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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.23 Lisboa jan./jun. 2012

 

Eugénio Pinto Santana. Moçambicanidades Disputadas. Os Ciclos de Festas da Independência de Moçambique e da Comunidade Moçambicana em Lisboa. Lisboa: Fim de Século. 2011. 148 pp.

 

Alina Esteves (Instituto de Geografia e Ordenamento do Território - Universidade de Lisboa, Portugal)
alinaesteves@campus.ul.pt

 

Iniciando o seu trabalho com a descrição do calendário de festas da independência de Moçambique e da comunidade moçambicana em Portugal, Eugénio Santana dá-nos a conhecer a densidade e complexidade de um tema como o da formação da identidade, contrapondo os eventos festivos que anualmente decorrem em Moçambique, país de origem, e em Portugal, local de destino de alguns moçambicanos. Recorrendo às festas da comunidade e da independência, e aos elementos gastronómicos e musicais a elas associados, o autor conjuga a sua exposição sobre a identidade moçambicana com reflexões de carácter teórico sobre a relevância deste tipo de celebrações, ligadas à presença de comunidades emigradas e à glorificação de regimes políticos, na construção das identidades nacionais. Tal como refere, as festas são "um veículo para investigar acerca da etnicidade" (p. 34), pois constituem recursos de instrumentalização e de exercício de poder simbólico (p. 136).

Num contexto em que algumas teorias sobre identidade e Estado-nação privilegiam o país enquanto unidade de análise e outras favorecem a globalização, Eugénio Santana traz uma nova perspectiva sobre a relevância das comunidades residentes na diáspora para a construção das identidades nacionais, mesmo que muitos dos expatriados se encontrem claramente em colisão ideológica com o governo moçambicano. Ao longo de quase cento e cinquenta páginas, o autor demonstra o papel activo na modelação da moçambicanidade, antes e após a independência, da comunidade emigrada e dos que não sendo formalmente moçambicanos se sentem como tal.

Recorrendo à análise situacional das festas da comunidade e das festas da independência, dois ciclos fundamentais e estruturantes na identificação de identidades dissonantes e onde a afiliação político-partidária é uma variável fundamental, o investigador opta por uma observação intensiva no terreno, com participação tanto activa (como músico ou DJ) como passiva (convidado) em várias festas, complementada por entrevistas informais e semidirectivas a informantes privilegiados naturais de Moçambique e residentes em Portugal. Os entrevistados foram divididos em três grandes grupos etários, tendo sido conferida particular atenção aos indivíduos mais velhos, pois experienciaram as três grandes fases políticas da história recente de Moçambique – o período tardo-colonial até 1974, a Primeira República (da assinatura dos Acordos de Lusaka em 1974 ao Acordo Geral de Paz de 1992) e a Segunda República (desde 1994, ano das primeiras eleições multipartidárias, até à actualidade).

Organizando a matéria da sua investigação em quatro capítulos principais, o livro de Eugénio Santana, resultante da sua dissertação de mestrado, inicia-se com a discussão de quem é e de quem não é moçambicano em Portugal no período pós-colonial. O autor divide os fluxos migratórios de Moçambique para Portugal em quatro períodos principais de modo a posteriormente poder analisar e melhor compreender as identidades construídas na diáspora: o primeiro período antecede a independência e estende-se até à assinatura dos Acordos de Lusaka; o segundo abrange a fase das primeiras nacionalizações a seguir à proclamação da independência em 1975; o terceiro fluxo ocorreu entre 1977 e 1981; o quarto período migratório decorreu entre 1982 e 1992/1994.

O segundo capítulo apresenta-nos o conceito de moçambicanidade como uma construção sociocultural, política e ideológica surgida a partir de 1975, na qual a figura do "Homem Novo" pretendia por um lado romper com o colonialismo português e simultaneamente ultrapassar o "tribalismo", isto é, as divisões étnicas do povo moçambicano que, segundo ideólogos do regime como Samora Machel, impediam a coesão nacional. Como o autor menciona, há uma repressão da etnicidade a favor da Nação em que se recusam as discriminações, pois todos são moçambicanos, mas se nega ao mesmo tempo a diversidade étnica e a heterogeneidade cultural (p. 55). Olhando para a divisão étnico-política de Moçambique, o autor mostra as correlações entre grupo étnico de pertença (Maconde, Ajaua, Macua, Changana, Chope, Ronga, entre outros), região de origem (Sul, Centro ou Norte) e filiação político-partidária (FRELIMO, RENAMO, MDM). Estas associações étnicas-territoriais-políticas revelam-se fundamentais para perceber os conflitos internos da comunidade residente na diáspora e a sua consequente participação nas festas organizadas pela Embaixada de Moçambique (filiação ao governo de Maputo, ao partido FRELIMO e aos grupos étnico-linguísticos do Sul) ou pela Casa de Moçambique (frequentemente em oposição aos anteriores). Como Eugénio Santana argumenta, estas iniciativas projectam "sobre a população de origem moçambicana em Portugal uma visão de comunidade e atributos de moçambicanidade diversos, em função dos seus próprios interesses, ideologias e leituras do processo histórico" (p. 137).

No terceiro capítulo podemos encontrar uma caracterização detalhada das celebrações do ciclo da independência nos contextos moçambicano e migratório português, nas quais o mito de construção do país é alimentado pelo poder político. São-nos explicados os significados e os objectivos de cada festa, assim como a apropriação por parte do poder político vigente destas manifestações e as suas mudanças de discurso de acordo com a posição de Moçambique no contexto internacional.

Em contraponto a este ciclo de festas, Eugénio Santana apresenta no quarto e último capítulo as festas da comunidade moçambicana em Portugal, organizadas na maior parte dos anos pela Casa de Moçambique, mas em algumas ocasiões também pela RENAMO ou pela ANERM (Associação dos Naturais e Ex-Residentes de Moçambique), e cujas origens radicam no período pré-independência. A apropriação das festas pelos retornados e depois pela RENAMO, partido da oposição em Moçambique, constituiu uma forma de construir uma moçambicanidade alternativa lutando contra o regime através de acções identitárias (p. 120). A festa que se tornou "alternativa", segundo as palavras do autor, pretende, na opinião de um dos entrevistados, ser um espaço de convívio sem valorizar uma região, cultura ou partido político. Contudo, e como o autor faz notar, apesar desta intenção, as regiões de origem dos organizadores (Norte e Centro de Moçambique) mostram uma posição de resistência à hegemonia sulista. A ausência de identificação com os principais partidos políticos moçambicanos, e com os seus protagonistas e ideais, tem levado alguns cidadãos, tanto em Moçambique como em Portugal, a optarem por uma terceira via em que os heróis são os milhões de moçambicanos que sobreviveram ao colonialismo, ao regime marxista e à guerra civil e que enfrentam a corrupção, simbolizados pelo carapau e pelo repolho, dois alimentos básicos da dieta do povo moçambicano.

No ponto conclusivo, o autor resume as principais ideias sustentadas pela sua investigação ao longo do trabalho, realçando que as festas são cerimónias de múltiplas dimensões e podem funcionar como momentos de exaltação, reivindicação ou instrumentalização identitária (p. 140). As redes sociais revelam-se essenciais para a integração dos imigrantes, mas a análise das sociabilidades no seu interior revela também quão heterogénea e conflituosa pode ser uma comunidade.

Moçambicanidades Disputadas é um trabalho antropológico rico e detalhado, no qual as vivências de infância e juventude do antropólogo, no seu país natal – Moçambique – e como músico e DJ em Portugal, enriquecem os argumentos acerca da formação da identidade social dos moçambicanos nas suas múltiplas facetas e em territórios diferentes.

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