiores grupos de imigrantes, seguidos de angolanos, moçambicanos, guineenses e são-tomenses. Ainda de acordo com Machado, o rap, no início dos anos noventa, foi uma forma de expressão/manifestação dos jovens que ele denomina de “luso-africanos” ou de “segunda geração” dos imigrantes que vieram dos PALOP, entre os quais se reproduziram as condições sociais de periferização econômica, territorial e social que seus pais (imigrantes de fato) vivenciaram.

Machado concluía que os pais imigrantes articulavam na sua mobilização política e social os referentes simbólicos de origem, e que a etnicização dos jovens de segunda geração se constituía pela reprodução das condições sociais de seus pais, mas também se manifestava de outras formas, como por exemplo através do rap, como ato de protesto e como forma de identificação geracional (Machado, 1994, p. 128). Passadas quase duas décadas desde o estudo de Machado, outras dinâmicas se estabeleceram e outras investigações as acompanharam.

Depois dos anos noventa, novos imigrantes dos quatro cantos do mundo chegaram a Portugal e durante a última década foram produzidos muitos estudos sobre o tema. Para os fins desta análise, interessa aqui a imigração originária dos PALOP, sempre muito significativa. Machado e Azevedo (2009) e outros vêm realizando pesquisas qualitativas e principalmente quantitativas, atentas às relações entre imigração e escolarização (Seabra & Mateus, 2010), emprego e geração (Machado, 2008). Destes estudos, vale destacar que uma das conclusões reiteradas recentemente é a de que as variáveis de classe e de escolarização, entre outras, podem ser entendidas como transversalmente tão importantes (quando não determinantes) para a análise de processos de hierarquização e diferenciação social, quanto a questão étnica, que envolveria um enfoque maior numa análise sobre tensões culturais. Não indo contra estas conclusões, gostaria de reforçar aqui a importância do uso dos denominadores de distinção social, neste caso da etnicidade (Barth, 1998), como marcadores de diferenças, de disputas e de hierarquias que podem ser mais idealizadas do que visíveis através de números e apontamentos quantitativos.

Nos estudos de Neusa Gusmão (2004), realizados em fins dos anos noventa e nos primeiros anos do século atual, numa perspectiva mais qualitativa, a autora indicou algumas nuanças interessantes sobre estes marcadores de diferença. Uma categoria utilizada correntemente pelos portugueses para definirem os imigrantes dos PALOP é “africanos”. Além desta, também as noções de “imigrantes” e de “imigrantes de segunda geração” acionam diretamente a ideia de um “outro”, “não nacional”, marcado como sendo “de fora”. No caso específico dos imigrantes oriundos de países africanos e dos seus descendentes, “o outro” passou a ser reconhecido principalmente pelo fenótipo. Isto significa certa hierarquia na classificação da alteridade. Ocorre aí uma generalização sobre o negro ou africano, como se fosse um “outro” mais distante, sempre carregando um estigma de alteridade. Mesmo quando os seus filhos são nascidos em Portugal, eles não são considerados socialmente e de forma inclusiva como portugueses ou nacionais, pois são sempre considerados imigrantes e africanos. A legislação que corrobora esta percepção concede a nacionalidade aos filhos de imigrantes nascidos em Portugal só em casos de um longo período de anos após a confirmação da presença legalizada dos mesmos no país.

Tanto em termos sociais quanto em termos normativos, a cor da pele parece que chega antes como significante de alteridade. Como argumenta Gusmão (2004), são vários os exemplos de narrativas de vida de sujeitos que dizem terem chegado a Portugal e se terem descoberto primeiro como “imigrantes” e depois como “africanos”, constituindo estes referentes uma particularidade compartilhada que acaba por diluir os sensos de referência às origens nacionais. A autora cita também descendentes destes imigrantes que dizem se sentirem mais “africanos” que “portugueses” (Gusmão, 2004, p. 56). O senso de diferença se dá pela oposição genérica do que significa ser português em relação ao que significa ser africano.

Diante de tais considerações, gostaria de sintetizar uma constatação sobre dois paradoxos em tal processo: a) alguns imigrantes dos PALOP têm nacionalidade portuguesa, embora continuem reconhecidos socialmente como imigrantes e africanos, principalmente pela aparência; b) alguns filhos de imigrantes nascem em Portugal, mas não têm a nacionalidade portuguesa, porque isto depende diretamente da situação dos pais. Todos são percebidos socialmente como “imigrantes” e particularmente como “africanos”.

Na acepção cotidiana (com a exceção dos portugueses que vieram das antigas colônias de Portugal na África durante os processos das independências nacionais, que são denominados “retornados”[5]), os imigrantes oriundos dos PALOP se tornaram primeiramente “africanos” e também genericamente “negros” ou “pretos”, palavras que também são sinônimos de estigmatização. “Africano” passa a ser uma categoria comum para se denominar toda e qualquer pessoa originária de um país da África Subsaariana (Gusmão, 2004, p. 111), sendo que as noções de “negro” ou “preto” agregam uma ideia de raça ou cor a este critério, que tem origem na lógica do poder colonial e nos sentidos sociais que sustentavam seus modelos de hierarquia[6]. Assim sendo, atribui-se uma representação social de estrangeiros àqueles que são denominados “africanos”, “negros” ou “pretos”, mesmo que eles tenham naturalidade ou nacionalidade portuguesa. Na prática, esta diferença implica também uma percepção social sobre uma cidadania menor ou de segunda classe.

É importante destacar as relações conceituais entre a legislação portuguesa sobre cidadania e naturalização e a legislação voltada para imigração, nos dias atuais[7]. Para Carvalho (2009), principalmente quando se trata da presença de imigrantes originários dos PALOP, também se está entrando num debate sobre o entendimento da noção de naturalização, cuja cronologia importa elencar[8]. 1) A legislação sobre cidadania portuguesa ou nacionalidade, desde a constituição de 1959 até 1975, definia como cidadão português toda a pessoa nascida nos territórios ultramarinos e da metrópole, segundo o princípio de jus solis. A partir da descolonização, ocorreram mudanças que foram transformando o princípio para jus sanguinis, só se reconhecendo a cidadania aos nascidos em solo português ou aos nascidos nos antigos territórios coloniais que fossem descendentes de portugueses (Carvalho, 2009, p. 37). 2) A legislação portuguesa do mesmo período reconhecia aos imigrantes legais os mesmos direitos sociais que aos naturais. 3) A agenda do Estado português a respeito da imigração nas últimas décadas passou a depender de um novo contexto político e econômico, o ingresso do país na União Europeia, ao mesmo tempo que a imigração cresceu e o país passou a ser um receptor significativo de imigrantes legais e ilegais. 4) As políticas de imigração do Estado passaram a priorizar análises e engenharias preocupadas com o fluxo laboral (o que concentra a imigração em categorias sociais como jovens, homens e mão de obra desqualificada). 5) No decurso da última década houve por parte dos governos portugueses uma priorização da imigração proveniente dos PALOP e do Brasil, argumentando-se que tal política é consistente com as afinidades culturais e os interesses econômicos estratégicos com tais países. Facilitou-se a regularização de imigrantes ilegais e o reagrupamento familiar de imigrantes já residentes no país havia anos ou décadas. 6) Carvalho (2009) lembra ainda que a questão da imigração nos países membros da União Européia é uma questão que não pode mais ser pensada individualmente desde o Tratado de Schengen, que universalizou alguns entendimentos e algumas políticas a este respeito, influenciando e obrigando os Estados-membros signatários a algumas reorientações e mudanças em suas políticas de recepção temporária ou permanente de estrangeiros[9].

Desde a década de setenta, os PALOP e o Brasil, juntos, foram os países com maior número de imigrantes em Portugal, com exceção de fins dos anos noventa, quando a imigração ucraniana teve um forte impacto nos índices gerais da imigração no país[10]. Preocupados com a regulação dos fluxos migratórios, principalmente sobre o impacto do emprego versus mão de obra, recentemente algumas medidas foram adotadas pelo governo português para regular a relação imigração/emigração, mas segue-se cumprindo a diretriz ideológica da recepção preferencial e do estímulo de imigrantes oriundos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Trata-se em geral de uma imigração de população extremamente jovem, embora no caso africano seja também formada por famílias jovens e mais numerosas que as portuguesas. Quando estas não chegam com tal característica, com o tempo acabam por se constituírem desta forma, passando as crianças e os jovens imigrantes ou descendentes a ter presença significativa nas escolas e em outros espaços sociais coletivos.

Para as sociedades que os recebem, imigrantes são imigrantes, geralmente sujeitos às mesmas leis, embora as relações bilaterais ou multilaterais entre alguns países criem artifícios de facilitação e estímulo específicos. No caso dos imigrantes oriundos dos PALOP, há diferenças em relação aos africanos provenientes de outros países, e no caso dos países da CPLP há condições específicas para imigrantes do Brasil e dos PALOP. Outro aspecto recai sobre o modo como estes imigrantes são absorvidos socialmente, como passam a ser estabelecidas as relações entre os considerados portugueses e os “de fora”. Os postos de trabalho que passam a ocupar, as escolas que frequentam, os bairros onde residem, os modos de viver, de vestir, de falar e de pensar, podem ser considerados elementos caracterizadores da diferença.

Bauman (1999) faz aproximações interessantes entre a noção de diferença e a ideia de “estranho”, para dizer que este diferente não é necessariamente o outro da oposição, mas sim da ordem do desconhecido e do indeterminável, no sentido de que não se consegue classificá-lo definitivamente, pelo menos com os critérios conhecidos pela sociedade que o recebe. Do incômodo com a indeterminação e da ânsia pela classificação, surge uma necessidade de determinação que pode gerar inúmeras possibilidades de estigmatização, no sentido que Goffmann (1975) dá à noção, relacionando-a ao estranho em oposição ou desvio à normalidade idealizada. Meu argumento é que nem todos os imigrantes são considerados “desviantes” da mesma forma pelos diferentes governos[11] e sociedades. De qualquer modo, certos estigmas são relacionalmente constituídos, tanto pelas relações dos imigrantes com os nacionais, quanto nos modos pelos quais os governos regulamentam e normalizam suas políticas sociais e constroem representações tipificadas sobre a nação.

Estilos de vida entre as juventudes africanas em Lisboa

Vários estudos sobre formas de expressão características dos contextos juvenis e periféricos em Portugal foram elaborados na última década por Contador (2001), Fradique (2003), Pais (2003), Gusmão (2004) e Rosales et al. (2009), entre outros recentemente publicados pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural[12]. Estes estudos analisam a presença pública da juventude e suas expressividades, o consumo e o domínio das novas tecnologias por parte dos jovens, a presença e a relação deles com a escola, o seu envolvimento na criminalidade, a construção social dos jovens como representação pública do Estado e da sociedade, além das práticas juvenis de informalidade, de convívio e de solidariedade.

Alguns dos primeiros estudos sobre os jovens africanos em Portugal relacionavam o rap ao cotidiano dos imigrantes e suas formas de expressão social (Machado, 1994; Contador, 2001; Fradique, 2003; entre outros). Em relação ao kuduro, apesar de ser um estilo de dança e música presente no país desde fins dos anos noventa, muito pouco se escreveu, como também ainda pouco se disse sobre outros estilos de vida associados à música, à juventude e aos imigrantes que fazem do “gosto” um significante de diferença cultural ou de distinção social[13].

A dissertação de mestrado em Antropologia de Maria Manuel da Costa Bringel (1998), com o título Kuduro, flamengo e rap: Identidades culturais salientes num contexto escolar urbano, é o primeiro trabalho de pesquisa que envolveu algum tipo de abordagem sobre o kuduro. Escrita em 1998, esta dissertação nos dá uma pista de que o estilo já estava presente nas escolas das freguesias do município de Amadora, na região metropolitana de Lisboa, em meados dos anos noventa. O trabalho trata do tema imigração-escola, utilizando-se da noção de fronteiras étnicas de Fredrik Barth (1998) e sua relação com o consumo cultural para estudar as relações entre o uso de indumentárias, gostos e estilos musicais, bem como a expressão de identidades étnicas em sala de aula, a partir da relação entre diferentes influências culturais associadas à imigração nos contextos escolares de Lisboa.

Além da pesquisa de Bringel (1998), pelo menos mais dois estudos recentes fazem alguma referência ao kuduro. Um deles é a dissertação de mestrado em Migrações, Inter-Etnicidade e Transnacionalismo de Olivier Guiot, de 2009, com o título Os processos de negociações identitárias nas culturas expressivas juvenis. O caso do kuduro na Área Metropolitana de Lisboa, na qual o autor propõe analisar de que modo a manifestação do kuduro está presente nas manifestações identitárias dos jovens em Lisboa, tomando como estudo o caso do grupo Buraka Som Sistema em contraste com o caso de um grupo de dançarinos denominado Mil Mambos. Guiot[14] propôs analisar as aproximações, diferenças e consequências sociais do estilo entre um grupo amplamente conhecido na mídia e outro sem a marca do sucesso e da difusão em larga escala.

Um outro estudo recente é a pesquisa de Marta Rosales et al. (2009) para o Observatório da Imigração, denominada Crescer fora de água? Expressividades, posicionamentos e negociações identitárias de jovens de origem africana na região metropolitana de Lisboa, na qual são escolhidas duas regiões periféricas para estudar as expressividades dos jovens de origem africana. Dentre tais expressividades, o kuduro aparece como sendo um dos elementos mais significativos entre os “jovens de origem africana” (Ibid.), quando encontrado nas práticas cotidianas e nas escolas dos municípios de Amadora, de Loures e de Odivelas. Todas as escolas mencionadas na referida pesquisa estão localizadas no entorno de Lisboa.

A experiência com a literatura apontada acima e a aproximação que fiz junto aos municípios da Área Metropolitana de Lisboa, durante o ano de 2010, através de observação direta e de outras estratégias de pesquisa associadas ao uso de redes sociais na internet, possibilitou a constatação de que é nas áreas de residência dos imigrantes africanos e seus descendentes que encontramos a presença de jovens envolvidos com várias expressões musicais e muito ativamente com o kuduro. Entre os locais onde realizei observação direta e nos quais encontrei uma presença significativa do kuduro, destaco o bairro Fetais (freguesia de Camarate, município de Loures), o bairro Terraços da Ponte (freguesia de Sacavém, município de Loures), o bairro Fundo Fomento (freguesia Vale da Amoreira, município da Moita), o bairro Arroja (município de Odivelas) e vários bairros das diferentes freguesias do município da Amadora, localizadas no percurso da denominada Linha de Sintra[15].

Alguns dos primeiros contatos que realizei com os jovens que vivem nestes bairros foram mediados por associação de imigrantes, associações comunitárias ou associações de bairro. Tais associações agregam informações importantes sobre as atividades culturais dos jovens em suas localidades, tornando-se, inclusive, um contato importante para que os grupos de dança e de música do bairro se apresentem em festas e outros eventos culturais em diferentes bairros e municípios. A partir do contato com os jovens ligados às associações, fui conhecendo outros[16]. Estes jovens vivem em bairros diferentes, mas, muitas vezes, se conhecem e têm informações e relações uns com os outros que são marcadas pelo gosto musical, mesmo com aqueles que vivem mais distantes de suas localidades de moradia. As redes de contato entre eles são estabelecidas por amizade, por parentesco, por encontros fortuitos ou por outros elos sociais que revelam diferentes sentimentos de afinidade.

Para além dos círculos familiares, os encontros entre os jovens ligados ao kuduro acontecem nas escolas ou em lugares de entretenimento e lazer, como centros comerciais, bares, discotecas ou festas, bem como através dos meios de comunicação eletrônicos, principalmente através das redes sociais[17], dos blogs e dos sites de compartilhamento de vídeos e músicas.

Alguns destes jovens nasceram em África, outros são filhos de imigrantes africanos. Em casa, na escola, nas festas e na rua, diferentes estilos de música estão presentes no cotidiano, seja pelo seu próprio repertório de experiências ou pelo repertório de seus pais, ou ainda através de amigos e parentes que vão chegando a Portugal como novos imigrantes. De qualquer modo, a experiência de ouvir estilos de música como a coladeira, o funaná, o kuduro, a quizomba ou o semba, entre outros, é uma experiência comum que remete ao repertório musical que é reproduzido nos espaços sociais de presença e vivência da imigração africana. A partir de tal repertório, estes jovens se socializam e mantêm um senso de experiências coletivas próprias, que recria à sua maneira os sons, a linguagem oral e corporal dos países de origem, às vezes tornando as referências simbólicas de um país em específico, como Angola ou Cabo Verde, nos significantes de toda uma experiência de imigração africana. Outras vezes, como sugere Paul Gilroy (2001), tais referências podem surgir da conexão com outras paragens da diáspora africana, como no caso da apropriação do rap em Portugal[18].

Entre os jovens que se consideram dançarinos, músicos ou produtores de kuduro com os quais tive contato mais direto, alguns deles são nascidos em Portugal, outros vieram para o país ainda crianças, embora em nossos diálogos eles tenham se definido pelo país de origem (o seu ou o dos pais). Quando questionados de onde são, eles dizem ser angolanos, cabo-verdianos, guineenses ou são-tomenses, retomando um senso de trajetória familiar marcada pela ideia de particularidade do país de origem, o que faz parte da construção de um senso relacional de diferença que os imigrantes africanos também podem estabelecer circunstancialmente entre si.

Os jovens que entrevistei se reconhecem como tal e estão numa faixa etária que vai dos 16 aos 24 anos. Dizem que se envolveram com o kuduro muito cedo, ainda na escola, trazendo músicas gravadas nos celulares ou noutros suportes eletrônicos. Através do domínio destes suportes, eles compartilham a música com outros colegas ou fazem apresentações de passos de danças, que aprendem com familiares e amigos ou mesmo através dos vídeos que acessam na internet, postados em Angola, principalmente, em busca de alguma originalidade sobre o que está sendo feito de mais atual no país que é considerado como o local de surgimento do kuduro. Nos anos noventa, antes desta conhecida profusão de suportes eletrônicos individuais e móveis, o kuduro chegava por fitas em cassete, de áudio e vídeo, e era ouvido e reproduzido, atingindo também as escolas, mesmo que numa dinâmica temporal menos veloz que nos dias de hoje.

Vários dos que têm grupos de kuduro ou atuam sozinhos como DJs e dançarinos, começaram ainda crianças, dançando na rua e na escola, passando a se apresentar em eventos culturais na Área Metropolitana de Lisboa. A base da dança kuduro são as formas de balanço do quadril associadas a uma variedade de passos e acrobacias que procuram acompanhar a batida forte e veloz da música. Em alguns casos, o kuduro é composto de passos solos, em outros, os passos são coordenados em conjunto por um dado grupo. Durante a dança, observam-se alguns aspectos lúdicos nas expressões corporais, tais como caretas e formas de movimento corporal que testam ou brincam com os limites do corpo, através de coreografias inusitadas[19]. Estas expressões estão ainda recheadas de sensualidade e sarcasmo, o que sempre atrai muitos curiosos, mesmo os alheios ao kuduro, quando se trata de exibições públicas em diferentes eventos para os quais alguns jovens são contatados e nos quais se apresentam.

Se nos anos noventa o kuduro que era visto, ouvido e dançado vinha de Angola, na última década alguns grupos de kuduro começaram também a compor e a produzir música, como é o caso, entre outros, dos grupos BF, K.55, Nova Geração, N’Gapa, Putos da Pesada e Staff da Kebrada[20]. Com o acesso facilitado à compra de computadores pessoais e à aquisição de programas de edição e produção de áudio e vídeo, vários destes jovens passaram a experimentar outras formas de envolvimento com o kuduro. As músicas produzidas por eles passaram a circular eletronicamente através das suas redes sociais de contato face a face, como a família, a vizinhança, a escola, os amigos do trabalho e das festas, ou através das redes de amizade e contatos virtuais através das comunidades em que participam na internet. Os espaços de difusão coletiva das suas produções musicais são os mesmos da dança, pois muitos passaram a agregar o valor da novidade de atuarem como músicos aos grupos de dançarinos nos quais já participavam.

Outro contexto em que os jovens envolvidos com o kuduro ganharam expressão pública foi na atuação como DJs em festas e discotecas, ou como produtores musicais, quando gradualmente passaram a dominar as tecnologias de criação e produção de música eletrônica. No que diz respeito à atividade dos DJs, eles passaram a atuar comandando a música das festas arranjadas por grêmios escolares e grupos de amigos[21], sendo alguns deles chamados para animar discotecas famosas, reconhecidas e difundidas como ambientes de música africana, em Lisboa, abrindo novas possibilidades de acesso ao trabalho ou de complementar outras ocupações, sem abrir mão do lazer.

Espaços de expressão

Muitos jovens envolvem-se com a cena do kuduro simplesmente como ouvintes ou em busca de entretenimento ocasional no encontro com amigos e em festas, mas outros acabam por se envolver mais efetivamente investindo boa parte de seu tempo livre na criação de coreografias de danças, na composição ou na produção de música. De qualquer modo, o que se constata é que em espaços de residência e socialização das juventudes africanas em Lisboa, como nas localidades de Terraços da Ponte (Sacavém), Fundo Fomento (Vale da Amoreira), Massamá (Amadora), Fetais (Loures) e Arroja (Odivelas), o lazer destes jovens está associado ao envolvimento com estilos musicais específicos e com alguma associação às experiências familiares vividas nos países de origem.

Nos encontros em que tive a oportunidade de estar com alguns deles, enfatizavam formas de falar, ressaltando os sotaques dos países africanos de procedência. Algumas palavras do calão angolano ou cabo-verdiano são usais e marcam um lugar de afirmação africana pela linguagem, já que nos usos cotidianos elas se misturam. Há um vocabulário, uma gestualidade e um modo de ser particular que são cada vez mais expressivos. Vivenciá-los na cena do kuduro traz prestígio local entre os amigos da escola e do bairro, acesso a ambientes e a recursos culturais e sociais muitas vezes restritos, como a entrada gratuita em ambientes festivos, a possibilidade de circularem pelo centro de Lisboa e por outros bairros, bem como o acesso a lanches e transportes gratuitos em dias de apresentação e à oportunidade de obter algum rendimento através das atuações. Ao mesmo tempo, o envolvimento na performance do kuduro amplia as possibilidades de diversão e entretenimento, e mobiliza estratégias que demarcam uma forma de existência diferenciada, que pode ser caracterizada pela exibição pública de alguns elementos estilísticos e de alguns elementos de aprendizados compartilhados entre familiares, amigos, vizinhos e colegas de escola. A adesão ao estilo, ou ao modo de expressar-se através dele, não é entendida aqui como única ou como permanente entre tais jovens, a ponto de exigir um elevado grau de compromisso ou vínculo associativo entre os participantes, mas é entendida como possível, a partir de aprendizagens, de afetividades e de afinidades compartilhadas, mesmo que temporária ou circunstancialmente, como escreve também Ferreira (2008) acerca de outros estilos de vida juvenis[22].

O kuduro envolve o perfil etário mais novo dos jovens imigrantes[23], em fase de escolarização básica, moradores de bairros da periferia, com baixo poder aquisitivo, mas atuando no impulso ao consumo e ao acesso a informação associada ao estilo musical com o qual estão envolvidos. Parte dos que entrevistei está estudando em alguma escola secundária ou concluindo algum curso técnico, mas a maioria já não estuda e trabalha em serviços temporários ou está desempregada[24]. Alguns desistiram da escola antes de concluírem o ensino secundário. Independentemente de suas atividades escolares ou de trabalho, uma boa parte do tempo livre destes jovens pode ser considerada como de envolvimento com a música e com o lazer.

Os que se consideram artistas na cena do kuduro usam cortes de cabelo exóticos, roupas e sapatos coloridos, além de adereços como brincos, correntes no pescoço e pulseiras. A inovação parece ser uma marca do modo de apresentação dos dançarinos e músicos, aparente tanto no que usam quanto nos movimentos, nos gestos ou nas formas de falar. Através da expressão corporal, da música e da linguagem, principalmente nos espaços sociais de lazer, outras formas de cidadania juvenil são praticadas e reinventadas “nos seus sentidos, objetivos e modalidades de ação” (Ferreira, 2008, p. 306).

Em casa ou na casa de amigos, compõem as músicas e treinam os passos de dança. Na escola e nos encontros nas ruas dos bairros onde residem pode acontecer uma apresentação em grupo, ensaiada ou em estilo livre. Nas festas e discotecas, as formas de apresentação podem fazer parte da animação contratada pelos promotores do evento ou ser espontâneas, quando os demais frequentadores abrem espaço em forma de roda para os dançarinos de kuduro se exibirem e ficam admirando suas habilidades.

As discotecas e outras festas ocasionais com música eletrônica são os espaços públicos de maior visibilidade do estilo kuduro, principalmente as discotecas ou festas denominadas de “africanas”, espalhadas tanto pelas áreas centrais do município de Lisboa, quanto nos municípios do entorno[25]. Nestes ambientes, mais de uma vez por semana se reúnem produtores, músicos, dançarinos e demais pessoas que se envolvem com o estilo. Em tais “noites africanas”, além do kuduro, os DJs passam vários outros estilos musicais considerados “afro”, como por exemplo o funaná, a quizomba, o semba e a tarraxinha. De qualquer modo, há sempre um espaço significativo para o kuduro, que atrai geralmente jovens com menos de 25 anos de idade, solteiros, sem namoradas ou namorados, que estão quase sempre entre grupos de amigos do mesmo sexo.

Se as chamadas “noites africanas” podem ser entendidas, neste caso, como um significante etnicizado que agrega em torno de tal referência um gosto mais ou menos compartilhado pelos mesmos ritmos musicais e pelo mesmo tipo de ambiente festivo, o kuduro carrega também, pelo menos em parte, esta referência no que diz respeito ao gosto compartilhado pelo grupo etário mais jovem entre os frequentadores daqueles ambientes, que geralmente são solteiros e vivem com os pais.

As discotecas são também espaços de interlocução, de novas amizades, de paqueras, de encontros e descobertas sobre amigos e familiares, e de intercâmbio de informações sobre novos grupos de kuduro, novos dançarinos e novos DJs. Nas discotecas se conectam moradores que vêm de todos os bairros do entorno da cidade, dominam os códigos em jogo e fortalecem os sentidos de apelo efusivo a um estilo de música que se torna um gosto compartilhado entre os jovens que circulam por estes espaços e que vão, aos poucos, se reconhecendo também como “africanos”, que frequentam “espaços africanos” e que ouvem e dançam “música africana” em Lisboa. Isto não muda o aspecto parcial, inacabado, ambivalente e temporário desta condição de afinidades e identificações associadas aos gostos comuns e aos estilos de vida que estes jovens levam e aos lugares que em uma situação ou outra das suas vidas frequentam.

Produção, circulação e contradições

Utilizando o kuduro como um diferencial rítmico para um projeto de música eletrônica comercialmente mais amplo que o das sociabilidades “africanas” em Lisboa, o grupo Buraka Som Sistema se estabeleceu muito para além dos bairros de imigrantes e da cena das discotecas ligadas à música africana. A música eletrônica inspirada no kuduro constitui um diferencial experimental do grupo e uma estratégia que lhe abriu as portas de outros espaços de atuação e de público no cenário internacional da Europa e dos Estados Unidos da América[26].

A relação entre a banda BSS e o kuduro consumido e produzido nos bairros de Lisboa é que as trajetórias musicais e sociais dos membros fundadores dos BSS são semelhantes às dos jovens imigrantes africanos dos bairros que tenho tratado até agora. Embora exista uma distância[27] entre o que é o kuduro em Lisboa e o sucesso em que se tornou o grupo BSS para os portugueses, todos os jovens dos grupos com os quais convivi na periferia de Lisboa foram unânimes em referir os BSS como representantes da música produzida por jovens africanos em Portugal. Estes jovens afirmam que com o surgimento desta banda houve uma espécie de reconhecimento social da presença desta juventude no país, embora se mostrem reticentes em concordar que o estilo que o grupo faz é kuduro. A maior parte deles afirmou que os Buraka fazem o estilo house, com alguma influência do kuduro e de outros estilos de música eletrônica. Talvez por isto seja interessante entender os BSS como uma expressão à parte, embora significativa para percebermos as facetas da absorção da ideia de uma influência africana como produto cultural português. O grupo se tornou um fenômeno de vendas, está presente em várias campanhas publicitárias dirigidas aos jovens na mídia portuguesa e é associado a um cosmopolitismo pós-colonial da lusofonia[28], com seus sentidos imaginativos de harmonia racial, cultural e linguística.

O paradoxo é que o kuduro esteve e está presente de forma expressiva nos bairros de Lisboa, como uma forma muito própria de envolvimento dos jovens imigrantes tanto em seus espaços de atuação local quanto vinculado às redes de contato pessoal, embora muito pouco conhecido e nada midiatizado. O kuduro se tornou um estilo disputado simbolicamente, neste contexto dos trânsitos globais que envolvem a imigração africana em Portugal e os sentidos que se produzem sobre ela nas esferas políticas e sociais. Para Appadurai (2004), os meios de comunicação e os movimentos migratórios de massa da contemporaneidade apresentam questões antropo-sociológicas que nos fazem pensar na relação das comunicações, das solidariedades, das trocas econômicas, das hierarquias, das produções, dos consumos, das identidades, das tensões com os fenômenos de desterritorialização financeira, étnica, midiática, técnica e ideológica. Neste enquadramento, o consumo contemporâneo da música através de suportes iPod, mp3 e celulares, entre outros, possibilita que a produção, a reprodução e a circulação da música sejam redefinidas por um universo de fluidez de micronarrativas, ao mesmo tempo pessoais e articuladas a uma rede de audiência com experiências sociais mais ou menos compartilhadas[29], ao mesmo tempo que se reconfiguram as macronarrativas sobre identidades e sobre a nação, por exemplo.

Se o kuduro primeiro foi consumido, para depois ser produzido pelos jovens imigrantes, interessa aqui observar as diferenças e as facetas destas formas de consumo e circulação. Primeiro, destaco que a audiência e a produção de tal estilo estão também associadas a outras formas musicais e plásticas de expressões juvenis, como o rap, o hip-hop, o reggae e a kizomba. Segundo, relembro que boa parte do consumo do kuduro também se realiza em festas de amigos e eventos culturais, bem como nas discotecas africanas, onde a música é reproduzida e difundida, ganhando reconhecimento na ampla ideia de “música africana”. Terceiro, sublinho que existe uma circulação local e transnacional, através de canais de rádio (Antena 3 e RDP África) e TV fechada (RTP África, Afro Music e TPA Internacional) com programas específicos nos quais se ouve kuduro e músicas africanas produzidas por artistas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos, guineenses e são-tomenses, com certa hegemonia dos dois primeiros grupos[30]. Este contexto está diretamente articulado com o das discotecas. A especificidade das discotecas é que nelas a audiência é compartilhada, e muitas vezes com certa euforia, agregando aquela experiência um senso de identificação com o gosto coletivo, pelo que se ouve e se vê em grupo. Em quarto lugar, um outro meio de reprodução é a rede informática mundial, através de canais como YouTube, de redes de relacionamento e de compartilhamento de arquivos, e de múltiplas estratégias de difusão e de acesso por email, em que as músicas e vídeos são compartilhados com uma cumplicidade coletiva. Por último, a música circula também de mão em mão por quem produz e reproduz o kuduro, com a exceção do grupo Buraka Som Sistema, cuja música é comercializada em suporte CD por distribuidoras internacionais e se encontra nas estantes das grandes lojas do país[31]. Entre os jovens músicos de kuduro em Portugal quase não se verifica a gravação neste tipo de suporte para cópias comerciais e revenda. Seu suporte são as memórias dos próprios equipamentos eletrônicos nos quais a sua música é reproduzida, o que implica mencionar a marca da efemeridade com que as composições aparecem e desaparecem de circulação, na medida em que são substituídas por outras músicas nos mesmos equipamentos.

Considerações finais

As práticas e relacionamentos com a música são possibilidades para percebermos alguns contornos sobre os ambivalentes processos de identificação entre os jovens (Contador, 2001). A presença da denominada música africana em Portugal remete a uma identificação que passa pelo sentido de referência a um coletivo etnicizado, mesmo que em circunstâncias específicas, e que envolve a família, a vizinhança e os amigos. É como se a música se tornasse uma etno-referência mimética dos significados da diáspora para os imigrantes africanos (Contador, 2001), mas não única e nem mesmo em um único sentido. De tal perspectiva, temos uma relação interessante entre os estudos sobre culturas juvenis, estilo de vida, produção e consumo cultural, associados às múltiplas possibilidades de identificações situacionais e transversais. Encontramos um conjunto de características mais ou menos similares nas práticas e discursos de um determinado conjunto de pessoas, marcado pela faixa etária aproximada, pelo envolvimento com a memória da imigração, pela experiência de distinção social, pelo fenótipo e pelas afinidades no uso de objetos e espaços comuns, nos gostos e nas práticas.

O kuduro é uma possível referência de aproximação entre os jovens africanos em Lisboa, porque implica não só um público com um perfil social semelhante, que pode ser reconhecido pelos espaços que frequenta, pela gestualidade e pela indumentária, mas também porque é um estilo musical e de dança marcado por uma dinâmica de produção, circulação e consumo que se confunde com as suas práticas cotidianas: a família, o encontro com os amigos na rua, a escola e o entretenimento juvenil. Uma forma de ser e estar que caracteriza uma rotina que tem os seus momentos de auge, como as apresentações em festas e escolas, as animações em discotecas e as gravações públicas de vídeos, envolvendo tanto aqueles que são considerados os mais habilidosos e que produzem algo na dança ou na música, se expondo através do estilo, como também aqueles que eventualmente a consomem, incorporando a linguagem oral e corporal da dança e da música ao seu dia a dia.

Este é um estilo musical que surge caracterizado por um novo contexto tecnológico de produção, reprodução e difusão independentes de gravadoras e de distribuidoras, marcado pela circulação nuclear e centrípeta (que irradia de um grupo de amigos para uma rede maior e dali para grupos de amigos que vivem distantes), através dos suportes de arquivo virtual de música, chegando aos diferentes bairros, cidades e países, sem delimitação de fronteiras específicas, sem um mecanismo de controle comercial formal sobre sua circulação e consumo. Em Portugal, mais especificamente na Área Metropolitana de Lisboa, tal estilo tornou-se uma expressão aglutinadora das sociabilidades juvenis entre os imigrantes e descendentes de imigrantes africanos, que passou a atrair em torno da música e da dança uma experiência de identificação coletiva e um senso de alteridade com relação a outros estilos.

Para finalizar, as músicas ou estilos que circulam em Portugal, nas discotecas e nos espaços de residência africanos, podem se tornar signos diacríticos de reafirmação de identidades e diferenças num contexto pós-colonial complexo, o que não significa que eles sejam determinantes, invariáveis e fixos. Pelo contrário, tais experiências e expressões admitem diferentes e distintas formas de envolvimentos, como também de distanciamentos, que podem ser movidos pela ideia de origem nacional, de classe, de geração, de gênero ou por outras formas de gosto ou estilo. De qualquer modo, aí se estabelecem certas contradições com a persistência de discursos governamentais de apelo à lusofonia e seu sentido englobante, sentimental e, quase sempre, ambíguo. O que permite concluir que, mesmo situacionalmente e provisoriamente, através de reiterados contrastes sociais ou formas de expressão cultural, um “outro” se coloca aí insistentemente em evidência a perturbar a estabilidade dos consensos homogeneizadores.

 

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Recebido 1 de junho de 2012; Aceite para publicação 24 de setembro de 2012

 

Notas

[1]    Ver a análise sobre a categoria juventude em Culturas Juvenis (Pais, [1993] 2003), e também a contribuição de Machado (1994 e 2008) sobre a relação juventude e imigração, entre outros trabalhos de investigadores do Instituto de Ciências Sociais (ICS) e do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES), ambos de Lisboa, que produziram larga bibliografia sobre juventudes e suas relações com o tema da imigração.

[2]   Sobre a relação entre a noção de estilo e o que se denominou culturas ou subculturas juvenis ver, por exemplo, Hall & Jefferson (1976) e Hebdige (2004). Sobre a crítica a tal perspectiva, ver Thornton (1996) e Bennet (1999), entre outros. Recentemente, Ferreira (2012) apresentou também uma análise interessante sobre tais estudos, caracterizando as perspectivas dos estudos sobre culturas juvenis. Segundo o autor, nos estudos sobre subcultura o eixo analítico é o poder, nos estudos sobre contracultura o eixo analítico é a ação, e nos estudos sobre “cenas” e “tribos” (ou neo-tribos urbanas) o eixo analítico é a forma. O entendimento que priorizo neste artigo é o que procura dar conta de uma perspectiva transversal entre estes três enfoques: poder, ação e forma. Também levo em consideração os vieses relacionais e situacionais vivenciados pelos jovens de algum modo envolvidos com o kuduro.

[3]  Criada em 1996, a CPLP congrega os seguintes países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Alguns dados e informações políticas sobre a constituição da CPLP são discutidos em Bela Feldman-Bianco (2002).

[4]  Informações obtidas em notícia do jornal Diário de Notícias. Lisboa, 25 de maio de 2003. Estes números não levam em conta os imigrantes de outras partes do mundo, como é o caso do grande contingente de pessoas do Leste europeu. No total, calculava-se em 700 mil o número total de imigrantes vivendo em Portugal naquele ano.

[5]   São considerados “retornados” os portugueses que viviam nas colônias e seus descendentes reconhecidos oficialmente e lá nascidos, que no período da Guerra Colonial ou após as independências migraram para Portugal. Eles são considerados cidadãos portugueses retornados, mesmo que muitos nunca antes tenham vivido em Portugal. Contra eles pesou um estigma social, bem forte na época da sua chegada e muito mais ténue hoje em dia, baseado no fato de não serem naturais da antiga metrópole e trazerem consigo costumes das colônias.

[6]  Sobre o uso de termos e suas variáveis atribuídos aos imigrantes de diversas nacionalidades em Portugal, ver o estudo sobre os usos coloquiais dos estereótipos de nomeação de minorias de Rosário et al. (2011).

[7] A pesquisa para este artigo foi realizada no ano 2010 e possíveis alterações na legislação exigiriam um redimensionamento desta análise.

[8]    A enumeração destes fatores tem como base a investigação de Carvalho (2009) e a maneira com que o mesmo elaborou suas considerações sobre o assunto.

[9]  Portugal é país signatário do Tratado de Schengen desde 1991. Os países signatários concordam com a livre circulação de pessoas entre seus países, o que também implica no livre trânsito de estrangeiros e imigrantes que estejam em um dos Estados-membros da União Européia.

[10]   Para mais informações e análises das nuanças cronológicas, regionais e sociais da imigração em Portugal, ver os vários relatórios anuais sobre imigração do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que podem ser acessados pelo endereço eletrônico: http://www.sef.pt Estão aí disponíveis os relatórios anuais de 2000 até 2010. No último relatório, as “nacionalidades de estrangeiros residentes mais representativas em Portugal são o Brasil (26,81%), Ucrânia (11,12%), Cabo Verde (9,88%), Roménia (8,27%) e Angola (5,28%). A Guiné-Bissau (4,45%), Reino Unido (3,86%), China (3,53%), Moldávia (3,51%) e São Tomé e Príncipe (2,36%) constituem igualmente comunidades de dimensão assinalável a residir em território nacional. Este grupo de dez nacionalidades totaliza 79,78% da população estrangeira com permanência regular em Portugal (362.343 indivíduos)”.

[11]  Governos entendidos aqui tanto como distintos Estados, quanto de distintos mandatos.

[12] Sobre a relação entre juventude e imigração em Portugal, vários trabalhos acadêmicos estão publicados no endereço eletrônico do Alto Comissariado para Imigração e Diálogo Intercultural - ACIDI (http://www.acidi.gov.pt/). Há também várias dissertações de mestrado e teses de doutoramento sobre a temática defendidas nas áreas de antropologia e de sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova e do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

[13]    Lembrando as noções de estilo (Hebdige, 2004) e de distinção social (Bourdieu, 2007) e suas possibilidades de cruzamento (Thornton, 1996).

[14]    Agradeço a Olivier Guiot pelo diálogo e por ter compartilhado comigo o contato do principal informante de sua pesquisa.

[15]  Linha de trem suburbano que faz a ligação entre Lisboa e o município de Sintra.

[16]    Um programa de ocupação de tempo livre, denominado “Programa Escolhas”, implementado pelo governo português através do ACIDI, subsidia projetos vinculados às associações que mantêm contato com os jovens interessados em algum tipo de envolvimento com a dança, a música e outras modalidades de ocupação. O programa auxilia iniciativas para ocupação dos jovens em atividades extra-escolares.

[17]   As mais utilizadas são YouTube, Myspace, Facebook e hi5.

[18]  Neste caso é importante reconhecermos que seja qual for o estilo musical, seu significado é um processo de negociação. Ver, por exemplo, a discussão que faz Stuart Hall (2003) sobre como a música se tornou uma expressão ou meio de manifestação da “cultura negra” ao mesmo tempo que, como ele mesmo afirma (no capítulo “Que negro é esse da cultura negra?”, originalmente publicado em 1992), não se pode essencializar os signos de uma cultura negra.

[19]    Ferreira (2008) tem dado ênfase a esta relação entre os usos e sentidos dados ao corpo e os estilos e culturas juvenis, como marcadores de formas de existência implicadas por certa articulação situacional e circunstancial de afetos e afinidades específicas.

[20] Grupo do bairro do Cacém, na Linha de Sintra, que em 2006 foi incluído na compilação, gravada em CD-ROM, Nove bairros nove sons, da Fundação Calouste Gulbenkian, projeto colaborativo com o “Programa Escolhas” e integrado no ciclo de atividades comemorativas do cinquentenário da Fundação, denominado “O Estado do Mundo”. Quando estive com o grupo, me disseram que não estão mais atuando com a mesma intensidade.

[21] Nas escolas, os grêmios organizam as chamadas “listas escolares” e para atraírem simpatizantes chamam seus amigos com habilidades artísticas para fazer animação. O kuduro se tornou uma modalidade de animação muito presente nestas atividades. Outras atividades de entretenimento que envolvem convites aos músicos e dançarinos de kuduro para animação são as festas organizadas por amigos de escola ou vizinhos, que investem na promoção delas nas associações ou nos espaços comunitários localizados nos bairros acima mencionados ou em bairros vizinhos.

[22] Ferreira (2008) aborda amplamente esta questão das afinidades e dos afetos compartilhados temporariamente. Em tais casos, para o autor, seria impossível identificar uma unidade destes grupos, pela sua extrema fluidez, fraca estabilidade e escasso compromisso entre os envolvidos com um dado estilo. Os vínculos seriam frágeis e transitivos, característicos do que Ferreira, num outro estudo (2012), denomina de microculturas juvenis.

[23] Diante do exposto na primeira secção deste artigo, sempre que me refiro aos imigrantes, me refiro tanto aos jovens que imigraram de fato, quanto aos filhos dos imigrantes, que são socialmente assim considerados.

[24] Vários destes jovens trabalham na entrega de jornais promocionais de redes de supermercados e outros trabalham na construção civil, atividades de muito baixa renda e pouco prestígio social. Apenas um deles, entre os mais de vinte que entrevistei, frequentava naquele momento um curso universitário. Para informações quantitativas e análises sobre escolarização e ocupação dos jovens africanos em Lisboa, ver Machado (2008) e Seabra & Mateus (2010), entre outros.

[25]    Alguns destes espaços são a discoteca Mussulo, a discoteca Kaombo, a discoteca Ondeando, o Bar Kretcheu e o Bar Bons Amigos.

[26] De qualquer modo, vale ressaltar que Kalaf, Konductor e Petty, membros fundadores da banda, têm vivências anteriores em Angola e narram algum tipo de contato com este estilo musical em Luanda ou dizem que o acessavam em Portugal, através de amigos. Kalaf e João parecem ser os idealizadores do projeto BSS, assim como foram os idealizadores da criação da produtora Enchufada, que hoje é a produtora do grupo e de outros grupos de música eletrônica, não apenas de kuduro.

[27]  Ressalto que há uma distância implicada pelo alcance comercial e midiático de um único grupo no estilo, os BSS, em contraponto aos contextos sociais em que vivem os jovens de famílias de imigrantes africanos envolvidos com o kuduro. Num outro momento seria interessante explorar os significados específicos do grupo como referência da música portuguesa contemporânea e as ambiguidades e contradições que isto sugere.

[28]     A noção de lusofonia expressa a ideia de uma comunidade linguística em torno da língua portuguesa, mas também tem sido utilizada para exprimir uma ideia de comunidade de afinidades culturais e históricas, ideia que é propagada ideologicamente pelo Estado português, quando faz referência a tais afinidades entre Portugal e os países que foram suas colônias, como se existisse um modo português de estar em qualquer lugar do mundo.

[29] A velocidade da comunicação e o modo como a informação em tempo real, o diálogo e o debate permitem que vários indivíduos separados territorialmente formem, perpetuem ou reelaborem comunidades imaginadas e de interesses dirigidos por experiências da diáspora (Appadurai, 2004, p. 258).

[30] Em vários dos canais de rádio e tevê mencionados é mais comum a presença de músicos cabo-verdianos e angolanos do que dos outros países africanos. Os estilos musicais provenientes daqueles dois países também são mais comuns entre os imigrantes africanos em Portugal.

[31]   Numa das maiores megastores do país, as divisões de oferta de música fazem-se em alguns casos por seções de “gênero” ou “estilo” e em outros casos por procedência nacional, organizadas cada qual em ordem alfabética por artista. Por exemplo, pelo estilo, encontramos rock, punk, hip-hop, jazz, clássica, dança. Em alguns casos, como para o hip-hop, há uma seção específica para o hip-hop português. Organizada por procedência, encontramos música portuguesa, música brasileira, música dos PALOP, música africana, música búlgara, entre outras. Na seção dos PALOP se encontram vários CDs de diferentes músicos de funaná, quizomba e semba. Num outro espaço, definido como de Música Dance, encontrei três títulos dos Buraka Som Sistema (Enchufada/Sony).

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