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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versión impresa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.8 n.2 Porto ago. 2008

 

A Universidade e o desencanto com a ‘tecnização’ do mundo

 

Jorge Olímpio Bento

Universidade do Porto, Faculdade de Desporto

 

1. Os filósofos da suspeita, da desconfiança e da desconstrução do Humanismo, do Iluminismo e da Modernidade – com Nietzsche à cabeça, sem esquecer os nomes de Marx e Freud – apresentam-se como demolidores de mitos; zombam dos ideais de transcendência e da forma de religiosidade neles configurada e mandam amar o real tal como ele é. Assim convidam-nos a olhar para um mundo novo, no qual o virtual, isto é, as noções de sentido e ideal cedem o lugar à “lógica da vontade de poder”. Deste jeito impõe-se o reinado da “força pela força”, em detrimento de todas as referências e balizas de índole superior. Sem o dizer expressamente, os arautos da pós-modernidade propõem uma nova religião, assente noutra teologia.

Mas... aonde é que isso nos tem levado? Onde estamos e para onde vamos? Face às mudanças provocadas será de entregar – questiona Luc Ferry – “o mundo contemporâneo ao puro cinismo, às leis cegas do mercado e da competição globalizada?”[1]

A desolação alastra, sabendo-se que pode ser má conselheira e entregar-nos à cegueira, à ilusão e alienação. Apesar das trágicas consequências dos fracassos acumulados pelas várias tentativas de acabar com o humanismo, bem visíveis na presente conjuntura e passagem de época, apesar do esvaziamento deprimente e da consecutiva falta de sentido histórico e de um certo desencanto com o curso do mundo, não é sensato defender o regresso ao passado. Até porque não é possível nem desejável, porquanto os anseios e problemas, as situações e circunstâncias, as missões e visões, as tarefas e obrigações, os actores e direitos são hoje outros e não mais os dos séculos passados. Quererá isto dizer que – insiste Luc Ferry – devemos resignar-nos “a abdicar da Razão, da Liberdade, do Progresso, da Humanidade?” Ou, porventura, ainda há nestes conceitos, que até há pouco tempo irradiavam ousadia e comprometimento, luz e esperança, alguma coisa que possa escapar à voracidade da desconstrução e sobreviver a ela? Ou, ao fim e ao cabo, teremos fatalmente que nos render ao novo servilismo emergente e triunfante, “à dura realidade do universo da globalização no qual mergulhamos”, ao mundo tal como ele é, à morte dos ideais superiores e ao “desaparecimento das utopias”?

2. Luc Ferry vale-se de Heidegger para denunciar o “mundo da técnica”,[2] hoje sobremaneira evidente na versão da globalização prevalecente e com “efeitos devastadores sobre o pensamento, a política e sobre a vida dos homens”. E intima-nos a reagir contra esta realidade, a não sermos pura e simplesmente cúmplices com ela e, ao mesmo tempo e num assomo de hipocrisia, chorarmos lágrimas de crocodilo. Até porque o mundo não é nem nunca foi imutável; e, nas necessidades de ruptura, há quem se filie naquilo que será passado e quem se posicione do lado do futuro.

Heidegger vê no surgimento do “mundo da técnica” o “declínio da questão do sentido”, “o desapossamento de qualquer influência sobre a história”, a queda no absurdo e a privação de “qualquer finalidade visível”. Deste modo, refere Luc Ferry, “o projeto de dominação da natureza e da história, que acompanha o nascimento do mundo moderno e que dá sentido à ideia de democracia, vai se transformar em seu contrário perfeito.[3] A democracia nos prometia nossa participação na construção coletiva de um universo mais justo e livre; ora, já perdemos quase todo o controle sobre o desenvolvimento do mundo”.[4]

Se transpusermos a reflexão para o campo da ciência moderna, vemos que Descartes, seu proeminente impulsionador inicial, encarava o conhecimento científico como um instrumento capaz de habilitar o homem a ser “senhor e proprietário da natureza”, ao serviço do projecto de controle e domínio total do mundo pela nossa espécie. Mas… preste-se a devida atenção! O domínio científico do mundo assumia uma dupla intenção: a do entendimento ou compreensão intelectual do mundo, da explicação racional do que nele acontece, das suas causas e mistérios; e a da dominação, intervenção, transformação e recriação práticas, decorrentes da vontade humana, segundo os seus desígnios, finalidades, anseios e ideais de melhoria e transcendência.

Precisando melhor, na configuração da “ciência moderna”, o projecto do domínio científico do universo vincula-se ao propósito de emancipação e autonomia; “ele permanece submisso à realização de certas finalidades, de certos objetivos considerados vantajosos para a humanidade”. Ou seja, o domínio teórico e prático do universo, através do conhecimento científico e da vontade, não é puramente técnico, “não visa dominar por dominar, mas para compreender o mundo e poder, ocasionalmente, servir-se dele com vistas a atingir certos objetivos superiores que se reagrupam finalmente em torno de dois temas principais: liberdade e felicidade”.[5]

Ao invés deste ideário e posicionamento, no “mundo da técnica”, agora em vigor, Heidegger assinala o desaparecimento da “preocupação com os fins e objectivos últimos da história humana, em benefício único e exclusivo da atenção aos meios”.

A análise comparativa e qualitativa das duas orientações revela, portanto, diferenças abissais. Os humanistas e iluministas partilham duas convicções: Por um lado, a ciência, ao desvendar e esclarecer a natureza e ao iluminar os espíritos, possibilita a nossa libertação, assim como emancipar a humanidade dos grilhões, preconceitos e dogmas da superstição e do obscurantismo; por outro lado, o conhecimento e o domínio do mundo permitem soltar-nos das amarras e servidões, dos instintos e impulsos (tanto no tocante à natureza extrínseca como à intrínseca), assim como sublimá-los e utilizá-los em nosso favor, além de fornecerem elementos para a previsão de catástrofes e tiranias naturais (doenças, epidemias, insuficiências e degenerações genéticas e afins, ciclones, furacões, terramotos, maremotos ou tsunamis, erupções vulcânicas, mutações climáticas etc.).[6]

Nisto vê-se bem que o credo científico humanista e iluminista não é redutível a uma simples razão instrumental ou técnica; pelo contrário, está virado para alvos e fins exteriores e superiores a ele, tais como: felicidade e liberdade, categorias constituintes da ideia de progresso (ou movimento da sociedade), balizado por critérios de ética, estética, perfectibilidade, cultura e civilização.

Em gritante e chocante contraste com este entendimento, no actual ambiente de concorrência generalizada – chamado “globalização” – a ciência, seja no silêncio e anonimato dos laboratórios, seja nos conhecidos e badalados centros de investigação, vê-se despida dos grandes ideais e fins, em proveito dos meios; e é convertida em mera técnica. Simultaneamente altera-se total e radicalmente a noção de progresso que anteriormente a animava: não se orienta mais por referências e finalidades transcendentes, visa apenas competir, medir-se, igualar-se e, tanto quanto possível, superar a concorrência em números e bitolas, segundo os normativos em moda; ela é o fim em si mesmo, segue um imperativo de produção consumista absolutamente vital, em obediência a ditames semelhantes aos da selecção natural de Darwin. Não espanta, por isso, que a ciência se funda com a técnica e tecnologia e evolua (?) para ‘tecnociência’ e que as três se enlacem estreitamente com o contexto económico e vejam o seu desenvolvimento incensado e financiado por ele. 

Manifestamente, o poder humano sobre o mundo continua a aumentar, mas de um modo algo automático e cego, fugidio do controle das vontades e das consciências individuais. “É simplesmente o resultado inevitável da competição. Nesse ponto, contrariamente às Luzes e à filosofia do século XVIII que, como vimos, visavam à emancipação e à felicidade dos homens, a técnica é realmente um processo sem propósito, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido: na pior das hipóteses, ninguém mais sabe para onde o mundo nos leva, pois ele é mecanicamente produzido pela competição e não é de modo algum dirigido pela consciência dos homens agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio de uma sociedade que, ainda no século passado, podia se chamar res publica, república: etimologicamente, ‘negócio’ ou ‘causa comum’”.[7]

Desta forma parecem ficar suficientemente delineados os contornos do “mundo da técnica”, traçados por Heidegger, tal como se percebem as razões que o animavam e levavam a denunciá-lo: não se trata mais de dominar a natureza ou a sociedade em função da liberdade e felicidade, mas apenas em função da necessidade de competir, uma necessidade de proveniência exógena, isto é, imposta de fora pela obrigação absoluta de “progredir ou perecer”.

3. Neste quadro o intelectual, engajado em nome de causas e ideias, dá lugar ao especialista em pareceres, investido do poder de um suposto saber para dizer aos demais o que devem pensar, sentir, fazer e esperar, em todas as esferas da vida. Ele não critica a ordem existente; pelo contrário, comporta-se como agente do silenciamento dos sujeitos e da crítica, sendo esta substituída pela proliferação ideológica de receitas para viver ‘bem’ e conforme ao regime neoliberal vigente. E assim, ao arrepio de um dos princípios fundamentais da democracia – o da competência política de todos os cidadãos - todos os temas são agora considerados uma coutada privativa de especialistas e, por isso, submetidos a considerações e decisões de natureza técnica, incompreensíveis à maioria das pessoas.[8]

Sim, a autonomia racional da maioria dos cidadãos é uma miragem. E do mesmo jaez é a preocupação com a sua educação cívica, assente na capacidade para a comunicação argumentada, para (con)viver politicamente com os outros na cidade democrática. Para prevenir o temor perante a crescente e letal influência exercida pela ignorância. Para pôr cobro à incapacidade para expressar exigências ou para compreender as que são formuladas pelos outros, para questionar ou refutar os argumentos alheios, para ultrapassar a carência de compreensão dos direitos e deveres impostos pela vida em sociedade, para contrariar a adesão patológica a tribos, lobies e corporações de interesses escuros. São os cidadãos ignorantes, todos com direito a voto, quem sustenta os demagogos que prometem o paraíso a pataco e arranjam bodes expiatórios para todas as frustrações.

Isto contradiz a ideia da democracia, já que no seu bojo mora o projecto de que todos têm que adquirir o sentido da equidade e responsabilidade, aprender a obedecer a leis e a praticar os valores partilhados. Até porque a trave mestra da ordem democrática consiste em que nela não haja especialistas em mandar e especialistas em obedecer, mas sim em que todos os cidadãos estejam aptos a desempenhar os dois papéis. Para tanto a educação com selo democrático deve cuidar de contribuir para a realização do direito fundamental de qualquer homem, qual seja o de ser munido dos meios intelectuais necessários ao exercício da deliberação, ou seja, da liberdade. E isto assenta na formação de caracteres humanos capazes de persuadir e de se abrir à persuasão, de perceber e apreciar a força das razões e recusar a razão da força, de participar em cometimentos e celebrar acordos e transacções, de ser racional e razoável a reconhecer o mesmo estatuto aos outros, enfim, na formação do cidadão apto a manifestar aquilo que intrinsecamente é: um ser de pensamento, de palavra e comunicação.

Todavia, em vez de serem perspectivados como ‘príncipes inter pares’, dotados tanto da condição de mando como da de obediência, tanto da de objecto das leis como da de sujeito delas, os cidadãos são paulatinamente conformados ao jugo da vassalagem. A ordem vigente segue cada vez mais os ditames das conveniências de uma minoria.

Até o conhecimento perde autodeterminação, ao tornar-se um capital tão ou mais apetecido que o financeiro. Como se sabe, na dita e emergente ‘sociedade do conhecimento’, a ciência, a informação e a tecnologia servem as estratégias da economia, da indústria e do respectivo poder. Assim o saber não se define mais por disciplinas científicas, mas por problemas e pela sua aplicação nos sectores empresariais; mais, submete-se a controles de qualidade, com esta a ser ditada pela relevância e eficácia económicas.

A autonomia da razão era a base da independência com que a racionalidade científica da modernidade estabelecia o objecto, os métodos, os resultados e a sua aplicação, segundo critérios imanentes ao conhecimento. A nova situação, decretada e aplaudida pelos ‘papagaios do pós-modernismo’, subordina o saber a imperativos exteriores. Deste modo a ciência, uma das mais belas e exaltantes criações do génio humano, cai na dependência dos interesses económicos e empresariais; são eles que determinam a utilidade e inutilidade, a validade e caducidade dos saberes; são eles que concedem orçamentos e financiamentos. Isto não atinge só às ciências duras; aplica-se igualmente às ciências sociais e humanas que são convidadas a formar quadros não mais para serem empregues na área de recursos humanos, mas para criarem e venderem serviços. Consequentemente estamos a assistir à colocação das universidades e dos centros de investigação na dependência da matriz neoliberal; a sua tradicional autonomia deriva para heteronomia.

É assim que se perde a autonomia racional que era condição tanto da qualidade do saber como da autoridade moral dos intelectuais - e das suas instituições - envolvidos com as causas da sociedade.

Concretizando, o mundo desencantado ou, se preferirmos, a “tecnização do mundo” ou ainda a competição técnica globalizada, em que hoje vivemos, surgem a partir da desconstrução e demolição de marcos e alvos transcendentes e superiores; deixaram de parte a racionalidade instrumental da técnica, afundaram o reino dos fins e consagraram a lógica independentista e absolutista dos meios. É esta a larga, espessa, amarga e dura linha que demarca e afasta o mundo contemporâneo do Iluminismo, do Humanismo e da Modernidade: as febris e instáveis evoluções, decorrentes aqui e agora e a toda a hora, não se ligam a nenhum projecto comum e não almejam um mundo melhor, antes se demitem de equacionar e chamar a si intenções dessa envergadura e empresas desse teor.

É certo que nada nos impede de manter o optimismo. Mas essa atitude provém mais da necessidade e esperança, do desejo e da boa-vontade do que de convicções fundadas nos factos em que a realidade é sobeja. Basta olhar em redor e reflectir um pouco para cair no pessimismo e para notar que o receio e a angústia tendem a tornar-se “a paixão democrática por excelência”. O sentimento da descrença, incredulidade e perplexidade apoderou-se dos cidadãos. “Pela primeira vez na história da vida, uma espécie viva detém os meios de destruir todo o planeta; e essa espécie não sabe para onde vai! Seus poderes de transformação e, eventualmente, de destruição do mundo são, a partir de agora, gigantescos, mas como um gigante que tivesse o cérebro de um recém-nascido, eles estão totalmente dissociados de uma reflexão sobre a sabedoria – enquanto a própria filosofia se afasta apressada, tomada que está, também ela, pela paixão técnica”.[9]

4. Vivemos hoje numa ansiedade constante. Foram-se, como vimos atrás, os parâmetros e âncoras, os alicerces e pilares legados pelo humanismo e modernidade. E no seu lugar ficou um vazio onde se instala toda a sorte de inquietudes, de descrenças, cerrações e descorçoamentos que invadem paulatinamente a vida. O mundo natural é cada vez mais incerto e menos fiável; e o social – das instituições credoras de apreço e respeitabilidade, que aprendemos a ver como guardiãs do apoio, segurança e tranquilidade, em caso de problemas – desmorona-se a olhos vistos. Agora a aposta é nos que são fortes, poderosos e ricos ou têm habilidade, esperteza e sorte para atingir esse estatuto. Somos crianças perdidas, confusas e errantes, inundadas e possuídas pelo sentimento de impotência e carentes de orientação e protecção.[10]

A democracia prometeu muito: servir os cidadãos. Mas…afinal a quem e para que serve? Em que regime vivemos? Que sentido e futuro inspiram os nossos dias? A que grau de cidadania, civilidade, civilização e cultura está ela a levar-nos? É isto que procuramos e nos realiza e exalta?

Somos seres de fuga e deriva. Donde fugimos e para onde vamos? Que sociedade estamos a desfazer e que humanidade estamos a construir? Que república, democracia e vida pública são estas? O que é feito da transparência, integridade e honestidade e da pulsão altruísta?

Como diz Kundera, o ambiente é de neblina, embora não de escuridão total que impede qualquer olhar ou movimento. Somos livres, porém só temos a liberdade de uma pessoa na neblina: vemos coisas e gente à nossa volta e reagimos aos seus actos e efeitos, mas não enxergamos para além de um raio diminuto. Viver na neblina obriga-nos a focalizar a atenção na proximidade, nos problemas e perigos visíveis, imediatos e prováveis. Vemos e vivemos no perto, no superficial e transitório, não divisamos ao longe na obscuridade e profundidade.[11] De fora da nossa compreensão e visão ficam as ameaças e artimanhas, os malabarismos e jogos mais perigosos, imprevistos e, quiçá, imprevisíveis. Contudo, paradoxalmente, não ficamos chocados com a revelação de factos que nos abalariam seriamente se não vivêssemos na neblina. Protestamos, é certo, mas é uma reacção ténue e fugaz, condenada a sumir-se na nossa evocação e lembrança, antes da missa de sétimo dia. Já não partimos a louça nem agitamos a bandeira da revolta, por mais que os políticos nos aldrabem e desonrem a função, instalem e adensem o nevoeiro da hipocrisia e da dúvida e desconfiança. Estamos treinados para a rotina da conformação e aceitação, para fechar os olhos e tapar os ouvidos. Não ignoramos ou subvalorizamos os casos escabrosos de vergonha e escândalo que nos aviltam e apoucam, mas, julgando que assim lhes escapamos e preservamos a saúde mental e moral, fingimos que não nos surpreendem.[12]

A luz brilha nalgumas casas, mas em muitas – e são cada vez mais! – a esperança apaga-se e cresce o desespero da escuridão. A estreiteza e a farsa da vida na neblina transformam-nos emTitanics, alertam eminentes pensadores da actualidade.[13] Sabemos que há um iceberg à nossa espera e que ele nos afundará fatalmente. Contudo, despojados dos meios e da vontade de o localizar e evitar, damo-nos à cegueira e avançamos para o choque, bebendo e dançando ao som da orquestra da leviandade e irresponsabilidade, indiferentes a advertências e sussurros de maus presságios. As tábuas de navegar são postas de lado. Na neblina vale tudo; cheira a perdição e podridão. Por isso preocupante e monstruoso não é o iceberg, mas a falta de um plano sensato e viável para evacuar e salvar os passageiros do navio que segue para o abismo, sem botes e coletes de salva-vidas. É este logro ilusório que apanha as vítimas desprevenidas e incapazes de reagir. Aquilo que não se afunda é quase nada; o que resta é um papel fino, encharcado e enregelado. Oculto pela neblina o sol da humanidade, o sonho esfuma-se e toma a deformação de um pesadelo.

Como se percebe bem, o ‘progresso’ dos nossos dias tem uma matriz estranha: aproveita-se da falta de luz; nutre-se e cresce do cinzentismo e da miopia, da manipulação e do condicionamento, da trapaça e do embuste que nos envolvem. E conduz inevitavelmente ao colapso. Porque a neblina cerceia-nos o espaço vital, como se não houvesse amanhã.[14]

Afinal o apocalipse acontece aqui e agora, no coração do mundo civilizado, aclamado pelo seu esplendor e pelo deleite da ilimitada diversão e indiferença. Confirmando que a casca da civilização tem a espessura de uma hóstia. Que somos frágeis, náufragos, errantes e fracassados; andamos à procura de um ombro para reclinar o rosto do desassossego. E que lutamos pela sobrevivência como cães esfaimados e selvagens, num contexto de regressão e descivilização, convidativo à guerra de todos contra todos.

5. Regressemos à Universidade com apoquentação redobrada, porque ela corre sério risco de ser desfigurada e desmanchada por um exército de fervorosos cruzados contabilistas que influenciam e tomam decisões e ocupam posições de topo. Eles reduzem tudo ao cinzento: detestam o arco-íris das diferenças, são monocromáticos na vista, no coração e na alma. Julgam-se reis absolutos deste tempo que celebra o seu triunfo; e inebriam-se com isso. Consideram-se iluminados e ungidos por um ente superior e cuidam que têm uma missão divina e evangélica a cumprir. Têm que salvar esta pobre terra e trazer ao redil da eficácia as pervertidas gentes. Frios e vazios de calor humano, ressequidos de emoções e falhos de sensibilidade para os outros e os seus anseios e afectações, para eles só valem números e cortes, reduções, fundações e fusões. Revêem-se no anjo exterminador da Bíblia e assim, minados no seu íntimo pelo Complexo de Édipo, armados de infalibilidade e alimentados pela inquebrantável fé nas suas certezas, brandem a implacável espada do fogo aniquilador. Arrasam e decepam tudo quanto se levante no seu caminho. Antevêem, lá ao fundo, o pódio e a coroa da glorificação à espera deles, após destruírem o que encontraram e refundarem as organizações em toda a linha. E sentem redobrar o astral do seu ímpeto reformista ao ouvirem o coro de loas e incentivos provindos dos que condicionam, determinam e, porventura, reconhecem ou pagam, embora mal, o seu serviço. Uns sabem ao que andam e a quem servem; é possível que outros não se dêem conta de que não agem por iniciativa própria, mas a mando e para lucro de alguém.

O fanatismo e a obcecação não os deixam ver que o credo neoliberal não produz um mundo melhor. Com a religião da gestão não passamos a viver num mar de rosas; pelo contrário, ergue-se dia-a-dia bem alto e visível o calvário da desumanidade. Também não concebem que são vencedores e estão na mó de cima em circunstâncias que não podem durar muito tempo. Não percebem nem tampouco admitem que o sucesso, que tanto os fascina e faz exultar por dentro e por fora, é simultaneamente o começo da sua perdição. Não farão história nem terão registo nela, porquanto o mal, a destruição e a perversão não cabem naquele conceito. Apenas serão lembrados pelas piores razões.

Iludem-se cuidando que chegaram só pelo mérito pessoal aos lugares que ocupam. Esquecem quem os auxiliou na ascensão e, com o mesmo desdém, renegam o sentido dos votos que receberam. O programa que subscreveram e defenderam era mero disfarce de uma agenda oculta. Ora a isso chama-se deslealdade e traição e estas não ficam gravadas na exaltante e grata lembrança dos homens, antes são uma porta para a desconsideração e comiseração. Na galeria dos heróis e triunfadores não há lugar para tal gente. Ela fica ignorada na vala comum.

É certo que são narcisos incensados e adulados pela conjuntura; deslumbrados e convencidos, recusam-se a ver a imagem desfigurada e infeliz que têm no espelho da vida. Mas não vão longe; murcharão antes do prazo que imaginam estar-lhes destinado. Porque os homens livres não têm a consciência à venda, nem a boca afeita à mordaça. E sabem, como o imperador romano Júlio César, que “os cobardes morrem muitas vezes antes de morrerem de facto”.

As instituições que atravessam o tempo, fazem história e nesta ganham assento e respeito não são obra da pequenez e estrabismo dos vendilhões do templo; são, sim, expressão da grandeza de sonhadores e empreendedores que as idealizam e configuram para criar, acrescentar e prolongar o legado cultural da Humanidade.

6. Perante os desvarios atrás expostos, não se defende nem intenta fazer regressar o passado ou carpir saudades e lamentos por ele; porém é necessário aprofundar e construir outro presente. Para tanto é preciso recriar ideias e ideais que balizem o desenvolvimento do mundo e o permitam ordenar e controlar, uma vez que ele parece fugir até das mãos dos mais poderosos - não porque estes tenham decoro ou dores na consciência, mas porque um desconcerto tão exagerado não favorece a manutenção duradoira das suas hipócritas declarações. Ou seja, são múltiplos os pretextos que insinuam a utilidade e a vantagem de ordenar ou, no mínimo, restringir o mais possível a “dominação técnica”, mercantilista e contabilística do mundo.

Esta tarefa coloca a filosofia contemporânea perante um dilema: aceitar a conformação a ser mais uma “disciplina técnica” na configuração curricular com que os fanáticos advogados e promotores do Processo de Bolonha porfiam em apoucar e perverter a universidade, transformando paradigmas em paradogmas e substituindo a razão pela teologia e a lucidez pela aberração; ou entregar-se a reconstituir e renovar o Humanismo, para preencher o hiato deixado pelo seu definhamento e abatimento.

A resposta parece óbvia, precisamente para aqueles que laboram no campo universitário e científico e se interrogam acerca dos caminhos e tortuosidades que ele está adoptar. Não é preciso ser filósofo por formação e profissão para assumir a obrigação de reflectir. A “reflexão crítica” é um imperativo moral de todo o ser humano digno desse nome que não suspenda o interesse pelo mundo e queira estar à altura das exigências e circunstâncias da sua vida. Logo um académico não pode deixar de ostentar essa qualidade indispensável, de exibir em alto e apurado grau a capacidade de espírito crítico em relação a si mesmo, ao seu perfil, papel e labor; nem pode ficar neutro e indiferente ao modelo que hoje se quer impor a todo o custo, qual seja o de colocar a universidade e a ciência sob o primado exclusivo da tecnologia e das suas ambições e ‘valores’ curtos, míopes, pequenos e comezinhos, o de transformar todas as disciplinas científicas, incluindo as ‘duras’, em ‘tecnociências’ mais preocupadas com resultados e ganhos económicos, industriais e comerciais do que com fins, questões e justificações amplas e fundamentais.

Ademais um académico deve tender para se afastar da ignorância e incultura e abeirar da erudição; e esta, como dizia Hegel, “tem início com as ideias e termina com a imundície” e com a pequenez e estreiteza das noções, visões e perspectivas.[15]

Ou será que a um mestre ou doutor bastam uma especialização em miudezas, [16] uma erudição prolixa em coisas minúsculas, mas vazia de alcance e compreensão do todo, uma confrangedora ausência de inquietação em relação ao fundo cru tecnicista e tecnológico em que mergulhamos? Não tem necessidade de alargar os horizontes da sua especialidade e de enxergar, para além deles, valores abrangentes, fundadores e mais promissores?[17] Não carece de uma teoria (theion + orao) que o habilite a ver mais longe, o superior e divino?[18]

Se ele não se deixa atrair pelo apego à procura e ao cultivo da sabedoria e espiritualidade, quem poderá e deverá interessar-se em substituí-lo nesse empreendimento?[19] Quem poderá confrontar-se com a nostalgia de um passado que não existe e com a projecção, antecipação e espera de um futuro indefinido? Quem se ocupará da responsabilidade de refundar e propor uma transcendência da natureza e da história pessoal e social, que nos ajude a idealizar e viver o presente e a preparar a vinda do futuro? Quem combaterá o relativismo, actualizará e formulará princípios e valores e lançará os pilares de renovação e fundamentação da ética, da liberdade e da perfectibilidade em nós e fora de nós?

Terá alma a Universidade, se os académicos se isentarem da obrigação de pôr em questão a presente situação, se deixarem de pensar, isto é, de questionar sem máscara, sem delonga e sem cedências a empenhos estranhos à essência da sua instituição e missão? Seremos nós mesmos, se deixarmos de preservar o nosso Ser e de perseverar na denúncia da penúria que nos ronda a porta?

Mais ainda, seremos capazes de nos pensarmos a nós mesmos, de ajuizar e avaliar os nossos pensamentos, atitudes e actos, os outros, a vida, a sociedade, o funcionamento do mundo e o nosso relacionamento com a alteridade, sem o recurso à superação e transcendência e aos ideais e horizontes que elas apontam? Manifestamente não. De resto, os genealogistas da pós-modernidade e do materialismo (demolidores e arrasadores do humanismo e das suas grandezas, não é demais repetir) pregam o amor ao mundo tal como ele é, numa espécie de actualização da máxima antiga carpe diem – goza o dia de hoje, mas intimam à revolução, à mudança e melhoria, quando ele não satisfaz. Com isso estão a afirmar que a transcendência é uma dimensão incontestável e imanente à existência humana, “inscrita no centro mesmo do real”.[20]

Logo o espaço universitário deve ser um espaço privilegiado onde cada um se deve sentir obrigado à auto-reflexão, a tornar imanente a si mesmo, às suas convicções, acções e respectivas consequências uma teoria da transcendência. Uma teoria com um alcance e pensamento normativos alargados, que reflicta sobre o que deve ser, que combata a arrogância, a sobranceria e o autoritarismo da ‘tecnociência’; e que convide a questionar os meios e os fins, a sacralizar o outro, a divinizar o humano, a dar-se ao esforço de perseguir a perfectibilidade e a liberdade, a sair e distanciar-se de si, a adicionar às características originais, particulares e situacionais traços, noções e valores universais e a incorporar, assim, a condição de individualidade e singularidade na da universalidade, dada por uma perspectiva mais ampla, por uma experiência e vivência com selo e identificação de humanidade.

A este propósito, não esqueçamos “as lições aprendidas entre os dois séculos que separam (a tragédia de 1755 em) Lisboa – que desencadeou as ambições modernas – de Auschwitz, que as fez desmoronar”, assim resumidas por Susan Neiman:

“Lisboa revelou o quanto o mundo estava distante dos seres humanos; Auschwitz revelou a distância dos seres humanos em relação a si mesmos. Se desembaraçar o natural do humano é parte do projecto moderno, a distância entre Lisboa e Auschwitz mostrou como é difícil mantê-los separados…

Se Lisboa assinalou o momento do reconhecimento de que a teodicéia tradicional era inútil, Auschwitz marcou o reconhecimento de que nenhum substituto se saiu melhor”.[21]

A logodiceia é ainda muito frágil; não passa de um pequeno lume, mas não temos outro para nos alumiar a caminhada. Há muitos passos por dar e degraus para subir na escada que nos abeira do humano. A Humanidade continua a vestir de luto, ainda distante, muito ferida e carente de raios de afecto e luminosidade e de abraços de solidariedade, empatia e fraternidade nesta conjuntura de tristeza e obscuridade, de suplício e precariedade, de pobreza e falta de contemporaneidade. Não nos entreguemos à derrota e desistência; ao invés, porfiemos em construir o poema da ética e estética, da arte e beleza, da virtude e excelência, da radiosa e contagiante cidadania da universalidade. Sejamos persistentes como os mosquitos da dengue, do mal e da desgraça, para levarmos de vencida a teimosia das forças do descaso e desagregação, da mentira e alienação, da trafulhice e corrupção, da ganância e especulação, da tragédia e desolação, da fome e escuridão!

Em suma, todo o académico deve fidelizar-se aos compromissos que conferem excelência à realização da essência da sua função, assimilando para tanto a admoestação do Pe. António Vieira: “Cada um é as suas acções e não outra coisa (…) A verdadeira fidalguia é a acção”. Ou a de Vergílio Ferreira: “ Só se consegue aprender o que não nos interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo”.

 

 

[1] Ferry Luc (2007). Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva.        [ Links ]

[2] As considerações, feitas nestas páginas, acerca da ‘técnica’ e da ‘tecnologia’ em nada contendem contra a sua genuína função humanista, enquanto instrumentos de liberdade e libertação do homem, o que é exemplarmente ilustrado no mito de Prometeu inspirador do progresso e de todas as formas de cultura e arte, como p. ex. o desporto. É também devido a elas que o homem se solta da caverna e das amarras da animalidade e emerge ao sol da humanidade. O que está aqui em causa é a deturpação da sua função, a conversão dos meios em fins, como adiante se verá.

[3] Será que Nietzche teve razão ao antever este tempo e acusar a democracia de degradação a “uma forma decadente e curta da humanidade que ela reduz à mediocridade e cujo valor ela diminui” e, ao perguntar: “onde depositaremos nossas esperanças?” (Ferry Luc, ibidem).

[4] Ferry Luc, ibidem.

[5] Ferry Luc, ibidem.

[6] O terramoto, o maremoto e incêndio de Lisboa, em 1755, exerceram grande influência na filosofia e nos pensadores modernos. Como refere Zygmunt Bauman, a filosofia moderna seguiu o padrão estabelecido pelo Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal na altura daquela catástrofe. As acções e preocupações do governante concentraram-se na erradicação dos males que podiam ser removidos pelos humanos. “Os filósofos modernos – acrescenta Bauman – esperavam/confiavam/acreditavam que as mãos humanas, uma vez equipadas com extensões cientificamente planejadas e tecnologicamente fornecidas, chegariam mais longe. Também confiavam que, com essa ampliação, o número de males além de seu alcance cairia – até mesmo a zero, desde que se tivesse bastante tempo e determinação”. (Bauman Zygmunt (2006). Medo Líquido, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro).

[7] Ferry Luc, ibidem.

[8] Novaes Adauto (2006). Intelectuais em tempos de incerteza. In: O Silêncio dos Intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras.

[9] Ferry Luc, ibidem

[10] Bauman Zygmunt, ibidem.

[11] Em conferência proferida no dia 7 de Maio de 2008 na Fundação de Serralves, Porto, Frederico Mayor, antigo Director da UNESCO, fez esta atinente afirmação: “temos que ver o invisível para conseguir o impossível”.

[12] Bauman Zygmunt, ibidem.

[13] Bauman Zygmunt, ibidem.

[14] Dei conhecimento prévio deste texto a Ronaldo Monte, um amigo e ilustre pensador da Universidade Federal da Paraíba, Brasil; ele reagiu assim: “Esta neblina nos envolve a todos, em todos os continentes. Mas ainda não estamos cegos. E mesmo vendo muito pouco, podemos nos apalpar e acharmos as mãos. E trôpegos, mas lúcidos, ainda podemos fazer um caminho que nos leve além da neblina, à clareira da solidariedade. Aí nos reencontraremos novamente”.

[15] Ferry Luc, ibidem.

[16] Em texto com o título sugestivo DOUTORES ou ainda menos, publicado em 5 de Maio de 2008, na última página do Jornal de Notícias, Porto, Manuel António Pina ironiza com a oferta prolixa e esmiuçada de cursos de pós-graduação, mestrado e doutoramento nos mais ínfimos assuntos. Só falta, diz ele, “um Doutoramento em Tudologia. E em Sueca, e em Arrumação de Automóveis. Mas lá chegaremos”. Por mais que nos doa, a caricatura é perfeita; resvalamos para o ridículo, por irreflexão, por omissão, por desrespeito e traição à essência da universidade e por perversão da sua missão.

[17] Merece ser chamado à colação o famoso postulado de Abel Salazar, nome insigne da medicina da Universidade do Porto, homem douto, culto e multifacetado, perseguido pelo regime salazarista (do outro Salazar!): “Quem só sabe de medicina, nem de medicina sabe”.

[18]‘Teoria’ tem origem etimológica no grego: theion (divino) + orao (ver).

Vem a propósito citar a passagem de uma canção do cantor Severiano Pessoa, natural de Pernambuco, Brasil, que reza o seguinte: “Visionários são dicionários dos sonhos de Deus”. Os académicos não se podem despedir deste papel.

[19] A felicidade é a meta da filosofia; não uma felicidade qualquer, mas ”uma felicidade que se obteria em certa relação com a verdade” – afirma André Comte-Sponville, com base na asserção de Santo Agostinho, de que a sabedoria é a felicidade na verdade, isto é, “a alegria que nasce da verdade”. [André Comte-Sponville (2005). A felicidade, desesperadamente, Editora Martins Fontes, São Paulo].

[20] “Transcendência na imanência” humana, esboçada por Kant e formulada pela fenomenologia de Husserl. Nunca alcançamos a transparência e o domínio perfeitos da realidade do mundo, mas ela é-nos imanente através da transcendência escondida, de valores que, embora situados em nós (imanência), se impõem à nossa subjectividade, e sensibilidade, às nossas noções e acções, como se proviessem de outra parte. “Certamente descubro, mas não invento a verdade de uma proposição matemática, tanto quanto não invento a beleza do oceano ou a legitimidade dos direitos do homem (…) Encontro-me diante de valores que ao mesmo tempo me ultrapassam e, contudo, não estão em nenhum outro lugar, visíveis apenas no interior de minha própria consciência”. (Ferry Luc, ibidem).

[21] Bauman Zygmunt, ibidem.