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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versión impresa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.9 n.2-3 Porto  2009

 

Do corpo e do activismo na conjuntura de mercado e consumo

 

Jorge Olímpio Bento

Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto (CIFI2D), Faculdade de Desporto, Universidade do Porto, Portugal

 

Correspondência

 

RESUMO

Na actual configuração da sociedade as pessoas tornaram-se objectos de consumo e reféns da ansiedade. Esta situação é favorecida por uma globalização guiada pela teologia do mercado, bem como pela tendência de intervencionismo e de policiamento dos nossos comportamentos e passos. É sobre este plano de fundo que se instituem uma política e um negócio que exploram o capital da insegurança e do medo. Isso mesmo acontece no domínio das actividades corporais, tendo gerado um poderoso movimento ideológico e económico que instituem o activismo físico e um totalitarismo higienista e securitário como pedras basilares do estilo de vida urbano. No corpo consumido e consumidor é praticado um controlo sem precedentes e ficam bem à vista a crise da identidade, o mal-estar e as marcas de irracionalidade, de fanatismo, alienação e escravidão que povoam a conjuntura pós-moderna. A máxima do carpe diem, que rege o quotidiano, e o paradigma produtivista, que orienta e desvirtua a ciência, tornaram urgente a necessidade de almejar o equilíbrio e a sensatez, de reinventar a transcendência e de revalorizar o conhecimento de orientação.

Palavras-chave: consumo, medo, corpo, activismo, intervencionismo, fanatismo, irracionalidade e servidão, crise de identidade, mal-estar, necessidade de equilíbrio e sensatez, de transcendência e conhecimento de orientação.

 

 

ABSTRACT

About the body and activism in the market and consumption conjuncture

In the current configuration of society people have become objects of consumption and anxiety hostages. This situation is favoured by a globalization guided by the theology of the market as well as by the trend of interventionism and policing of our behaviours and steps. It is on this background that it is instituted a policy and a business that exploit the essence of insecurity and fear. That even happens in the field of physical activities, having generated a powerful ideological and economic movement that establishes the physical activism and a hygienist and security totalitarianism as cornerstones of urban lifestyle. In the consumed and consumer body it is practiced an unprecedented control and the identity crisis, the malaise and the marks of irrationality, fanaticism, alienation and slavery that populate the post-modern conjuncture are open to the sight. The maxim of carpe diem, which governs the daily life, and the productivist paradigm, which guides and depreciates the science, made urgent the need to aim for the balance and the wisdom, to reinvent the transcendence and revalorize the knowledge of guidance.

Key-words: consumption, fear, body, activism, interventionism, fanaticism, irrationality and servitude, crisis of identity, malaise, need to balance and wisdom, transcendence and knowledge of guidance

 

O que fazer com este corpo? Onde deve ser enterrado? Ou deverá ser cremado? Que signo lembrará a sua morte? Quem conhece este corpo? Que nome tinha, como era o rosto, quais cicatrizes, como sua voz? De onde vem este corpo? Onde morava, com quem vivia, teria filhos, quem são seus pais? O que fazia este corpo? Com que lutava, o que comia, a quem amava, com quem dormia? De quem é este corpo? De algum vizinho, de algum parente, de alguém distante, talvez o meu?

Ronaldo Monte [1]

 

OBJECTOS DE CONSUMO - REFÉNS DO MEDO

Como se sabe, a sociedade actual tem a marca do consumo incentivado e generalizado. [2] Todos os seus elementos, animados ou inanimados, são objectos de consumo. Logo os seres humanos também o são; só têm valor e utilidade enquanto conservarem a imagem e forma, as bitolas e performances adequadas e devidamente cotadas, enquanto despertarem atracção e sedução e passarem nas avaliações e comprovações vigentes. Tornam-se totalmente dispensáveis, gastos, desqualificados, acabados e ultrapassados e são carimbados de inadaptados, sem préstimo algum, inúteis, impróprios e mesmo nocivos, à medida que vão perdendo capacidade para se encaixarem no quadro das exigências, bitolas e especificidades fixadas e valoradas pelo mercado.

Não se livram desta punição, se deixarem de ser jovens vitalícios, se não lograrem contrariar e atrasar a obsolescência, esconder os traços, sinais e rugas do uso e tempo, renegar a idade e a maturidade a ela inerente, conservar o corpo fiável, apresentar a aparência como essência e ter sucesso no confronto com o vasto e constantemente alterado leque de critérios de validade estabelecidos no fluido código do consumo.

Sendo o envelhecimento, com todas as suas sequelas, uma constante e inevitabilidade da vida humana, na nossa sociedade assiste-se a um fenómeno que Luc Ferry retrata de forma fidedigna com a lente filosófica: “Às vezes tenho a impressão de só cruzar com indivíduos cuja primeira preocupação, tanto do ponto de vista físico como moral, é não envelhecer. Para eles (…) viver bem é ‘permanecer jovens’. Isso se torna quase um fim em si mesmo”. [3]

É para tentar realizar esse sonho de concretização impossível que muita gente gasta tempo e esforços consideráveis com a elaboração teimosa de um senso estético flexível, susceptível de acompanhar a evolução dos usos e anelos. Como que a dar razão à afirmação de Michel Foucault (1926-1984): “O homem moderno é o homem que tenta constantemente inventar-se a si próprio”. [4] E concordando plenamente com Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): “O problema não é inventar; é ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa convincente edição”.

Portanto é deveras angustiante e tirânica a obsessão de tentar escapar ao contentor do lixo. Para a acalmar as pessoas submetem-se a cursos, cursinhos e acções de formação de tudo e nada, assim como a cirurgias estéticas e às mais diversas operações de cosmética e reciclagem tanto no plano físico e biológico como no sentimental, comportamental, espiritual e moral. Coleccionam diplomas por grosso e atacado, para somar ambições, pontos e ilusões no sistema de avaliação e progressão na carreira e na vida. Sabem que, no dia em que forem reprovados no exame do consumo, ficarão sem a carta de entrada e circulação na via existencial; serão, sem dó nem piedade, abatidos no inventário dos activos válidos, irremediavelmente removidos da esfera profissional e social, atirados para a lixeira da inaptidão e desqualificação, da desconsideração e rejeição. Sofrem assim uma tortura horrível; embora vivos fisicamente, morrem aos poucos e antecipadamente no conceito e apreço de quem os rodeia. [5]

Esta ameaça é terrível e não há maneira de se subtrair a ela, porque na sociedade de consumidores ninguém fica de fora do catálogo de objectos de consumo. Toda a gente se move diária e continuamente entre os dois pólos e papéis: ser, em simultâneo, consumidor e objecto de consumo. A distinção entre ambos é à condição temporária (obviamente mais para alguns, não atingindo todos de igual modo!) e a reversão é uma certeza; nenhum é mais poderoso do que o outro.

Por isso mesmo a mais cruel e inumana consequência da sociedade de consumo, com as suas regras, prescrições, imposições e tentáculos vigentes em todos os sectores, é a perspectiva de viver para acabar no caixote do lixo. É este desígnio fatalista que acarreta a preocupação mais opressora, requer e consome o maior dispêndio de atenção, energia e trabalho. A vida gasta-se oscilando entre o prazer do consumo e o prenúncio do horror de ser consumido. As posições não são fixas ou adquiridas para sempre.

E há ainda que contar com o cinismo, adverte Ronaldo Monte, de “um dispositivo social montado para convencer os indivíduos de que eles são os culpados pela sua exclusão do processo produtivo. São poucos aqueles que conseguem ver com clareza os mecanismos socio-econômicos responsáveis pela sua derrocada existencial. O próprio espírito contemporâneo, com a sobrevalorização do esforço individual e aproveitamento das oportunidades, transfere para o indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso em exibir um certo padrão de consumo que testemunhe a sua pertença à galeria dos descolados que incorporam tal espírito”. [6]

Por outro lado, a humanidade padece, desde sempre, de temores graves e reverenciais face a fenómenos da natureza que não domina e para os quais procura amparos da mais diversa índole. A fragilidade vê-se hoje aumentada pelo facto do mundo estar sujeito a uma globalização [7] com pendor orientado pela teologia do mercado. Este tipo, deveras negativo, de ‘mundialização’ ocasiona a passagem da vida ‘sólida’, assente nos organismos, mecanismos e estruturas de apoio, protecção e segurança social, para a vida ‘líquida’, movediça, escorregadia e diluída no viveiro de incertezas, medos e infortúnios pessoais e na destruição da solidariedade. A isso conduz a retirada gradual da responsabilidade do poder público em definir as políticas de investimento em áreas como a saúde, a educação, a segurança e a previdência e em entregar à gula da privatização as acções anteriormente atribuídas ao Estado. Quem o diz e prova, de modo magistral, é o eminente sociólogo polaco Zygmunt Bauman em várias das suas obras. [8]

A globalização trouxe, é certo, à tona a “unidade da espécie humana”, traçada por Kundera, porém deixando claro, de forma inequívoca e trágica, que o bem-estar de uns nunca é inocente em relação à miséria de outros. À sedutora ideia de “sociedade aberta”, de Karl Popper (1902-1994) [9] , corresponde a realidade aterrorizante da maioria da população infeliz e vulnerável, submetida a forças que não entende nem, muito menos, controla. A Caixa de Pandora abriu-se e expôs a humanidade aos fustigantes ventos de um destino malévolo. A sociedade do perigo e do risco tornou-se uma sociedade abalada, alarmada, atribulada e aprisionada pela invenção e exploração do medo. [10]

Ademais os medos contemporâneos são interiores e não mais exteriores, deslocaram-se para dentro dos muros da cidade e de cada um de nós; é aí a morada do novo tipo de inimigo: a suspeita em relação aos outros e à diferença, o ressentimento com estranhos e a exigência de os isolar e banir, a preocupação histérica e paranóica com a ‘lei e a ordem’. Por via disto a garantia de segurança assenta na inexistência de vizinhos com pensamentos, atitudes, comportamentos e aparência diferentes dos nossos; ou seja, implica e instaura a uniformidade. E esta, por sua vez, alimenta a conformidade e a intolerância. O regime pós-moderno segue, pois, à risca o propósito do Panóptico de Foucault: vigiar e combater a diferença, a opção e a variedade, disciplinar e impor ao comportamento dos cidadãos um padrão uniforme. [11]

“Tristes tempos estes, em que não há tempo nem lugar para a tristeza – constata Ronaldo Monte. Todos os seus lugares públicos, igrejas e cemitérios inclusive, foram transformados em templos maníacos. São, portanto, manicómios, lugares para cuidar da mania, deixá-la expandir-se até certos limites, seguindo padrões estereotipados de comportamento. (...) E não se trata mais daquele mal-estar freudiano, necessário à nossa vida coletiva civilizada. É um excesso de mal-estar que resulta justamente da falência do projeto coletivo e civilizado da modernidade. O malogro da promessa iluminista de realização dos ideais da ordem, da limpeza e da beleza resultou num excesso deprimente de desordem, lixo e feiura que o espírito contemporâneo, na incapacidade de elaborar este excesso, tenta negá-lo através do gerenciamento público da mania e da privatização da depressão”. [12]

 

INTERVENCIONISMO E ACTIVISMO FÍSICO

É sobre este duplo plano de fundo que se instituem uma política e uma indústria que exploram o capital do medo e colocam os cidadãos na respectiva mira. Isso mesmo acontece no domínio das actividades corporais e no funcionamento da vida urbana. As cidades são agora o local por excelência das ansiedades; “construídas para fornecer protecção a todos os seus habitantes, as cidades hoje em dia se associam com mais frequência ao perigo que à segurança”, sustenta Zygmunt Bauman. [13] Não é por acaso que também se multiplicam nelas as organizações que aproveitam a insegurança, o pânico e a angústia. Há manifestamente, de alguns anos a esta parte, uma indústria e um comércio florescentes e em crescendo nesta área.

Neste desenvolvimento de uma série sofisticada e diferenciada de bens de consumo adquirem particular notoriedade os serviços, as ofertas, actividades e experiências que se voltam para o corpo e depositam nele frustrações, anseios e esperanças de salvação e redenção. Através do recurso a uma panóplia de acções e tecnologias, os corpos podem ser alterados e reparados segundo diferentes padrões e fins, para melhor assumirem determinadas funções e papeis, corresponderem a diversas motivações e fintarem os desamparos e vazios existenciais.

Como é sabido, sempre houve e haverá uma conjuntura corporal, como parte da conjuntura da forma humana – “a coisa mais digna de que se ocupa o homem”, no dizer de Goethe (1749-1832). Ela reflecte os problemas, anseios, ideais, princípios e valores da Vida e do Homem, vigentes em cada época

As grutas e gravuras mais antigas não mentem a esse respeito. Desde os tempos primitivos até aos nossos dias o homem não cessou de manifestar insatisfação com o seu corpo - com a sua forma, fiabilidade e plasticidade -, de praticar nele um confronto entre o real e o virtual e de procurar outro corpo. A nossa vida e a nossa identidade sempre foram corpóreas, o corpo sempre foi uma anatomia do nosso destino. Desde tempos imemoriais o corpo foi a medida de todas as coisas (media-se o mundo com o corpo e com os seus produtos e actividades: pés, punhados, côvados, cestos, acres, jeiras).

De resto não foi a partir do nada que Leonardo Da Vinci (1452-1519) e Vesalius (1514-1564) desenvolveram o projecto do corpo-máquina, que a ciência moderna e a sua consequente tecnologia haveriam de apoiar e viabilizar ao possibilitarem a transformação e recriação da natureza, tanto da extrínseca como da intrínseca. [14]

Todavia o século XX pode ser visto como um tempo da descoberta e invenção teóricas do corpo, da sua revalorização e envolvimento material – e também das suas debilidades e fragilidades. É neste tempo que Freud (1856-1939) sustenta que o inconsciente fala através do corpo;Edmund Husserl (1859-1938), nome insigne da Fenomenologia, apresenta o corpo como “berço original” de toda a significação; e Merleau-Ponty (1908-1961) e outras eminentes figuras do Existencialismo vêem no corpo uma “encarnação do espírito”, chamam-lhe corpo cognoscitivo e reflexivo, um “pivô do mundo”, uma “estrutura do viver”. [15] Vêem-no como sede de símbolos e significados, como artefacto cultural e axiológico, para além do protocorpo biológico e natural, levando a proclamar: Nós somos o nosso corpo! Ele é medida e expressão do nosso Ser. [16]

Como corolário deste movimento, Marcel-Mauss (1872-1950) assinala o aparecimento da noção de “técnica corporal”, da multiplicação e expansão das formas, métodos e usos do corpo pela sociedade e pelos indivíduos. Não é, pois, um acaso que se assista a uma renovação das atenções ao corpo e ao seu carácter instrumental, dando lugar a uma onda de ativismo e intervencionismo, sem precedentes. O corpo deixa de ser apenas natureza primeira para se tornar um grande campo experimental das visões, das esperanças e expectativas mais elevadas e das fantasias mais prodigiosas. De corpo espontâneo, esquivo, insubmisso, resistente e natural ele evoluiu paulatinamente para corpo intencional, obediente, conhecido, dócil e artificial, lavrado, colonizado, transfigurado e edificado pelas mais diversas culturas. Um narciso à medida dos desejos e aspirações, das metáforas e utopias, da função e necessidade, tanto na superfície como na profundidade.

Isto é, os exércitos de conquistadores, impulsionados pela ciência, pela tecnologia e por outros instrumentos e corporações de interesses em moda, focalizam a sua atenção no corpo e este deixa de ser tolerado como algo natural, fruto do destino e do acaso. Torna-se um artefacto.

Em suma, a tentativa de manipular o corpo, de o tornar disponível para os fins e desejos eleitos, faz parte de um projecto, estabelecido sobretudo pela modernidade, a partir de Rousseau e de Descartes e dos caboucos que eles abriram à cultura, à ética e à moral, à ciência, visando a liberdade do homem e o domínio total da natureza.

Sim, o corpo e a ideia de o fazer, melhorar e modelar estão na moda, tal como escrever e desenhar nele, perfurá-lo e adorná-lo com os mais estranhos adereços e tatuagens. O corpo transfigura-se - e transfigura o sujeito - através dos sinais que o atravessam e das formas que reveste. Deste modo os corpos, desejosos de ser outros, são cada vez mais corpos simbólicos, expressam e representam outra identidade; neles o ideal passa a ser factual.

A publicidade assume neste quadro o papel de promotora de signos, visando construir uma hiper-realidade e determinando que o virtual seja mais concreto do que o real. Consagra-se o triunfo do mundo da representação através de imagens e simulações de fantasias associadas a beleza e juventude. É imperioso ser mais moderno do que o moderno, mais jovem do que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda.

Nesta nova urbe as pessoas rompem com padrões de regulação social que vinculam os estilos de vida a grupos, a faixas etárias e a outras normatividades. O estilo de vida nela vigente cumpre uma função de comunicação; os bens materiais e os hábitos e rotinas do dia-a-dia não são usados como utilidades, mas sim como comunicadores. Roupas, corpos e caras lembram-nos um mundo do faz de conta, falam de um outro lado da vida, ou, se preferirmos, configuram um lado imaginário da mesma. Uma vida que se revê na saúde, na beleza, na inovação, na eterna juventude, na estética. [17] Na nova cidade ninguém é jovem, porque toda a gente o é ou procura ser pelos anos fora, através da encenação do modo de viver. Isto é, as pessoas manifestam um interesse crescente pela estilização e remodelação da sua vida, procurando enfatizar e modificar a identidade, a aparência, a apresentação do Eu. Os adultos não querem envelhecer, teimam em suspender a idade e em rejeitar a maturidade que a devia caracterizar. A remodelação da identidade é, pois, um objectivo permanente, paradoxalmente ligado à conservação e exibição de uma amostra de duradoira e desapontante infantilidade.

Ao encontro desta tendência vem o facto das sociedades ocidentais se terem tornado progressivamente um campo de intervenções realizadas por peritos credenciados e apostados em impor o primado do valor da racionalidade científica e tecnológica em todas as áreas, inclusive no corpo. No caso deste, os respectivos especialistas crescem em torno de um discurso acerca da diabolização dos perigos do tipo de vida urbano, causador do aumento da densidade física e do decréscimo da densidade moral dos indivíduos, apontando como remédio a mobilização geral contra o sedentarismo e a hipodinamia, através da promoção do desporto e, particularmente, da indefinida e conceptualmente aberrante ‘actividade física’. [18] Com isto veicula-se a certeza de formar o corpo e o carácter, servir a saúde e melhorar a produtividade, a felicidade e a moralidade. Ou seja, assiste-se, como refere Hugo Lovisolo, a um poderoso movimento ideológico e económico que leva o activismo físico “a ser uma preferência na vida moderna juntamente com um estilo esportivo no modo de se vestir, alimentar, construir e operar com o corpo e na organização e prática do lazer”.

Consequentemente “os especialistas passaram a formular propostas de intervenção nesse mundo amplo e diferenciado: regime alimentar e de sono, roupas, cosméticos, atividades corporais, recreação, sexo e tantas outras esferas de atividades foram reguladas por suas intervenções geralmente fundamentadas em conhecimentos ditos científicos”. [19]

O frenesim neo-higienista e intervencionista socorre-se da divulgação de listas alarmantes de factores de risco, convida toda a gente a mexer-se, correr, caminhar, andar e subir escadas, em vez de utilizar o automóvel e o elevador; vende a ilusão de que cada um pode ter o corpo que escolher e a saúde que construir. Para tanto apregoa-se e comercializa-se o ‘exercício’ e o ‘treino’ do corpo, se necessário, com recurso ao complemento de regras dietéticas e operações cirúrgicas; os ‘health centers’, ‘spas’ e ‘academias’ proliferam em todo o lado, oferecendo fórmulas sagradas de vida feliz e saudável, em programas feitos à medida dos desejos e da necessidade, da idade, sexo, peso e altura. [20]

O intervencionismo vai mais longe, assumindo laivos de perseguição e foros de cruzada, com feições e implicações apontadas por Hugo Lovisolo: “Os desvios corporais de peso, em relação aos padrões considerados normais, e em especial a obesidade ou gordura, tornaram-se um inimigo combatido por uma forte aliança de interesses, abrangendo desde o Estado, as companhias seguradoras, a indústria, os profissionais da área da saúde, (...), as diversas organizações e profissionais participantes do que poderíamos denominar movimento pela saúde. (...) A obesidade, a inatividade corporal e o fumo são os grandes inimigos do movimento que aposta na saúde (...) O valor da saúde (...) expande-se pelo mundo, associado numa esportivização da cultura” e dos estilos de vida. “Trata-se, no seu sentido mais amplo, da construção de ‘eus’, de identidades individuais ou subjectividades nas quais os novos complexos de relações com os corpos passaram a ser centrais e integrantes, portanto, do nosso cotidiano”. [21]

Esta apreciação não é uma lucubração visionária; ao invés, tem os pés bem assentes no terreno da conjuntura. De todo o lado surgem ordens e sinais a mandar exorcizar e expulsar o gordo ou a gorda, potencial ou real, que há em nós. Para que a beleza da magreza se liberte desse espartilho e o magro possa nascer e circular sem peias.

 

CORPO CONSUMIDO E CONSUMIDOR

Primeiro:

Pode parecer, mas não é de agora; é de ontem e de hoje, de todos os tempos e lugares, de todos os contextos culturais e civilizacionais: o investimento no corpo, a concepção, projecção e configuração das suas formas e potencialidades, segundo ideais, ditames e interesses em vigor nas relações e circunstâncias sociais, sempre estiveram em curso.

É certo que na actualidade estão manifestamente em alta a elaboração e a prescrição de programas, manuais, cuidados, dietas, medidas e estilos de vida, com certificado de rigorosa cientificidade e garantia de absoluta infalibilidade, para produzir corpos belos e esbeltos, activos e ágeis, esguios e livres das amarras e enfados da gordura. Esta não é mais o antigo sinónimo de santidade para devotos inflamados, nem de beleza e abundância económica e material para noivos incautos ou gananciosos. Todavia o corpo nunca foi um espaço neutro e espontâneo, esquecido ou ignorado pelos inconformados com a realidade e desejosos de concretizar a concebida virtualidade. Sobretudo a partir da vinda da modernidade e das respectivas ciência e tecnologia e da abordagem transformadora da natureza que elas instauraram.

O que desta feita entra pelos olhos dentro - dos que não estão desatentos à realidade e à sua evolução - é o novo tipo de intervenção no corpo: uma tentativa de controlo sem precedentes, levado até aos mais ínfimos aspectos. Também aqui se revela a manifestação particular de uma tendência mais geral, que é a de serem controlados todos os nossos actos e passos, já não somente os públicos, mas inclusive os privados. Os sinais, factos e leis de regulamentação, fiscalização e punição do que podemos e devemos ou não fazer mostram-se e estendem-se cada vez mais, abarcando aquilo que é do foro íntimo e pessoal. O espaço de manobra e assunção plena das nossas decisões é crescentemente condicionado e cerceado. Há em toda a parte fixações e indicações, meios áudio-visuais de observação e registo e agentes vigilantes, sempre prontos a impor-nos o que é tido por certo e correcto e a atribuir penalizações ou admoestações pelos comportamentos considerados inconvenientes, errados e inadequados. Quem sabe se até os nossos sentimentos não serão esventrados dentro em breve?!

Para favorecer a adesão a este clima, agitam-se medos e fantasmas, pavores e inseguranças, ameaças de perigos, riscos e mesmo terrores susceptíveis de nos forçarem a assumir uma nova maneira de lidar com a corporalidade. Goste-se ou não desta afirmação, estamos a conviver com um ambiente exagerado de crenças e promessas de domínio e poder sobre a nossa existência corporal. Isso convém obviamente aos interesses do mercado neoliberal, tornando o nosso corpo um lucrativo pólo de investimento, de criação e prestação de serviços e responsabilizando cada um pela obrigação de tomar a seu cargo o bem-estar e destino pessoais. Ao cabo e ao resto, o corpo não escapa às marcas, ajustamentos e conveniências do consumo.

Por outro lado, não se pode esquecer que as crenças são filhas de visões e ilusões sumamente apetecidas. Por isso é legítimo perguntar se somos tão capazes e estamos realmente a conseguir controlar e moldar o corpo tão rigorosamente quanto se acredita e diz. Ou se isto é apenas expressão da ânsia de segurança que nos assalta em várias frentes. Como quer que seja, é evidente que alastra e se generaliza o discurso acerca do dever obrigatório, firme e irrecusável de cuidarmos do corpo e que isto concentra atenções e ocupa um espaço mais amplo do que em épocas anteriores. Contudo e paradoxalmente este esforço não nos torna mais seguros, antes expressa uma constância da preocupação em relação às fintas e rasteiras que o corpo nos pode pregar em qualquer instante.

Assim sendo, é muito questionável se estamos a alargar o raio da nossa liberdade individual, se o nosso corpo viu ampliado o leque de escolhas e possibilidades e reduzido o espartilho dos vínculos e apertos antigos. Ou se, pelo contrário, tudo não passa de uma impressão de liberdade acrescida e estamos a substituir os velhos condicionantes por outros ditados por ganâncias, necessidades e interesses emergentes. Por outras palavras, para o corpo como para o resto são-nos recomendadas e prescritas escolhas incessantes, provisórias, precárias, frouxas e fugidias, a toda a hora revogáveis e trocadas por outras, fazendo com que a liberdade e a restrição das nossas decisões assumam um equilíbrio instável e aparente. Afinal, como é que se conciliam o direito e o dever individuais de controlar o corpo? [22]

Segundo:

Uma análise atenta da conjuntura revela, à saciedade, que o corpo (seja na versão de ‘consumido’, seja nas de ‘consumista’ ou ‘consumidor’) é claramente um distintivo, objecto e alvo de interesse da sociedade de consumo. Como tal é um palco preferencial da onda da incessante reformulação da identidade e da exibição da tão incensada novidade, ambas alimentadas, entre outros factores, pela agitação, pelo uso e abuso, empolamento e exploração constantes do vasto e ‘valioso’ capital de inseguranças e medos. Consequentemente a insana busca ou jihad (na expressiva terminologia de Zygmunt Bauman) pela imagem, forma, condição e aptidão corporais ideais - nunca de todo atingidas e atingíveis - desperta enorme fervor e encaixa, de maneira perfeita, na lógica do mercado.

É neste ponto que urge separar as águas: uma coisa é a saúde, outra é a doença da obsessão em modificar a superfície ou a profundidade corporal. O corpo ‘consumido’ tornou-se auto-télico, a imagem um deus, as rugas uma contravenção, a gordura e a obesidade um pecado mortal, a celulite um descaso, a dieta uma religião e a exercitação (sobretudo a musculação) um ritual de penitência e expiação obrigatórias. O bom senso parece ser perdido à medida que cresce a obstinação dos adultos em fabricar e manter a eterna juventude e em livrar-se ou evitar o aparecimento dos incontornáveis e tão estigmatizados e infernizados sinais de velhice. Ora isto não é sensato e natural. Tudo convida a gastar tempo, esforço e recursos com o artificial e supérfluo; nada sobra para investir na cultura e sabedoria da vida. [23]

De resto o cultivo hodierno do corpo segue e desvirtua a linha aberta pela ciência da modernidade. Confirma e expressa o aprofundamento da destruição do sagrado e do eterno. A entrega total ao aqui e agora e a absolutização e comunhão da máxima carpe diem não deixam espaço para o transcendente; retalham os grandes problemas e conduzem à concentração em assuntos de menor escopo, que podemos abordar, tentar controlar e resolver e não se espraiam aparentemente para além da nossa existência. Ademais, na voracidade da mudança e no golpe mortal desferido no valor da durabilidade, a longevidade corporal surge como a única identidade com expectativa de aumento progressivo. É, pois, mais rentável investir na vida corpórea do que em causas eternas, actualmente em situação de declarada falência; tudo o que não seja apostar no prolongamento da existência física individual parece, portanto, um mau e desaconselhável negócio.

O mesmo é dizer que caiu em desuso o projecto de construção da ponte entre a brevidade da nossa vida e a eternidade do universo, árdua e laboriosamente empreendido durante milénios em todos os contextos culturais. Deste jeito é também abandonada a reflexão filosófica acerca da ideia da verdadeira felicidade, resultante da associação dos nossos actos e práticas a ‘coisas’ maiores e mais duradoiras do que o trajecto corpóreo – e que este não contém. [24]

No corpo (do) ‘consumidor’ é semeada e zelosamente cultivada, regada e adubada uma ansiedade permanentemente insatisfeita com a duração e validade temporais dos resultados, convidando assim a ambicionar, visar e atingir uma sucessão ininterrupta de metas parciais, precárias, transitórias e portanto carecidas de reformulação e renovação infindas. O guião é inequívoco: nada está ganho para sempre; é preciso exercitar todos os dias, sob pena de regredir. Até porque a ‘boa forma’ é um ideal inatingível, já que ela se vincula a um esforço persistente, contínuo e inconcluso, porquanto a sua essência reside no determinismo de que é necessário substituí-la por outra sempre nova, à medida que a anterior se gasta e caduca. Ou seja, a ‘boa forma’ exclui os limites e um padrão plenamente estipulado, nunca se alcança de todo, uma vez que tem imanente a noção de que é sempre possível melhorá-la e resvala para a ‘má forma’, quando esse intento é abandonado. Logo a procura da ‘forma’ não concede descanso e não tem fim, implicando uma norma sem tecto, um chão que ninguém pisa, uma via e escada compulsórias e geradoras de dependência, semelhante à resultante de uma droga viciante. Cada dose de consumo conduz à seguinte, numa escalada ininterrupta. Por outras palavras, a luta pela ‘boa forma’ e pela imagem acabada nunca está, nem pode ser ganha de todo, havendo sempre pela frente uma batalha de desfecho incerto.

 

EXERCITAÇÃO, RELIGIÃO E ALIENAÇÃO

Correndo o risco de ser excessivo, oferece-se propor que não devíamos descartar a hipótese de, no movimento do exercício, do activismo ou da aptidão física, haver indícios de religião, fundamentalismo, fanatismo e alienação. Com efeito não faltam os ‘viciados’ em ‘malhação’ muscular, em ‘actividade física’ ou ‘ginástica aeróbica’, que se entregam de modo obsessivo e devotado à tarefa de ‘reforma’ ininterrupta do seu corpo. Os ‘especialistas’, quais inflamados e mandatados sacerdotes ou delegados de propaganda médica, abençoam, apregoam e comercializam esse produto em nome de fins de purificação, enquanto a gananciosa e nada ingénua sociedade de consumo e consumidores lhes pisca o olho, esfrega as mãos e bate palmas de contentamento. Também aqui os ventos sopram a favor dela.

Vem muito a propósito recordar que os taliban, quando tomaram Cabul em 1996, nomearam um vice-ministro para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício, que punia publicamente os ‘desvios’ com lapidações, enforcamentos e decapitações. E igualmente não é de olvidar a célebre chamada de atenção de Martinho Lutero (1483-1546): “A medicina cria pessoas doentes, a matemática pessoas tristes e a teologia pecadores”. Agora tudo parece fundir-se no mesmo resultado. Mutatis mutandis!..

Há certamente unilateralidades e parcialidades, quiçá algum excesso, nas tintas desta análise; mas exagerar é uma maneira de alertar, de mostrar contradições, insuficiências, superficialidades e derivas numa conjuntura corporal que acentua, enfatiza e concede a primazia ao culto das dimensões biológicas e da aparência e ignora quase por completo os outros valores.

Importa, sobretudo, que nos interroguemos se não estamos possuídos de uma mentalidade – ou a colaborar na sua construção – que vê em tudo ameaças à integridade corporal. No sol, na comida, na bebida, nos temperos, no descanso, no sexo, no tabaco etc, em tudo vemos maus agoiros e prenúncios, coisas hostis e nocivas ao corpo. Perspectivamos assim a vida como um ambiente cheio de malefícios assustadores e terrificantes que só podem ser vigiados, contidos a alguma distância e impedidos de invadir o território corporal, fechando-o ao convívio com o envolvimento e opondo a tudo quanto deste provém a barreira de um activismo sem pausa e sem medida. Porventura sem o querer, estamos a afirmar e evidenciar a grande vulnerabilidade do corpo. Em vez de o celebrar e festejar como um território de esperança, estamos a desconsiderá-lo e a mortificá-lo, a desconfiar dele, a chamar a atenção para a sua extrema debilidade e para as traições e partidas que ele nos pode pregar, sem o mínimo aviso. Enfim, eis a surpreendente e legítima constatação, os conceitos negativos acerca do corpo sobrelevam hoje, de longe, os positivos.

Tudo isto prova que a ambiguidade e ambivalência tomaram conta de nós. É assaz diminuta ou quase nula a capacidade para traçar, com nitidez e razoabilidade, a ténue linha de separação entre a norma e o excesso, para distinguir e decidir aquilo que nos convém e aquilo que nos prejudica, o que faz bem e o que faz mal, o que é natural e bom e o que é artificial e mau. Perdeu-se o sentido da harmonia, do equilíbrio e das proporções; a vida torna-se inodora, insípida e monocromática, ao proclamar e colorir tanto o desejo de a  regular, fiscalizar e unifirmizar e ao diminuir o sal que lhe dá tempero e gosto, saber e sabor, significado e sentido.

O desconcerto e a indefinição, a insegurança e o temor daí advenientes tomaram posse de nós e comandam os nossos passos. Da dúvida e do medo, como essência e como uma fonte de alerta, prudência, estímulo, sabedoria e qualificação da acção, resvalamos para rituais de auto-flagelação e anulação, para jogos de simulação e engano. Fica claro que não sabemos ainda balizar a liberdade, seja no geral, seja no caso particular do corpo e dos aspectos a ele concernentes. Ciclicamente regressamos ao ponto de partida, inventando novos pretextos para patentearmos a nossa incompetência e frustração.

Enquanto noutros domínios o terrorismo é um pesadelo iminente ou latente, no corpo e nos acréscimos de peso e centímetros na cintura a gordura representa a derrota da desatenção ao estilo de vida pessoal e das defesas somáticas, o fracasso da vigilância, o terror concretizado, a vitória deste, a invasão, a anexação e usurpação das nossas existências por inimigos traiçoeiros.

Eis assim aberta a frente de uma nova e apelativa batalha, que somos intimados, pelas mais diversas e respeitáveis organizações, a travar nas próximas décadas. Como em todas as outras guerras, muitas sem aviões, tanques e bombas à vista, também nesta há quem acumule ingentes proveitos, quem seja louvado e santificado e quem seja admoestado, exorcizado e crucificado. E há igualmente uma linha de fronteira, um novo tipo de insidiosa discriminação ou divisão de barreiras ou classes sociais: magros/gordos, belos/feios, jovens/idosos etc. Mais, os magros, secos, mirrados e escanzelados, por cumprirem os preceitos, bulas e exigências da exercitação e regulação, passarão a ocupar os altares cimeiros e sagrados do reconhecimento e adoração; os gordos e obesos, por serem profanos e inferiores, relaxados e indolentes, desnecessários e indesejados, desleixados e pecaminosos, falhados, sem mérito para superar os seus vícios, incapazes de agir da forma como se espera que ajam, de todo inúteis e por driblarem as prescrições e metas da Tora do emagrecimento, serão denunciados e perseguidos e arderão no inferno da nova e reeditada inquisição. Para estes infractores da lei e da ordem, tolerância zero; o seu lugar é fora e longe das nossas vistas!

Quando as noções e considerações éticas são abandonadas, descuradas ou silenciadas, a empatia em relação aos outros (particularmente os frágeis, humilhados e marginalizados) extingue-se e as barreiras morais conhecem a derrocada. Amalgamadas na indiferença moral, as receitas e soluções da racionalidade técnica e as ambições e motivações da voracidade consumista formam uma mistura explosiva. À semelhança do que sucede nos outros campos, igualmente no activismo físico o número dos danos colaterais está notoriamente em ascensão.

Nisto não há exagero algum. Convém ter presente que o corpo, por ser um material e terreno de enorme plasticidade e visibilidade, é alvo fácil e benquisto para implementar a tentação e a estratégia de registo, domesticação e acompanhamento de todos os nossos passos. Isto é, pode treinar-se bem nele o controle que hoje a tecnologia possibilita e a ausência de sensatez e de um pensamento filosaficamente bem fundado – e por isso néscio e sem escrúpulos - não põe em causa. Desta sorte a intervenção no corpo é percursora ou reveladora de novos mecanismos e instâncias de censura e constrangimento sociais que acabarão por visar destinatários atinentes ao que podemos ver, ouvir, ler e a outras necessidades vitais e existenciais.

Ou será que o ânimo controlista se dá por satisfeito exclusivamente com o corpo? Não parece. Até onde isto nos levará, quer na normatização e conformação do corpo, quer na de tudo quanto perfaz a nossa vida? Será que a norma da saúde passará a habitar paredes meias, quando não em comunhão de bens, com a demência, insanidade e loucura?

Há razões para admitir que já não é a ‘saúde’, na amplitude do seu conceito, a presidir às apostas de aplicação no corpo; ela é o motivo invocado, certamente válido, mas não é a causa genuína, nem tampouco a finalidade principal que determina a onda expansionista em curso. Dir-se-á, com algum e bastante fundamento, que é a estética. Mas... qual ‘estética’: a do gesto belus e bonus, a da beleza e bondade, da promessa de felicidade?

Isto requer reflexão conexa e profunda e não formulações aligeiradas. Até porque em assuntos de tamanha complexidade não há respostas simples e fechadas. É preciso lançar ideias formadas à luz de conhecimentos tão científicos quanto possível. Mas sem esquecer que os cientistas têm crenças e são sacerdotes delas; isto é, os conhecimentos, por maior que seja a sua cientificidade, não conseguem alijar aquela circunstância. Assim há que ser mais humilde e menos convencido e peremptório no receituário e apologia de propostas de acção. A questão do sentido da vida deve orientar a elaboração de fórmulas para a sua concretização em todos os campos.

Seja como for, aquilo que se passa no tocante ao corpo, ao seu design e modelação, ao combate à inactividade e ao ambiente obesogénico, à formulação, apresentação, recomendação e consumo de dietas, de cuidados, serviços e medidas afins serve de paradigma para ilustrar, de maneira nítida, a dualidade dos critérios que balizam o esboço da condição humana na sociedade de mercado neoliberal e do respectivo consumo. O relativismo de princípios e valores é assaz patente.

 

IRRACIONALIDADE E SERVIDÃO

Como se referiu atrás, o presente clima de desamparo existencial, de debilidade, instabilidade, exclusão e desintegração social constitui um habitat favorável à instauração e progressão de uma política, de uma indústria e de um comércio de utilização da insegurança e do medo. [25]

Zygmunt Bauman caracteriza a sociedade pós-moderna e ‘líquida’ de consumidores como uma “sociedade incerta acerca da sobrevivência de seu modo de ser”; o que a leva a desenvolver uma “mentalidade de fortaleza sitiada” e a ver como “inimigos que cercam suas muralhas” os seus próprios “demónios interiores”, ou seja, “os medos reprimidos e ambientes que permeiam a vida diária, a ‘normalidade’, mas que, para tornar suportável a realidade diária, devem ser esmagados e empurrados para fora da cotidianidade vivida e fundidos a um corpo estranho – um inimigo tangível dotado de um nome, um inimigo que se possa enfrentar, e enfrentar novamente, e até esperar vencer”. [26]

Paradoxalmente ou talvez não, em vez de tentarmos delimitar e erradicar as causas dos problemas, injustiças e angústias, somos ‘preparados’ e instrumentalizados para dar o aval a soluções que prometem ‘reduzir’ a probabilidade de sermos vítimas dos incontáveis perigos que ameaçam a nossa segurança e a dos que nos são próximos ou familiares. À conta de protecção e em nome do pretenso ataque ao terrorismo real ou imaginário, aceitamos a limitação, a redução e a revisão dos direitos individuais e sociais, a imposição de restrições, as medidas de repressão etc. Fingimos ignorar ou ignoramos mesmo que isto aumenta a insegurança e serve os interesses de quem medra nela; esquecemos que a perversa abertura e entrega dos países ao apetite insaciável do mercado, imposta por esta globalização negativa, é por si só a causa principal da injustiça e, por via disso, do terror, da violência e conflitos pendentes. [27]

Mais, o demónio sinistro do medo e do vazio existencial é agitado para atrair a nossa atenção para aspectos da vida cujos riscos – assim nos leva a acreditar a razão ou a manipulação - podemos influenciar ou minimizar. Deste modo somos dirigidos para alvos substitutos sobre os quais descarregamos os medos excedentes e sobrantes do definhamento dos vínculos laborais, da previdência e segurança sociais, da protecção de roubos e assaltos etc. Povoados de ansiedades, somos intimados a reconhecer e vigiar sintomas de doenças aterradoras, a tomar cuidados e precauções e a adoptar regras e comportamentos para combater o stress, a pressão alta, as taxas elevadas de colesterol e diabetes, a evitar comidas gordurosas e a ingestão de calorias em demasia, o sexo sem preservativo, a inalação de fumo, a encurtar a exposição ao sol, a beber muita água e ser moderado no consumo de outras bebidas, sobretudo das alcoólicas - e não sei quantas coisas mais.

Ou seja, o progresso científico e tecnológico e a melhoria das condições de vida tornaram-se uma ameaça para esta, ocasionando fantasmas, desconfianças e reservas e a necessidade de a submeter a nova ordem. É como se, para vermos e nos mantermos vivos, tivéssemos que prescindir da visão das cores, amputar a própria vida ou sacrificar uma dimensão essencial dela. Obviamente para nosso bem, conforto e conveniência!

Contra isto insurge-se Vasco Pulido Valente num texto intitulado Por bondade, a propósito da proibição de fumar em restaurantes. Atente-se nestes excertos: “Isto não anuncia nada de bom. Por um lado, porque fatalmente à campanha contra quem fuma se vai seguir a campanha contra quem bebe e a campanha contra quem come o que não deve ou come demais. E talvez, mais tarde, a campanha contra o ‘sedentarismo’ e a falta de exercício. Não custa nada argumentar com as doenças que o álcool e a gordura provocam (tantas como o tabaco), ou retirar do mercado ‘produtos de risco’, ou vigiar o que os restaurantes servem. Por outro lado, já se viu que o poder do Estado para converter a populaça ao objectivo tenebroso de ‘melhorar o homem’ é hoje ilimitado. A metamorfose das democracias do Ocidente em totalitarismos de uma nova espécie não incomoda ninguém. Não uso a palavra descuidadamente (não uso, de resto, nenhuma palavra descuidadamente): para Hitler (que não fumava, nem bebia), o alemão perfeito não andava muito longe do perfeito espécime do Ocidente contemporâneo.

Imagino muitas vezes quem, de facto, quererá este mundo sufocante e asséptico, obcecado com a ‘saúde’? Gente, como e óbvio, com pouca imaginação. Por mais forte que seja o culto e a idolatria do corpo, a velhice chega. E, com ela, a irrelevãncia, a obsolescência, a solidão. Esta sociedade de velhos trata muito mal os velhos. A ideia (e a propaganda) de uma adaptação contínua e uma grande e cruel mentira. Os velhos são um embaraço. Um peso que se atura, que se arruma num canto, que se mete num ‘lar’. Setenta anos de esforço para durar acabam num limbo à margem da verdadeira vida, quando não acabam no sofrimento e na miséria. O Ocidente está a criar um inferno. Por bondade, claro”. [28]

(Em jeito de parêntesis, vale a pena introduzir aqui um alerta. Os sistemas autoritários lançam desta arte os seus alicerces: sendo maus no geral, apoiam-se na aceitação e agrado, no populismo e demagogia de algumas medidas isoladas, tidas por boas; ou seja, começam por atacar grupos sociais menos populares e hábitos mais questionáveis, concitando assim o aplauso da maioria, para depois irem estendendo, passo a passo, as suas ramificações e tentáculos).

Vasco Pulido Valente retoma o assunto num texto com o não menos pertinente título Uma questão política. [29] Após insistir na questão das campanhas contra o tabaco e o álcool, volta-se para o tema da comida, da obesidade e exercício físico. Dão muito que pensar estas elaborações: “A obesidade também é uma questão política. Política, reparem. E é bom parar para uma pergunta: por que razão diz respeito aos Estados a obesidade do sr. A ou da sra. B ou mesmo de uma parte considerável da plebe democrática? Porque há tese, aliás controversa, de que morrem mais cedo (doenças cardiovasculares, renais, diabetes, vários tipos de cancro)? Porque gastam mais dinheiro ao sistema de saúde (embora com certeza poupando à segurança social)? Ou porque os governos, levados por um irresistível sentimento estético e um novo zelo pelo seu prestígio internacional, não querem a paisagem desfeada por gordos, nem a presença comprometedora de gordos na televisão?

Não me parece que a verdadeira explicação esteja principalmente aí. Beber ‘bem’ (mas não muito), comer pouco e só o que a medicina indica, ser magro (e, por consequência, ‘bonito’) e fazer exercício com regularidade acabou por se tornar uma distinção de ‘classe’. Uma distinção que separa os ‘ricos’ dos ‘pobres’ (que não frequentam um nutricionista) e os poderosos dos metecos (não por acaso o primeiro-ministro insiste em correr meio nu pelo mundo inteiro). Como antigamente o ouro, a prata e as rendas separavam a opulência da miséria, o corpo e a saúde são hoje um sinal e um símbolo de superioridade. E, pior ainda, um meio de promoção social. (…) A obesidade é uma questão política. Para nossa desgraça”. [30]

Contra estas considerações poderá argumentar-se que contêm exageros manifestos e também alguns e não desprezíveis enviesamentos na análise e na enunciação das causas e implicações. Que o autor se serve de um álibi para ignorar ou contornar a ‘ética do cuidado’ de si e dos outros, proclamada por Martin Heidegger (1889-1976), libertando assim cada um e, tão ou mais grave, o Estado de cumprir a sua parte, no geral e no particular. E que, por esta via, desculpa, branqueia e favorece, premeditadamente ou não, comportamentos de incúria, laxismo, desleixo, abandono e descuido, de imoderação, incontinência e desobrigação, desbragamento e abestalhamento, de irresponsabilidade, frouxidão e moleza, propícios à progressão da vileza, do grotesco, do imundo e desproporcionado e contrários ao dever de perseguir, com brio e coragem, a busca da melhoria, da virtude, da perfeição, da estética, da excelência e areté.

Não é de ignorar que na proclamação de cuidados e cautelas - em relação aos seus contrários - conflui igualmente o princípio e imperativo da responsabilidade, enunciado por Hans Jonas (1903-1993). Na falta de virtude e sabedoria, este filósofo recomenda o uso do medo como método heurístico para conhecer e apreciar o bem, com o intuito de sair das bandas da ignorância e da imprudência, de prever e evitar o pior; e assim  converte aquele postulado numa espécie de ética. Do mesmo teor é a posição de Jacques Rancière, pensador pós-marxista, que vê o medo como aliado e cúmplice da razão, como meio de tomar consciência dos desequilíbrios, desordens, desregulações e ameaças e como princípio natural das sociedades, coadjuvando na substituição da brutalidade e do caos dos factos negativos e reprováveis pela estética das ficções positivas e desejáveis.

Ou seja, o medo é um sentimento vital, uma fonte de conhecimento e esclarecimento, um estímulo enérgico, predisponente e produtivo e um motor da vontade e da acção para prevenir e proteger de riscos, para originar efeitos bons e diminuir e corrigir males. Nesta conformidade constitui um dever antecipar e apontar ao máximo os perigos imersos nos mais distintos comportamentos, assim como provocar um temor adequado a essa representação. Adequado, justo e equilibrado, note-se bem!

Mas isto não se compagina com posições e maquinações tendentes a perverter e transformar os receios em terror e pânico, a romper com “toda a possível mediação entre medo e razão”, a criar um florescente mercado de medicamentalização, amedrontamento e policiamento das vidas, a aumentar a incerteza, angústia e fobia, a sensação de vulnerabilidade e dependência dos sujeitos, ao invés da pretensão iluminista da sua emancipação. Porque este clima gera “a ausência de um sentido para a civilização” e a impossibilidade de imaginar o futuro. Acima de tudo joga o homem “para fora do ser sem o saber”, diminui-lhe a capacidade de autonomia. Ao subtrair-lhe a condição e vocação de “ser-para-a-liberdade” induz a sua sujeição à desnaturação, humilha-o e rebaixa-o para o estado de decadência e obediência que engendram nele a adesão à servidão voluntária, isto é, a uma deprimente e “estranha síntese, impensável conjuntura, inominável realidade”. [31]

Esta situação convida-nos a desconfiar do recurso grosseiro ao alvoroço do veneno do medo e a recusar o seu aproveitamento como estratégia e ferramenta da actuação política ou outra. Porque, diz Luc Ferry, “para viver bem, para viver livremente, com alegria, generosidade e amor, precisamos, antes de tudo, vencer o medo – ou, melhor dizendo, ‘os’ medos, tão diversas são as formas do Irreversível”. [32] E Bento (Baruch) de Espinosa (1632-1677) alinhava por igual diapasão, com a alusão de que o sábio “morre menos que o tolo” e com esta certeira advertência: governada pelo medo e pela alienação a sociedade torna-se solidão e barbárie, cidade de escravos, onde os cidadãos são bons e honestos à medida do temor e da tristeza que sentem. Com isto coincide, na perfeição, a célebre proposição de Montesquieu (1689-1755), vulto cimeiro do Iluminismo francês: “Como o princípio do despotismo é o medo, o objectivo é a tranquilidade; mas isto não é absolutamente uma paz: é o silêncio das cidades que o inimigo está prestes a ocupar”.

Entendamo-nos, sem equívocos: o medo não é negativo, nem tampouco vergonhoso; “a vergonha está em construir uma política que usa o medo para dominar”. Ninguém de sã consciência, de esclarecida razão e recta intenção pode aceitar e conformar-se a um estado de manipulação e terrorismo psicológico. Pelo que, como lembra Adauto Novaes, temos que retomar o sonho da filosofia para penetrar nas causas do medo, com o intuito de o fazer desaparecer e desmistificar os ganhos ilusórios que dele decorrem. O desafio não é pequeno, porquanto “o primeiro passo consiste em desfazer-nos do próprio tipo de sociedade que cultiva o medo e o terror”. [33]

Por conseguinte temos que evitar maniqueísmos, cultivar a serenidade, situar-nos no meio-termo e encontrar um justo equilíbrio, na esteira da sábia advertência de Erasmo de Roterdão (1466 ou 1467-1536): “Não navega mal quem passa a igual distância entre dois males extremos”. Contudo, na sua essência, os textos atrás citados (de Vasco Pulido Valente)  põem a nu os paradoxos desta hora, como sejam, por exemplo, os de, por um lado, se advogar a longevidade e, por outro, se tratar tão mal a velhice, retirando-lhe a segurança social e a assistência na doença. Ao mesmo tempo as referidas análises convergem para elucidar, de modo nítido e insofismável, que o ardil de recorrer ao medo e a formas de assustar e condicionar representa um fracasso da razão argumentativa no convencimento dos indivíduos a autolimitar os seus desejos e é um péssimo método para influenciar e modificar as atitudes e condutas das pessoas. Mais, aqueles textos expõem o engrossamento do caudal de instrumentalização e exploração do medo e  evidenciam o refinamento e a multiplicação dos mecanismos de controle das pessoas, do seu corpo, dos estilos, estereótipos, conceitos, referências, padrões, projectos e anseios de comportamento e vida. [34]

Eis os traços de um totalitarismo de cariz securitário e sanitário, assaz semelhante à ideologia fascista ou à hitlerista que via nas imperfeições um motivo suficiente para varrer os seus portadores da face da Terra! E que parece estar assimilado por muita gente, por força da profusão publicitária ao seu serviço, sem que ninguém mais se incomode com sua origem, motivação, justificação e as drásticas consequências. [35]

Estamos, pois, perante uma irracionalidade igual ou quiçá maior do que a da indiferença face a estilos de vida indutores de risco. É à volta disto que cresce um exército de regeneradores e zeladores da saúde e das suas rotinas, regras e virtudes, uma onda de iluminados especialistas em tecnologias, serviços e coisas quejandas. Tais peritos, em nome de determinadas ‘crenças’, conveniências e promessas de aumento da vida e de obtenção e manutenção da sua qualidade, limitam o seu usufruto, estabelecem inibições, decretam aquilo que deve ser feito, consentido e enaltecido, proibido e censurado e esfalfam-se a tentar convencer-nos e a incitar-nos a viver num nível inferior, comedido e contido de possibilidades. [36] Para tanto publicitam, exageram e tiram partido, de maneira deliberada e assustadora, de pânicos, depressões e angústias. Atarantam as criaturas, estimulam a adesão a acções defensivas, favoráveis à auto-propagação do medo - sem tocar, nem sequer ao de leve, nas suas origens! - e introduzem uma desordem que aproveita ao seu mister. Enfim o capital do medo e da insegurança é usado para obter lucro e vantagem, a roçar a ilicitude, no plano político e comercial e até no académico e ‘científico’.

Os arautos do activismo físico também se revêem e bebem nestas águas. Os seus discursos, escritos, simpósios e recomendações têm duas faces: numa faz-se a radiografia e o diagnóstico de causas e perigos da morte; na outra tecem-se promessas e esperanças de saúde e longevidade e tabela-se o preço a pagar pela salvação. Tal e qual como nas liturgias das seitas religiosas! O círculo vicioso do medo e das acções nele inspiradas segue em frente, sem sofrer o mínimo abalo e sem tocar no objectivo invocado. Para que a fonte não seque e a mina não esgote.

Devemos ainda dizer e reconhecer que não são raros os congressos e publicações acerca das relações entre ‘actividade física’ e saúde que se assemelham a um desfile e ritual lúgubres e sistemáticos de palestras e intervenções alarmistas e intimidadoras, destinadas a fazer cair sobre a vida um manto negro de sustos, alarmes e proibições. Depois segue-se uma ementa generosa de receitas e bulas infalíveis que visam exorcizar e esconjurar os demónios da morte e prometem vida abundante.

Estamos manifestamente a cair em exageros, tanto no geral como no particular. O capital do medo virou manancial de exploração e negócio rentável em todos os sectores, em nome da preservação da saúde e do prolongamento da vida. A alienação e a manipulação alastram!

 

DO MAL-ESTAR PÓS-MODERNO

A situação afigura-se, já foi dito, como paradoxal. Por um lado, no plano ético, estamos a viver um período de relativismo, de elitismo invertido, de desclassificação ou dificuldade e mesmo impossibilidade de estabelecer hierarquias de princípios e valores, de afrouxamento dos vínculos a obrigações e deveres, a normas e regras. Por outro lado, os interesses políticos, económicos e comerciais impõem um progressivo policiamento e sancionamento dos nossos hábitos e rotinas, bem como um pesado adormecimento das consciências e vontades, com o fito de promover comportamentos propícios aos apetites e ganhos do mercado e consumo. Daqui decorre que o grande produto da dita pós-modernidade seja, sem tirar nem pôr, a desorientação.

Curiosamente alguns autores contemporâneos carregam nas tintas do paradoxo, ao definirem e saudarem a pós-modernidade como o tempo de consagração da autonomia, da emancipação, da liberdade e individualização, a era do sujeito e da subjetividade plena etc. Todavia, à sombra de uma pretensa liberdade de opção, vivemos reféns de um poderoso sistema arbitrário e totalitário. Um GPS nos localiza, um telemóvel nos denuncia, um computador nos incrimina. Aonde vamos somos filmados e convidados a sorrir para a câmara. Os nossos corpos são “amarrados informaticamente”, diz Mark Poster, “fisgados dentro das redes, dos bancos de dados, nas auto-estradas da informação”, em locais que “não mais oferecem refúgio à observação ou uma barreira em torno da qual se possa traçar uma linha de resistênca”. [37]

Afinal no palco pós-moderno não é somente encenada a liberdade; do cenário também fazem parte a feiura, a servidão e escravidão. Qual das duas versões é a mais representativa? O que é a liberdade hoje? Alguém está cego ou míope! Precisamos urgentemente de um ensaio sobre esse conceito no mundo pós-moderno.

A modernidade e as respectivas filosofia e ciência, de teor iluminista e humanista, erigiram e legitimaram a esperança e a idéia de progresso de uma humanidade adulta, emancipada e livre das diversas formas de idolatria, hemiplegia e obscurantismo pelo acendimento da luz da razão. Como diz Adroaldo Gaya, a modernidade trouxe-nos a confiança “na capacidade criadora e construtora do homem”. Graças a essa chama “a humanidade deveria progredir, aperfeiçoar-se, caminhar triunfalmente para o seu apogeu. Neste cenário se constituíram as utopias políticas que prometeram tempos de fraternidade, felicidade. A ciência moderna constituiu-se e prometeu aos humanos a compreensão racional do universo; a tecnologia, por sua vez, prometeu a emancipação do homem frente às agruras dos determinismos biológicos e da natureza”. [38]

Mas... o que resta dessa extraordinária e desmedida visão? Não pouca frustração, devida a um dos grandes equívocos e erros das ilusórias expectativas do mundo moderno, nomeadamente o de acreditar que as funestas e trágicas coisas do passado não se repetiriam. A medida da desilusão é, pois, a mesma da esperança que a precede.

Vivemos hoje num contexto distante do paraíso prometido. A ciência tornou-se realmente um forte poder, como vaticinou Augusto Comte (1798-1857), porém nem sempre ao serviço de fins nobres e causas superiores. O nosso tempo ostenta o selo do desencanto com a irrealização das promessas do passado e da desconfiança no futuro oferecido na bandeja da inconsistência e volatilidade do presente. Estamos na pós-modernidade, uma era de destruição e desesperança nuas e cruas. Não acreditamos nas tradições (desacreditadas pela modernidade) e tampouco confiamos no futuro associado a esta época desconcertante. Gastas as referências e desfeitas as utopias, o tempo é o agora e o espaço é o aqui. O aqui e o agora são os paradigmas vigentes, acusa Adroaldo Gaya. “Isto significa que só o presente vale.(...) O ontem ‘já era’, não mais existe; o futuro, por sua vez, ainda não existe... Portanto, tudo é o agora, o presente”. É a cultura da velocidade e do efémero, da fatuidade e vacuidade, de um reformismo sem perspectiva, de um caminhar sem rumo, de uma passada sem amplitude e firmeza.

Pior ainda, continua Adroaldo Gaya: “Na pós-modernidade a verdade é relativa, o mesmo é dizer que não mais nos preocupamos em tratar a verdade como real sentido de nossas vidas, como valor moral e ético. A verdade se apresenta como valor pragmático; serve para solucionar nossos problemas imediatos. Na pós-modernidade tudo vale; o que significa que nada vale. (…) A sociedade é líquida, o amor é líquido, o tempo é líquido, tudo é líquido, o sólido se desfaz. Nada mais é sequer viscoso, tudo escorre pelos dedos das mãos”.

Em síntese, o mal-estar da pós-modernidade e das suas linhas axiais  (relativismo, ética indolor, crepúsculo do dever, vazio e irracionalidade, individualismo e egoísmo, inconsistência e insatisfação, confusão, fragilidade e desconforto interiores), do mercado neoliberal, da insegurança objectiva ou subjectiva, real ou virtual atazana, comprime, deprime e asfixia o nosso quotidiano. A percepção e o sentimento - ambos exagerados - do medo, da incerteza, da desconfiança e do desconcerto vieram e estão aí para ficar e durar. A pós-modernidade e a contemporaneidade são um hiato preenchido por uma inesgotável mania de folia, hedonismo e carpe diem, a lembrar um manicómio e um reino da paranóia e da infantilidade demencial, tornando justo o apontamento do filósofo alemão Artur Schopenhauer (1788-1860): “A dor e o tédio são os maiores inimigos da felicidade”.

Este mal-estar excessivo é, no dizer de Ronaldo Monte, a expressão de “uma profunda mutação histórica sofrida nos últimos anos que deixa cada um de nós despojado de um projeto que nos permita vislumbrar uma situação futura de bem-estar”. Os seus sintomas são visíveis nas crianças, nos adultos e idosos.

As crianças “deixaram de ser os depositários dos sonhos inacabados dos adultos. Não vemos mais nossos filhos como aqueles que encontrarão no futuro um modo de remediar os males que afligem nossa geração. O que propomos agora para nossos filhos – pelo menos àqueles que ainda fazem parte de uma proposta [39] – está reduzido (à preocupação de que) consigam as ferramentas futuras para sobreviver em um mundo que se apresenta com uma crueldade maior que o presente. Perdendo o seu caráter lúdico, a infância entra em moratória, transformando-se apenas em uma etapa de trabalho. E não só as crianças excluídas são entregues ao trabalho das ruas. Os filhos da classe média se submetem a jornadas com mais de dez horas de trabalho em ambientes de aperfeiçoamento altamente competitivos, chegando prematuramente ao stress. Isto apenas para não irem fazer companhia às outras, do lado de fora do cinturão cada vez mais apertado dos beneficiários da sociedade do espetáculo e do consumo”.  

“No outro extremo da cadeia geracional, vemos uma velhice degradada, condenada à indignidade das aposentadorias aviltadas ou à má vontade da caridade pública, sofrendo o desdém de toda uma sabedoria que perde a razão de ser pela substituição de valores e quebra de continuidade dos saberes”.

Entre a infância e a velhice, vagueiam os adultos, uma geração perdida e “à procura de um rumo. A aceleração do processo de globalização, a ruptura do precário equilíbrio que dividia ideologicamente o mundo, o descolamento da ordem econômica da política, fizeram com que as pessoas perdessem os pontos de apoio para sua organização subjetiva. Tudo o que vinha sendo pensado, entrou em crise. (…) Vivemos a perplexidade de não saber o que conservar e o que descartar. Perdemos, enfim, o fio da meada”. 

Ronaldo Monte conclui, com traços sombrios, o retrato do mal-estar contemporâneo: “Perplexo frente a esta massa aterrorizante de ataques ao seu equilíbrio social e psíquico, restam, a meu ver, duas saídas defensivas ao indivíduo. A primeira, de ordem paranóica, faz com que escolha um grupo cujas características étnicas, religiosas, de género, ou simplesmente comportamentais sirvam para projetar toda a culpa pelo mal de que se sente vitimado. A segunda, de ordem depressiva, faz com que tome para si toda a responsabilidade sobre o seu fracasso. Seja qual for a saída defensiva, o que se observa é a êxtase do desejo pelo não reconhecimento de um objeto de atração que o coloque em movimento”. [40]

Martin Heidegger, eminente pensador do Ser, acertou em cheio, quando declarou: “O seguro não é seguro, é terrível”. Estava a fazer uma premonição. Com efeito foram-se os parâmetros, as bóias e âncoras, os alicerces e pilares legados pelo humanismo e modernidade. E, no seu lugar, ficou um vazio onde se instala toda a sorte de inquietudes, descrenças, descorçoamentos e nevoeiros que invadem paulatinamente a vida. O mundo natural é cada vez mais incerto e menos fiável; e o social – das instituições credoras de apreço e respeitabilidade, que aprendemos a ver como guardiãs do apoio, segurança e tranquilidade, em caso de problemas – desmorona-se com fragor e a olhos vistos. Somos crianças perdidas, confusas e errantes, inundadas e possuídas pela sensação de impotência, carentes de orientação e protecção.

Como diz Kundera, o ambiente é de cerração, embora não de escuridão total, impeditiva de qualquer olhar ou movimento. Somos livres, porém só temos a liberdade de uma pessoa na neblina: vemos coisas e gente à nossa volta e reagimos aos seus actos e efeitos, mas não enxergamos para além de um raio diminuto. Viver no lusco-fusco obriga-nos a focalizar a atenção na proximidade, nos problemas e perigos visíveis, imediatos e prováveis. Vemos e vivemos no perto, no superficial e transitório, no curto prazo e alcance; não divisamos ao longe, na obscuridade e profundidade. [41]

A luz brilha nalgumas casas, mas em muitas – e são cada vez mais! – a claridade esvai-se e cresce o desespero do negrume. A estreiteza e a farsa da vida na neblina assemelham-nos aos passageiros da primeira e última viagem do Titanic. [42]

Sabemos que há um iceberg à nossa espera e que ele nos afundará fatalmente. Contudo, despojados dos meios e da vontade de o localizar e contornar, damo-nos à cegueira e à fatalidade e avançamos para o choque, bebendo e dançando ao som da orquestra da leviandade e irresponsabilidade, indiferentes a advertências e sussurros de maus presságios. As tábuas de navegar são postas de lado. Na neblina vale tudo. Por isso brutal e preocupante não é o iceberg, mas a falta de um plano sensato e viável para evacuar e salvar os passageiros do navio que segue para o abismo, sem botes e coletes de salva-vidas. É este logro ilusório que apanha as vítimas desprevenidas e incapazes de reagir. Aquilo que não se afunda é quase nada; o que resta é um papel fino, encharcado e enregelado. Tapado pela neblina o sol da humanidade, o sonho esfuma-se e toma a deformação de um pesadelo.

Como se percebe bem, o ‘progresso’ dos nossos dias tem uma matriz estranha: aproveita-se da falta de difusão da luz; nutre-se e cresce do cinzentismo e do oportunismo, da miopia e da anestesia, da irreflexão e alienação, da trapaça e do embuste que nos envolvem. E conduz inevitavelmente ao colapso; porque este clima cerceia o espaço vital e fecha o horizonte, como se não houvesse amanhã.

A profecia está a ser cumprida: o apocalipse acontece aqui e agora, no coração do orbe civilizado, euforicamente aclamado pelo seu esplendor e pelo deleite da ilimitada diversão e indiferença. Confirmando que a casca da civilização tem a espessura de uma hóstia. Que somos frágeis, náufragos, transitórios e passageiros, errantes e fracassados; andamos à procura de um ombro para reclinar o rosto do desassossego. E que lutamos nova e rijamente pela sobrevivência como cães esfaimados e selvagens, num contexto de regressão e descivilização, convidativo à peleja de todos contra todos.

O maior problema que enfrentamos, acusa Zygmunt Bauman, é o de nos demitirmos de questionar a condição contemporânea, de não sabermos ou querermos distinguir entre a cobardia e a coragem. “O preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do sofrimento humano. Fazer as perguntas certas constitui, afinal, toda a diferença entre sina e destino, entre andar à deriva e viajar. Questionar as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos”. [43]

Em que regime vivemos? Liberdade ou escravidão? Que transcendência e sentido alumiam os nossos dias? A que nível de cidadania, civilidade, civilização, cultura e sabedoria estamos chegando? É isto que queremos e procuramos e nos realiza e exalta? Somos seres de fuga e deriva. Donde fugimos e para onde vamos? Que sociedade estamos a desfazer e que humanidade estamos a construir? Que respublica, democracia [44] e vida são estas?

Yves de la Taille é conciso e conclusivo: “Vivemos no eterno presente (...), pulamos de pequenas urgências para outras pequenas urgências, de eventos para outros eventos, de fragmentos para outros fragmentos. Verificamos também que, desde o século XVIII, negamos ao passado poderes fertilizadores para o presente e que, desde o final do século XX, negamos esses mesmos poderes ao futuro, que passa a ser antes ameaçador do que promissor. E, finalmente, verificamos que, hoje em dia, é preciso antes esquecer do que aprender, antes descartar do que conservar, antes consumir do que poupar.

Em resumo, cortamos o tempo e, assim sendo, penamos em atribuir um sentido à vida. Para que tal sentido tenha chances de voltar a fluir, precisamos resgatar o passado e retomar em nossas mãos as rédeas do futuro”. [45] Precisamos, nota Barack Obama, de entender a crise deste tempo como nova oportunidade para forjar uma “humanidade comum”, como um indicador de que “acabou a era da satisfação imediata e começou a era da responsabilidade” e de que a luta contra “o medo e a necessidade” é um dever moral, no interesse vital da democracia. [46]

 

NECESSIDADE DE EQUILÍBRIO E SENSATEZ

Perante os desvarios atrás expostos, reveladores de uma manifesta crise de identidade e periclitante condição, não se defende nem intenta regressar ao passado ou carpir saudades e lamentos por ele; porém é necessário aprofundar e construir outro presente. Ora isto manda recriar ideias e ideais que balizem o desenvolvimento e permitam obviar e abater os cúmulos do desconcerto. Essa obrigação não a podemos alijar, como me lembrou Ronaldo Monte, muito a preceito, quando em tempos lhe dei conta do estado de alma expresso nas páginas anteriores; ele reagiu assim: “Esta neblina nos envolve a todos, em todos os continentes. Mas ainda não estamos cegos. E mesmo vendo muito pouco, podemos nos apalpar e acharmos as mãos. E trôpegos, mas lúcidos, ainda podemos fazer um caminho que nos leve além da neblina, à clareira da solidariedade. Aí nos reencontraremos novamente”.

Para tanto devemos confrontar-nos com a desmesurada percepção de medos, em tudo e em toda a parte, porquanto ela está a lavrar o terreno para novas formas de totalitarismo, nomeadamente o securitário e higienista. Está a enterrar valores axiais do Humanismo e Iluminismo - liberdade, autonomia, emancipação, maioridade e florescimento da razão – e a ceder o lugar a um regime de vida próximo da escravidão.

Mais ainda, sem tomarmos a devida nota, deixamo-ns envolver na construção de um gigantesco condomínio de barreiras existenciais, edificado com os tijolos da absurdidade e policiado por uma legião de proibições, restrições e coações, de penas e coimas sempre aquém da necessidade. Reclamamos cada vez mais ‘lei, ordem e disciplina’, mais prisões e polícias de todos os gestos e gostos, dos nossos e dos outros, instaurando em cada pessoa um bloqueio e sufoco infernais e olhares paralisantes. Tudo é controlado, modelado e prescrito, desde o tamanho das frutas, passando pela obrigatoriedade de indicação de calorias dos alimentos e bebidas etc. e do fabrico e embalagem dos mais diversos e tradicionais produtos alimentícios, até às regras e hábitos da conduta individual. [47]

Em toda a rua e esquina, em toda a estrada e encruzilhada queremos ter quem nos defenda e proteja e nos aconselhe e indique o caminho a tomar. O equilíbrio entre a rigidez e dureza das virtudes,  valores e hábitos espartanos e a abertura e flexibilidade dos atenienses é muito difícil de alcançar. Mais, parece até que, na actual e paradoxal deriva, nos inclinamos mais para Esparta do que para Atenas.

Isto demonstra, de modo sobejo e eloquente, que padecemos da falta de conhecimento de orientação. Para ser mais preciso, pagamos e sofremos o preço da sua desvalorização. A ciência, seja no silêncio e anonimato dos laboratórios, seja nos conhecidos e badalados centros de investigação e reflexão, não é paga para isso, vê-se despida dos grandes ideais e fins, em proveito dos meios; e é convertida em mera técnica. Simultaneamente altera-se total e radicalmente a noção de progresso que anteriormente a animava. Não se orienta tanto por referências e finalidades transcendentes; está sujeita ao predomínio e ditadura do paradigma produtivista, visa sobretudo competir, medir-se, igualar-se e, tanto quanto possível, superar a concorrência em números e citações, apresentar a toda a hora dados novos, segundo os normativos de consumo em moda e face à realidade constantemente mutante. Ajuda assim a impor esta e serve os fins e a voracidade de um mercado volátil e caótico, em permanente e febril ebulição. Ela é o fim em si mesmo, segue um imperativo de produção consumista absolutamente vital, em obediência a ditames semelhantes aos da selecção natural de Charles Darwin (1809-1882). Não espanta, por isso, que a ciência se funda com a técnica e tecnologia e evolua (?!) para ‘tecnociência’ e as três se enlacem com o contexto económico e vejam o seu avanço requerido, incensado e financiado por ele. 

Desta forma parecem ficar suficientemente delineados os contornos do “mundo da técnica”, traçados por Heidegger, tal como se percebem as razões que o animavam e levavam a denunciá-lo: não se trata mais de dominar a natureza ou aconselhar a sociedade em função da liberdade e felicidade, mas apenas em função da necessidade de competir, uma necessidade de proveniência exógena, isto é, imposta de fora pela obrigação absoluta de ‘progredir ou perecer’.

O aparato científico da modernidade estabelecia o objecto, os métodos, os resultados e a sua aplicação, com base na autonomia da razão, segundo critérios de independência imanentes ao conhecimento. A nova situação, decretada e aplaudida pelos ‘papagaios do pós-modernismo’, subordina o saber a imperativos exteriores. Deste modo a ciência, uma das mais belas e exaltantes criações do génio humano, fica à mercê dos interesses económicos e empresariais; são eles e o mercado que determinam a utilidade e inutilidade, a validade e caducidade dos saberes; são eles que concedem orçamentos e financiamentos.

Consequentemente a tradicional autonomia da ciência, dos centros de saber e investigação deriva para heteronomia; cai na dependência dos poderes neoliberais. Também assim se perde a liberdade que era condição tanto da qualidade do saber como da autoridade moral dos intelectuais - e das suas instituições - envolvidos com as causas da sociedade. Por isso é legítimo perguntar se as organizações académicas ainda são genuínos foros de conhecimento e de reflexão sobre o devir social ou se resvalaram para instrumentos de conformação e imposição do ‘pensamento’ único e dominante.

Concretizando, a “tecnização do mundo” e da competição técnica globalizada, que nos envolvem, surgem a partir da desconstrução e demolição de marcos e alvos transcendentes e superiores; deixaram de parte a racionalidade instrumental da técnica, afundaram o reino dos fins e consagraram a lógica independentista e absolutista dos meios. É esta a larga, amarga e dura linha que demarca e afasta o Iluminismo, o Humanismo e a Modernidade do mundo contemporâneo: as febris e instáveis evoluções e circunstâncias, decorrentes aqui e agora e a toda a hora, não se ligam a nenhum projecto comum e não almejam um mundo melhor, antes se demitem de equacionar e chamar a si intenções dessa envergadura e empresas desse teor.

Ao fim e ao cabo, o vazio e a pobreza de espírito, as inseguranças, temores e depressões, a insatisfação e a crise da identidade povoam cada vez mais esta hora. As tão cantadas promessas esboroam-se como um castelo de areia e não vão além de um logro impingido aos incautos. A ética prevalecente tem a matriz de ‘indolor’; mas, ao invés, a vida e a sociedade do presente são uma fonte e um mar de mortificação e dor, de iniquidade e injustiça, de abandono e frustração, de esquecimento e solidão, de tantas esperanças e promessas destruídas e vidas desperdiçadas. Chamam a isto civilização e evolução, um avanço da democracia e cidadania, um acréscimo da qualidade de vida!

É certo que nada nos impede de manter o optimismo. Mas essa atitude provém mais da necessidade e aspiração, do desejo e da boa-vontade do que de convicções fundadas nos factos em que a realidade é sobeja. Basta olhar em redor e reflectir um pouco para cair no pessimismo e para notar que o receio e a angústia tendem a tornar-se, como assinala Luc Ferry, “a paixão democrática por excelência”. [48]

Como corolário, remata - e bem! - Frei Bento Domingues, “se a crise financeira e económica de consequências globais não for aproveitada para questionar e alterar a orientação absurda da nossa civilização, se não fizer surgir um novo olhar sobre o mundo e o ser humano, se não levar a um novo caminho, só resta continuar de alienação em alienação, na rota da autodestruição”. [49]

Continua, pois, por edificar uma residência estável para o homem, nesta terra donde os deuses debandaram ou foram retirados. Talvez porque ele, lembra Michel Foucault, “não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao ser humano”. E apesar do homem ser “uma invenção, e uma invenção recente”, os rumos deste tempo, se não forrem corrigidos, indicam “o seu próximo fim”. [50]

 

CONCLUSÃO: MANUTENÇÃO DO MISTÉRIO

Primeiro:

Esta nossa sociedade de consumo nutre-se do ambiente de medos e preocupações existenciais em que ela assente e ajuda a multiplicá-lo. É uma sociedade da reinvenção do medo e de novas modalidades da sua exploração, para finalidades de negócio e lucro nos mais diversos campos. O poeta António Gedeão disse que “uns se organizam no medo; outros na esperança”. [51] Quanto à primeira parte da afirmação, ela está amplamente comprovada; quanto à segunda, tudo aponta para o facto de a esperança viver em letargia ou num notório definhamento. Parece que as pessoas precisam de entrar no jogo, não tanto por esperança, mas sobretudo pela necessidade de se submeterem a uma constante remodelação, para que não lhes suceda o que acontece às roupas e não ficarem obsoletas. O mesmo é dizer que têm de orientar a sua vida para o consumo, sendo elas mesmo transformadas em mercadorias, como regista Zygmunt Bauman. [52]

A transformação das pessoas em mercadorias é o objectivo último - não declarado, porém não tão oculto e sub-reptício que não deixe à mostra sinais que o tornam perfeitamente claro e visível - da actual sociedade de consumo. A sua aparência e forma de apresentação estão sujeitas a um desgaste contínuo, carecidas portanto de constante reciclagem, até ao ponto em que já não conseguem corresponder ao figurino da moda; aí também vêem ultrapassado o prazo de validade e são deitadas fora. A modificação é obrigatória e compulsiva, está para os consumidores como o metabolismo está para os organismos vivos; se deixarem de consumir e de seguir os continuamente mudados padrões em vigor, os indivíduos põem-se à margem da existência, por desrespeitarem uma nova e cimeira máxima: Consumo, logo existo!

Consequentemente o activismo físico, para além de respeitar os alertas de ordem funcional, é parte do empreendimento mais lato, destinado a promover e permanecer uma mercadoria apreciada e atraente, bem cotada e desejável. A manutenção e a remodelação da ‘boa’ condição corporal são um imperativo decorrente da necessidade de captar as boas graças das atenções e olhares, de vigiar e conter à distância os perigos e ameaças da marginalização, de se subtrair ao esquecimento e à eliminação. Ou seja, os diversos tipos de cuidados e intervenções no corpo não são propriamente um luxo ou extravagância dispensável; ao invés, têm perfeita justificação existencial.

Ademais, o normativo vigente ordena que o privado (seja ele de ordem física ou psíquica ou social) se torne público, que nada fique escondido ou invisível. À mulher de César não basta sê-lo; tem mesmo que parecê-lo, tem que cuidar da aparência, desenvolver um considerável esforço para recompor a toda a hora a sua subjectividade com as qualidades inerentes a um produto estimulador de apetência e consumo; tem que se exibir e comprovar na praça pública e receber desta a consequente aprovação ou reprovação. É assim que o consumidor se transforma e dilui no mar das mercadorias. Zygmunt Bauman remata de modo cru, mas pleno e certeiro: “Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e contos de fadas”. [53]

Segundo:

No concernente à gigantesca onda do activismo físico, propagandeado e aconselhado por ser saudável e positivo face a um desporto difamado como maléfico e negativo, subscrevem-se e sublinham-se os reparos feitos por Adroaldo Gaya: “convenhamos que assumir o paradigma da atividade física facilita muito a professores e alunos. Por quê? Ora! Por uma simples razão. No esporte é necessário deter muitos conhecimentos científicos e filosóficos para planejar programas de aprendizagem e treino esportivo com o rigor pedagógico necessário. Na atividade física, basta um exame médico que ‘libere’ o cidadão e ele poderá ‘exercitar-se’ lavando seu carro, cortando a grama do jardim, indo trabalhar a pé e usando escada ao invés de elevadores (…) Entrega-se exclusivamente à medicina a propriedade de assumir a responsabilidade com a prática da atividade física e, dessa forma, excluindo a necessidade de programas de treino, de exercícios físicos que, como sabemos, devem ser planejados por profissionais competentes e que apontem objetivos claros. Por outro lado, e aqui vai uma acusação frontal, as bases científicas que sustentam os programas de atividade física são parcialmente escamoteadas pelos defensores do higienismo pós-moderno. O que a ciência nos informa, com elevados níveis de confiança, é de que na comparação entre indivíduos sedentários e aqueles que realizam algumas atividades físicas sistemáticas o risco de doenças hipocinéticas diminui significativamente entre os ativos. Todavia, isto não significa que estas atividades físicas são mais eficientes que as práticas esportivas ou os programas de treino no combate aos fatores de risco. Os dados mostram com clareza, embora alguns importantes pesquisadores insistam em esconder, que há uma relação forte entre níveis de aptidão física, prática esportiva e prevenção de fatores de risco para doenças do sedentarismo (…) Mesmo que o esporte como expressão da cultura corporal tenha história e objetivos que vão muito além das questões higienistas. Mesmo assim, é evidente que reduzi-lo, substituí-lo ou compará-lo à atividade física é um non sense injustificável, principalmente em se tratando de idéias de cientistas renomados. De políticos não trato, pois já há muito tempo percebi que seu pragmatismo, como um tsunami, leva de roldão toda a razão. Em política o que vale é estar em evidência e aí o relativismo moral, filosófico, ideológico, conceitual, ético é o que interessa. Mas, o oportunismo, oriundo da ingenuidade de alguns e da evidente intenção de outros, sem dúvidas tem sido o motivo principal em desconstituir o esporte em nome de ‘qualquer coisa que se mova um pouco’. É a vontade de aparecer como cientista de ponta, como representante da elite científica das áreas biológicas, de publicar artigos em revistas internacionais da área médica que tem sido uma das principais fontes deste desalentador discurso higienista que desconstitui o esporte de suas mais evidentes qualidades como fenômeno cultural. Enfim, medicalizou-se o esporte”.  

“Ser cientista para o grupo dos higienistas pós-modernos é fazer ciência médica, epidemiológica, biológica e, como o esporte não se encerra exclusivamente nessas categorias, o melhor realmente é desqualificá-lo para que caiba no espaço de interesses corporativos. Mas, o esporte é mais forte e a cada evento importante ele supera na prática as teorias que o querem reduzir a uma especialização da medicina”. [54]

No fundo, as dimensões biológicas do conceito de saúde são mais fáceis de mensurar e controlar do que as sociais e psicológicas; nelas exerce-se melhor o mandato intervencionista do paradigma produtivista da ciência e tecnologia. Por isso mesmo, são também elas e a respectiva investigação que detêm o predomínio, levam a palma e implicam, por arrasto, modificações e desvirtuamentos no vasto complexo das práticas lúdicas e corporais. Porém a obtenção da saúde continua dependente das possibilidades, da capacidade e lucidez disponíveis para traçar o rumo existencial. Ou seja, para além das condições e pressupostos materiais, imprescindíveis ao bem-estar social e psíquico, é igualmente indispensável o conhecimento de orientação – e este é hoje muito escasso, por não ser defendido e fomentado, desejado e estimulado, sendo mesmo ostracizado, subvalorizado, combatido e olhado com desdém, nomeadamente pelas agências fomentadoras e financiadoras de bolsas e projectos e acreditadoras e avaliadoras das instituições e centros de formação investigação - e dos seus professores, pensadores e pesquisadores.

Há, no entanto, um grande e iniludível problema e uma dura frustração que não podem ser escamoteados. Apesar de toda a inegável panóplia de ganhos em termos de conhecimentos biológicos, de cuidados e intervenções, não se registam rupturas nos estilos de vida e nos comportamentos de risco. Pelo contrário, as evidências provam que o risco e a atracção por ele persistem e que as medidas de controle não passam de paliativos para o conservar e poder suportar. Ou seja, o alvo da procura não é tanto o equilíbrio justo, correcto e harmonioso, mas, sim, a preocupação de evitar o pior.

Como assinala John Adams, a mega-estrutura do negócio e da indústria de redução do risco – “a maior do mundo” – não impede a persistência e teimosia de muitas pessoas em assumirem atitudes, condutas e actos arriscados. O mesmo é dizer que o Homo Prudens - da cautela, da prudência e do controlo - não está a consolidar-se, a progredir e impor-se, a levar a melhor, a predominar. É antes o Homo Aleatorius, pouco abordado, reflectido e conhecido, aquele que sente um forte apelo do perigo, que se entrega cada vez mais ao risco; é ele que está em alta e na moda e que toma muitas vezes o comando da vida. Ambos pertencem à nossa natureza e estão dentro de nós; é com os dois que temos de conviver. [55]  

Enfim, o clima de medo instala na paranóia do estado de alerta permanente, turva o olhar, subjuga as mentes e atrapalha o trânsito da razão e do discernimento. Perde-se a visão do conjunto e a compreensão dos valores que conferem ligação e unidade a todos os elementos do empreendimento. Na esteira de Agostinho da Silva (1906-1994), [56] o transcendente, isto é, a procura da felicidade, da ética e virtude da vida, deve guiar a reflexão e os conhecimentos e mediar a relação destes com os aconselhamentos e propostas de acção. Isto vale no caso do corpo e em tudo o resto. [57]

Terceiro:

Há outro e fundamental reparo que deve ser feito aos propagandistas da ‘actividade física’. Nós, os humanos, somos seres simbólicos e artísticos; vivemos num universo simbólico e não num mero contexto físico. Consumimos arte; alimentamos e afirmamos a nossa condição através da arte - a areté dos gregos, agregadora da técnica, da estética, da virtude e excelência – dos nossos gestos e movimentos, das nossas palavras e atitudes, dos nossos sentimentos e expressões. Somos seres interpretativos e instituidores de sentidos. Confrontamo-nos com a natureza e a realidade material, social etc tendo símbolos por intermediários, ‘significativos’ tanto para os praticantes de um acto como para os que o observam, significando, codificando, organizando e regulando a conduta de uns em relação aos outros. Isto é, somos criadores e consumidores de símbolos, conferindo ritual à vida e associando as acções e objectos a um significado que transcende os seus efeitos palpáveis.

As preocupações e intencionalidades em relação à saúde, imanentes ao activismo físico (made in USA), são louváveis e originaram um meritório movimento de programas de investigação e intervenção. Mas correm o risco de não irem além de um neo-higienismo, ao ignorarem e não trazerem a plano cimeiro um compromisso essencial com as traves-mestras da condição humana: a beleza das emoções e intenções, dos actos e comportamentos, das configurações e relações. Dito de outro modo, no conceito de saúde ‘humana’ não é curial separar o biológico e motor do cultural e social, ético e estético.

É nisto que se funda o desporto; nele também nos mexemos, ‘activamos’ e cultivamos o corpo, mas vamos mais além do imediato e tangível. Do mesmo modo que não criamos a culinária e preparamos a comida só para nos alimentarmos, mas para desenvolvermos o gosto e o paladar, também não praticamos desporto só para nos movimentarmos, para visar ou conservar a saúde corpórea, para melhorar a ‘condição física’. Sem o desporto e as formas afins, a nossa motricidade e civilidade ‘culturais’ regrediriam, ficariam prisioneiras da rudeza e bestialidade ‘naturais’. Em suma, são a incorporação de arte e o nosso teor ‘artístico’ que nos conferem o estatuto humano. [58]

Quarto:

No império pós-moderno assemelhamo-nos a crianças de um mundo novo, ignorando ou desdenhando os mitos do passado, fascinados e angustiados com a pergunta acerca dos mitos do futuro. Fatiguemos – incita Vergílio Ferreira – “o nosso espanto, a nossa interrogação, até que ela nos canse de a enfrentarmos. Como solução (será uma solução?) não temos outra. Porque Deus não é solução, como um regresso à infância é impossível”.

O regresso ao corpo é, afinal, o termo da viagem que nos coube. Nesse regresso “se implica pois somente a certeza, que até certo ponto é nova, de que tudo o que é para o homem foi do homem que nasceu, que todo o mistério, todo o indizível, toda a transfiguração e beleza são uma criação do homem com que a si próprio se cria, que os valores objectivados são valores subjectivos, que toda a ordem de vida é uma ordem humana, sem transcendência que a disfarce numa ordem divina, que o homem, pelo espírito encarnado, ou seja, pelo seu corpo humano, é definitivamente o seu verdadeiro Deus. À sucessão dos mitos que nele germinaram responde agora o anúncio do mito de si próprio com a total ausência de outros mitos, ou seja de verdades-aparição ou de verdades sem justificação e que nos orientam. Falo, porém, do mito do homem, princípio e fim de si mesmo, não do ídolo que segregue e com ele os seus carrascos (…) Todo o mito acaba onde o ídolo começa…” Sem esquecer que “o ser-se homem e o ser-se livre – são dois valores mutuamente convertíveis”. Eis porque “o último confronto da nossa liberdade é com a nossa condição. E se não está em nós emendá-la, está em nós o reconhecê-la na sua irredutível e inexorável realidade.” [59]

Impõe-se, pois, reflector acerca daquilo que andamos a fazer e do caminho aonde isso nos leva.

Quinto:

O corpo é a anatomia do nosso destino, o santuário e altar da nossa transcendência e sublimação. Com ele queremos e podemos manter uma relação óptima com a vida, merecendo por isso um cuidado especial. Não se pode viver em permanência nos excessos que ele permite, mas também eles não devem ser inteiramente dispensados. Como afirmou o sociólogo francês Henri Lefebre (1901-1991), “a arte tanto pode morrer do excesso de rigor quanto da extrema liberdade”.

Ademais, disse Fernando Pessoa, “viver não é preciso”, não é assunto que possa ser definido com o rigor e a exactidão da régua e do compasso. Isto mesmo se aplica ao corpo e aos rituais de o exercitar. O bom senso e o equilíbrio são requeridos, mas para tanto não bastam as prescrições de especialistas.

É estultícia supor que será possível criar uma forma de vida sensata e racional, guiada exclusivamente por critérios científicos, definidores do que é certo ou errado. Para dar sentido último à complexidade da condição e da aventura humanas precisamos de colocar e laborar em questões e mistérios que ultrapassam a racionalidade científica e esta não consegue controlar. Precisamos de pensar no transcendente. Nada é substituto de outra coisa. Conhecimento científico e sabedoria de orientação não se substituem ou excluem; antes se complementam.

Mais, os esforços investidos na transformação e metamorfose, na conservação e ganho da fiabilidade do corpo são a face visível do desejo e da possibilidade de nos tornarmos outra pessoa, de nos despirmos de uma gasta e cansada identidade, de a reciclarmos e substituirmos por outra. Infelizes e desiludidos com o antigo gerente divino do mundo, procedemos à Sua demissão, mudamos de crença e estratégia e somos nós agora os gestores do projecto, empreendimento e negócio de procurar melhorar a vida. Para tanto as ambições “se concentram em nossos próprios Egos e se reduzem a consertar nossos corpos e almas…”, fazendo o ego crescer ainda mais e recusando a imposição e aceitação dos limites. [60]

A nova e paradoxal ‘utopia’ convida-nos a inventar constantemente a vida e administrá-la a nosso bel-prazer, a deixar de lado as promessas longínquas e a procurar aqui e agora as curas, soluções e gratificações. Julgamos que, com a mudança de Ego, tornamos a incerteza menos assustadora e a felicidade mais palpável e presente. E que, mediante a cosmética do corpo, isto é, a troca incessante do formato e design do figurino, mudamos para melhor o nosso Ego. Aprendemos, com Sartre, que a existência precede a essência; logo, intervindo nas modalidades da primeira, queremos determinar, modificar e melhorar a segunda.

Esta pretensa utopia, obsessiva em eliminar a ansiedade e o desamparo existenciais, parece consumir as nossas atenções e energias, aliviando-nos do fardo de pensar nas incuráveis insuficiências da nossa condição e adiando e dispensando até a reflexão acerca do sentido da vida e da impossibilidade de um dia atingirmos na plenitude aquilo que nos agita e anima. É neste ponto que o dilema e a contradição se introduzem: em vez de censurar, devemos incentivar a continuidade da procura das nossas ‘verdadeiras’ identidade e essência, no pressuposto de que elas nunca sejam encontradas. Sob pena de a graça e o encanto acabarem e o mistério e a felicidade se perderem para sempre. [61]

 

 

[1] Ronaldo Monte é Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. Tem dois blogues (blog-do-rona.blogspot.com e memoriadofogo.blogspot.com) na Internet, onde publica textos deveras interessantes.

[2] Quando se diz que vivemos numa sociedade de consumo, não se olvida que todos os seres humanos, desde tempos imemoriais, são consumidores. O que se pretende é, sim, enfatizar a diferença de prioridades entre a sociedade de produtores – a da era moderna e industrial que nos precedeu, orientada pela norma de formar a vontade e a capacidade de produzir – e a sociedade actual, cuja norma é a de moldar os seus membros para, acima de tudo, desempenharem o papel de consumidores seduzidos pela busca compulsiva e incessante de atracções e desejos sempre novos, por nunca estarem satisfeitos de todo. Mais, vivemos num “mundo que avalia qualquer pessoa e qualquer coisa por seu valor como mercadoria”; assim são consideradas “pessoas sem valor de mercado”, “consumidores falhos” e “de todo inúteis” os não consumidores, ou seja, os indivíduos incapazes de “atingir os padrões de normalidade”, de cumprir o dever crucial de ser compradores activos e efectivos de bens e serviços, de “reagir pronta e eficientemente às tentações do mercado de consumo”, de “contribuir com regularidade para a demanda que esvazia a oferta”, de alcançar o estatuto de membro pleno, correto e adequado da sociedade”. Ora de nada disto são capazes os cidadãos pobres, sem casa decente, sem cartão de crédito e perspectivas de melhoria de vida. Logo os pobres de hoje não o são tanto pelo desemprego, mas sim por quebrarem a norma “da competência ou aptidão de consumo”; é isto que os rotula de ‘anormais’, os coloca à parte, na “coluna dos débeis” e na sub-classe dos intencionais e previsíveis ‘danos colaterais’. (Zygmunt Bauman, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, p. 157-160. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2008.

[3] Luc Ferry: Para que serve a filosofia contemporânea? Pensar o “insubstituível de nossas vidas”. In: André Comte-Sponville e Luc Ferry, A sabedoria dos modernos, p. 522. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[4] Michel Foucault: As palavras e as coisas, Edições 70, Lisboa, 1991.        [ Links ]

[5] Atente-se nesta passagem da autoria de Ronaldo Monte:

“Como exemplo, a pura e simples exclusão do mercado de trabalho, pela obsolescência de função ou redução de contingente, é suficiente para transformar um indivíduo de qualquer classe social num excedente sobre o qual não incidirá qualquer esforço de preservação de sua integridade existencial. Aos que acusarem qualquer manifestação de defesa contra esta exclusão, restará sempre o recurso aos psicofármacos ou a inclusão em um dos comitês de ética em voga.

(...) Como resultado final do processo de privatização da loucura, cada indivíduo torna-se culpabilizado por se sentir como único responsável pelo seu fracasso. Reduzido à sua solidão, ele próprio é transformado em um não-lugar de uma tópica só reconhecida em sua negatividade. Não há um outro com que fazer fronteira e estabelecer trocas. Há apenas a barreira marcando a intransicionalidade, constituindo uma alteridade absoluta na qual se deposita tanto a origem do mal quanto a fonte de um poder de vida e de morte sobre este ser de falência. 

... O que somamos, enfim, são faltas. Somos seres de falta”. (Ronaldo Monte: Os novos manicómios e a privatização da loucura, in Loucura, ética e política: escritos militantes…, Conselho Federal de Psicologia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003).

[6] Ronaldo Monte: Os novos manicómios e a privatização da loucura, in Loucura, ética e política: escritos militantes…, Conselho Federal de Psicologia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003.

[7] O conceito globalização é o oposto de universalização, próprio da modernidade. O último - em consonância com a sua inspiração humanista e iluminista - tinha por fito o estabelecimento de uma ordem à escala universal, visando tornar semelhantes e até mesmo igualar as condições de vida em toda a parte; era esta a intenção de iniciativas, medidas e empreendimentos globais. A globalização remete para a inexistência de controlo, para uma desordem mundial imposta por forças, nebulosas e sem rosto, actuando numa terra aparentemente de ninguém, sem rei nem roque, com efeitos para todos nós. Sob o seu império o mundo transformou-se numa selva lamacenta, manufacturada ao sabor dos escuros e ignominiosos interesses da desregulação do mercado neoliberal, dos seus negócios e proveitos.

[8] Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.

[9] Karl Popper, filósofo do racionalismo crítico e defensor da sociedade aberta, ocupou-se de questões da epistemologia, da teoria e lógica da ciência.

[10] Gilles Lipovetsky é particularmente incisivo neste capítulo: “Abandonado a si próprio, numa sociedade hiper-individualista, o indivíduo hiper-moderno é frágil. (…) Apesar de vivermos mais anos, com mais saúde e com melhores condições materiais – com uma liberdade sexual quase total, podendo escolher se casamos ou não, se vamos ter filhos ou não – nunca houve tantos casos de depressão (aumentaram sete vezes em 20 anos), tantas perturbações do comportamento, tantas tentativas de suicídio, tantos divórcios, tanta solidão”.

[11] Zygmunt Bauman: Globalização: as consequências humanas, p. 54-58, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999.

[12] Ibidem.

[13] Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.

[14] Leonardo Da Vinci foi expoente de um ecletismo florescente, desenvolveu estudos em várias áreas e representa bem o esplendor do génio humano. Por isso mesmo ele pode ser apontado como modelo oposto ao que inspira hoje o dito Processo de Bolonha

[15] Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) exclama assim:

Salve, meu corpo, minha estrutura de viver / e de cumprir os ritos de existir!

[16] Nos nossos dias Michel Serres celebra a unidade da aparência e da essência; as duas saem da mesma fonte. Pelo que a fachada corporal e comportamental é reveladora da identidade. Ou seja, as intervenções na primeira têm implicações na segunda, tal como postulou Sartre (1905-1980), ao afirmar que a existência precede e determina a essência. Antes deste, Goethe tinha proposto que no visível e na superfície é que está tudo e que há uma relação íntima entre a obscuridade das nossas entranhas e a visibilidade. Fernando Pessoa disse mais ou menos o mesmo: O corpo é a pessoa de fora que dá a imagem da pessoa de dentro.

A esta luz o actual ambiente obesogénico revela um estado de relaxamento, indolência e desídia no corpo e na alma, nos sentimentos, atitudes e comportamentos, na observância de normas e ideais, de princípios e valores. Para o combater é preciso intervir nos terrenos da vontade, deitando mãos a uma actividade corporal (desporto) que prefigura uma pedagogia da vontade, é uma arte performativa de decisões, esforços e gestos da vontade.

[17] Hoje parece ter atingido maior observância a máxima de Oscar Wilde (1854-1900): “É melhor ser bonito do que ser bom, mas é melhor ser bom do que ser feio”.

[18] A expressão ‘actividade física’ é deveras estapafúrdia, imprecisa e inadequada, vaga e difusa, imprópria e equivocada. É tudo e nada, porquanto, conforme a definição dada pelos especialistas, engloba tudo o que ocasiona dispêndio de energia. Nisto cabem tanto atividades laborais (cavar, lavrar, jardinar, podar, assentar tijolos, pintar muros etc.), como movimentos do quotidiano e actos desportivos (andar, correr, saltar, nadar, jogar etc.), como ainda acções destinadas à satisfação de elementares necessidades sexuais e biológicas (fornicar, urinar, defecar e outros termos cuja inclusão nesta lista a educação não consente) etc. Ora não parece, nem é crível que os arautos e utentes daquela expressão pretendam envolver-se, elaborar e impor normativos, prescrições e sentenças em toda esta vasta panóplia de actividades.

Ademais uma actividade (escrever, lavrar, pintar, correr etc.), sendo física na forma da sua execução, não se define e designa em função desta, mas sim da intencionalidade que a preside, do efeito e performance que visa e alcança. É aqui que reside a sua fonte matricial. É isto que faz toda a diferença e reduz a fanicos a falta de pensamento lógico e coerente que subjaz à tentativa de querer impor como referência cimeira, sólida, credível e aceitável a pretensa ‘actividade física’.

[19] Hugo Lovisolo: Estética, Esporte e Educação Física, Editorial Sprint, Rio de Janeiro, 1997.

[20] A onda do activismo físico desvirtua e afronta o modelo e a tradicional ênfase educativa do desporto. Em conformidade com o relativismo característico desta era, tudo o que mexe é movimento positivo e louvável, como tudo o que emite som é música e todo o rabisco é uma obra de arte. O lato sector do desporto, que sempre afirmou o valor da saúde, vê-se pervertido e avaliado por bitolas sanitárias, caindo no menoscabo os seus valores matriciais e essenciais, culturais, éticos e estéticos. De categoria pedagógica resvala para categoria médica.

[21] Ibidem.

[22] Zygmunt Bauman: VIDA LÍQUIDA, p. 119-134, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005.

[23] O cantor e compositor brasileiro Herbert Viana é particularmente duro no convite à reflexão: “Cirurgia de lipoaspiração? Pelo amor de Deus, eu não quero usar nada nem ninguém, nem falar do que não sei, nem procurar culpados, nem acusar ou apontar pessoas, mas ninguém está percebendo que toda essa busca insana pela estética ideal é muito menos lipo-as e muito mais piração?

Uma coisa é saúde e outra é obsessão. O mundo pirou, enlouqueceu. Hoje Deus é a auto-imagem. Religião é dieta. Fé, só na estética. Ritual é malhação. (...)

Gordura é pecado motal. Ruga é contravenção. Roubar pode, envelhecer não. Estria é caso de polícia. Celulite é falta de educação. (...)

A sociedade consumidora, a que tem dinheiro, a que produz, não pensa em mais nada além da imagem, imagem, imagem, imagem, estética, medidas, beleza. Nada mais importa. Não importam os sentimentos, não importa a cultura, a sabedoria, o relacionamento, a amizade, a ajuda, nada mais importa.

Não importa o outro, o coletivo. Jovens não têm mais fé, nem idealismo, nem posição política. Adultos perdem o senso em busca da juventude fabricada.

OK, eu também quero me sentir bem, quero caber nas roupas, quero ficar legal, quero caminhar, correr, viver muito, ter uma aparência legal, mas...

Uma sociedade de adolescentes anoréxicas e bulímicas, de jovens lipoaspirados, turbinados, aos vinte anos, não é natural. Não é, não pode ser. Que as pessoas discutam o assunto. Que alguém acorde. Que o mundo mude”.

[24] Zygmunt Bauman: IDENTIDADE – Entrevista a Benedetto Vecchi, p. 80-82, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005.

[25] Obviamente os mais afectados por este clima são os idosos e aqueles que caem nas garras do desemprego. Contudo todos os grupos da população são, de maneira mais directa ou indirecta, atingidos pelo ambiente de vulnerabilidade reinante.

[26] Zygmunt Bauman: Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, p. 163, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2008.

[27] A jornalista São José Almeida, num artigo (“A imagem da Cimeira de Lisboa tem como contraponto a da manifestação de 18 de Outubro”) inserido no jornal Público, de 22 de Dezembro de 2007, vê nas reformas efectuadas na educação e na saúde apenas uma “política propagandística de ‘terrorismo psicológico’ para colocar os cidadãos perante a verdade única e absoluta da nova revolução em marcha: a de que as pessoas e os seus direitos custam caro ao Estado e à sociedade. Como se as pessoas fossem parasitas. (…) Logo, a alternativa é o mercado privado. Onde se compram e pagam os serviços, não se usufruindo de direitos, como o de ter educação e de ter saúde”. A partir do facto de os cidadãos estarem “a ser espoliados nos seus direitos”, a articulista conclui que os líderes europeus “estão a ganhar esta nova forma de luta de classes”. Resta saber “se os cidadãos nas ruas e nas lutas pela manutenção dos seus direitos os vão fazer perder o sorriso e estragar-lhes a festa”.

[28] In: Público, 9 de Novembro de 2007, p. 48.

[29] Texto publicado no dia 10.11.2007 no mesmo jornal.

[30] Vasco Pulido Valente volta à carga num texto intitulado Fora o gordo (ou a gorda), publicado também no Jornal Público (Porto, 4 de Abril de 2009, p. 40):

 “O Governo, como bom pai, mãe, tia, vigilante e polícia anda preocupado com o nosso peso. (Por isso) resolveu congeminar um ‘plano’ contra a gordura. Dizem que dentro de um homem gordo há sempre um homem magro que sonha nascer. Pois respondendo a esse justo sonho, o Estado vai finalmente ajudar o parto da magreza indígena. Já este ano, cada um dos 68 agrupamentos de Centros de Saúde poderá contar com o seu nutricionista privado e próprio. Há hoje apenas 75 em exercício, não tardará, esperemos, que haja mais 500.

Se até agora o senhor, ou a senhora, por ignorância ou vício, passeava por aí a sua repugnante corpulência (ou, pior ainda, a mostrava na praia), daqui em diante assim que penetrar num Centro de Saúde será imediatamente conduzido a um nutricionista, que o porá numa dieta rigorosa e, em menos de nada, lhe arrancará a casca da adiposidade que preocupa a Pátria e o seu chefe. Pense que, depois de uma vida de erro e masoquismo, irá para o futuro comer e beber bem (…) Pense e rejubile. Imagine a sua pessoa elegante e bela e sobretudo esqueça que a mesa é um prazer. A mesa não é um prazer, é, como oportunamente lhe explicarão, um puro suicídio.

Claro que o Estado não se dá a tanto trabalho só por altruísmo. O excesso de peso e a obesidade estão na origem de várias doenças, com o Estado não deseja gastar dinheiro consigo. Por isso o Estado desejaria que o senhor, ou a senhora, não fumasse (e o persegue quando fuma) e não ingerisse muito sal (e lhe tirou o sal do pão) e se prepara pouco a pouco para o reduzir a um perfeito exemplar da espécie, destinado a morrer impecável e robusto numa extrema e acéfala velhice. Onde fica no meio disto a sua liberdade é melhor não perguntar. O Estado, que o trata e o educa, não se interessa pela sua liberdade. Uma liberdade que o senhor, ou a senhora, se o deixarem à solta, usa com certeza mal. É preferível que o eng. Sócrates, que de resto o conhece bem, o meta na ordem. Ou julgava que a beneficência do Governo era de graça?”

[31] Adauto Novaes: ENSAIOS SOBRE O MEDO, Editora Senac, São Paulo, 2007.

[32] Luc Ferry: APRENDER A VIVER, Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

[33] Adauto Novaes, ibidem.

[34] O cúmulo do extremismo é atingido e demonstrado pela campanha movida pelas autoridades da Holanda, na quadra natalícia de 2007, contra o surgimento de figuras de Pai-Natal com porte indiciador de obesidade!

[35] O sociólogo António Barreto, num artigo intitulado “Eles estão doidos!”, igualmente publicado no jornal Público, após abordar toda uma série de regras que estão a ser impostas na comercialização, venda e transporte de alimentos e na configuração e condições climáticas dos estabelecimentos de restauração, bem como na tipologia das facas, colheres e garfos, conclui: “Tudo isto, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde. Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, pois claro”.

[36] Desde Aristóteles até aos nossos dias os pensadores, que se dedicam a reflectir acerca da felicidade e das vias que a ela conduzem, colocam-na na dependência do modo como usamos as possibilidades. Quanto mais elevado é o uso que fazemos das nossas potencialidades, tanto maiores são as probabilidades de nos abeirarmos da felicidade. E o inverso vale igualmente como lei. O lema olímpico do desporto – Citius, Altius, Fortius! – tem subjacente esta noção; é uma exortação a que façamos um uso sempre superior e renovado das nossas capacidades. É um apelo para que não nos contentemos com o pequeno, o mediano e o relativo; para que ousemos ir cada dia mais além, porquanto o absoluto e o infinito são a medida do Homem e não há felicidade mais genuína do que a resultante dos actos e feitos que nos transcendem e configuram na superação. No fundo a felicidade é uma performance da vida.

Albert Schweizer, médico e filósofo francês (1875-1965), acrescenta que a “felicidade não é mais do que boa saúde e má memória”. Má memória para esquecer o que nos perturba, penaliza, atormenta, diminui e apouca.

[37] Zygmunt Bauman: Globalização: as consequências humanas, p. 57-58, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999.

[38] Adroaldo Gaya: texto de um discurso proferido no dia 8 de Janeiro de 2009, na Escola de Educação Física da UFRGS, Porto Alegre, Brasil, por ocasião da cessação da função de Diretor do LAPEX.

[39] As recentes revoltas e manifestações de rua dos jovens na Grécia traduzem esta dura realidade: no Maio de 1968 os contestatários pertenciam à sociedade, faziam parte dela, reivindicavam a sua transformação; ao passo que muitos jovens estão hoje excluídos da sociedade, lutam pela inclusão nela. A diferença é abissal: em 1968 os jovens eram movidos por utopias e perspectivas sociais; aos jovens de agora a sociedade não oferece qualquer perspectiva.

[40] Ronaldo Monte, ibidem.

[41] Ver Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.

[42] O Titanic foi um navio transatlântico, considerado inafundável. Na noite de14 de Abril de1912, pelas 23h40, chocou com um iceberg, na Latitude 41º 46´N e Longitude 50º 14´W. Passados 20 minutos afundou-se, tendo perdido a vida 1517 pessoas.

[43] Zygmunt Bauman: GLOBALIZAÇÃO: As consequências humanas, p. 11, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999.

[44] Democracia significa etimologicamente o poder outorgado pelo povo. A separação introduzida aqui na palavra é para traduzir a inquietação em relação à sua perversão como poder do demo.

[45] Yves de la Taille: Formação Ética: do Tédio ao Respeito de si, p. 115, Porto Alegre, ARTMED, 2009.

[46] Encontro de Barack Obama com jovens em Estrasburgo, em 03.04.2009. In: Jornal Público, p. 5, Porto, 4 de Abril de 2009.

[47] Atente-se neste texto (Cruzamento de dados em 2019), entrado no meu e-mail em 12.02.2009. É ficção, mas não tanto como parece à primeira vista:

- Telefonista: Pizza Hut, boa noite!

- Cliente: Boa noite, quero encomendar Pizzas...

- Telefonista: Pode dar-me o seu NIN?

- Cliente: Sim, o meu Número de Identificação Nacional é o 6102 1993 8456 5463 2107.

- Telefonista: Obrigada, Sr. Lacerda. O seu endereço é na Avenida Paes de Barros, 19, Apartamento 11, e o número do seu telefone é o 21549 4236, certo? O telefone do seu escritório na Liberty Seguros, é o 21 574 52 30 e o seu telemóvel  é o 96 266 25 66, correcto?

- Cliente: Como é que conseguiu todas essas informações?

- Telefonista: Porque estamos ligados em rede ao Grande Sistema Central.

- Cliente: Ah, sim, é verdade! Quero encomendar duas Pizzas: uma Quatro Queijos e outra Calabresa...

- Telefonista: Talvez não seja boa ideia...

- Cliente: O quê...?

- Telefonista: Consta na sua ficha médica que o senhor sofre de hipertensão e tem a taxa de colesterol muito alta. Além disso, o seu seguro de vida proíbe categoricamente escolhas perigosas para a saúde.

- Cliente: Claro! Tem razão! O que é que sugere?

- Telefonista: Por que é que não experimenta a nossa Pizza Superlight, com Tofu e Rabanetes? O senhor vai adorar!

- Cliente: Como é que sabe que vou adorar?

- Telefonista: O senhor consultou a página "Receitas Gulosas com Soja" da Biblioteca Municipal, no dia 15 de Janeiro, às 14:27 e permaneceu ligado à rede durante 39 minutos. Daí a minha sugestão...

- Cliente: Ok, está bem! Mande-me então duas Pizzas tamanho familiar!

- Telefonista: É a escolha certa para o senhor, a sua esposa e os vossos quatro filhos, pode ter a certeza

- Cliente: Quanto é?

- Telefonista: São 49,99.

- Cliente: Quer o número do meu Cartão de Crédito?

- Telefonista: Lamento, mas o senhor vai ter que pagar em dinheiro. O limite do seu Cartão de Crédito foi ultrapassado

- Cliente: Tudo bem. Posso ir ao Multibanco levantar dinheiro antes que chegue a Pizza.

- Telefonista: Duvido que consiga. A sua Conta de Depósito à Ordem está com o saldo negativo.

- Cliente: Meta-se na sua vida! Mande-me as Pizzas que eu arranjo o dinheiro. Quando é que entregam?

- Telefonista: Estamos um pouco atrasados. Serão entregues em 45 minutos. Se estiver com muita pressa pode vir buscá-las, se bem que transportar duas Pizzas na moto, não é lá muito aconselhável. Além de ser perigoso...

- Cliente: Mas que história é essa? Como é que sabe que eu vou de moto?

- Telefonista: Peço desculpa, mas reparei aqui que não pagou as últimas prestações do carro e ele foi penhorado. Mas a sua moto está paga e então, pensei que fosse utilizá-la.

- Cliente: Chiça!...

- Telefonista: Gostaria de pedir-lhe para não ser mal educado... Não se esqueça de que já foi condenado em Julho de 2006 por desacato em público a um Agente da Autoridade.

- Cliente: (Silêncio).

- Telefonista: Mais alguma coisa?

- Cliente: Não. É só isso... Não. Espere... Não se esqueça dos 2 litros de Coca-Cola que constam na promoção.

- Telefonista: O regulamento da nossa promoção, conforme citado no artigo 095423/12, proíbe a venda de bebidas com açúcar a pessoas diabéticas...

- Cliente: Aaaaaaaahhhhhhhh! Vou atirar-me pela janela!

- Telefonista: E torcer um pé? O senhor mora no rés-do-chão!...

[48] Luc Ferry, ibidem.

[49] Frei Bento Domingues, Público, Domingo 11 de Janeiro 2009.

[50] Michel Foucault, ibidem.

[51] António Gedeão é o pseudónimo literário de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (1906-1997), ilustre professor e cientista na área de Físico-Química.

[52] Zygmunt Bauman: Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2008.

[53] Ibidem, p. 22.

[54] Estas afirmações de Adroaldo Gaya constituem um comentário corroborativo do teor essencial de um texto assaz pertinente (Metamorfoses do desporto e os novos delegados de propaganda médica), publicado por José Manuel Constantino no blogue Colectividade Desportiva, em 8 de Janeiro de 2009.

[55] Entre a cautela e o forte apelo do perigo. Entrevista com John Adams, in: O Estado de S. Paulo, J4/ALIÁS, 4 de Maio de 2009.

[56] Filósofo, poeta e ensaísta português; passou largo tempo da sua vida no Brasil.

[57] E vale também a convicção de Aristóteles (384-322 a. C): “É lícito afirmar que são prósperos os povos cuja legislação se deve aos filósofos”. Tendo em consideração que da filosofia emana um conhecimento orientado essencialmente pela transcendência.

[58] Num capítulo intitulado “Felicidade contra necessidade” Hugo Lovisolo apoia-se em vários autores e aforismos para afirmar: “Os animais se alimentam, o homem come; só o homem refinado sabe comer”. E acrescenta: “a identidade do homem está no que come. (…) Comer deixa de ser uma mera necessidade biológica e desenvolve-se (…) como gosto, como ato estético e civilizador”. (Ibidem).

[59] Vergílio Ferreira: Invocação ao meu corpo. Livraria Bertrand, Lisboa, p. 324-329, 1978.

[60] Ver Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.

[61] “Precisamos de mitos para tornar suportáveis os nossos dilemas irresolúveis. (…) Se fôssemos demolidores irresponsáveis de mitos, rasgaríamos os nossos direitos humanos e começaríamos de novo: repensando o que queremos dizer com vida humana e dignidade humana. Por enquanto, se quisermos continuar a acreditar que somos humanos, e justificar o status especial que nos atribuímos – se, na verdade, quisermos permanecer humanos através das mudanças que enfrentamos -, é melhor não descartar o mito, mas começar tentando viver à sua altura”. (Felipe Fernández-Armesto, in: Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2004).

 

CORRESPONDÊNCIA

Jorge Olímpio Bento

Faculdade de Desporto, Universidade do Porto

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4200-450, Porto

Portugal

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