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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.22 Lisboa jul./dez. 2011

 

Harry G. West. Kupilikula. O poder e o invisível em Mueda, Moçambique. (M. Rocha, Trad.). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. 2009. 436 pp.

 

Inês Neto Galvão (Instituto de Ciências Sociais - Universidade de Lisboa)
ines.galvao@ics.ul.pt

 

Próximo de um método de estudo de caso centrado em situações sociais, como proposto por Gluckman na primeira metade do século XX, Harry West recusa fechar um povo ou grupo étnico como unidade de análise. Toma como eixo empírico o "mundo social" do planalto de Mueda e ancora a sua narrativa num sólido exercício de antropologia histórica. Além de reconhecer o contributo fundamental dos seus principais colaboradores – Marcos Agostinho Mandumbwe, Eusébio Tissa Kairo e Felista Elias Mkaima –, o autor inicia cada um dos vinte e oito capítulos com excertos de conversas que a seguir são – conversas e interlocutores – contextualizados num quadro mais amplo do trabalho de campo e problematizados em relação à literatura existente. É hábil o entrosamento entre registos orais e escritos. As fotografias (sobretudo retratos), apoiadas por longas legendas, revelam detalhes mais prosaicos da pesquisa etnográfica. A escrita assume, por vezes, um pendor literário que entreabre espaços importantes ao valor epistemológico da experiência do próprio autor, bem como daqueles com quem este se cruza.

Harry West não é o primeiro a escrever sobre a relação entre poder, o oculto e a feitiçaria. Mas estes conceitos atravessam o seu texto em suspenso, enquanto perscruta o mundo social do planalto de Mueda por via da linguagem com que o compreendem os seus habitantes – a linguagem da feitiçaria, ou uwavi. Aceitando o repto lançado por Achille Mbembe – que salientou a importância de se cultivarem, em África, "linguagens de poder" que emirjam do quotidiano das pessoas –, West deixa-se permear pela obra de Mikhail Bakhtin e, seguindo James Clifford, desenvolve uma etnografia dialógica. Diz-nos que o mundo da uwavi é como um género discursivo, uma esfera de linguagem em que a língua é utilizada como um sistema de aparente estabilidade (pp. 40-41), suporte dos esquemas interpretativos daqueles que procuram o sentido de circunstâncias marcadas por assimetrias de poder e desigualdades no acesso a meios de subsistência.

A existência de "leões fabricados" surge como o dilema interpretativo que subjaz não apenas às inquirições iniciais do etnógrafo, mas também daqueles que preenchem esta monografia. O objectivo é bastante ambicioso: condensar uma investigação de onze anos em menos de quatrocentas páginas e, ao mesmo tempo, conduzir os leitores por um mundo que lhes será cognitivamente estranho, desafiando-os a compreender as realidades de um género discursivo que associa feiticeiros, leões-gente, escravos zombie e helicópteros invisíveis. Embora assuma, por vezes, uma postura céptica (p. 37), West mostra-se atento à importância da uwavi na experiência vivida pelos habitantes de Mueda, bem como às mais variadas ambivalências, dúvidas e hesitações que a povoam, traçando um quadro de entendimentos periclitantes, incompletos, desafiados e re-significados a cada momento e por cada pessoa. Ao tomar como foco a linguagem, faz questão de manter a terminologia shimaconde e recorre a uma panóplia de ilustrações do carácter polissémico de cada categoria semântica, cujos significados dependem mais dos contextos dialógicos em que são utilizadas, e da história de quem participa na conversa, do que de uma qualquer normatividade inflexível.

Como é, então, entendido o poder na linguagem da uwavi?

O poder, em Mueda, define-se pela capacidade excepcional de transcender o mundo que a maioria das pessoas conhece, com o objectivo de obter influência sobre ele. Acedendo ao reino do invisível, torna-se possível controlar o mundo visível e realizar nele "visões transformadoras" (p. 45). As "pessoas comuns", destituídas desta capacidade, ficam susceptíveis aos interesses de quem consegue tal ponto de observação privilegiado. Ao conversarem nesta linguagem, os habitantes do planalto questionam as formas de acesso a esse meio, os privilégios que daí advêm e se as instituições de autoridade são capazes de proteger o bem-estar colectivo. Ao vigiarem, desta forma, o mundo visível em busca de sinais que revelem os meandros ocultos do poder, ganham também acesso a um plano de entendimento privilegiado sobre o seu funcionamento e sobre a actuação de figuras de autoridade, que influem na definição de relações e (des)equilíbrios (ibid.). O poder é, aliás, considerado moralmente neutro: tanto pode ser usado com fins egoístas de promoção pessoal, consumindo o que é de outros (feitiçaria destrutiva), como para controlar tais ímpetos e assegurar os interesses da comunidade (feitiçaria de construção). Reverter, inverter ou anular o poder de outrem é aquilo que se denomina kupilikula.

Apesar da durabilidade do esquema da uwavi, este não é imutável e tem-se transformado ao longo do tempo em relação com outras linguagens correntes no planalto, entretanto adoptadas pelos seus habitantes. Ao historiar a relação entre os habitantes de Mueda e o sistema colonial, os missionários, os nacionalistas que lutavam pela independência, o socialismo científico e, já na década de 1990, as políticas de abertura do Estado e da economia ao neoliberalismo, Harry West salienta a existência de ambivalências e alianças entre as várias partes, de onde nos surgem pessoas que transportam consigo repertórios em constante mutação, matizados pelos seus próprios percursos biográficos e abertos à introdução de novos elementos.

Se a linguagem surge, em todo o lado, associada a sistemas de aparente estabilidade cosmológica, e os conceitos como mecanismos que tornam o mundo cognoscível, várias são as vezes em que juízes, médicos, agentes do desenvolvimento e outros – estranhos a estas esferas – se deparam com histórias de vampiros, leões-fantasma e zombies, e as tomam como sintomas de crendices e de uma suposta inferioridade mental do africano, relegado para um primitivismo que o arreda dos benefícios da razão. Tais assunções resultam em sérias consequências, particularmente quando se tem como objectivo a governação de corpos e formas de vida.

No âmbito da literatura dedicada a encontros entre esferas que parecem ser mutuamente ininteligíveis, e enquanto se avolumam críticas à ideia de regimes de verdade de imposição totalitária, tornou-se mais comum encontrarmos análises da história colonial que complementam entendimentos de matriz foucaultiana com a problematização das (inter)subjectividades em jogo. Apesar de alcançar um espectro temporal mais lato, poderemos enquadrar nesta linha analítica o esforço empreendido em Kupilikula. Aqui, West chama-nos também a atenção para os riscos inerentes a processos de reificação da "tradição" bastante recentes, destacando a aplicação de um crivo normalizador que obedece de forma acrítica às lógicas das agendas políticas internacionais, no enquadramento institucional e jurídico de práticas e categorias sociais voláteis, incluindo "autoridades" não reconhecidas pelas populações. Se a linguagem desta formalização tem sido absorvida e re-significada por aqueles que conheceu no seu trabalho de campo, West não abdica de traçar duras críticas à forma como os sucessivos governos têm jogado com as autoridades locais. No fim, o tom é optimista. O que Kupilikula nos oferece é uma valiosa análise das estratégias adoptadas por aqueles que habitam o planalto de Mueda, "vórtice de encontros e transformações culturais" (p. 140) e lócus de novas formas de uwavi e diferentes maneiras de ver o mundo.

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