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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versão impressa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.8 n.1 Porto abr. 2008

 

Da Universidade como local e instituição da felicidade [1]

 

Jorge Olímpio Bento

 

É, porventura, a última vez na minha vida em que tomo a palavra numa cerimónia como esta, no desempenho das funções em que estou investido. Todavia não vou proceder a um balanço, mesmo sendo ele uma peça fácil de fazer, porquanto só teria que desfiar o rosário das minhas dívidas de gratidão, que são muitas e inesquecíveis.

No ano passado falei da Universidade e da Faculdade como um lugar da saudade. Desta feita elegi para tema de uma breve abordagem “a Universidade como local e instituição da felicidade”. Sim, por mais que os espante, dado o registo que tenho colocado, nos últimos tempos, nas minhas intervenções públicas, quero chamar a vossa atenção para o facto da Universidade e a Faculdade serem uma instância potenciadora, por excelência, da felicidade.

Não sou céptico ou pessimista por natureza, por essência ou índole ou ainda por aversão à novidade e à mudança, mas antes por reflexão. Prende-me ao pessimismo tão-somente a obrigação de olhar em redor e não me vergar à manipulação e alienação. De resto empunho e ergo o optimismo como bandeira de libertação e exaltação da nossa condição. Sou e quero ser, aqui e agora, neste momento e nestas duras e ingratas circunstâncias, um cidadão da esperança, como sempre fui, que não se resigna à desilusão e que se agarra, confiante e convictamente, ao sol do bom senso, da razão e lucidez, para dissipar o nevoeiro desta hora desconcertada e desconsolada. Ao cumprimento futuro de promessas messiânicas prefiro a proximidade de um presente concretizador da plenitude humana e da dignidade cívica e ética dos que delas carecem. Eis o meu juramento de honra, reassumido neste dia.

Mas…vamos ao assunto. Quando olho para trás e revejo a minha trajectória como estudante e como docente universitário, passo-me revista por dentro e por fora, na superfície e na profundidade e meço-me de alto a baixo; e sou forçado a concluir que na Universidade recebi o sustento que fez nascer e crescer paulatinamente em mim o destino da liberdade e felicidade.

Antes tinha ouvidos e olhos, sabia de cor o alfabeto e os números, mas não sabia verdadeiramente ouvir e ver, escutar e observar, ler e entender, escrever e contar, perguntar e responder, avaliar e valorar. Aqui absorvi conhecimentos que se tornaram combustível para o uso e labor da razão. Aprendi a pensar e, deste jeito, a libertar a mente, a argumentar e formular ideias e conceitos, a descobrir e alargar novos horizontes e perspectivas, a tecer e sonhar com ideais e utopias. Apercebi-me do invisível e de que estamos mais ligados a ele do que ao visível. Consegui ir além da epiderme e aparência das coisas, a tocar na sua substância e a viver o presente na dimensão do eterno. Com tudo isso rompi com o conformismo e a auto-satisfação; atrevi-me a acordar e desassossegar a consciência, a questioná-la e formatá-la de um modo permanentemente renovado, impondo-lhe metas, desafios, normas, valores e princípios cada vez mais exigentes. Pouco a pouco deparei-me com a ética e a estética, aprimorei o gosto e o gesto, as formas de expressão, a palavra dita e escrita, o verbo pronunciado e o calado, tentando alcançar a postura erecta e elevar a cidadania ao nível do esplendor da verdade. Foi assim que fui preenchendo o vazio interior, procurando adquirir um espírito e alma de bom tamanho. E confirmei que a existência precede a essência, que a maneira do estar condiciona e configura a do ser.

Ademais conheci pessoas encantadoras, enamorei-me delas e da sua beleza no corpo, nos sentimentos e actos. Encontrei outras assaz diferentes de mim, mas igualmente importantes e fantásticas, que me levaram a compreender o sentido e alcance da alteridade, a valorizar as diferenças, a estabelecer e enaltecer a aceitação e a tolerância, a ampliar e afinar a consideração e a sensibilidade, a partilhar causas, paixões e projectos, a confiar nos outros e a revelar-lhes segredos e desejos, intenções e frustrações, desditas e ansiedades, a celebrar compromissos e cumplicidades, amizades e fraternidades.

Li livros, manuais e tratados, familiarizei-me com os seus autores. Habituei-me a nomes célebres, a cientistas, a filósofos e sábios que me mostraram lados ignorados e sublimes da vida e apontaram vias para a questão da salvação. E deixei-me seduzir por crenças e mitos que nos incitam à transcendência, a invocá-la e a viver à sua altura, como nesta oração de Fernando Pessoa:

   Sim, sei bem

  Que nunca serei alguém.

  Sei de sobra

  Que nunca terei uma obra,

  Sei, enfim

 Que nunca saberei de mim.

  Sim, mas agora

  Enquanto dura esta hora,

  Este luar, estes ramos,

  Esta paz em que estamos,

  Deixem-me crer

  O que nunca poderei ser.

 

Hoje constato que, sem estas próteses, continuaria acorrentado às mais densas e diversas formas de hemiplegia espiritual e moral. E percebo bem que a caminhada é longa e que estou muito distante de lá chegar. Alegro-me pelo quanto já andei, mas a noção da falta e da insuficiência é mais viva do que nunca. Dentro de mim ecoam e ouço vozes nítidas de penúria; e sinto prazer em atendê-las e com elas dialogar. Deste jeito o sabor do poder de conhecer transforma-se em atracção pelo gozo de saber, sempre pouco e aquém da necessidade, mas bastante para fazer germinar o grão da ilusão da felicidade.

Ao olhar para aqueles que, nesta cerimónia, vão receber prémios de excelentes estudantes e diplomas e insígnias de mestres e doutores, tenho em boa conta quantos por aqui passaram e se formaram. São vários milhares de licenciados, é mais de um milhar de mestres e centena e meia de doutores. Alguns vieram de perto e de cima, muitos do meio, outros de muito baixo e ainda não poucos vieram da lonjura e da distância, atravessaram mares e continentes e fizeram sacrifícios incomensuráveis para realizar um sonho. Todos venceram barreiras e obstáculos, todos se desmediram e excederam para chegar a uma forma nova e superior e alcançar um estado de performance. Entraram aqui pequenos ou medianos e saíram aumentados e grandes. Todos regressaram às suas terras e acederam ao mundo dos ofícios e profissões numa melhor condição e com outra e mais apurada visão, levando e guardando o nome desta Faculdade no cofre do afecto, do apreço e da gratidão. Porque aqui lhes foram abertas as portas da afirmação e realização, que o mesmo é dizer, da libertação, da Humanidade e felicidade.

Em todo o Portugal, em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, em Moçambique, no Peru e noutras partes há gente que por aqui passou, que diz bem de nós, que tem saudades do tempo em que cá andou, que nos está grata e entoa cantos de elogio e louvor. Gente que aqui acrescentou páginas ao passaporte para ser mais feliz. Temos amigos e conhecidos, consumidores e apreciadores do nosso nome e trabalho em muitas e longínquas paragens do mundo. É isto que faz desta Escola e do nosso mister uma oficina, um instrumento e local de felicidade, que nos torna a todos mais felizes e que nos leva a perceber que ajudar os outros é uma auto-ajuda, que nos ajudamos uns aos outros a descobrir e perseguir a felicidade.

Por tudo isto eu gosto da Faculdade e da Universidade, identifico-me com elas tal como são hoje, estou de bem e regozijo-me com aquilo que uma e outra conseguiram, têm sido e apresentam. Porque nada é imutável, tudo se gasta e passa, eu amo o seu presente.

Senhoras e senhores, ilustres e distintos convidados, caros professores, funcionários e estudantes:

Esta sessão é, pois, uma evocação da felicidade, daquela que já vivemos e daquela que havemos de continuar a encomendar. Aqui e agora, nesta conjuntura de dúvidas e angústias, de apertos e dificuldades, a todos saúdo e agradeço pelo trabalho suado e pelo mérito conquistado. E a todos exorto para que não permitam que seja retirado do cerne da missão da Universidade o inestimável contributo para a felicidade. Não esqueçam que esta se funda na doçura da ilusão e quem a quiser roubar, destruir e substituir por uma realidade dura e crua é agente da amargura, da infelicidade e desumanidade.

Ítalo Calvino, in La città invisibili, atinge-nos no âmago do desassossego e do sono das nossas obrigações: “O inferno dos vivos não é algo que será: se existe um, é o que já está aqui, o inferno em que vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Há duas maneiras de não sofrê-lo. A primeira é fácil para muitos: aceitar o inferno e se tornar parte dele a ponto de não conseguir mais vê-lo. A segunda é arriscada e exige vigilância e preocupação constantes: procurar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não são inferno, e fazê-los durar, dar-lhes espaço”.[2]

Aderir à segunda maneira significa predispor-se a sofrer toda a sorte de pressões, aleivosias e insídias para aceitar o inferno. Contudo temos o dever de pressentir e lutar pelo mais e melhor. De fazer perdurar e de dar espaço àquilo que não é inferno, àquilo que nos encha e aumente de ilusão que é o alimento preferido da felicidade.

Sim, nascemos, estudamos e trabalhamos para vivermos num nível superior, ou seja, para esgotarmos as possibilidades de sermos felizes, sabendo que a felicidade em plenitude é um impossível necessário. É esta a nossa verdadeira identidade, cuja procura devemos incentivar e tentar, no pressuposto de que ela nunca seja inteiramente encontrada, sob pena de a graça e o encanto acabarem e o mistério da felicidade se perder para sempre.

Enfim, por quanto disse, escorre-me da garganta a proclamação de Aquilino Ribeiro: “Adiante e consideremos que para chegar a bom termo da viagem é preciso ser livres”. E felizes, acrescento eu. Continuemos portanto a perseverar na busca da felicidade. Não nos cansemos de crer e laborar em impossíveis, em feitos, grandezas e prodígios, com razão e emoção, como Natália Correia:

  Creio nos anjos que andam pelo mundo,

  Creio na deusa com olhos de diamantes,

  Creio em amores lunares com piano ao fundo,

  Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

 

  Creio num engenho que falta mais fecundo

  De harmonizar as partes dissonantes,

  Creio que tudo é etéreo num segundo,

  Creio num céu futuro que houve dantes,

 

  Creio nos deuses de um astral mais puro,

  Na flor humilde que se encosta ao muro,

  Creio na carne que enfeitiça o além,

 

  Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

  Na ocupação do mundo pelas rosas,

  Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.[3]

 

 

 

[1] Intervenção na Sessão Solene da Faculdade de Desporto da UP: 12.03.2008.

[2] Bauman, Zygmunt (2007). Tempos Líquidos. ZAHAR – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.

[3] Correia, Natália (1990). Ó Véspera do Prodígio IV.  In Sonetos Românticos.