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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

Print version ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. vol.9 no.1 Porto Jan. 2009

 

Não ir na onda – correr contra o tempo

Jorge Olímpio Bento

 

A função de Director da RPCD impõe que fale acerca de algo que faça sentido no actual momento. Seria fácil abordar o ímpeto, que uns dizem reformista, fracturante e estruturante e outros chamam destrutivo, aniquilador e alienante; e que consome, há 3-4 anos, muitas das nossas energias e se salda, por enquanto, em esperanças não confirmadas e em frustrações muito pesadas.

Olha-se para o país e ele parece um organismo fatigado, cansado de existir. Perante a descrença na possibilidade de conseguir um presente à altura da grandeza do seu mais exaltante passado, entregou-se à desilusão e depressão. Caiu no conformismo e no pasmo; tudo lhe é indiferente. A hora é dos agentes da desclassificação e indiferenciação culturais e civilizacionais, do relativismo, do vale tudo e da destruição do corpo social, da sua arquitectura e dos seus contratos. Só falta legalizar também o incesto! Sim, porque a sua proibição foi o primeiro acto constitutivo de cultura, que, daí em diante, consistiria para sempre em separar o homem e o animal, em inserir no mundo `natural´ divisões, distinções, critérios, valorações e classificações que não são atributos da natureza, mas reflectem a diferenciação e os conceitos civilizadores impostos pela prática, pela actividade e pelo pensamento humanos. Destruam tudo quanto ainda afirma a condição humana; será quase nula a resistência! Já são poucosãos que enfrentam o politicamente correcto; demaisãos heróis são hoje escassos, a coragem minguou e a vocação para mártir passou à história.

Cesso aqui o reparo; não vou seguir por aí. Alea jacta est: os dados estão lançados e não vale a pena chorar maisão leite derramado. Quem quis pôde tomar posições nos momentos em que importava e não era cómodo assumi-las. Mas esse tempo passou; ser corajoso e crítico agora, numa altura em que as decepções são muitas e se expressam em voz alta, não é sinal de exemplar comportamento ético, mas antes de um oportunismo vil.

Vou tentar cumprir a obrigação, sem me prender muito à formulação precisa de um tema que presida a algumas derivações em dó maior.

1. Nos nossos ouvidos ressoa, todo os dias, uma música celestial com termos tais como: criatividade, flexibilidade, adaptabilidade, abertura, reforma, mudança etc. Estas palavras enlevam, porém camuflam as suas genuínas intenções. Convidam a aderir ao veloz e voraz e rejeitar o estável e durável, a apreciar o frenesim e desdenhar da reflexão, a optar por ligções e compromissos frouxos e ligeiros que a toda a hora possam ser abandonados. Rebaixam a defeitos e factores de prejuízo os saberes sólidos, o vínculo e a fidelidade ao profundo e consistente, as atitudes e actos louváveis, as habilidades e virtudes confiáveis. E promovem a mais-valias e requisitos desta hora a disposição para destruir o que está feito e quem o fez, o apego ao volátil e superficial, ao movediço e postiço, às aparências e simulações, ao efémero e supérfluo, ao instantâneo e fugaz, ao plástico e reciclado. O que agora vale é a propensão para flutuar de posições e opiniões, prescindir de visões do mundo, confiar na desordem e espontaneidade, aceitar como inevitável a desagregação da sociedade e das suas instituições, encarar a novidade como progresso, a precariedade como valor, a instabilidade como imperativo, o hibridismo como identidade.

O acento tónico não é posto na educação, por ser atribuição do Estado, mas sim nas aprendizagens, por serem obrigação dos indivíduos. São estes que devem adquirir as que constam da ementa oficial do mercado, se quiserem acompanhar a moda e não ser deitados pela borda fora. De resto nesta nossa sociedade de consumo, as pessoas precisam de se submeter a uma constante remodelaço, para que não lhes suceda o mesmo que acontece às roupas e não ficarem obsoletas. O mesmo é dizer que têm de orientar a sua vida para o consumo, sendo elas mesmo transformadas em mercadorias, como regista Zygmunt Bauman.1

Os sucessos garantidos por aquele tsunami da facilidade são evidentes: certificados de destruição de utopias e ideais, produção em série de identidades com duradoira infantilidade, de especialistas sem espírito e de indigentes culturais, metidos entre palas e varais, presos ao vazio e alienação do presente e sem noção e inquietaçã para o futuro. Eles poderão vir a conhecer a fartura e os arrotos materiais, mas dificilmente escaparão à companhia permanente da pobreza, do fastio e cansaço espirituais.

Afinal é tudo lógico e coerente. Todo o enredo do mercado e do consumo funciona cada vez mais em redor da produção de atracções e seduções, procurando que os sujeitos não cortem nunca a linha de chegada da corrida atrás de novos desejos e, muito menos, da sua satisfação. No fundo nada deve merecer a paixão forte e longa do consumidor. Este tem que estar sempre pronto a trocar o alvo da sua fixação. Ou seja, a lógica e a cultura nuas e cruas da sociedade de consumo implicam e baseiam-se muito mais no esquecimento do que na aprendizagem.

Atente-se bem nisto! Estar em movimento, mudar a toda a hora, não é sinónimo de mal-estar, mas uma proposta de bem-aventurança. Assim como a resposta é o final azarado da pergunta, a satisfação seria o azar, a limitação e o cansaço do consumidor. Antes de mais este deve ser mantido num estado de excitação incessante e perpétua inquietude, visando viver sensações ainda não experimentadas.

2. Obviamente não estou a falar no Processo de Bolonha. (Ou será que estarei?!) Estou a falar sobretudo do convite para aderirmos a uma mobilidade que nos confina, se formos atrás das loas que a adornam. Lançados num vasto e desconhecido mar, sem cartas de navegação e com bóias de sinalização inexistentes ou submersas ou mal visíveis, temos duas opções: ou nos atiramos para a frente empolgados pela jubilosa promessa de novas descobertas ou nos pomos a tremer do medo de morrer afogados. são estas as alternativas, porque não é realista e não adianta procurar refúgio num porto seguro. Assim apenas temos as duas opções e não podemos contar com ninguém. Estamos sós e não há passageiros entre nós; todos somos tripulação. Logo o sucesso da nossa escolha depende da qualidade da embarcação e da firmeza, ousadia, coragem e clarividência dos marinheiros. Quanto mais resistente a nau, menos razão para temer o mar caprichoso e revolto. E maior será a probabilidade de vencer a distância, se para tanto ela contar com a dedicação empenhada e esforçada e a lucidez da visão e decisão dos marinheiros. Se estes aproveitarem a oportunidade para ser heróis e não caírem na tentação da cobardia.

Não temos meios e instrumentos para intervir de maneira planeada na realidade, nem para escapar aos efeitos da conjuntura neoliberal. Mas temos a obrigação de transmitir ferramentas, métodos e saberes para a compreender a ela e às suas causas e consequências perversas, para a enfrentar e recusar. Para reavivar o passado imanente no presente e encher este de futuro.

Ora isso obriga-nos a não ir na onda. Porventura fazendo de conta que vamos, mas indo sempre do outro lado, nem que ele pareça ser o de fora. Ensinando a dedicação ao trabalho, o apego emocional às instituições, o sentido e espírito de corpo, a gratificação nos resultados duramente alcançados, o envolvimento pessoal num ambiente de labor porfiado. Colocando as relações e conexões diante das desagregações, a serenidade diante do frenesim, a cultura diante da frivolidade, a profundidade diante da superficialidade, as convicções diante das tentações, os princípios e valores diante dos interesses e manhas, a humildade diante da arrogância, a probidade e sensatez diante da agitação e estardalhaço, a perseverança diante da desistência, a filosofia diante da imbecilidade, a substância diante da vacuidade, a espiritualidade diante da futilidade, a dignidade diante da baixeza, a superação diante da resignação, a simplicidade diante da presunção, a sinceridade diante da falsidade, a verdade diante da mentira, a nobreza diante da vileza, a essência diante da aparência, a civilidade diante da venalidade, a responsabilidade diante da leviandade, a força da firmeza diante da cedência à fraqueza, o estudo diante da preguiça, a disciplina e o esforço diante da folia e do carpe diem, o brio e pundonor diante do abandono e desleixo, a procura diante da sorte, o mérito cimeiro diante do nivelamento rasteiro, o conhecimento diante da ignorância, a dúvida diante da certeza, a admiração diante do pasmo, a discrição diante da exibição, a correcção diante da simulação, a luz diante da escuridão, a liberdade diante da servidão, a autonomia diante da dependência, a sanidade diante da demência, a sabedoria diante da irracionalidade, a lucidez e a decência diante da ligeireza e maledicência, o carácter diante da habilidade, a tranquilidade diante da deriva, a legalidade diante dos jeitos, os deveres diante dos direitos, a modéstia diante da vaidade, o comedimento diante da excentricidade, a alvura diante da sujidade, o trigo diante do joio, as normas e regras diante do regabofe e laxismo, a frontalidade diante do calculismo, a verticalidade diante do oportunismo, a ética e deontologia diante do relativismo, a autenticidade diante da hipocrisia, a lealdade e fidelidade diante da traição, a amizade diante da intriga, a rectidão diante da esperteza, a palavra corajosa diante da cobardia ardilosa, a honradez e integridade diante da desonestidade e imoralidade, a sensibilidade diante da brutidade, a solidariedade diante da indiferença, a humanidade diante da animalidade.

Mas... é necessário tudo isto? Não vejo outra solução. Ademais não nos basta a esperança, por ser um sentimento ambivalente. Pode brotar dela o optimismo para ultrapassar a tristeza e a desgraça do presente e para confiar na vinda de um futuro risonho. Mas pode, do mesmo jeito, convidar ao conformismo e comodismo, à demissão e passividade, à aceitação daquilo que nos aflige, a não agir, a esperar e a entregar-se à lotaria do que há-de vir, sem nos mobilizarmos activamente para vencer o que nos afronta e buscar o que nos falta.

3.Os primeiros tempos de experiência do Processo de Bolonha – que prometi não abordar, embora não me canse de gritar que o rei vai nu – produziram já sinais e resultados que não podemos deixar de tomar em conta, porquanto contradizem os fins expressos, mas mostram aqueles que não são ditos e subjazem à proposta economicista, escondida na massa bolonhesa.

Como disse Kissinger, ninguém caminha pelos seus próprios pés para a sepultura. Por isso mesmo, temos que aprender a lição e alterar o cenário. Tal como foi até agora, não pode ser. O nosso intuito e destino são iguais ao lema do desporto: citius, altius, fortius! Revêem-se na elevação e altura e não no abaixamento e rasura. É nessa direcção que os nossos passos devem avançar, firmes, determinados e justificados pela experiência consciencializada. Como dizia Nietzsche, devemos fugir do gorduroso odor ao estábulo, isto é, da manada, a sete pés. Para não nos deixarmos contaminar.

Também não poderemos deixar de ter em conta as exigências da FCT e de cumprir os padrões e figurinos de produtividade que ela impõe. Mas isso não nos obriga a enterrar as bitolas axiais do Humanismo e do Iluminismo e a desvalorizar o conhecimento de orientação. Nem a deitar fora o património da língua portuguesa e a cometer a estultice de abater o nível elevado que a Faculdade usufrui na respectiva comunidade. O equilíbrio entre os dois pólos é desejável e possível

Sabemos bem que a ciência, seja no silêncio dos laboratórios, seja nos conhecidos e badalados centros de investigação e reflexão, está a ser despida dos grandes ideais e fins, em proveito dos meios; e é convertida em mera técnica. Simultaneamente altera-se radicalmente a noção de progresso que antes a animava. Não se orienta tanto por finalidades transcendentes; está sujeita ao império do paradigma produtivista, visa sobretudo igualar e superar, tanto quanto possível, a concorrência em números e citações, apresentar a toda a hora dados alterados, segundo os normativos em moda e face ao contexto constantemente mutante. Ajuda assim a impor este e serve o interesse e a voracidade de um mercado em permanente e febril ebulição. Ela é fim em si mesmo, segue um imperativo de produção consumista, em obediência a ditames semelhantes aos da selecção natural de Charles Darwin. não se trata mais de dominar a natureza ou aconselhar a sociedade em funão da liberdade e felicidade, mas apenas de competir, uma necessidade de proveniência exógena, isto é, imposta de fora pela obrigação absoluta de `progredir ou perecer`.

4. Perante este quadro é curial renovar algumas afirmações.

Esta Faculdade alcançou identidade e notoriedade, à escala nacional e internacional, como Escola de formação e investigação no sujeito plural do desporto, com um perfil que a distingue das suas congéneres. É isso que deve continuar a ser - a Faculdade de Desporto – tanto no plano de estudos como no objecto de investigação e reflexão, combinando e valorizando devidamente a competência, a mestria e a diversidade de contributos que a sua missão comporta.

Ignorar tal singularidade ou tirar à Faculdade a devida e conquistada autonomia, fundindo-a com outras numa unidade maior, isso seria trair o seu legado, cercear as suas potencialidades e amputar a Universidade de um forte braço da sua internacionalização. Porque é indiscutível que a Faculdade tem a seu crédito um elevado capital neste capítulo.

Retomemos, pois, com redobrado afinco a nossa disciplina básica, que tem sido e deve continuar a ser a da corrida. Contra o destino e contra a compressão que nos espreita. Temos que comer o pão ganho com o suor do rosto. Não vivemos mais no paraíso e deixamos que os ventos do mal se evadissem da Caixa de Pandora e fustigassem a nossa vida. Temos que correr e porfiar para contornar esses ventos, para os voltar a reunir e manter sob nosso controle.

Conhecemos o barro de que somos feitos, mas somos igualmente animados pelo fogo do céu. Somos de carne frágil, mas temos uma alma aberta à grandeza de sonhos e ideais. Corramos, portanto, contra o conformismo e o comodismo, contra a preguiça e a indolência, a desídia e a sonolência, a insuficiência e o auto-contentamento. Não nos basta o que vemos e somos, queremos e precisamos de ir mais além. Corramos para fora e para dentro de nós. Para chegarmos mais fundo e longe e ficarmos mais próximos da nossa singularidade: de seres errantes e peregrinos à procura de uma forma que nos transcenda e defina como humanos, quase divinos, quase perfeitos, quase felizes.

Corramos para nos afastarmos do que nos diminui, ameaça e persegue e para nos abeirarmos daquilo que não temos e é o mais necessário, o mais valorizado, o ético e o estético, o mais bonito que tanto nos atrai. Para entregarmos esse testemunho e passarmos a outros o gosto, o apego e afeiçoamento à árdua e exigente tarefa de correr, à longa caminhada que doravante lhes toca fazer, mesmo sabendo que podem chegar à meta exaustos e tombar para o lado.

Estar parado é andar para trás e olvidar que as velas ardem até ao fim. Corramos, pois; tanto quanto possível, cúmplices e juntos e dando o nosso melhor! Corramos com alegria, porque a tristeza é um vício que leva a achar que geme o vento que na nossa vida canta. Sejamos portadores de alegrias para nós e para os outros! É esta a essência da nossa missão.

 

1 Bauman, Zygmunt (2008): Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.        [ Links ]